Você está na página 1de 6
TEXTO 1 - Leite, M.A. Faggin P. “A natureza e a cidade: rediscutindo suas relacdes” In SOUZA, SANTOS, SCARLATO ¢ ARROYO (Orgs.) (1994) Natureza e sociedade de ‘hoje: uma leitura geogréfica (0 Novo Mapa do Mundo), Hucitec/Anpur. “A histéria do homem sobre a Terra € a historia da ruptura progressiva entre a sociedade ¢ 0 entorno” (Santos, M.) ~ Critica a concepedo de oposicao entre sociedade e natureza/natural e construido - “urbanizagio extensiva” - Historicamente, as priticas urbanas tomaram “as particularidades sociais e naturais dos lugares” como extemalidades, submetendo-as a0 modelo produtivista. - _Justificativas e problemas na privatizago do espago piblico - “A redugio do natural ao construfdo patrocinada pela urbanizagao (...) inclui a correspondente indiscriminago entre olhar e ver” (p.143) = A.urbanizago como produto/ A urbanizacdo como proceso | ‘ OQ NOVO MAPA DO MUNDO NATUREZA E SOCIEDADE DE HOJE: UMA LEITURA Quadlo ff taewe.e:0 GEOGRAFICA fate coteaok Did [Yea ORGANIZADORES MARIA ADELIA A. DE SOUZA MILTON SANTOS FRANCISCO CAPUANO SCARLATO MONICA ARROYO EDITORA HUCITEC ASSOCIAGAO NACIONAL DE POS-GRADUACAO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL Sho Paulo, 1993 a A natureza e a cidai rediscutindo suas rela¢ MARIA ANG ra a histéria da ruptura progr discussBes “A historia do homem sobre a siva entre a sceiedade e 0 entomo.” Porém, ultima sobre a oposigdo entre natureza ¢ cidade, ao se tomar exacerbadas, tornam: ‘A natureza, vista em dimensfe historica, inclui 0 homem, seus ates objetos, conhecimentos, crengas, potencialidades e limites. Mutvele inst vel, sempre se transformou por forga dasn Jeis que regem a evoluggo da socicdade e de seu processo de produgio e, com o passar do tempo, Jncorporou a essa transformaglo a cimensio tonics, waduzida em um modelo muridial e Unico que se sobrepte 2 toda e qualquer diversidade cultural, econsémica ou politica, unificando a natureza como om a0, juizos, int ‘Aoposigao.en 0 momento ‘onatural¢ 6 construido perde sentido e interesse apartir: que essa possibilidade de unificagdo do globo terresire em uum unico si se comunicagoes, de potencial ilimitado fi do do natural como espago nio- orsanizado, nio-delimitado, desprotegido, em contraposigdo a0 construido sido. como espago precisamente del ‘Dentro das cidades nao estamos mais 2 salvo dos perigos da natureza, Os snarurais, que aa Antiguidade tinham sua incidéncia mais ‘delimitada € seus efeitos, mesmo que catastrdficos, pouco lidade, uma caracceristica cumulativae prOprios fend fou menos be prolongados, par generalizada que torn di ‘controlar seus efeitos. “A natureza ao esté mais além dos tas cidades ndo tém mais muros mas estendem-se infinita- que além de seus limites ainda seja cidade, representada 5 mas por rodovias, ferravias, compos industrial- inserever sua area de incidé mente, fazendo co io mais, 5 efi 140 MARIA ANGELA FAGGIN PEREIRA mente cultivados, A natureza € urbanizada, integrada A cidade para comporo civilnad Essa integrardo, entretanto, no decorre da tio desejada reconciliario za c cia jo, purae simples, de tudo ao urb Nessa redugo, anatureza ea cidade tornantse incapazes de serem pi das e, conseqtentemente, incapazes de fomecer informagdes novas inespe- radase diferenciadas, A sociedade imerpretae utiliza anaturezaesritamente de acordo com a forma implicita de sua insereio no projeto urbano & interpreta euilizaa cidade estritamente de acordo como conjunte de norms © agbes implictas em seu processo de prodseio. Vistas em dimensto histirica, as prtices urbanas revelem uma preoct- pcto bastante frégil, tanto em relagdo ao natural quanto em relacio a0 social Projetos,planos ou programas de urbanizacto tém em vista, sempre, uma rmudanga de situago reconhecida como insatisfaoria’. Essa insatista- ‘fo, porém, nio incide igualmente sobre todos os lugs do tervtério © nem mesmo sobre toda a sociedade. Mesmo depois de claramente identi cada, 86 vai se tornar objeto de mudangas apés diversas consideragdes téenicas, econdmicas ou politicas elaboradas sobre um quadro urbano que inclu, mas ndo considera relevantes, as particularidades natura © sociais dos lugares No campo natural, a técnica cria condigdes de transformagdo que tm & capacidade de subordinar essas particularidades aos interesses da explora- 80, produsdo, cirulagao e consumo da escaia mundial, diminuindo sua importineia como fator limitante do projeto. No campo social, a adogdo de certos padres de projeto, intervengio e construgdo da cidade traz implicito um conjunto de normas éicas e morais que revelam aintencéo de incluir,em tas projetos, certos setores da socieds- dee, simultaneamente, de exchuir outros. A avaliagio ea selegdo de umn projeto dever ser fetos tomando-se como base toda a riqueza de conexdes que ele permite estabelecer entre os lerentos naturais e sociais, visando garantr padrdes de qualidade de vide culturalmente estabelecidos. Suas alternativas nio devem contemplar as questées tenicas, inanceiras ou politicas isoladamente, mas sim sua inte- gr2¢80 com as questdes sociais, culturais estéticas envolvidas ne mudanga proposta. As praticas do urbanismo, porém, de modo geral ndo fazem uso desse conjunto de caracteristcas naturais e sociais de um lugar — da natireza desse lugar — para avaliar, selecionar, emitir juizo ou implantar concepgbes de organizago urbana, mes parecem procurar perpetuar, numa atitude oobi ANATUREZAEACIDADE 141 1 a reprodusa antes ¢ dogméticos, de reduzi nodelos parcias, que apesa Natureza publica e n os, vilas ¢cidades b definigho sobre a hugo dos pove: inreversivel, processo de assistiv a um dade pr nto, ord ada e a de uso coletivo. Conforme demonstra amplamente indefinigao propositadamente pretendia faclitar o avango das cidades sobre as dreas cireundantes, as quais “eram retratadas geralmente Mar’, como solo mal cuidado,além de vazio, como ter das, ao deus-daré™. A natureza que circundava os povoados, vils cidades constitua, junto com as ruas, jardins © pragas internos a essas cidades, 0 patimOnio de dominio e de uso comum do plilico, iso é as areas abertas & fruigdo de todos, Com o adensamento das cidacese seu censequente avanco sobre as areas cireundantes instalaram-se, simultenesmente, os processos de semincia ao espago pibtico urbano e de privatizago da nature A reniineia 20 espago publica da cidade fica caracterizada por uma série Ge procedimentos diferentes: nas camadas de mais alta rends, pelo desenvol- vvimento privado de atividades culturais e de lazer; nas de balxo poder aquisitivo, pela impossibilidade de participar de atividades pablicas sociais ou culturais, seja pelo temor de sair de casa apés 0 anoitacer — pois nio ha garantia de seguranga — seja por sua marginalizagio no processo de desen- volvimento cultural; a atuapdo do poder pilblico agrava essa situagdo pelo isolamento — por meio de grades, muros ou procedimentos intimidatérios — dos espagos piiblicas de uso coletivo, visando atender a alegaydes de cariter essencialmente diseriminatério: falta de seguranga gerada pela per- mantncia, nas pracas, parques e jardins, de “esocupados” ou “suspetos”, ou fata de condigdes intelectuas para a participaydo popular em atividades culturis. A cidade responde a esse rejeigao recipcoca entre classes socials e poder piblico, exibindo uma paisagem fragmentada e desorganizada: espa- 40s privados fortemente defendidos e espagas piilicos abandonados e Jha processo de privatizaglo da natureza ocore pela transformago de sea cardter publica em privado de dvas maneiras diferen argumenta que “na oposigdo entre o piblico e o privado ve existem duas acepgdes que apontam para realidades e problemas distintos, apesar de complementares, Na primeira acepeio, pblico & comumm a todos, ARIA ANGELA FAGGIN PEREIRA LETTE a ser diferenciado do que é part publico é0 acessivel a todos — de (G0 a0 Seereto, que é reservado 2 pou ‘No primeiro caso, certas condigdes de vida historicamente euraizad progressivamente vinculadas a um determinado lugar ou eultura, 40 $2 destrulas pela homogeneizagio forgada pelo desenvalvi: 6 conseguem persstic¢, ainda assim, apenas t2nue e parcialmente, entre alguns pouces grupos socias. E o easo, por exemp que subitamente tornam-se as guardis de uma natureza cireunser cada, sjetaa lise regras especificas de organizagio natural eso ra comum a todos tome-se particular a alguns. 'No segundo easo, elgumas éreas naturais co tevtério S80 declaradas de interesse piblico por seu valor histrio, ecologico ete. epassam a ser objet0 de preservagio permanent, integral eabsoluta vsando gaant iio de suas caracteristcas originals. O que era ecessvel a todos torma-se reservado a pouces. Esse conjunto de determinagSes ou atos tomados por uma parte de sosiedade, traz,evidenteriente,algums conseqiiénca para o conjunto dessa sociedade, a curto oa longo prazo, No Brasil, a permanonts invasio do privado sobre pibice e a prépria indefinigao histories do papel social do tspago de dominio caletive,associadas @ um modelo teéricouniforme cue eye a produgio dorbaro, toma anatoreza abstrata, iltriae manipulada, “Abstrata porque no € sua extensto nem sua localizagto o que importa, mas ‘sim sua signiicesto; ublitéria porque, em qualquer ces, esté inserida no processo de produgdo da sociedade,sendo-Ihe, assim, aibuida uma fungi specifica e precisa; manipulada porque sé € evocada como patrim6nio oY como depositria de certas condigoes socials a serem preservadas quando 0s desequilbrios gerados pela ordem mundial vigenteimpoem anccessidade de ciseutiraltemetivas que diminuam as enormes disparidades econémices entre as napoes. ‘Como contrapartida, 2 cidade transforma-se no vilfo éa Historia, a2 grande responsivel por condigdes de vida degradantes, desumanas ¢ isi portiveis ; ‘Nio sto mais o§atos ou as determinagBes sociis os responsive pelas condigdes e produslo e reproduglo do urbano, mas sim os préprios objetos que o infegram — a natureza e a cidade — que adquirem a capacidade de determina ¢ditigir os destinos da sociedade. . ‘Naturezae cidade separam-se da consciéncia social, do valor da vide, do rmiséria criada e agravada por um processo de urbanizagde que, a0 nto define as fung6es desempenhadas pelo natura e pelo constuido, eduzem= nos & mesma dimensio, estabelecendo e perperuando uma grosseira confi so entre causas efeitos do proprio processo urvano, “Abe inse ao que nic ¢ evidente Diante desse quadro manifesta-sea necessidade de procurarestabelecer, spreader, quai anatureza ¢ a cidade guardam entre si, Torna-se secundéria a manutengdo de atitudes ou valores arbitrrios impostos ou reconhecidos como essenciais por técnicos e espe- cialists, Em seu lugar insinua-se a possbilidade de reinterpretagao, form laglo de jutzo e ariouigdo de valor aos elementos que constitem a natureza 8 cidade. Como conseqUléncia, cra-se a possibilidade de reavaliagdo, pelo conjunto da Sociedade, do significado cultural da urbaniza¢ao. Em sua forma atual, 0 construido, o civilizado, conduz a um modo de obterinformagio, de ler seu funcionamente, que impede, em certa medida, 0 conhecimento dos fatos que se escondem sob sua aparéncia, Suas imagens sto expltcitas, minimizando ou dispensenco a exigéncia de compreender es ages que as produziram. As tentativas de explicaressas ages resultam, na maior parte das vezes, em exercicios teenicos quanttativos ou dimensionais, cilculos ds ciffas arrecadadas por impostes, em porcentagens de destina- 0 de recursos, em detalhes de elaboragio or¢amentiia, através dos quais procusa-se justlica 0 projeto, a produsao e a construsao da cidades refor. sando a impressto de que nfo sfo as coisas que importam —as cases, as avenidas a fabrieas, os rios —mas 0 que elas representam —o progresso, as comunicasdes, a ciculagiat 0 sancamento, A imagem explicita esgota-se tm si mesma e, simultaneamente, tora tudo opaco, porque nifo mostra subterrénco, a vida latente por trés das chads, 0 exciuido,o impticto” No dominio do natural, uma drvore, uma pedra ou um rio sdo apenas aguilo que sto. A eles ndo ¢ atribuida nenhuma outra funeo que nao a de representarem asi mesmos, ainda que integrem uma estrutura urbana na qual anatureza, em seu conjunto, seja também uma representagdo, um simbolo. ‘A redugdo do natural 20 construido patrocinada pela urbanizagto, isto é, areduglo dos rios a fontes geradoras de energia ou receptoras de dejetos, das frvorese plantas em areas verdes, da ihuminagto ¢ da ventilagdo em fontes de ralorizaglo imobiliria, inelui & correspondente indiscriminagdo entre olhar ever. O olhar revelao resultado das agées, 0 cenrio onde se desenvolve a vida, a velocidade das transformagées, O ver implica a compreensio, 0 ritmo, 2 histéria ¢, fatalmente, a cruel revelaedo das contradigbes, dos problemas, das diseriminagdes, 144 MARIA ANGELA FAGGIN PEREIRA LEITE entre anatureza © ‘A.visto é essencialm: te ética e a questdo das na atualidade, inentemente ética, A étiea€ inerente b cultura, @ por isco a diversidade, a complexidade social nto facilitam em nada a tarefa de estabelecer suas bases conceituais, Porém, do ponto de vist trbano, parece claro que a ética ndo diz rspeite nem a0 conjusto de atitudes texplicias, ainda que bem embasadas, tomadas com relagHo a0 nstura, nem as questBes t nance utilizadas para explicar a construgdo 43 cidade, mas sim “i exigéncia de abrir-se ao que nfo €evidente", como afirma Lyotard! "A urbanizagto, ao transformar de mancira tho intensa as relacBes entre a natwreza e a cidade, promove entre ambas uma unio complete ¢ wma olidariedade indestrativel que nfo permite mais e adogzo de ati Gas, Pensar solugdes parciais, eriar métedos de estudo, tratamento & propos tas para questBes genericamente rotuladas como ecoldgicas, naturals 08 ‘econdmicas no tem nenhuma wtilidade pritien mum momento em que Signifieade dos lugares 6 explicado pela totslidade das relacdes entre os tlementos fisicos, natureis, culturais, politicos e econdmiees que o const em. Os problemas cotdians das eidades sto, em grande parts, ecorrentes Ga visto de urbanizagdo como produto e niio como processo. As intensas transformagdes observadas nos planos econdmica, politico, socisl « cultural tomam anaerénicos 08 projetos urbanos que se apéiars na diferenciagdo, ne ‘contraposigio entre o natural € 0 construldo. "As novas relagBes entre a natureza ea cidade pedem a integracio efetiva ‘a contextualizagto, ¢ no apents a simultaneidade dos processos socisis, Teondmicos, culturais e naturais que contribuem para estruturar 9 urbano. Essa contextualizagao, porquanto exige a compreensio da histéria, do ritmo, da formasdo é2 paisagem, passa pela questio — ainda pouco explorada — de fazer aflorar, de tornar explicitas as aitudes sociaisinerentes 20 process de projeto, Torna necessério abrir-se 20 que ni € evidente, E uma questio éiica, Notas Milton Santos, 1992, p. 4 * Giulio Argan, 1992, p. 222. 2 idem, p. 212. “Murillo Mary, 1991. dem, p85, Celso Lafer, 1992, p. 231. ANATUREZABACIDALE 143 [Nelson BrissacPetxet, 1992, p. 309, * Jean Frangois Lyotar, 1988 Biblio [ARGAN, Giulio Calo. Mistrial arte como hstiria da cidade, $20 Paulo, Mains Fontes, 1992 LAFER, Celso. A mentina, um capital das re! Erica, Sto Paulo, Cia, das Letras, 1992. LYOTARD, Jean Frangis.Liakumain, Pars, Gaile, 1988 MARX, Musil. Cidade no Bra, terra de quem? Sio Palo, Nobel 199 MOTO, Nelson Besse, Vero invisivel:adtien das imagens. In: Even StoPavle Cia, das Lavras, 1992. SANTOS, Milton. 1992; A redescoberta da USP, 1992, es entre a fica # polities. ‘Aula inaugural da FFLCT- \ | |

Você também pode gostar