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BELUZZO, L. G.; ALMEIDA, J. G. Depois da Queda. A
economia brasileira da crise da dívida aos impasses do Real. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, 412 p.
CARNEIRO, R. Desenvolvimento em crise. A economia
brasileira no último quarto do século XX. São Paulo: Unesp,
2002, 422 p.
Carlos Augusto Vidotto *

A objeção de que os A grande preliminar consis-


dissidentes do pensamento único te em retirar de cena um espan-
não oferecem uma análise talho: relacionar os anos áureos
consistente da economia brasileira do desenvolvimento brasileiro
caducou de vez, sem nunca ter se com a industrialização substitu-
qualificado como argumento, tiva de importações não implica 145
após a publicação de duas obras uma idealização do passado, como
que vão fundo nesse desafio: querem as vozes do cosmopolitis-
Depois da Queda. A economia mo liberal. Mas qualquer hipótese
brasileira da crise da dívida aos verossímil para o que nos sucedeu
impasses do Real, de Luiz Gonzaga na última quadra, ao reconhecer
Belluzzo e Júlio Gomes de a importância do desempenho
Almeida e Desenvolvimento em singular do Brasil entre as
crise. A economia brasileira no economias capitalistas, dos trinta
último quarto do século XX, da aos setenta, deve explicar o
autoria de Ricardo Carneiro. encerramento desse longo ciclo a
Antes de comentar estes partir das vicissitudes de nossa
trabalhos, propriamente, segue inserção externa que emergiram
um painel de seus conteúdos, com a globalização financeira.
construído, advirta-se, com certa O movimento, quando
liberdade expositiva. tomado em conjunto, desloca a

* Do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense.

Econômica, v. 3, n. 1, p. 145-152, junho 2001


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questão para os motivos que desarranjos. O II PND talvez


levaram a expansão do capita- tenha sido uma resposta sobre-
lismo para suas regiões periféricas dimensionada aos constran-
a mudar de ritmo e ênfase, nesta gimentos de meados dos setenta,
última etapa. Por conseqüência, o além de reservar maior eficácia na
diagnóstico “único” de que o geração de divisas para momentos
modelo substitutivo se esgotou – de ajuste recessivo. Mas enquanto
de resto, aspecto sublinhado pelo o ajuste à crise da dívida
próprio Raúl Prebish há mais de caminhava para sangrar nossa
trinta anos 1 –, tratando-se o economia com transferências
período subseqüente de uma reais ao exterior, as economias
exacerbação de suas disfunções, centrais de algum modo se
torna-se a via de acesso a uma reinventavam – os EUA, arti-
interpretação simplificadora da culando um novo regime
crise que apenas racionaliza a financeiro e ensaiando um salto
inserção passiva na globalização. tecnológico à frente do mundo; a
146 Em seu lugar, para conferir às Europa, embora enquadrada
decisões domésticas a devida pelos ditames do centro hegemô-
proeminência, elegem-se a nico, reunia elementos para uma
estratégica de enfrentamento das futura refundação como unidade
mudanças exógenas e as respostas econômica; tempos ainda em que
de política econômica àquele o paradigma do capitalismo
quadro de fundo, sujeitas ao consolidava sua transição da
progressivo encurtamento de seu antiga base industrial à atual
raio de manobra, como chave dominância financeira. Enredada
interpretativa da trajetória no endividamento externo e
econômica brasileira ao longo doméstico, exposta ao risco de
desses anos. fuga da própria moeda indexada,
Sobressai, nesse caso, o o que precipitaria a hecatombe
alcance da estratégia que levou a econômica, a economia brasileira
máquina de crescimento a dar seu foi ainda incapaz de imunizar o
último arranco, entregando-se setor público frente ao ajuste do
desde então a progressivos grande capital, afundando-se nas
1
A propósito, ver BID (1971: Prólogo, viii).

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conseqüências da instabilidade deu sobrevida ao enganoso êxito


econômica. argentino, mas esboroou-se no
Ultrapassada a “década primeiro stress real que enfrentou.
perdida” , como ficaram conhe- A abertura financeira, refluído o
cidos os anos oitenta no Brasil, os ciclo de liquidez das economias
critérios para uma reorientação centrais que a alimentou, deixou
global e rearticulação de novos como herança passivos dolari-
fatores dinâmicos em nossa zados que constrangem o setor
economia haviam se esfumado. público, além de ameaçar grupos
Com a desaceleração econômica e mercados com o colapso e a
e o agravamento de problemas desorganização. Em sentido
estruturais, ganhou nitidez a semelhante atua a dívida interna,
ausência de sinalização estratégica concentrada em títulos que
ao investimento em setores de lastreiam uma riqueza financeira
vanguarda, privando o aparelho parasitária e desestimulam a busca
produtivo de um salto diferen- de rentabilidade operacional pelo
ciador que atenuasse nossa setor produtivo. 147
defasagem tecnológica frente às A transição do Estado
economias centrais; os desvios e interventor ao Estado regulador
o abandono da política de infelizmente não passou de uma
informática representaram o caricatura, produzindo em vários
enterro das aspirações em sentido setores privatizados a simples
contrário. substituição do monopólio estatal
Sob muitos aspectos, o pior por um arremedo de capitalismo
viria com as eleições de 1989, 1994 moderno, à cata de socorro
e 98, que endossaram as público; onde a privatização
promessas de integração indolor aparentemente deu certo, o
a uma suposta modernidade. Hoje dinamismo inicialmente liberado
é consensual o entendimento de já esbarrou na estreiteza dos
que a inserção comercial brasileira mercados. A desnacionalização
regrediu nos anos noventa, bancária e o aperfeiçoamento
quando nossa participação no regulatório do sistema financeiro
comércio mundial diminuiu e meramente tangenciaram o
perdeu valor agregado. A caráter oligopólico da concor-
tentativa de integração regional rência nesses mercados,

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persistindo spreads que dividem a oportunidade histórica de gerir


com a política monetária os a crise e a responsabilidade de
méritos pela extraordinária apontar saídas, de dentro da
lucratividade dos bancos. Como trincheira. Isso sem pôr a pique
arremate, as taxas de crescimento uma versão de estabilidade que,
da década passada foram tão pífias num jargão conhecido, representa
quanto significativos foram seus inalienável conquista da socie-
desdobramentos sociais. dade, etc. A esse propósito,
Em que pese o tom rubro conceda-se que a estabilidade de
deste balanço, cada um viveu a sua preços permite o alongamento do
vida. Tropeçando, é verdade, na cálculo capitalista, mas somente
exclusão social, e um tanto ceteris paribus. Isto é, desde que a
agredido pela guerra urbana; esta incerteza não tome formas
ainda carente de indicadores que igualmente deletérias à formação
captem com acuidade suas de expectativas de longo prazo, o
conseqüências nos últimos anos. que os responsáveis pela ancora-
148 Enquanto o mercado de trabalho gem nominal da moeda brasileira
perdeu postos e qualidade, a não conseguiram impedir. Por
informalidade não deixou de outro lado, se tal estabilidade só
crescer. Mas se a incerteza sobre pode ser mantida ao preço da
o emprego agravou-se, não há eterna vigilância dos juros
dúvidas quanto aos limites da elevados, controle da demanda e
cobertura previdenciária oficial, a baixo crescimento, cabe refundá-
ser complementada, se possível, la sobre bases distintas, arcando
com poupança individual gerida com os riscos da transição.
pelos bancos. Para essa batalha, afinal, as
As contradições também se duas obras em questão implici-
manifestaram, mas sem respeitar tamente preparam e convidam o
fronteiras disciplinares (a seguir, leitor interessado.
outro contrabando do rese- Belluzzo e Almeida, de uma
nhista). Em parte como subpro- ótica que reivindicam keynesiana,
duto daquelas circunstâncias, em detêm-se nos processos, variáveis
parte como vontade consciente de e políticas econômicas integrantes
superá-las, construiu-se uma daquele panorama em movi-
alternativa política que tem hoje mento. Sua acepção é ampla:

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reformulam a equação dos lucros período, mas para isso sofre uma
de Kalecki para esclarecer o ajuste reconstrução em dois sentidos.
da grande empresa sob a recessão, Primeiro, evita-se uma versão
desvendando os critérios de inteiramente financeira tal como
formação de preço que aparece na formulação original,
“microfundamentam” o percurso descolada dos efeitos “reais” da
da crise monetária brasileira em concorrência sobre a estratégia de
suas sucessivas etapas. Ao longo prazo das empresas.
contemplar a economia brasileira, Segundo, porque no caso
dialogam com autores que brasileiro os descaminhos da
fundaram no princípio da política econômica sobrepõem-se
demanda efetiva a revolução de às “razões internas” como
uma ciência então impotente determinante principal da marcha
frente à movediça realidade do rumo à fragilidade financeira. Essa
capitalismo. Em outros termos, a é uma constante na reflexão dos
análise é keynesiana desde o autores: o diálogo com as grandes
método; a incorporação dos referências da tradição keynesiana 149
traços essenciais das economias jamais se reduz a uma “aplicação”
capitalistas no travejamento de de modelos, mas integra um
sua abordagem permite aos esforço de reinvenção teórica que
autores dessa tradição, antes e subsidia a compreensão da
agora, elidir a ruptura esquizo- economia brasileira a partir de sua
frênica entre ambos. Não há inserção internacional.
espaço, na concepção da obra, Dessa forma, Belluzzo e
para qualquer contemporização Almeida desvendam a avaliação
com a síntese neoclássica ou da riqueza capitalista e as
versões contemporâneas do particularidades desse cálculo nas
paradigma do equilíbrio eventual- condições específicas de nossa
mente camufladas sob o nome de economia, nas décadas recentes,
Keynes. sem falsificar as relações básicas de
A “hipótese da instabilidade uma “economia monetária da
financeira” de Minski também dá produção”. Ao mesmo tempo,
suporte ao exame da dinâmica situam na política econômica o fio
capitalista nas condições histó- condutor da transição para a
ricas da economia brasileira, no fragilidade. Com isso, assim

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parece ao resenhista, introjetam Carneiro a produzir uma página


nas condicionantes dessas decisões cartográfica inovadora, enquanto
o caráter subordinado da econo- Belluzzo e Almeida seguissem
mia brasileira, seja em termos de sempre por mar aberto,
sua morfologia, onde a distância discutindo seus achados à luz da
entre o capital bancário e outros curvatura terrestre e outros
capitais deteve a constituição de fundamentos náuticos.
“formas superiores de organi- O desafio particular de
zação capitalista”, seja em termos Carneiro foi traduzir a riqueza de
da inserção financeira e reflexão proporcionada por
produtivo-comercial do país. muitos anos à frente do Cecon
O livro de Carneiro segue (Centro de Conjuntura do IE-
um andamento diferente. Suas três Unicamp, onde é professor) num
partes – Desenvolvimento, Crise texto que, ao ganhar densidade, re-
e Desaceleração – estruturam uma hierarquizasse os movimentos
análise bastante colada na captados a média distância. E isso
150 evolução histórica, avançando em o livro nos entrega, como já
considerações teóricas somente o antecipavam suas encarnações
imprescindível para seus objetivos anteriores na forma das teses de
intermediários. Não que o autor doutorado e livre docência.
tenha permanecido ao rés da Resta dizer, sem a pretensão
empiria. Ao contrário, as de atenuar as lacunas e/ou
mediações necessárias à equívocos desta apresentação, que
demarcação da experiência Júlio Gomes de Almeida
brasileira na globalização trabalhou no IBGE e no
financeira estão identificadas com Ministério da Fazenda, foi
precisão; de igual maneira, os pesquisador do Instituto de
múltiplos aspectos que conferem Economia Industrial, docente da
identidade a cada período alcan- UFRJ e Secretário Adjunto da
çam em sua análise uma síntese Secretaria de Assuntos Econômi-
convincente. Mal comparando, é cos do Ministério da Fazenda.
como se, a cada trecho de rotas Atualmente é professor do IE-
semelhantes quanto ao ponto de Unicamp, além de diretor
chegada, a preferência pela nave- executivo do IEDI – Instituto de
gação a cabotagem levasse Estudos para o Desenvolvimento

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Industrial. Luiz Gonzaga Belluzzo Secretário de Ciência e Tecnologia


foi assessor econômico do PMDB do Estado de São Paulo (1988 a
(1974 a 1992), Secretário de 1990). É professor do Instituto
Política Econômica do Ministério (antigo Departamento) de Econo-
da Fazenda (1985 a 1987) e mia da Unicamp desde 1975.

151

Referência Bibliográfica
BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO
(BID) (1971) Dez Anos de Luta pela América Latina. A ação do
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Rio de Janeiro:
Coedição Banco Interamericano de Desenvolvimento – FGV.

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