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Organizacao Da Educacao Brasileira
Organizacao Da Educacao Brasileira
CDD 577
ISBN: 978-85-230-0959-5
3
Sumário
Conhecendo o autor _ _____________________6
Apresentação_ ___________________________7
Seção 1
Seção 2
Seção 3
4
7 A formação dos quadros docentes_____________________ 87
Bibliografia____________________________ 94
5
Conhecendo o autor
Natural do estado de Santa Catarina, nascido no atual municí-
pio de Painel, o Professor Rogério de Andrade Córdova é licencia-
do em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FAFI)
da antiga FIDENE (Fundação para a integração e Educação do Noro-
este do Rio Grande do Sul), atual UNIJUI, universidade localizada na
cidade de Ijuí, RS. Realizou mestrado em Administração de Sistemas
Educacionais, no extinto IESAE (Instituto de Estudos Superiores em
Educação) da Fundação Getúlio Vargas, na cidade do Rio de Janeiro,
concluído em 1982. Em 1997 obteve o título de doutor em Educa-
ção pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ingressou
no magistério em 1965, tendo iniciado como professor do ensino
superior; que se expandia no interior de Santa Catarina.
Tendo sido sempre politicamente atuante, esteve sempre en-
volvido na vida política dos educandários onde trabalhou, tendo,
em virtude disso, passado assumir funções de natureza político-
administrativas. Assim exerceu funções administrativas no Colégio
Industrial de Lages (onde coordenou a implantação da Lei 5692/71)
e, igualmente, na Faculdade de Ciências e Pedagogia, na mesma
cidade. Após a conclusão de seus créditos de mestrado no Rio de
Janeiro, retornando a sua cidade, integrou a equipe dirigente da Se-
cretaria Municipal de Educação, trabalhando as questões ligadas á
administração da educação de modo geral, mas, sobretudo, traba-
lhando com a educação de jovens e adultos, com a implantação da
educação infantil, com educação comunitária e, sobretudo, com os
problemas de uma rede municipal de ensino atuando especialmen-
te em meio rural e na periferia urbana. A convite de seu orientador,
nomeado Diretor Geral da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamen-
to de Pessoal de Ensino Superior), órgão do Ministério da Educação
responsável pela política de pós-graduação, veio para Brasília em
agosto de 1980, integrando sua assessoria. Permaneceu na CAPES
até dezembro de 1988. Foi professor das Faculdades Católicas entre
1982 a 1987. Tendo prestado concurso para Professor da Univer-
sidade de Brasília em novembro de 1987, e tendo sido nomeado
em janeiro de 1988, a partir de 1989 passou a se dedicar exclusi-
vamente a suas atividades acadêmicas na Universidade de Brasília,
onde igualmente tem ocupado diferentes funções administrativas,
concomitantemente às suas atividades de docência e pesquisa. Sua
área de maior interesse acadêmico, atualmente é a área de gestão
das organizações educativas, abordada dentro da perspectiva de
complexidade de considerada numa leitura multirreferencial.
Esta leitura procura considerar as múltiplas determinações
que exercem dentro das organizações educativas, levando em con-
sideração, num pólo, o indivíduo com suas representações, afetos
e intenções e, conseqüentemente, sua preocupação com o sentido
de suas ações, e, no outro pólo, o social-histórico, com sua cultura,
seus valores, suas significativas imaginárias, em resumo, com suas
“instituições”. O trabalho educativo e administrativo resulta de uma
ação situada entre esses dois pólos, com mediação de relações in-
terpessoais, grupais, com as exigências organizacionais de eficiên-
cia, eficácia e produtividade, entretanto, a ser orientado por proje-
to, que deve ser ao mesmo tempo projeto de vida para indivíduos,
6
grupos e comunidades e um projeto de sociedade. É dentro de tal
contexto de uma tal perspectiva que deve ser feito o estudo e a
análise das políticas públicas em educação e das formas que elas
assumem na organização concreta dos sistemas de ensino: o que
está em jogo é, cada vez, a instituição da sociedade e a instituição
dos indivíduos que lhe sejam funcionais. (Ou não!).
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Apresentação
Este trabalho consta de três seções, elaboradas para servirem
aos cursos e programas de formação de professores. Visam dar uma
visão e uma compreensão, o mais ampla e mais completa possível,
da forma como está organizada a educação escolar no Brasil.
Preocupado em dar uma visão atual da estruturação de nos-
so sistema de ensino (ou de educação escolarizada), o primeiro
módulo faz recordar, num primeiro momento, o conceito de edu-
cação e sua função, ou funções, numa dada sociedade. Trata-se de
um pressuposto básico do curso, no qual a educação é considerada
um momento do processo mais amplo de institucionalização de
uma sociedade. Dito em outras palavras: optar por trabalhar com
educação, ou na educação, muito mais do que simplesmente dar
umas “aulinhas” disto ou daquilo, é se inserir no processo de consti-
tuição da sociedade em seus valores mais profundos, contribuindo
para formar ou “formatar” os estudantes segundo tais valores ou
significações. Nesse mesmo módulo, e logo em seguida, como que
exemplificando os conceitos anteriormente apresentados, procura-
remos dar uma breve retrospectiva histórica de como esse processo
de constituição do sistema de educação escolarizada ocorreu no
Brasil. É importante fazê-lo quando estamos em pleno período dos
quinhentos anos de construção do Brasil, considerando que Bra-
sil, enquanto esta sociedade e não outra, começa a existir a partir
da chegada dos portugueses e dos africanos. Os primeiros iniciam
uma reeducação dos autóctones, impondo seus valores, suas sig-
nificações imaginárias sociais, aos valores e significações imaginá-
rias das sociedades aqui existentes, desencadeando o processo de
constituição ou de instituição de uma sociedade “outra”, que virá a
ser nossa sociedade brasileira. E poderemos ver como a educação
escolarizada desempenhará (ou não!) um papel importante nesse
processo, de que somos descendentes, herdeiros e continuado-
res...
Feitas estas considerações preliminares, mergulhamos no Bra-
sil. Como está organizada hoje a educação escolar brasileira? Procu-
raremos analisar esta organização e descobrir o que significa o fato
de ela estar organizada de tal forma e não de outra. Procuraremos
ser sempre fiéis a nossa orientação teórica e política inicial, sendo a
educação um momento da instituição de uma sociedade, e sendo
a organização da educação escolar brasileira um momento funda-
mental dessa instituição, cabe descobrir: a que instituições, ou seja,
a que valores, a que significações imaginárias sociais remetem os
dispositivos que regem atualmente nossos sistemas de ensino?
Fica evidente que o texto da Lei 9394/96, Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, oferecerá o roteiro de nosso estudo
atual. Fique bem claro, entretanto, que estamos falando de rotei-
ro. Estudar a “organização da educação brasileira” não é “estudar as
leis”. É isso também. Mas é mais do que isso. Conhecer e decorar leis,
decretos, pareceres, e ficar por isso mesmo, nos formaria como bu-
rocratas, amarrando-nos a um formalismo jurídico. Mas se é eviden-
te que precisamos conhecer as leis, pois elas são a presentificação
da instituição explícita da sociedade tal como a estamos vivendo,
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deve ficar entendido que é preciso ir mais a fundo, para interpretá-
las, captar o seu “espírito”, ou seja, as tais significações a que reme-
tem e que, em última instância, cabe a nós, educadores, difundir e
imprimir em nossos educandos. No primeiro caso, ficaríamos estri-
tamente presos a uma postura reprodutora e legitimadora, acrítica,
do já instituído. No segundo caso, sem desmerecer nossa função
de educadores e de responsáveis pela permanência de nossa socie-
dade enquanto tal, naquilo que avaliarmos como adequado, fá-lo-
emos numa perspectiva crítica e criadora, sem negar a importância
das leis, não abdicaremos, igualmente, de analisar a propriedade ou
a pertinência, a justeza da lei ou das leis vigentes, tendo em vista o
projeto de sociedade que queremos construir. Faremos, então, uma
leitura estrutural, mas, igualmente, política e filosófica das normas
que regem a organização de nossa educação escolar. Esta leitura,
porém, terá dois momentos, ou módulos.
Na segunda Seção, consideraremos a organização macro-po-
lítica ou macro-administrativa. Começando pela conceituação de
educação, pela determinação das finalidades, dos direitos à educa-
ção, pela definição das responsabilidades administrativas relativa-
mente à política e gestão da educação, incorporaremos a definição
dos níveis e modalidades de educação e ensino, completando-se
este módulo pela abordagem do financiamento e da formação dos
professores.
A terceira Seção, por sua vez, destaca, de maneira abrangente,
os aspectos relativos à organização pedagógica do trabalho educa-
tivo. Aquilo que aparece como uma simples seção dentro de um
título recheado de capítulos, seria, na verdade, merecedor de um Tí-
tulo específico, pois é exatamente em tais tópicos que a instituição
se revela com toda sua força. Ao definir as coordenadas de tempo e
de espaço do trabalho educativo, ao definir critérios de promoção
ou reprovação, e assim por diante, a legislação concretiza as signi-
ficações mais efetivas que regem o sistema educativo. Impossível
passar ligeiramente sobre tais aspectos, como se fossem simples
detalhes. Eles não são simples detalhes, são aspectos fundamentais
da organização do trabalho pedagógico, ou do ensino, e, por seu in-
termédio, da instituição da educação escolarizada como momento
da instituição da sociedade em toda sua profundidade. Sejam, pois,
bem-vindos ao curso. E que, durante o desenrolar dele, possamos,
dialogicamente, aperfeiçoá-lo.
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10
1
Educação e instituição da
sociedade
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
11
1 Os marcos teóricos
1.1 A instituição
Segundo Cornélius Castoriadis1, a sociedade humana é auto-
instituição. Isto quer dizer que a sociedade, enquanto sociedade hu-
mana, diferenciada das demais sociedades animais, é auto-criação.
E esta auto-criação, ou auto-instituição, se realiza num processo
efetivado na e pela posição de significações. Tais significações são
Para saber um pouco mais
os valores básicos ou fundamentais que dão o sentido, a orienta-
a respeito do filósofo Cor-
ção básica dessa sociedade, a sua identidade, o amálgama que lhe
nélius Castoriadis, acesse:
permite reunir-se e dizer-se. Ser brasileiro, por exemplo, é diferente
pt.wikipedia.org/wiki/
de ser argentino ou norte-americano. O que é a “brasilidade”? É um
Cornelius_Castoriadis
“magma” de significações sociais, operantes em nosso agir, como
um conjunto de representações da realidade, como um conjunto
de afetos, de gostos, de preferências, e de intencionalidades ou de-
sejos, ou atrações. Cada povo tem suas características, que deno-
minamos “culturais”. Elas são exatamente isso: as marcas identifica-
doras e inconfundíveis de cada sociedade. Se pensarmos no Brasil,
apenas, ninguém irá confundir um gaúcho com um carioca, ou um
mineiro com um cearense, por exemplo.
Há traços fundamentais, distintivos, e por isso mesmo identi-
ficadores. Se a seleção de futebol entra em campo, a “pátria de chu-
teiras”, na expressão de Nelson Rodrigues, certas diferenças profun-
das entre pessoas, por exemplo, de natureza ideológica, muito pro-
vavelmente darão lugar a uma profunda identificação, e ninguém,
em sã consciência, sobretudo se estiver num ambiente coletivo, irá
“torcer contra” ela. Há significações comuns a várias nações ou pa-
íses. Assim, o capitalismo. Contemporaneamente, ou desde talvez
duzentos anos, ou quinhentos anos, na sociedade ocidental, euro-
péia, emergiu uma significação nova, na qual e pela qual as ativida-
des econômicas passaram ao primeiro plano, deixando as questões
sociais, culturais, religiosas num plano secundário ou complemen-
tar. Simplificadamente, podemos dizer que o “ter” passou a preva-
lecer sobre o “ser”. E o conjunto das relações em sociedade sofreu
uma profunda torção. O capitalismo, na acepção de Castoriadis (IIS:
363), se constituiu, objetivamente, como criação da “empresa como
arranjo complexo de homens e máquinas”, apoiado num sem-nú-
mero de instituições complementares – máquinas, Estados nacio-
nais, escolas, ciências exatas e tecnologia, religiões reformadas – e,
subjetivamente, ou seja, no plano da formação das consciências,
como “investimento de uma formação específica: uma entidade em
expansão e em proliferação incessantes, tendendo a um auto-cres-
cimento contínuo e mergulhado numa solução nutritiva, um ‘mer-
cado’, onde uma oferta e uma demanda sociais, anônimas, devem
surgir e ser exploradas...” O capitalismo emergiu como uma maneira
outra de “perceber, sentir, pensar e agir”, na qual, por exemplo, no-
vas “necessidades” são continuamente criadas para, artificialmen-
te, manter um ritmo de “crescimento” dos “negócios”, esgotando-se
para satisfazê-las. E, como todas as significações, são significações,
antes de mais nada, “operantes”, ou seja, que se realizam na nossa
1
Filósofo nascido na Grécia em 1922 e falecido na França, onde viveu
desde 1945, em dezembro de 1997, autor, entre outras obras, de Instituição imagi-
nária da sociedade e Encruzilhadas do Labirinto (coletânea em seis volumes).
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prática efetiva, antes de se tornarem objeto de consciência e de re-
flexão crítica, a realidade das “significações” nunca é captável em si
mesma, mas indiretamente, pelas “sombras” que projetam no agir
efetivo, individual ou coletivo, a partir de seus resultados, de seus
derivados, de suas conseqüências. (Esta concepção será importante
para entendermos porquê a educação escolar no Brasil se “instituiu”
da maneira como veremos, e não de outra, e porque está, atual-
mente, “instituída”, formulada, regulamentada, de tal maneira e não
de outra).
1.2 O imaginário
Tudo que acabamos de dizer acima, principalmente ao final,
caracteriza o que se pode denominar de “imaginário capitalista”. Que
quer dizer imaginário? Neste caso, imaginário quer dizer o conjunto,
(Castoriadis prefere falar em “magma”, para caracterizar o caráter de
fluidez dessas significações e a profunda imbricação existente entre
elas, dificultando separar ‘com precisão’ uma dimensão de outra –
pois economia se mescla com política, que se mescla com religião,
que se mescla com cultura, e assim sucessivamente, de sorte que
se é possível destacar uma de outra, demarcando-as, é difícil tra-
çar os limites “precisos” entre uma e outra), das representações, dos
gostos, “das preferências”, dos interesses e desejos que caracterizam
uma sociedade em determinado período histórico. Então, em dife-
rentes momentos, cada sociedade define para si o que é e o que não
é, o que pode e o que não pode, o que vale e o que não vale, o que é cer- Multiculturalismo (ou plu-
to e o que é errado. (Leiamos, por exemplo, a Carta de Pedro Vaz de ralismo cultural) é um ter-
Caminha e observemos, na leitura, o contraste entre as duas cultu- mo que descreve a exis-
ras, a portuguesa e a autóctone. A carta é um precioso documento tência de muitas culturas
que mostra o contraste que está na nossa origem como “sociedade numa localidade, cidade
brasileira”). Contemporaneamente, o multiculturalismo atualiza ou país, sem que uma de-
essa problemática, num momento em que o desenvolvimento das las predomine, porém se-
tecnologias da informação e da comunicação, dos transportes e as- paradas geograficamente
sim por diante, tornam o planeta efetivamente globalizado e põe e até convivialmente no
todos os dias, na tela da televisão ou nos jornais, o contraste entre que se convencionou cha-
diferentes culturas ou civilizações. Por que no Irã as mulheres po- mar de “mosaico cultural”.
dem ou não podem fazer determinadas coisas? E no Afeganistão? E
na Nigéria? E entre nossos indígenas? Por que se diferenciam tanto
os hábitos alimentares entre nós, sul-americanos? Representações,
afetos e intenções que formam o imaginário efetivo de um povo ou
nação ou sociedade. Ele é diferente para cada sociedade porque,
defende Castoriadis, existe o imaginário radical, entendido como
capacidade originária profunda, existente nos indivíduos e nas co-
letividades, de fazer ser o que não é, de “criar” efetivamente, de in-
ventar formas, figuras, ou figurações de significações e de sentido.
O que faz um artista ser “criativo” e “original”? A resposta é:
“a imaginação radical” que existe nele como capacidade de repre-
sentação, afeto e intenção nas profundezas da psique. Capacida-
de, diga-se de passagem, que existe em todas as pessoas e que se
expressa nas diferentes esferas da vida, nas diferentes atividades,
independente do grau de escolaridade, insista-se. (Se o pensamen-
to tradicional aceita a idéia de criação para a arte, mas a nega para
outras esferas do fazer humano, Castoriadis amplia esse conceito,
afirmando essa capacidade como constitutiva de cada ser humano,
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ainda que se expresse de forma diferenciada: uns são músicos, ou-
tros pintores, mas outros são inventivos no vestuário, outros na culi-
nária, todos na criação das suas instituições sociais, nas suas formas
de governo, de realizar a justiça, a educação, e assim por diante).
O que faz um povo, uma sociedade, ou até mesmo comu-
nidades (os mineiros e os cariocas, por exemplo) serem diferentes
entre si? Resposta: o “imaginário social”. Este imaginário social é a
capacidade que tem a sociedade, enquanto coletivo anônimo, ins-
tituído, de criar, de inventar, de fazer serem “significações imaginá-
rias sociais”, ou seja, coletivas, e assumir uma postura instituinte. Por
isso, ainda que inconscientemente, as sociedades também mudam,
evoluem (tanto para melhor quanto para pior, infelizmente), nunca
permanecem exatamente iguais, tanto em detalhes menos impor-
tantes quanto em suas significações centrais. Basta falarmos com
nossos pais, tios e avós e ouvirmos comparações sobre os “seus tem-
pos”, basta observar a forma de sentir, de pensar e de agir de nossos
filhos, ou alunos, e as comparar com as formas do “nosso tempo”, o
que nos faz relembrar o filósofo grego Heráclito, conhecido por ter
afirmado coisas como a impossibilidade de nos banharmos duas
vezes nas mesmas águas de um rio. Ou salientando, a situação de
conflito permanente na qual vivemos, lembrando que o conflito –
inclusive de significações ou valores – é o pai de todas as coisas...
Resumindo: viver numa sociedade humana é viver imerso
num magma de significações imaginárias sociais que dão sentido
e orientação a nossas vidas enquanto sociedade. Diante delas, cada
um de nós tem de encontrar sentido para sua vida pessoal, cons-
truir sua identidade pessoal, constituir-se como sujeito. E é nesse
processo que a educação desempenha uma função fundamental.
1.3 A educação
Seguindo na mesma linha de exposição teórica, a educação
é um processo pelo qual uma sociedade “fabrica” ou “modela” os
indivíduos que a constituem, assegurando sua reprodução ou con-
tinuidade histórica enquanto tal. Por esse longo processo de “esco-
larização” que dura a vida toda, a sociedade repassa a seus mem-
bros as suas instituições, ou seja, suas significações imaginárias, os
seus valores, os seus saberes (suas interpretações do mundo, seus
conhecimentos, suas “leis”, suas normas), o seu saber fazer (as suas
técnicas)2.
Mas o que importa, aqui e agora, é rememorarmos a centra-
lidade dos processos educativos na institucionalização de uma so-
ciedade, na sua preservação, na sua constituição. E importa termos
em conta que todos nós, com ou sem escola, somos “escolarizados”
pelo conjunto da sociedade, através de suas múltiplas organiza-
ções. Platão dizia que os muros da cidade educam. E nós abemos
da importância não dos muros, mas dos out-doors, das fachadas
luminosas, da televisão, das rádios, e da própria configuração ur-
banística da cidade. Crescemos ouvindo falar de, e vivenciando,
uma cidade instituída como “centro” e “periferia”, como áreas mais
nobres e áreas menos nobres (no caso brasiliense, em Plano Piloto
e cidades-satélites), entre “cidade” e “morro”, entre conjuntos habi-
2
É notável, neste particular, a contribuição de Edgar Morin, em sua obra O
Paradigma Perdido: a natureza humana. Há uma outa tradução, brasileira, da mes-
ma obra, com o título O Enigma do Homem.
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tacionais e favelas. Em resumo: as formas como as sociedades estão
materialmente estabelecidas, presentificam as significações imagi-
nárias nas quais e pelas quais a sociedade se auto-institui, se auto-
organiza. O “concreto” é o resultado, a sombra de tais significações,
derivam delas como suas conseqüências materializadas. E é nestas
e por estas realizações concretas que aquelas existem. As institui-
ções são redes simbólicas materializadas nas organizações. Basta
nos perguntarmos porquê todas as escolas são tão iguais, mundo
afora, e porquê todas têm as mesmas salas de aula e cada sala de
aula tem exatamente, ou quase exatamente, a mesma configuração
espacial. E pensarmos nas dificuldades imensas que um educador “O homem, diz Casto-
ou uma educadora têm quando, por exemplo, procuram implantar riadis, é um animal in-
uma outra metodologia (baseada, por exemplo, em C. Freinet ou conscientemente filosó-
Paulo Freire). fico, que fez a si mesmo
Nascidos, então, numa dada sociedade, somos “modelados” perguntas na filosofia
por ela através da introjeção, em nossa psique, das instituições, das dos fatos, muito tem-
significações imaginárias que a constituem, e que nos “ensinaram” o po antes que a filosofia
que é e o que não é, o que pode e o que não pode, o que vale e o que existisse como reflexão
não vale, o que é certo e o que é errado. A partir daí constituímos explícita; e é um animal
nossa identidade, individual e coletiva, fomos obrigados a investir poético, que fornece,
tais instituições e as respectivas significações num longo processo no imaginário, respos-
de sublimação. Encontramos os nossos “lugares” sociais, inclusive. E, tas a essas perguntas”
ao realizá-lo, mantemos a sociedade em seus pilares fundamentais, (IIS:178). Reflita um pou-
reproduzindo suas categorias sociais, seus tipos sociais, em sua tipi- co sobre isso.
cidade e em sua complementaridade. Numa sociedade capitalista,
reproduzem-se as camadas dirigentes e reproduzem-se as camadas
dirigidas.
Como uma sociedade capitalista se conservaria se não repro-
duzisse os tipos que são fundamentais a sua sobrevivência enquan-
to sociedade capitalista, que são os empresários (“os empreende-
dores”, os “dirigentes”) e os proletários (os “subordinados”, os “diri-
gidos”)? Diante disso, coloca-se o desafio: instituir uma educação
“outra”, uma educação que, permitindo a reflexividade e a delibera-
ção sobre as instituições (significações, valores, leis, regras, normas)
vigentes, permita abrir caminho dentro do instituído para, num pro-
cesso instituinte, trabalhar na criação ou institucionalização de uma
sociedade “outra”, ou seja, fundamentada em outras significações,
em outros valores. Coloca-se o desafio de fazer de um processo re-
produtivista um processo transformador, uma educação para a mu-
dança e não para a simples e pura reprodução de uma sociedade
tal como existe.
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ral”. E não nos damos conta de que tudo isso é parte da instituição
e que, como tal, tudo foi social-historicamente criado, pela espécie
humana, por nós, seres humanos, em nossas relações com o mun-
do, com a natureza, com nossos semelhantes.
O fato de termos perdido a noção das origens, leva a uma na-
turalização, e até mesmo a uma atribuição de sua origem a fontes
extra-sociais, até mesmo divinas, extra-terrestres. Nesse caso, que
é o mais comum, ou o habitual, as instituições, os costumes, “auto-
nomizam-se”, como se tivessem vida própria. Perdendo a noção de
sua origem “real” (de fato: o imaginário radical), mantemos com elas
uma relação “imaginária” (aqui no sentido de equivocada, nascida
de uma fonte que não a nossa real capacidade imaginária). Eis aí a
origem mais ampla e profunda de todas as alienações: o estranha-
mento, o não reconhecimento das coisas construídas socialmente
como criações nossas. E, se nós, nos desencontros da vida, não gos-
tamos da forma como a sociedade está organizada, isto é, instituída,
no caso presente, como dilacerada entre ricos e pobres, proprietá-
rios e despossuídos, e queremos uma outra sociedade, podemos as-
sumir diante da educação uma nova postura: a da indagação crítica
sobre os fundamentos das instituições que trazemos dentro de nós
e dentro das quais vivemos. Neste caso, passamos de uma postura
de educadores reprodutores e mistificadores a uma postura crítica,
de educadores que estimulam, explicitamente, a reflexão sobre as
instituições, e estimulam, igualmente, o desenvolvimento da capa-
cidade deliberativa dos educandos sobre as instituições atuais.
A começar pelas próprias instituições escolares nas quais
trabalhamos e convivemos, que “nos educaram e continuam nos
educando”, ou seja, nos “modelaram e modelam” para a aceitação
acrítica do instituído, ou, ao contrário, optar por uma postura re-
ativa e afirmativamente instituinte de outra educação preparató-
ria de uma outra sociedade, moldada segundo um outro projeto,
fundada em outras significações, e operando o mais possível se-
gundo essas outras significações. Nesse caso, a alienação, postura
ou condição de quem vê as instituições fora do seu alcance, alheia
a seu poder e sua vontade, dá passagem à autonomia, que é uma
postura ou uma atitude de apropriação crítica das instituições. Esta
apropriação pode resultar ora numa aceitação positiva das leis que
considerarmos válidas (é ótimo que nossos filhos e netos nasçam
numa sociedade com leis que humanizem o trânsito, por exemplo,
e que condenem a prostituição, sobretudo a infantil), ora na rejei-
ção das leis e sua substituição por outras, quando considerarmos
inadequadas, ou inaceitáveis, ou injustas. E, neste caso, ascedemos,
como educadores, e ajudamos aos nossos educandos a ascederem,
à cidadania. Então, cidadania deixa de ser um termo esvaziado e
mistificador, e recupera seu conteúdo político efetivo e pleno. Te-
mos uma educação que avança para uma postura emancipadora.
E nos encontramos, de então em diante, na senda aberta por edu-
cadores como Celestin Freinet e Paulo Freire, para citar apenas dois,
dentre os grandes pedagogos que criaram as pedagogias para a
autonomia e a emancipação individual e coletiva. Na história da
humanidade, que se instituiu assimetricamente, emergiu a autono-
mia como uma significação constatadora da heteronomia. E, desde
então, se constituiu num projeto que se tem expressado social-his-
16
toricamente como “movimento democratizante”, um projeto sem-
pre tênue (“a democracia, diz Castoriadis, é um regime trágico, pois
sempre exposto a ser democraticamente comprometido...”). A histó-
ria da constituição dos sistemas de educação escolarizada no Brasil,
quer no plano macro, da formulação das grandes políticas, quer no
plano micro, da definição do modo de operar na esfera pedagógi-
ca, na esfera do trabalho educativo propriamente dito, certamente
acompanha e expressa o vaivém desse movimento e dele depende
a sorte do projeto de instituição de uma sociedade autônoma, com
cidadãos emancipados e solidários.
ATIVIDADES SUGERIDAS
2 A institucionalização da educação
no Brasil
Missionários de Cristo na Terra dos Papagaios
Este subtílulo foi inspirado no título de um livro recente de um
historiador brasileiro3. Aparentemente jocoso, o teor do título nos
alerta para uma significação importante, presente no “descobrimen-
to”. É importante registrar, entretanto, que quando os portugueses
chegaram ao Brasil, não encontraram um território vazio, nem ape-
nas papagaios. O território era ocupado por saudáveis habitantes
cuja “formosura” e “pureza” encantou os marinheiros adventícios (é
interessante retornar à Carta de Pero Vaz de Caminha). E, desde en-
tão, os viajantes e missionários passaram a relatar os costumes, as
crenças, os valores, em suma, a cultura ou o “imaginário efetivo” dos
povos da terra recém encontrada.
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outras que o(a) formando(a) interessado(a) poderá fazer), vale des-
tacar as seguintes características:
18
der bem ensiná-las. Não havia formalismo pedagógico, nem disso-
ciação entre prática e teoria.
c) Os conteúdos da educação afetavam todas as esferas da
vida social organizada.
d) As funções sociais da educação, remetiam às relações e aos
controles sociais do ambiente natural, a transmissão da tecnologia
levava em conta sexo e idade. O corpo humano era o grande ins-
trumento tecnológico, tratava-se de explorar suas possibilidades,
trabalhando com o machado de pedra e recursos técnicos corres-
pondentes. O mutirão era importante. “O homem era o principal
‘meio’ do próprio homem” (Florestan:162). Nas relações interpes-
soais, aprendiam-se as regras de tratamento assimétrico (por idade
ou sexo), o companheirismo, a solidariedade, a reciprocidade, os
cerimoniais complexos, os ritos, a guerra, a caça, a unidade tribal.
Nas relações com o sagrado, aprendiam o conhecimento dos mitos,
das técnicas mágico-religiosas, dos ritos (de passagem, de sacrifí-
cios), o xamanismo. Em síntese, a educação entre os autóctones era
informal e assistemática, comparativamente aos padrões europeus,
mas era eficaz e efetiva. Assegurava a perpetuação da “herança so-
cial” recebida dos antepassados, perpetuando o “imaginário” tribal
e suas significações, ainda que sem técnicas de educação sistemá-
tica e sem criação de situações caracteristicamente pedagógicas
(Florestan:153).
19
mercadorias: escravos eram mercadorias, vendidas e compradas no
mercado de escravos...(Há um outro livro interessante e recomen-
dável: trata-se de A Nação Mercantilista, de Jorge Caldeira5). Havia
uma significação imaginária, operante e pesada, que se expressava
como reificação das relações. Segundo C. Castoriadis, é a captação
de uma categoria de homens (e mulheres) como assimilável, em
todos os sentidos práticos, a animais ou coisas, fazendo deles es-
cravos (no caso dos indígenas) ou mercadorias (ou ambas as coisas)
no caso dos portugueses... Trata-se de uma relação na qual alguns
homens se vêem e agem, uns em relação aos outros, “não como
aliados para ajudar, rivais para dominar, inimigos para exterminar
ou mesmo comer, mas como objetos para possuir”(IIS:185).
A instituição antagônica e assimétrica das sociedades indí-
genas, onde havia escravidão e canibalismo, conhece uma outra
forma de desumanização: a reificação mercantilista, que se realiza
no anonimato da sociedade. Mais do que a troca de homens por
objetos, o que está presente é a “transformação dos homens ‘em
objetos’”. E, assim, uma outra pedagogia se instaura.
20
studiorum, que eram as disposições da Companhia de Jesus, ordem
religiosa recém-criada para contrapor-se ao protestantismo refor-
mista e assegurar a defesa da ortodoxia católica. Esta determinava,
além do elementar “ensinar a ler, escrever e contar”, o ensino das
Humanidades (Gramática, Literatura (Humanidades) e Retórica),
das Artes (Filosofia: Lógica, Metafísica e Filosofia Moral) e da Teo-
logia (Ciências Sagradas). Sua base curricular eram o trivium (Gra-
mática, Retórica e Dialética) e o quadrivium (Aritmética, Geometria,
Música e Astronomia), herança medieval de inspiração escolástica
e aristotélica, esta profundamente torcionada pelo tomismo. A lín-
gua oficial era latim ou grego. A novidade, no Brasil, foi a introdução
da língua portuguesa e da própria língua tupi para facilitar a comu-
nicação com os nativos6. Mas o interesse maior, senão exclusivo, era
o de formar os próprios quadros clericais e os amanuenses para o
comércio da época. Ao final do período, estima-se que haveria uma
“rede” profissionalizante com cerca de três mil alunos, espalhados
pelo Brasil, seguindo as trilhas do processo evangelizador. O que
não seria, talvez, de pouca importância se nos lembrarmos do que
foi o trabalho “civilizador” dos jesuítas espanhóis que instituíram os
Sete Povos das Missões, no noroeste do que hoje é o Rio Grande do
Sul, a “região missioneira”. Como quer que seja, igualmente, o ensi-
no superior que foi ensaiado pelos jesuítas na Bahia, foi impedido
de continuar, ainda no século XVI.
21
tes umas das outras, tal como os indígenas que viviam no Brasil
na época do descobrimento. Aqui não havia índios, simplesmente,
mas muitos povos indígenas de várias nações, que falavam línguas
diferentes e viviam de muitas maneiras diversas. E o mesmo aconte-
ceu com os escravos vindos da África. Eles não eram simplesmente
negros africanos escravos, mas povos que pertenciam a muitas na-
ções. Os primeiros africanos que foram trazidos como escravos para
o Brasil vinham da costa da África ocidental. Eram povos que aqui
ficaram conhecidos como negros minas, congos, angolas, guinés, ca-
bindas, rebolos, benguelas, moçambiques e muitos outros nomes, e
todos eles pertenciam ao grupo dos povos bantu e sudaneses. Os
países da África que hoje se chamam Angola, Congo, Moçambique
ou Guiné receberam esses nomes por causa desses povos que lá
viviam há muito tempo e foi dessas regiões que vieram os primeiros
escravos. Depois, também vieram como escravos os povos de cul-
tura iorubá, da Nigéria e do Benin, e também eles formavam nações
distintas, dos nagôs, dos geges, dos ijexás. Muitos deles viviam em
civilizações altamente desenvolvidas, como no reino de Oyó, onde
havia grandes cidades. Ali, reis poderosos exibiam o luxo de suas
cortes e tinham uma cultura muito refinada. Os artesãos sabiam tra-
balhar os metais como ninguém e em sua arte as esculturas de ferro
e de madeira entalhada eram maravilhosas. Cada um desses povos
tinha um modo de vida próprio, com costumes diferentes e crenças
religiosas muito elaboradas. Entre os povos bantu, cada grupo de
famílias cultuava seus antepassados, pois acreditavam que vinha
deles a força que sustentava a vida de todos os membros do gru-
po. Os deuses dos iorubá eram os orixás, ligados aos elementos e
às forças da natureza. Havia divindades do fogo e do ar, da água e
da terra. Havia deuses e deusas das matas e dos rios, da chuva, da
tempestade, dos raios, do trovão, do arco-íris. Havia um deus dos
metais, da agricultura e das armas de guerra e outro que protegia
as pessoas das doenças. Mas, apesar disso tudo, para os brancos
europeus eles eram apenas negros que, como os índios da América,
era preciso civilizar. Os negros eram capturados na África e depois
vendidos aos comerciantes de escravos. De lá, eram embarcados
nos navios chamados negreiros e uma enorme quantidade deles
morria na travessia do oceano Atlântico, por causa das doenças e
dos maus tratos que sofriam. Às vezes, mesmo antes de embarcar,
eles eram batizados, recebendo um nome cristão, e isso bastava
para que fossem considerados “convertidos” à fé dos seus senhores.
Outras vezes, eram batizados assim que desembarcavam nos por-
tos do Brasil, em Pernambuco e na Bahia, antes de serem levados ao
mercado de escravos.
Os escravos que eram comprados nos mercados de Recife ou
Salvador iam trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar do litoral
ou nas fazendas de gado do interior. Como a cana não se adaptou
bem na capitania de São Vicente, nas terras do litoral de São Paulo, a
lavoura ali não foi para frente. Mas ela se deu muito bem com o lito-
ral ensolarado de Pernambuco e da Bahia, e foi aí que se instalaram
os grandes engenhos de açúcar. E depois, quando o povoamento
português entrou pelas terras do sertão, foram surgindo as grandes
fazendas de gado.
Na casa-grande do engenho ou da fazenda, os escravos fa-
22
ziam todo tipo de serviços. Era preciso plantar e limpar a cana, de-
pois cortar a cana do pé, moer cada uma e ferver o caldo, para fa-
zer o açúcar que seria vendido lá fora, o melado e a rapadura para
fazer os doces e adoçar os bolos na casa de fazenda. Os escravos
faziam as peças da moenda e cuidavam dos bois que faziam a mo-
enda girar. Plantavam a mandioca, o milho, o feijão e a abóbora
que todos comiam. Nas fazendas do sertão, cuidavam do gado no
pasto e o recolhiam ao curral e davam para ele comer o bagaço da
cana quando havia por perto um engenho. Cuidavam das crias e
aproveitavam o leite das vacas para fazer queijo. Quando o gado já
tinha engordado bem no pasto, eles matavam os bois, salgavam e
secavam sua carne no sol, para fazer o charque. Era essa carne seca
que os escravos levavam para vender nos engenhos e nas cidades
do litoral. No terreiro dos engenhos e das fazendas, as escravas cria-
vam os frangos que matavam na hora, quando chegava uma visita
ou para fazer o caldo que a senhora do engenho tomava, quando
estava de resguardo, depois do nascimento de uma criança. Eram
elas que engordavam os porcos e com sua carne faziam lingüiça e
chouriço, guardando a banha para temperar a comida. Cuidavam
do fogão de lenha, do forno de barro, faziam os doces e assavam as
broas de milho e os bolos de mandioca que todos comiam na casa-
grande. Muitas teciam no tear o pano de suas roupas, que elas pró-
prias costuravam. Também cuidavam da roupa de cama que todos
usavam na casa grande. E ainda, como mucamas, tinham de cuidar
da sinhá. Era preciso lavar, engomar e passar suas roupas, cuidar de
seus sapatos, pentear seus cabelos.
As escravas também cuidavam dos filhos pequenos da sinhá.
Eram elas que amamentavam as crianças, que davam banho nelas,
que cuidavam de suas roupinhas e preparavam sua comida. Mas o
filho da escrava já nascia escravo. Assim que crescia um pouco mais,
o moleque ia ajudar na plantação ou na lida do gado e fazia todo
tipo de pequenos serviços na casa. E quando o sinhô ou a sinhá
quisesse, podia vender o moleque, ou dá-lo de presente a algum
conhecido, sem se importar com sua mãe escrava, que ficava com a
família do senhor para cuidar dos filhos dele.
Os senhores-de-engenho ou das fazendas de gado também
costumavam ter uma casa na cidade. Então, era ali que os escravos
iam cuidar da família de seus senhores, nos grandes sobrados de
Recife, Olinda e Salvador. E também na cidade faziam todos os ser-
viços: vendiam, pela rua, frutas, doces, a água que se tomava nas
casas. Levavam as pesadas barricas de madeira onde todo dia se
despejava a urina e as fezes dos moradores das casas, para esvaziá-
las no rio ou no mar. E na cidade também aprendiam todo tipo de
ofício. Eram ferreiros, barbeiros, carpinteiros. Aprendiam a construir
casas e igrejas, e aprendiam também a entalhar na madeira os alta-
res das igrejas, suas colunas, aprendiam a esculpir no barro ou na
madeira as imagens dos santos, a pintar de ouro suas roupas. Toda a
arte nesse período foi feita com a contribuição do seu trabalho. Era
assim a vida dos escravos negros vindos da África, desde os primei-
ros tempos em que a colonização portuguesa se dedicou ao cultivo
da cana, no final do século XVI. Foi nos engenhos e nas fazendas
que os escravos africanos construíram a riqueza do Brasil por todo
o século XVII. Mas continuavam a ser desprezados e maltratados
23
pelos senhores brancos, porque eram negros e escravos.
O sofrimento dos escravos começava na África e continuava
depois no Brasil. Às vezes, eram capturados na África todos os mem-
bros de uma família, mas eles eram separados uns dos outros para
serem vendidos como escravos no Brasil. Também os que falavam
a mesma língua e vinham de uma mesma região, como os congos,
angolas, benguelas ou guinés, por exemplo, eram separados na
hora da venda. Isso porque os donos dos engenhos tinham medo.
Pois, se eles pudessem se entender uns com os outros e ficassem
todos juntos, talvez quisessem defender os parentes e os amigos
contra os castigos e maus-tratos que sofriam e poderiam organizar
uma revolta.
E sobravam motivos para revoltas, porque maus-tratos não
faltavam. Os escravos moravam amontoados nas senzalas e o fei-
tor, que os vigiava por conta do senhor-de-engenho, por qualquer
coisa dava a eles todo tipo de castigo. Eram presos no tronco, uma
grande peça de madeira com buracos onde enfiavam seus pés e
suas mãos. Quando andavam de um lugar para outro, iam amarra-
dos juntos por uma comprida corrente, chamada libambo. Às vezes
tinham que carregar no ombro ou apoiada na cabeça uma pesa-
da peça de madeira, o cepo, que era preso no seu tornozelo com
uma corrente, para impedir que eles pudessem correr e fugir. Ou-
tras vezes, o senhor punha no pescoço do escravo a gargalheira, um
pesado colar de ferro com três pontas bem altas para impedir que
ele virasse a cabeça, mal podia andar assim. Outras vezes, ainda, os
escravos eram castigados com a palmatória, uma prancha de ma-
deira cheia de furos que o feitor batia com força na sua mão. Mesmo
nas crianças se batia com a palmatória e suas mãozinhas ficavam
inchadas e cheias de marcas. Por isso as revoltas eram constantes.
E, apesar da vigilância do senhor e do feitor, muitos conseguiam
fugir dos engenhos de açúcar e das fazendas. O senhor mandava
atrás deles o capitão do mato e, quando eram apanhados e trazi-
dos de volta, sofriam ainda maiores castigos. Por isso os escravos
precisavam fugir cada vez mais para longe, para lugares onde não
pudessem ser alcançados. E, quando conseguiam se reunir nesses
lugares, precisavam se organizar muito bem para se defender dos
Saiba mais sobre o líder brancos, caso eles chegassem até lá. Essas comunidades criadas
Zumbi e o Quilombo dos pelos negros eram chamadas quilombos e os que ali viviam eram
Palmares em: http://www. conhecidos como quilombolas. O quilombo mais importante que
historiadobrasil.net/qui- existiu no Brasil foi Palmares, que se organizou no atual Estado de
lombos/ Alagoas por volta de 1597. Palmares conseguiu resistir aos brancos
por quase 100 anos e, no período mais importante de sua história,
durante 30 anos, conseguiu manter vivendo ali cerca de 30 mil pes-
soas. Os líderes de Palmares que se tornaram mais conhecidos fo-
ram Ganga-Zumba e Zumbi e é por causa da resistência heróica dos
escravos daquele quilombo que o dia da morte de Zumbi, 20 de
novembro, passou a ser comemorado no Brasil desde 1978 como
o Dia da Consciência Negra. O quilombo dos Palmares foi destru-
ído em 1694 por um bandeirante paulista, Domingos Jorge Velho.
E são os bandeirantes e os quilombos que nos fazem chegar mais
perto da origem dos atuais remanescentes dos quilombos, espa-
lhados por diferentes cantos do território brasileiro, a exemplo do
povo Kalunga, em Goiás, território que também foi um quilombo,
24
surgido na época em que os bandeirantes paulistas chegaram até
às terras de Goiás7.
25
o Seminário de Olinda é considerado um centro importante de re-
novação do pensamento filosófico e político no nordeste brasileiro,
com influência decisiva na história de Pernambuco e da Revolução
Pernambucana de 1817.
26
estruturante ora desestruturante, haja vista, por exemplo, o caso da
reforma Leôncio de Carvalho, que, em 1879, estabeleceu o “ensino
livre”, ou seja, ampliou para todo o Império as medidas que estabe-
leceram, no mesmo ano, no Município da Corte, os exames vagos e
o regime de freqüência livre. Agora abria ao setor privado a possibi-
lidade de abrir escolas e cursos de todos os tipos e níveis, podendo
conceder graus acadêmicos e vantagens até então concedidos ex-
clusivamente pelos estabelecimentos públicos. A responsabilidade
pública era apenas quanto à inspeção para garantir as condições
“de moralidade e higiene”.10 E é com esse quadro de precariedade
que entramos na República.
27
forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à
iniciativa que são os fatores fundamentais do acréscimo de riqueza
de uma sociedade”. Na avaliação dos signatários, após 43 anos de
República, ainda não se lograra “criar um sistema de organização
escolar”, permanecendo “tudo fragmento e desarticulado” na esfe-
ra das iniciativas de política educacional. Propunha-se, então, uma
política com “visão global do problema, em todos os seus aspec-
tos”. Esse “estado antes de inorganização do que de desorganização
do aparelho escolar, (tem sua causa principal) na falta, em quase
todos os planos e iniciativas, da determinação dos fins da educa-
ção (aspecto filosófico e social) e da aplicação (aspecto técnico) dos
métodos científicos aos problemas de educação”12. Propunham um
“movimento de renovação educacional” para a reconstrução da
área, buscando “transferir do terreno administrativo para os planos
político-sociais a solução dos problemas escolares”.
Essa “campanha de renovação educacional” procurou “formular, em
documento público, as bases e diretrizes do movimento”. O docu-
mento apresentava, assim, um programa para uma “nova política
educacional”, formulada a partir de “uma visão global do problema
educativo”. E, na seqüência, abordaram as finalidades da educação,
o problema dos valores (valores mutáveis e valores permanentes), o
papel do Estado em face da educação, caracterizando a esta como
“uma função essencialmente pública”, propondo o “princípio da es-
cola para todos” – “escola comum ou única” – de sorte a “não admitir
dentro do sistema escolar do Estado, quaisquer classes ou escolas a
que só tenha acesso uma minoria, por um privilégio exclusivamen-
te econômico”.
Afirmam-se, então, os princípios da laicidade, da gratuidade,
da obrigatoriedade e da coeducação (educação conjunta de estu-
dantes de ambos os gêneros), da unidade da função educacional, da
sua autonomia, da descentralização. Discutem-se, ainda, importan-
tes elementos metodológicos, fundamentado o “processo educati-
vo” nos conceitos e fundamentos da “educação nova”. Enfatizava-se
a importância “do estudo científico e experimental da educação”
por oposição do “empirismo” reinante (e é dessa época a criação do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tei-
xeira – INEP). Propunha-se um “plano de reconstrução educacional”
que representasse uma “radical transformação da educação públi-
ca em todos os seus graus”, compreendo “dos jardins de infância à
Universidade”, passando por uma escola secundária “unificada para
se evitar o divórcio entre os trabalhadores manuais e intelectuais”,
tendo “uma sólida base comum de cultura geral”, para “posterior
bifurcação em secção de preponderância intelectual (...) e em sec-
ção de preferência manual, ramificada por sua vez em ciclos, esco-
las ou cursos destinados à preparação às atividades profissionais...”
Propunha-se uma vigorosa reforma da Universidade, dando-se es-
pecial atenção à formação dos “melhores talentos”, indispensáveis
“à formação das elites de pensadores, sábios, cientistas, técnicos e
educadores” indispensáveis para “o estudo e solução” dos diferentes
problemas nacionais.
Finalmente, enfatizava a importância da formação dos pro-
fessores, em todos os níveis, preconizando “o princípio da unidade
12
GHIRAREDELLI JR., Paulo. História da Educação. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1994.
p.54 e ss.
28
da função educacional” contra a “tradição das hierarquias docentes
baseadas na diferenciação dos graus de ensino”, que diferenciava
“mestres, professores e catedráticos”, fundamental para a “liberta-
ção espiritual e econômica do professor, mediante uma formação
e remuneração equivalentes que lhes permita manter, com a efi-
ciência no trabalho, a dignidade e o prestígio indispensáveis aos
educadores”.
Após abordar o “papel da escola na vida e a sua função so-
cial”, o documento conclui afirmando “a disposição obstinada” de
enfrentar as dificuldades apontadas, a disposição de lutar “na defe-
sa de nossos ideais educacionais”, para realizar “uma nova política
educacional, com sentido unitário e de bases científicas”. Tratava-se,
para os signatários, de “uma missão a cumprir”, contra a indiferença
e a hostilidade, “em luta aberta contra preconceitos e prevenções
enraizadas”, convictos de que “as únicas revoluções fecundas são
as que se fazem ou se consolidam pela educação”. Este era, dentre
todos os deveres do Estado, ”o que exige maior capacidade de de-
dicação e justifica a maior soma de sacrifícios, aquele com que não
é possível transigir sem a perda irreparável de algumas gerações...”
Trata-se de um texto histórico, riquíssimo, que merece ser
conhecido em detalhes. Seus efeitos se farão sentir na Constituição
de 1934, que, pela primeira vez, falará em “diretrizes e bases da edu-
cação” e proporá a realização de um plano nacional de educação. E
então deslancha um processo de reforma e estruturação do sistema
educacional brasileiro. Esse processo vai prosseguir durante todo o
período Vargas, completando-se em 1946. Na verdade, serão bem
quinze anos de reformas, começando com a do ensino superior, em
1931 (mas que acontecerá de fato na criação da USP em 1934), pas-
sará pelas Leis Orgânicas do Ensino Secundário, Industrial, Comer-
cial e Agrícola entre 1942 e 1943, e terminará com as Leis Orgânicas
do Ensino Primário e do Ensino Normal, em 1946. Registre-se, consi-
derando o ensino primário, que sua normatização data de 1946, ou
seja, tem, no ano de 2001, apenas 55 anos de vigência. Foi na Cons-
tituição de 1934 que a expressão “diretrizes e bases da educação
nacional”, criada pelos pioneiros, se incorporou definitivamente no
vocabulário educacional brasileiro, enquanto expressão que, na re-
alidade, vai se efetivar através das leis orgânicas, já mencionadas, e
na própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, cujo pro-
jeto, de 1948, após a Constituição de 1946, foi aprovada em 1961,
para ser reformada em 1971, até chegar à atual Lei 9394/96, sob
cuja égide nos encontramos.
A institucionalização, pois, de um sistema nacional de educa-
ção, apoiado numa política nacional consistente, democraticamen-
te elaborada, tem apenas cerca de 40 anos no Brasil. Pois foi a partir
de tal período, 1961, que, efetivamente, se “organizou” o sistema
de forma consistente e coerente. Os próximos módulos abordarão
a forma e os termos em que este sistema se organizou, tanto no
plano filosófico, macro político e administrativo, quanto no plano
pedagógico propriamente dito, e na esfera micropolítica, o plano
dos estabelecimentos de ensino.
29
ATIVIDADES SUGERIDAS
30
31
32
2
Conceitos, finalidades e orga-
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
33
1 Conceito, finalidades, objetivos e
macro-organização
Considerando a institucionalização da educação como par-
te do processo de instituição da sociedade, e sendo a sociedade
auto-instituição, seu destino depende de nós. Dito de outra forma,
a sociedade não é algo pronto, acabado de uma vez por todas. Ao
contrário, é algo que se faz e se refaz permanentemente. É algo por-
ser, por-fazer. E que cabe aos cidadãos definirem o rumo que deve
tomar, antecipando o tipo de sociedade que querem ter, querem
construir, pro-jetando, isto é, antecipando o futuro que desejam.
Daí a sociedade poder ser considerada um pro-jeto: algo a ser cons-
truído segundo nossos interesses, desejos e necessidades. Como
se fora nossa casa. Ou talvez, nosso barco comum, na travessia da
vida.
34
b) o respeito à dignidade e às liberdades fundamentais do ho-
mem;
c) o fortalecimento da unidade nacional e da solidariedade in-
ternacional;
d) o desenvolvimento integral da personalidade humana e a sua
participação na obra do bem comum;
e) o preparo do indivíduo e da sociedade para o domínio dos re-
cursos científicos e tecnológicos que lhes permitam utilizar as possibi-
lidades e vencer as dificuldades do meio;
f) a preservação e expansão do patrimônio cultural;
g) a condenação a qualquer tratamento desigual por motivo de
convicção filosófica, política ou religiosa, bem como a quaisquer pre-
conceitos de classe ou raça.13
O ensino primário, por sua parte, deveria “ter por fim o desen-
volvimento do raciocínio e das atividades de expressão da criança,
e a sua integração no meio físico e social”. Já a educação de grau
médio, “em prosseguimento à ministrada na escola primária, desti-
na-se à formação do adolescente”. E ao falar de educação da criança
e, logo a seguir, do adolescente, o texto explicita um importante ele-
mento: o da consideração do desenvolvimento humano, bio-psico-
sociológico.
Em agosto de 1971, surge a Lei nº 5692. Estamos novamente
em plena ditadura, o Brasil sendo governado pelo General Emílio
G. Médici, no período mais difícil do último regime militar. E o que
encontramos? Primeiramente, temos a Constituição outorgada pe-
los militares em 1969, cujo artigo 176 dispõe que “a educação, ins-
pirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e
solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será
ministrada no lar e na escola”. São mantidos praticamente na ínte-
gra os Títulos I a V da lei 4024/61. E se lhes acrescenta o seguinte
objetivo geral:
35
“igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, o
da “garantia do padrão de qualidade”, a “valorização da experiência
extra-escolar” e a “vinculação entre a educação escolar, o trabalho
e as práticas sociais” (art. 3º). No artigo 4º cabe destacar, entre os
indicadores de cumprimento do dever do Estado para com a edu-
cação escolar pública, a garantia de “oferta de ensino noturno re-
gular adequado às condições do educando” (inciso VI), “ a oferta de
educação escolar regular para jovens e adultos, com características
e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades,
garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso
e permanência na escola” (inciso VII).
36
pios...”. É explicitamente atribuído aos Estados a responsabilidade
por “assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o
ensino médio”. Aos Municípios (artigo 11) cabe a incumbência de
cuidar dos órgãos e instituições oficiais de seu sistema de ensino,
integrando-se às políticas e planos formulados pela União e pelos
Estados, baixar as normas complementares necessárias ao sistema
municipal, “exercer a ação redistributiva em relação às suas escolas”,
e “oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prio-
ridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis
de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as ne-
cessidades de sua área de competência e com recursos acima dos
percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manu-
tenção e desenvolvimento do ensino”. Registre-se a possibilidade
aberta de municípios optarem por se integrar ao sistema estadu-
al, compondo “um sistema único de educação básica”. E quanto ao
Distrito Federal? “Ao Distrito Federal aplicar-se-ão as competências
referentes aos Estados e Municípios”, diz o parágrafo único do arti-
go 10.
Novidade importante na atual lei da educação nacional é a
consideração, entre os atores do ensino, dos “estabelecimentos de
ensino” (artigo 12) e, principalmente, dos “docentes” (artigo 13).
Relativamente aos estabelecimentos de ensino, cabe-lhes (sempre
respeitadas as normas comuns e as de seu sistema) “elaborar e exe-
cutar sua proposta pedagógica”; “administrar seu pessoal e seus re-
cursos materiais e financeiros”; “assegurar o cumprimento dos dias
letivos e horas-aula estabelecidos”; “velar pelo cumprimento do pla-
no de trabalho de cada docente”; “prover meios para a recuperação
dos alunos de menor rendimento”; “articular-se com as famílias e a
comunidade, criando processos de integração da sociedade com a
escola”; “informar os pais e responsáveis sobre a freqüência e o ren-
dimento dos alunos, bem como sobre a execução de sua proposta
pedagógica”.
Quanto aos docentes, nos termos legais, “incumbir-se-ão de:
i) participar da elaboração da proposta pedagógica do estabeleci-
mento de ensino; ii) elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo
a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; iii) zelar pela
aprendizagem dos alunos; iv) estabelecer estratégias de recupera-
ção para os alunos de menor rendimento; v) ministrar os dias letivos
e horas-aula estabelecidas, além de participar integralmente dos
períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvi-
mento profissional; vi) colaborar com as atividades de articulação
da escola com as famílias e a comunidade”.
Trata-se, certamente, ainda que se possa imaginar outras for-
mas de apresentar o papel dos estabelecimentos e dos docentes,
de um reconhecimento de tais atores, institucional e coletivo, e in-
dividualizados, como sujeitos do processo, resgatando em parte o
ideário dos Pioneiros, no Manifesto de 1932. E certamente condi-
zente, em boa parte, com a constituição dos movimentos docentes
nos diferentes níveis de ensino, associados em sindicatos e outras
formas de representatividade e participação.
Nessa linha deve-se entender o espaço (entre)aberto para a
gestão democrática “do ensino público na educação básica” (e não
na superior), ainda que “de acordo com as suas peculiaridades” e
37
“conforme os princípios” de participação dos profissionais da edu-
cação na elaboração do projeto pedagógico da escola e da partici-
pação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou
equivalentes (artigo 14, incisos I e II). Na mesma direção afirma-se
que “os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares pú-
blicas de educação básica que os integram progressivos graus de
autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, ob-
servadas as normas gerais de direito financeiro público”(artigo 15).
São as marcas do “movimento democrático”, da dinâmica
social-histórica pela realização do projeto de autonomia abrindo
brechas e caminhos por entre as formas instituídas de formular as
políticas educativas e gerir as organizações correspondentes.
A velha e inicial diferenciação entre público e privado, que
tanta celeuma provocou quando da discussão da lei 4024/61, nos
anos sessenta, permanece intacta. O artigo 19 contempla uma clas-
sificação das instituições de ensino, nos diferentes níveis, entre “pú-
blicas” (“assim entendidas as criadas ou incorporadas, mantidas e
administradas pelo Poder Público”), e “privadas” (“assim entendidas
as mantidas e administradas por pessoas físicas ou jurídicas de di-
reito privado”). As privadas, por sua vez, (de acordo com o artigo
20, incisos I a IV) se enquadram em diferentes categorias: i) parti-
culares em sentido estrito (aquelas instituídas e mantidas por uma
ou mais pessoas jurídicas de direito privado); ii) comunitárias (“ins-
tituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas
jurídicas, inclusive cooperativa de professores e alunos que incluam
na sua entidade mantenedora representantes da comunidade”); iii)
confessionais (“instituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma
ou mais pessoas jurídicas que atendem a orientação confessional
e ideologia específicas”, além de atenderem ao disposto no inciso
anterior, ou seja, incluírem representantes da comunidade em sua
entidade mantenedora); iv) filantrópicas (na forma da lei).
As instituições privadas, entretanto, integram os sistemas de
ensino. As de ensino superior estão compreendidas no Sistema Fe-
deral de Ensino; as de ensino fundamental e médio, aos sistemas
de ensino dos Estados e do Distrito Federal; as de educação infan-
til, aos sistemas municipais. Como quer que seja, ao final do século
XX definem-se as responsabilidades institucionais em matéria de
educação, pelo menos no plano político-administrativo. Lembre-
mos que apenas com a proclamação da República foi criado o Mi-
nistério da Instrução, correios e Telégrafos, de curta duração, tendo
os assuntos da educação passado ao Ministério da Justiça. Apenas
em 1930 vai ser recriado, como Ministério da Educação e Saúde,
desvinculando-se deste apenas depois de 1950, tendo passado por
um sem-número de reformas, associando-se ora à Cultura, ora ao
Desporto. Resta ver quem paga a conta!
38
A educação escolarizada no Brasil começou privatizada, sob
responsabilidade dos jesuítas, com recursos providos pelo Rei de
Portugal. De início era a redízima, ou uma décima parte dos dízimos,
ou impostos, que iam para a Corte. Segundo João Monlevade14, tais
recursos logo começaram a faltar, mas os padres da Companhia de
Jesus já haviam constituído um patrimônio para a ordem, em terras,
gados e produção, que fez dela uma importante companhia comer-
cial, representando cerca de 25 por cento do PIB colonial no sécu-
lo XVIII, segundo historiadores de nossa economia. A Companhia,
portanto, era capaz de sustentar-se enquanto ordem, como as “de-
zenas de escolas de primeiras letras” que funcionavam para atender
populações de periferias e as missões indígenas (constituindo uma
rede por todo o território) e os Colégios principais: Salvador, Rio de
Janeiro, São Paulo. Nosso “sistema educacional” começou privatiza-
do e em moldes empresariais... De qualquer modo, havia uma sis-
tema em constituição e, lembremos sempre, as reduções jesuíticas
das Missões, nos dão uma amostra da qualidade de tal formação.
Com a reforma pombalina, apenas nos anos de 1770, é im-
plantado o “subsídio literário” que deverá financiar as famosas “au-
las régias”, denominação pomposa para designar “aulas avulsas”, ou
seja, o financiamento de professores “leigos”, figura já comentada,
que vai abrir classes nos desvãos das igrejas e salões, ensinando a
título precário e particular... (Ainda no início dos anos 1950, na mi-
nha terra, em Santa Catarina, havia remanescentes dessa categoria,
deslocando-se pelas fazendas da região serrana para ensinar aos
fazendeiros e seus filhos. Meus antepassados todos foram “escolari-
zados” (?!) dessa forma.)
No Império, também já o vimos, o governo Central cuidava
do ensino superior e do Colégio Pedro II, situado no município da
Corte. Tudo o mais era responsabilidade das províncias, equivalen-
do a dizer que nas mais ricas estruturou-se um embrião de sistema,
enquanto nas mais pobres praticamente não se estruturou sistema
nenhum à míngua de recursos, dando início às “disparidades regio-
nais” tão bem conhecidas contemporaneamente. Na Primeira Re-
pública, nada de relevante aconteceu. É nos anos 1930, a partir do
movimento dos educadores congregados na Associação Brasileira
de Educação (ABE) – movimento de que o Manifesto é uma das ex-
pressões, pois houve várias Conferências realizadas sob sua égide
–, que se busca definir uma política de financiamento, propondo-se
a criação de “fundos” especiais para a educação, “para a manuten-
ção e o desenvolvimento dos sistemas educacionais”. Começam a
surgir as propostas de instituição de índices fixos para tal finalida-
de. Assim, a Constituição de 1934 vai determinar que a União e os
municípios deveriam reservar um mínimo de 10% do orçamento
anual para a educação, devendo os Estados e o Distrito Federal re-
servarem 20%. A Constituição ditatorial de 1937, porém, faz disso
letra morta, ao desconsiderar o assunto. Ele será retomado na Cons-
tituição de 1946, dispondo (artigo 169) que a União aplicaria “nun-
ca menos de 10% , e os Estados, o Distrito Federal e os municípios
nunca menos de 20% da renda resultante dos impostos...”. O texto
da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, apro-
vada em 1961, reitera essa responsabilidade, aumentando, porém,
14
MONLEVADE, João. Educação Pública no Brasil: contos e descontos. Ceilândia, DF:
Idea Editora, 1997.
39
para 12% a contribuição da União (artigo 92). Este é um capítulo
importante na história da política educacional brasileira, cheio de
idas e vindas. De 1961 até 1988, data da última Constituinte, outras
iniciativas têm ocorrido. Em 1964, foi criado o “salário-educação”
(Lei nº 4.420) e, em novembro de 1968, a Lei nº 5.537 cria o Fun-
do Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), destinado a
captar recursos financeiros para o financiamento de projetos de en-
sino e pesquisa, incluindo alimentação escolar e bolsas de ensino.
Seus recursos viriam do orçamento da União, de incentivos fiscais,
do Fundo Especial da Loteria Esportiva (20%), do salário-educação,
e outras fontes. Destaque-se ainda, no período, a instituição da
Emenda Calmon, remetendo ao nome de seu autor, o Senador João
Calmon, que lutou bravamente, a fim de ampliar os valores para
Acesse: portal.mec.gov. 18%, no caso da União, e 25% nos demais casos. Isso como teto mí-
br/arquivos/pdf/ldb.pdf nimo, pois há Estados e municípios que recolhem mais que isso. A
e leia na íntegra a Lei atual LDB (Lei nº 9.394/96) dedica dez artigos ao tema do financia-
de Diretrizes e Bases da mento, desdobrando o que está contido na Constituição vigente.
Educação Nacional Assim, há: i) recursos provenientes dos impostos próprios a cada
esfera administrativa (União, Estados, Distrito Federal e Municípios);
ii) receitas de transferências constitucionais que a União faz às de-
mais instâncias; iii) receitas do salário-educação e de outras contri-
buições sociais; iv) outros recursos previstos em lei.
Sem nos determos, por ora, nos detalhes das transações fi-
nanceiras da movimentação dos recursos (que não é nada trivial), é
fundamental estar atento ao que se pode, ou não, considerar como
“despesas de ensino”. O artigo 70 explicita o que se considera como
“manutenção e desenvolvimento do ensino” (em todos os níveis):
“I) remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais
profissionais da educação; II) aquisição, manutenção, construção e
conservação de instalações e equipamentos necessários ao ensino;
III) uso e manutenção de bens e serviços vinculados ao ensino; IV)
levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas visando precipua-
mente ao aprimoramento da qualidade e à expansão do ensino; V)
realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento dos
sistemas de ensino; VI) concessão de bolsas de estudo a alunos de
escolas públicas e privadas; VII) amortização e custeio de operações
de crédito destinadas a atender ao disposto neste artigo (manuten-
ção e desenvolvimento do ensino!!); VIII) aquisição de material di-
dático-escolar e manutenção de programas de transporte escolar”.
Esta foi uma definição importante, pois até então a Lei 5692 falava
em aplicação “preferencialmente na manutenção e desenvolvimen-
to do ensino oficial”, deixando margem aos mais estapafúrdios usos
dos recursos públicos destinados à educação, em todos os níveis
administrativos. Por isso, é igualmente importante a definição, con-
tida no artigo 71, daquilo que “não constitui despesas de manuten-
ção e desenvolvimento do ensino”:
40
ca, sejam militares ou civis, inclusive diplomáticos;
IV) programas suplementares de alimentação, assistência mé-
dico-odontológica, farmacêutica e psicológica, e outras formas de as-
sistência social;
V) obras de infra-estrutura, ainda que realizada para beneficiar
direta ou indiretamente a rede escolar;
VI) pessoal docente e demais trabalhadores da educação, quan-
do em desvio de função ou em atividade alheia à manutenção e desen-
volvimento do ensino”.
41
fundamental”, nos termos da Lei, conforme visto acima.
Registra-se a importância do controle social do Fundo, atra-
vés de Conselhos, de composição variável de acordo com a esfera
de governo, incluindo, no caso da União, representante do Poder
Executivo, do Conselho Nacional de Educação, do Conselho Nacio-
nal de Secretários de Educação (CONSED), da Confederação Na-
cional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), da União dos diri-
gentes Municipais de Educação (UNDIME) e de pais de alunos e de
professores das escolas públicas do ensino fundamental. Na esfera
Estadual (e do Distrito Federal), além da representação dos poderes
executivos estadual e municipais, do Conselho de Educação, das
respectivas seccionais da UNDIME e da CNTE, igualmente de pais
e alunos e represente do MEC, através da Delegacia no Estado. Na
esfera municipal, fazem parte representante da Secretaria Munici-
pal de Educação, professores e diretores das escolas públicas, pais
de alunos e servidores das escolas, além do conselho Municipal,
onde houver. Tais Conselhos têm a competência de acompanhar
e controlar a repartição, transferência e aplicação dos recursos do
fundo, verificar os registros contábeis e demonstrativos gerenciais
mensais e atualizados, além de supervisionar o Censo Educacional
Anual. E, além disso, deve haver uma outra fiscalização da aplica-
ção dos recursos através de órgãos do respectivo sistema de ensino
e dos Tribunais de Conta respectivos. Ao Ministério da Educação
cabe realizar avaliação periódica dos resultados da Lei, tendo em
vista a adoção de medidas operacionais e político-educacionais. O
acompanhamento da imprensa diária mostra que este acompanha-
mento tem sido também administrativo e jurídico, desencadeando
processos de cassação de autoridades responsabilizadas por mal-
versação de tais recursos.
Enfim, no plano das disposições legais, houve um avanço
inequívoco. Isto não significa, entretanto, que se tenha alcançado
a perfeição quer no plano conceitual, quer no plano operacional.
No primeiro, critica-se a exclusão da educação infantil e de jovens
e adultos, provocando profundas distorções nas redes, em alguns
casos. No segundo, a não definição dos critérios para escolha dos
representantes, pode deixar os executivos à vontade para indicar
exclusivamente pessoas “de confiança” dos dirigentes, anulando a
intenção da legislação. Além disso, há quem critique o plano em
seu conjunto, por ter operado apenas um remanejamento dos re-
cursos disponíveis, penalizando as unidades mais ricas em benefí-
cio de outras menos aquinhoadas, sem se haver preocupado em
criar novos recursos. Situação que pode ser sintetizada na expres-
são popular, “despe-se um santo para vestir outro”, nivelando-se os
sistemas “por baixo”. Daí a existência de projetos alternativos, tra-
mitando no Congresso Nacional, como o do FUNDEB (Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valoriza-
ção dos Profissionais da Educação), propondo mudanças para seu
aperfeiçoamento.
Finalmente, cabe um registro: se a educação escolarizada no
Brasil foi instituída como um sistema privado, a atualização do sis-
tema tem pagado sempre um tributo a essa condição, numa so-
ciedade que, além de ser capitalista, é igualmente estamental e
patrimonialista. Assim, o artigo 77 da LDB estabelece que “os recur-
42
sos públicos são destinados às escolas públicas, (mas!) podendo ser
dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas que:
I) comprovem finalidade não-lucrativa e não distribuam seus resulta-
dos, dividendos, bonificações, participações ou parcela de seu patri-
mônio sob nenhuma forma ou pretexto; II) apliquem seus excedentes
financeiros em educação; III) assegurem a destinação de seu patrimô-
nio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Po-
der Público, no caso de encerramento de suas atividades; IV) prestem
contas ao Poder Público dos recursos recebidos”. Tais recursos podem
ser aplicados, ainda nos termos da lei, em bolsas de estudo para a
educação básica para quem demonstre insuficiência de recursos,
quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública de
domicílio do educando, ou, ainda, em atividades universitárias de
pesquisa e extensão. Uma importante janela permanece aberta ao
setor privado. Como quer que seja, o texto da lei é resultado paten-
te de um embate vivo e constante entre duas forças em movimen-
to: de um lado, os defensores da escola pública, na esteira de Anísio
Teixeira, de Florestan Fernandes e dos Pioneiros da Educação Nova;
de outro, os arautos da escola privada, da educação livre, que vem
dos jesuítas, dos outros educadores privados, de Leôncio de Carva-
lho no Império, de Rivadávia Correia na Primeira República, da con-
cepção liberal, que persiste entre nós atualizada em sua forma de
neo-liberalismo, consentânea com uma sociedade capitalista que
faz profissão de fé da “livre iniciativa” e da liberdade de escolha da
educação a ser ministrada aos filhos. Um debate aberto e em pleno
movimento.
Um capítulo igualmente importante da institucionalização
da educação escolarizada é o referente à definição dos níveis e das
modalidades de educação e de ensino. É o que consideraremos na
próxima seção.
43
ministro Capanema) e as modalidades técnicas, destinadas aos fi-
lhos dos trabalhadores, segundo a mesma exposição. Em terceiro
lugar, a restrição à passagem das modalidades técnicas para o se-
cundário, bem como a restrição ao acesso á diversidade de cursos
superiores. A organização da educação, sob este aspecto, reforçava
a institucionalização da dualidade básica da sociedade capitalista:
herdeiros legítimos do capital e do capital cultural, para usar termos
de Pierre Bourdieu, de um lado, os não legítimos herdeiros, os filhos
dos trabalhadores; de outro, reproduzindo a divisão e a assimetria
fundamental da sociedade e seus tipos característicos, complemen-
tares e necessários, nos termos de C. Castoriadis. Em quarto lugar,
a centralização: para todos os níveis e modalidades, as instruções
derivavam do Ministério da Educação, no Rio de janeiro. Em quinto
lugar, registre-se que a reforma do ensino normal e do ensino pri-
mário só saem em 1946, bem depois, portanto, dos demais níveis de
ensino, tendo a reforma universitária sido a primeira dentre todas.
Assim, o ensino em todos os níveis e modalidades se estruturava no
Brasil pela primeira vez e de forma padronizada, homogeneizada
para todo o território, apesar de todas as suas variações culturais
e históricas. E renasce daí a luta. Num sentido, pela eliminação das
barreiras e restrições de fluxo entre níveis e modalidades. Noutro,
pela descentralização. Uma lei de 1953 vai eliminando as barreiras
entre níveis e modalidades. E em 1948, após a Constituinte de 1946,
sai o ante-projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio-
nal, propondo mudanças em diferentes pontos, democratizando e
descentralizando. Gustavo Capanema, então na Câmara Federal, e
na Comissão de Educação, vai dar um parecer sobre o ante-projeto
reafirmando uma concepção centralizadora de “sistema” e vai pro-
duzir o engavetamento da proposta, que só vai ser aprovada em
1961, treze anos depois.
44
Quadro 1
1) Ensino primário:
a) fundamental: em quatro anos
b) complementar: em um ano
c) supletivo: dois anos (para adolescentes e adultos).
2) Ensino secundário:
a) primeiro ciclo: ginásio (quatro anos);
b) segundo ciclo: colégio (três anos), com duas modalidades:
i) clássico (ênfase nas humanidades) e
ii) científico (ênfase nas ciências naturais e exatas).
3) Ensino industrial:
a) primeiro ciclo (em quatro anos) podendo ter os seguintes
níveis:
i. ensino industrial básico: formação do artífice;
ii. ensino de mestria: formação do mestre;
iii. ensino artesanal: aprendizagem inicial, em menos de dois
anos.
b) segundo ciclo: ensino técnico (em três anos).
4) Ensino agrícola:
a) primeiro ciclo (em quatro anos), tendo os níveis:
i. iniciação agrícola (em dois anos);
ii. mestria agrícola (em dois anos).
b) segundo ciclo: (em três anos): ensino agrotécnico.
5) Ensino comercial:
a) primeiro ciclo (em quatro anos): comercial básico;
b) segundo ciclo (em três anos): comercial técnico.
6) Ensino normal:
a) primeiro ciclo: (em quatro anos): curso normal regional (para
regência do ensino primário);
b) segundo ciclo: (em três anos): curso normal (formação do
professor primário).
7) Educação superior
a) de acordo com a formação anterior: o ensino secundário
permitia todas as escolhas, o curso normal encaminhava para a Fa-
culdade de Filosofia, os cursos técnicos abriam possibilidades nas
áreas técnicas correlatas.
45
horizontal (entre modalidades) e verticais (entre níveis). Ela intro-
duz o conceito de “educação pré-primária” (artigos 23 e 24) a ser
ministrada “em escolas maternais ou jardins de infância”, devendo
as empresas serem “estimuladas” a organizar e manter tais ativida-
des quando empregando mães de menores de sete anos. O ensino
primário é mantido com quatro anos, podendo ter mais dois anos
de acréscimo, “iniciando os alunos em artes aplicadas adequadas
ao sexo e à idade”. Tem por finalidade “o desenvolvimento do racio-
cínio e das atividades de expressão da criança, e a sua integração
ao meio físico e social” (artigo 25). Segue-se a “educação de grau
médio”, que “destina-se à formação do adolescente” (artigo 33), a
que se poderia ter acesso mediante “aprovação em exame de ad-
missão” (artigo 36). Este ensino médio está estruturado em dois ci-
clos, como anteriormente, o ginasial, com quatro anos, e o colegial,
com três. Em cada ciclo se mantinha a diversificação entre: secun-
dário, técnico (industrial, agrícola e comercial) e de formação do ma-
gistério. Porém, houve um esforço por aproximar os currículos ao
do secundário, introduzindo-se disciplinas comuns, e permitindo as
transferências entre modalidades mediante “adaptação”. Introduz-
se o conceito de disciplinas “obrigatórias” (fixadas nacionalmente) e
“optativas” (fixadas pelos conselhos estaduais), estas últimas deven-
do ser escolhidas pelos estabelecimentos de ensino.
Esta mesma lei trata do ensino superior, atribuindo-lhe os ob-
jetivos de “pesquisa, desenvolvimento das ciências, letras e artes e a
formação de profissionais de nível universitário” (artigo 66), poden-
do ser oferecido em universidades ou estabelecimentos isolados.
Poderiam ser oferecidos cursos de “graduação, de pós-graduação,
de especialização, aperfeiçoamento e extensão ou quaisquer ou-
tros, a juízo do respectivo instituto de ensino...”.
O Título X aborda, ainda que de forma sucinta, a “educação
de excepcionais”, dispondo que ela deve, “no que for possível, en-
quadrar-se no sistema geral de educação, a fim de integrá-los na
comunidade”. As iniciativas “consideradas eficientes” deveriam rece-
ber tratamento especial dos poderes públicos, em forma de bolsas
de estudo, empréstimo, subvenções.
O “artigo 99”, que ficará muito conhecido e popularizado, dis-
porá que “aos maiores de dezesseis anos será permitida a obtenção
de certificado de conclusão do curso ginasial, mediante a prestação
de exames de madureza (destaque meu) em dois anos, no mínimo,
e três anos, no máximo, após estudos realizados sem observância
do regime escolar”. E o parágrafo único que lhe segue, acrescenta:
“nas mesmas condições permitir-se-á a obtenção do certificado de
conclusão de curso colegial aos maiores de dezenove anos”.
A reforma de 1971, com a lei 5692/71, novamente em mo-
mento de ditadura política, e de prevalência da tecnocracia como
forma de gestão dos negócios públicos, trouxe algumas mudanças.
A primeira grande mudança se situa na instituição de novo ordena-
mento dos níveis escolares, quando alterou-se a denominação de
“ensino primário” e de “ensino médio”, conforme os termos da Cons-
tituição de 1967, respectivamente, para “ensino de primeiro grau”,
compreendendo oito anos de estudo, e “ensino de 2º grau”, mantida
a duração de três anos. A segunda a destacar foi a concepção dos
currículos, para ambos os graus, de dois componentes distintos: um
46
núcleo comum e uma parte diversificada. O primeiro, obrigatório em
âmbito nacional, e a segunda, diversificada, como diz a expressão,
“para atender, conforme as necessidades e possibilidades concretas,
às peculiaridades locais, aos planos dos estabelecimentos e às dife-
renças individuais dos alunos” (artigo 4º). Instituiu-se, complemen-
tarmente, o conceito de “currículo pleno” (artigo 5º, entendido este
como a tradução, ao nível de cada estabelecimento, da organização
curricular, ordenando “disciplinas, áreas de estudo e atividades” da
maneira mais apropriada possível, mas sempre considerando uma
outra disposição: aquela que determinava uma composição curricu-
lar baseada em “educação geral” e “formação especial”. A “educação
geral”, que no primeiro grau deveria ser “exclusiva nas séries iniciais
e predominante nas finais”, no segundo grau seria minoritária, pois
a este grau deveria ser “preponderante” a “formação especial”. E esta
“formação especial” deveria ter, no 1º grau, o caráter de “sondagem
de aptidões e iniciação para o trabalho”, enquanto no 2º grau te-
ria como objetivo a “habilitação profissional”. As escolhas, nesta di-
mensão, deveriam ser fixadas “em consonância com o mercado de
trabalho local ou regional, à vista de levantamentos periodicamen-
te renovados”. Estava implantada, dessa forma, através do conceito
de “habilitação”, a formação profissional obrigatória para todos os
estudantes, numa tentativa de eliminar, por meio da legislação, o
tradicional dualismo entre ensino secundário e ensino técnico ou
profissional, notadamente no segundo grau, antigo ensino médio.
Na argumentação de um dos maiores expoentes dessa reforma, Val-
nir Chagas15, tratava-se de um imperativo do projeto nacional, num
momento de crescente influência da técnica, estando socialmente
apoiada na análise das estatísticas que mostravam as matrículas no
conjunto das modalidades de ensino técnico, profissionalizante,
crescendo em taxas superiores ao ensino secundário, estrada real
preparatória para o ensino superior. Esta certamente terá sido a di-
mensão mais polêmica e mais contestada da reforma, a ponto de
merecer sucessivos pareceres amenizadores da exigência por par-
te do Conselho Federal de Educação, culminando na sua extinção
pela Lei nº 7.044, de outubro de 1982, pela qual a preparação para
o trabalho “pode(ria) ensejar habilitação profissional, a critério do
estabelecimento de ensino” (artigo 4º, parágrafo 2º).
O popular “artigo 99” da Lei 4024 será substituído por um
extenso capítulo tratando do “ensino supletivo”. Em quatro longos
artigos, trata-se da modalidade de ensino cuja finalidade é “suprir
a escolarização regular para os adolescentes e adultos que não a
tenham seguido ou concluído na idade própria”, bem como “pro-
porcionar, mediante volta à escola, estudos de aperfeiçoamento ou
atualização para os que tenham seguido o ensino regular no todo
ou em parte” (artigo 24, itens a e b). Ele abrangeria cursos e exames.
Para o primeiro grau passou-se a exigir 18 anos para poder concluí-
lo e, para o segundo grau, 21 anos.
Não são abordadas a educação infantil, a educação para pes-
soas de necessidades educativas especiais. A educação de nível su-
perior já fora contemplada em legislação própria, aprovada já em
novembro de 1968. É dentro deste quadro que chegamos à atual
legislação, aprovada em novembro de 1996. Vejamos de que ma-
15
CHAGAS, Valnir. O ensino de 1º e 2º graus: antes, agora e depois? 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 1984, ,p. 91 e ss..
47
neira foi (ou está sendo) institucionalizada a educação entre nós ao
final do século XX, início do século XXI, entrada do 3º milênio, quan-
do está sob nossa responsabilidade direta preparar os destinos da
sociedade brasileira, vale dizer, dos nossos descendentes.
48
aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e ha-
bilidades e a formação de atitudes e valores (destaques meus); IV – o
fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade
humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social”.
Além de outras disposições referentes à organização do trabalho
escolar (que igualmente analisaremos no próximo módulo), o texto
estabelece o ensino religioso como de matrícula facultativa nas es-
colas, mas como constituindo “disciplina dos horários normais das
escolas públicas de ensino fundamental”, ainda que sendo ofereci-
do sem ônus para os cofres públicos e possa ser tanto confessional
como inter-confessional, de acordo com as preferências manifesta-
das pelos alunos ou por seus responsáveis. Destaquemos, por ora,
a determinação de que a jornada escolar deve incluir pelo menos
quatro horas de trabalho efetivo “em sala de aula”, devendo ser pro-
gressivamente ampliado o período de permanência na escola, bus-
cando o tempo integral, segundo os critérios dos sistemas.
O ensino médio é tratado na seção seguinte, a seção IV. Sua
duração mínima de três anos é confirmada. E, novamente, volta-
se a falar de “finalidades” que são definidas, pela ordem, como: “I
– a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiri-
dos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento nos
estudos; II – a preparação básica para o trabalho e a cidadania do
educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se
adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aper-
feiçoamento posteriores; III – o aprimoramento do educando como
pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da
autonomia intelectual e do pensamento crítico; IV – a compreensão
dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos,
relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina”.
O currículo (artigo 36) deve “destacar a educação tecnológica
básica; a compreensão do significado da ciência, das letras e das
artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cul-
tura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação, aces-
so ao conhecimento e exercício da cidadania”. Atendida a formação
geral do educando, o ensino médio pode igualmente preparar para
o exercício de profissões técnicas (parágrafo 2º), tendo todos os cur-
sos equivalência legal, habilitando ao prosseguimento nos estudos.
Assim, no texto desta lei, o dualismo geral/profissional desaparece,
bem como corrigem-se os erros da Lei 5692/71, atuando no sentido
da escola única a que os Pioneiros faziam referência nos anos de
1930. A habilitação profissional, bem como outras modalidades de
preparação geral para o trabalho “poderão ser desenvolvidas nos
próprios estabelecimentos de ensino médio em cooperação com
instituições especializadas em educação profissional”. Esta é tratada
num capítulo à parte, o capítulo III, do Título V, artigos 39 a 42.
Sob a denominação de educação profissional, é conceitua-
da como aquela que “conduz ao permanente desenvolvimento de
aptidões para a vida produtiva” (artigo 39), devendo ser “integrada
às diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à tecno-
logia”. Amplia-se, assim, o entendimento do que seja formação pro-
fissional, resgatando a idéia de “aprender fazer”, básica em qualquer
sociedade.
O acesso à educação profissional, de acordo com o mesmo
49
artigo, em seu parágrafo único, será possibilitado ao “aluno matri-
culado ou egresso do ensino fundamental, médio ou superior, bem
como o (a) trabalhador (a) em geral, jovem ou adulto”. Ela pode ser
desenvolvida “em articulação com o ensino regular ou por diferen-
tes estratégias de educação continuada”, e, ainda mais, “em institui-
ções especializadas ou no ambiente de trabalho”. Prevê-se, assim, a
existência de escolas técnicas ou profissionais, as quais, de acordo
com o artigo 42, “além dos seus cursos regulares, oferecerão cur-
sos especiais, abertos à comunidade, condicionada a matrícula à
capacidade de aproveitamento e não necessariamente ao nível da
escolaridade”.
Mantém-se, desse modo, por outras vias, o dualismo aparen-
temente superado nos outros dispositivos. E, mais ainda, uma legis-
lação própria, complementar à lei 9394/96, virá certamente acentu-
ar tal dualidade. Senão vejamos. De fato, em abril de 1997, quatro
meses após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases, o Decreto
nº 2208/97, vem regulamentar as disposições referentes à educação
profissional, respectivamente o parágrafo 2º do artigo 36 e os arti-
gos 39 a 42, que acabamos de analisar. Após definir os objetivos da
educação profissional, e o faz retomando os termos da Lei9394/96,
determina, no artigo 2º, que “a educação profissional será desenvol-
vida em articulação com o ensino regular ou em modalidades que
contemplem estratégias de educação continuada, podendo ser re-
alizada em escolas do ensino regular, em instituições especializadas
ou nos ambientes de trabalho”. E define (artigo 3º) os seus níveis:
“I – básico: destinado à qualificação e reprofissionalização de traba-
lhadores, independentemente de escolaridade prévia; II – técnico: des-
tinado a proporcionar habilitação profissional a alunos matriculados
ou egressos do ensino médio (...); III – tecnológico: correspondente a
cursos de nível superior na área tecnológica, destinados a egressos do
ensino médio e técnico”.
Particularmente importante é a caracterização da educação
profissional de nível básico: “modalidade de educação não-for-
mal e de duração variável, destinada a proporcionar ao cidadão tra-
balhador conhecimentos que lhe permitam reprofissionalizar-se,
qualificar-se, atualizar-se para o exercício de funções demandadas
pelo mundo do trabalho, compatíveis com a complexidade tecno-
lógica do trabalho, o seu grau de conhecimento técnico e o nível de
escolaridade do aluno, não estando sujeita à regulamentação cur-
ricular”. A conclusão de tais cursos permite conferir o certificado de
qualificação profissional. A educação profissional de nível técnico,
por sua vez, terá organização curricular “própria e independente do
ensino médio, podendo ser oferecida de forma concomitante ou
seqüencial a este”. Esta é, porém, uma esfera densamente regula-
mentada, diferentemente da anterior, em termos de organização
curricular. A expedição do diploma de técnico, porém, requer que
o interessado apresente o “certificado de conclusão do ensino mé-
dio”. A oferta de tais cursos será feita por “professores, instrutores
e monitores selecionados principalmente em função de sua expe-
riência profissional, (e) deverão ser preparados para o magistério,
previamente ou em serviço, através de cursos regulares de licencia-
tura ou de programas especiais de formação pedagógica” (Artigo
8º. Parágrafo 4º).
50
Finalmente, a educação profissional de nível tecnológico
deverá ser ministrada em cursos de nível superior, estruturados
segundo os diferentes setores da economia, abrangendo áreas
especializadas, e oferecendo o diploma de tecnólogo. A Portaria
Ministerial n.º 646, de maio de 1997, determina as providências a
serem tomadas pelas instituições federais de ensino tecnológico
para implantar as determinações do decreto. Uma “Política para a
Educação Profissional” foi elabora em conjunto pelo Ministério da
Educação (onde há uma Secretaria para o Ensino Médio e Tecnoló-
gico - SETEC) e Ministério do Trabalho (onde há uma Secretaria de
Formação e Desenvolvimento Profissional). Criou-se um Programa
de Reforma da Educação Profissional (PROEP) e um Plano Nacional
de Educação Profissional (PLANFOR), que prevê programas nacio-
nais, estaduais e emergenciais de formação, a ser financiados com
recursos do Fundo de amparo ao Trabalhador (FAT). Registre-se, na
oportunidade, a existência continuada do denominado Sistema S
(SESI/SENAI, SESC/SENAC, e SENAR) que, desde 1942, desenvolvem
sistema de formação profissional em seus diferentes níveis.
Ao concluir os registros sobre a educação profissional, parece
oportuno considerar a relevância da matéria. Registre-se uma posi-
ção totalmente contrária a todo sistema de profissionalização pre-
coce que venha em detrimento da formação básica geral, da “escola
única” preconizada pelos Pioneiros. Uma dualidade que seja exclu-
dente, apenas perpetua uma situação de dualidade social, enclau-
surando as pessoas em estamentos sociais insuperáveis. Por outro
lado, cabe lembrar as observações feitas por Georges Snyders16, que
enfoca a luta contra os fracassos escolares, a importância de um
diálogo cultural, dentro do princípio de continuidade-ruptura, da
manutenção inicial e da continuidade da cultura dos alunos, “uma
cultura na qual (as crianças das classes operárias) reconhecem seus
valores” (p.108). O trabalhador traz uma cultura do trabalho, que faz
parte da cultura técnica, que a escola não deve desprezar o trabalho
operário e seu saber prático. visto que, este pode ser tomado como
ponto de partida, para, a partir dele, realizar as rupturas necessárias
e possíveis.
A educação de jovens e adultos é um outro capítulo impor-
tante. O poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu, entre tan-
tas, uma crônica muito bem-humorada sob o título de Ponto Facul-
tativo. E começa a crônica indagando: “saberão os groenlandenses o
que é ponto facultativo? Os brasileiros sabem: é feriado obrigatório,
no duro”. Não vem ao caso o restante da crônica, interessantíssima.
Mas a indagação pode ser parafraseada: saberão os groenlandenses
o que é educação de jovens e adultos? Certamente nós, brasileiros,
sabemos: é um eufemismo para falar de coisas como o analfabetis-
mo crônico, de evasão escolar, de trabalho infantil, de estratégias
de sobrevivência dos mais pobres e assim por diante. Senão, veja-
mos a conceituação que lhe dá o texto legal: “a educação de jovens
e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou conti-
nuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade pró-
pria” (artigo 37). Trata-se, pois, não de uma concepção de educação
continuada ou permanente, a que todos temos direito para con-
tinuarmos atualizados face aos desenvolvimentos das tecnologias,
16
SNYDERS, Georges. A Alegria na Escola. São Paulo: Editora Manole, 1988, particu-
larmente a segunda parte, capítulo terceiro.
51
às mudanças na sociedade, aos desafios do sistema ocupacional.
Trata-se, e o texto é claro, de uma nova (outra?) oportunidade a ser
propiciada aos excluídos do sistema, que se encontram nessa con-
dição pelas mais diversas razões, muitas delas de responsabilidade
da incompetência do próprio sistema escolar, pela sua incapacida-
de de adaptação aos diferentes sujeitos-aprendizes. E pela nossa in-
capacidade, os docentes, de criarmos uma dinâmica escolar, meto-
dológica compatível com esses mesmos sujeitos, freqüentemente
vitimados que somos pelas amarras burocráticas e formalistas, fora
e dentro de nós mesmos. Por tal razão é fundamental nos atermos
ao que dispõe o texto legal, na seqüência:
52
A educação inclusiva mereceu três ricos artigos dos legisla-
dores (artigos 58, 59 e 60). Inicialmente, ela é conceituada como
“a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na
rede regular de ensino, para educandos portadores de necessida-
des especiais” (artigo 58). O destaque é meu, para enfatizar a idéia
de “inclusão”, presente no texto, por oposição a uma concepção es-
tigmatizante e marginalizante que talvez prevaleça entre os educa-
dores e na própria sociedade. Evidentemente, a legislação prevê a
existência, “quando necessário”, de serviços de apoio especializado
na escola regular para atender ás peculiaridades dessa clientela.
O atendimento fora das classes comuns de ensino regular deverá
acontecer em “classes, escolas ou serviços especializados sempre
que, em função das condições específicas dos alunos, não for possí-
vel sua integração nas classes comuns de ensino regular”(parágrafos
1º e 2).
A educação especial é definida como “dever constitucional do
Estado”, devendo começar na faixa etária de zero anos, indo até aos
seis, ou seja, ainda na educação infantil. O artigo 59 é rico quanto
aos dispositivos metodológicos: “I - Currículos, métodos, técnicas,
recursos educativos e organização específicos, para atender às suas
necessidades; II – terminalidade específica para aqueles que não
puderam atingir o nível exigido para a conclusão do ensino funda-
mental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir
em menor tempo o programa escolar para os superdotados; III –
professores com especialização adequada em nível médio ou su-
perior, para atendimento especializado, bem como professores do
ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas
classes mais comuns; IV – educação especial para o trabalho, visan-
do sua efetiva integração na sociedade, inclusive condições adequa-
das para os que não revelarem capacidade de inserção no trabalho
competitivo, mediante articulação com os órgãos oficiais afins, bem
como para aqueles que apresentam uma habilidade superior nas
áreas artística, intelectual ou psicomotora; V – acesso igualitário aos
benefícios dos programas sociais suplementares disponíveis para o
respectivo ensino regular”.
Finalmente, ainda que abrindo possibilidade de atuação de
instituições privadas “sem fins lucrativos, especializadas e com atu-
ação exclusiva em educação especial”, nesse campo de educação,
define a lei que “o Poder Público adotará, como alternativa prefe-
rencial, a ampliação do atendimento aos educandos com necessi-
dades especiais na própria rede pública regular de ensino...”(artigo
60, caput e parágrafo único). Visto em nossa perspectiva histórica,
trata-se sem dúvida alguma de um outro notável avanço, uma con-
quista importante em termos legais, a ser referendado na prática
político-administrativa dos sistemas e na prática pedagógico-admi-
nistrativa dos estabelecimentos de ensino, para que o “proclamado”
se torne “real”.
A educação indígena e a educação básica do campo foram
contempladas na lei. A educação indígena mereceu uma atenção
bastante expressiva. Já a educação das comunidades rurais foi tra-
tada de maneira mais leve, tendo, por isso, ficado distante do que
preconizam os movimentos sociais nessa esfera. A propósito da
“educação básica para a população rural”, diz o texto legal, no ar-
53
tigo 28, que “os sistemas de ensino promoverão as adaptações ne-
cessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada
região”, considerando: “I – conteúdos curriculares e metodologias
apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona
rural; II – organização escolar própria, incluindo adequação do ca-
lendário escolar ás fases do ciclo agrícola e às condições climáticas;
III – adequação à natureza do trabalho na zona rural”. É só isso, mas,
convenhamos, não é tão pouco assim, à primeira vista.
Quanto à educação das populações indígenas, ela é mencio-
nada obliquamente, quando ao falar do ensino fundamental, no
artigo 32, diz, no parágrafo 3º, que o ensino fundamental regular
deve ser oferecido em língua portuguesa, “assegurada às comuni-
dades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos
próprios de aprendizagem”. E retoma o tema no Título VIII, ao tratar
das “disposições gerais” que “o Sistema de Ensino da União, com a
colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assis-
tência ao índio, desenvolverá programas integrados de ensino e
pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural
aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:
54
obrigatória a freqüência de alunos e professores, salvo nos progra-
mas de educação a distância. Depois, já no final, no Título VIII, no-
vamente nas “Disposições Gerais”, no artigo 80, diz: “O Poder Públi-
co incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de
ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e
de educação continuada”. Define, na seqüência, que cursos dentro
dessa “modalidade” serão organizados com abertura e regime es-
peciais, sendo oferecidos “por instituições especificamente creden-
ciadas pela União”, a quem cabe regulamentar os requisitos para
a realização de exames e registros de diploma relativos a tais cur-
sos. Cada sistema de ensino deve, por sua vez, produzir, controlar e
avaliar os programas de educação a distância, bem como autorizar
sua implementação. E propõe, na seqüência, que tal modalidade
receba um tratamento diferenciado em custos de transmissão nos
canais comerciais de radiodifusão sonora e de sons e imagens; que
lhes sejam concedidos canais com finalidades exclusivamente edu-
cativas; que seja reservado tempo mínimo, sem ônus para o Poder
Público, pelos concessionários de canais comerciais.
Mais adiante, no Título IX, “Das Disposições Transitórias”, após
instituir a Década da Educação, diz, no parágrafo 3º, entre outras
coisas, que “cada município e, supletivamente, o Estado e a União,
deverá “...prover cursos presenciais ou a distância aos jovens e adul-
Saiba mais sobre Edu-
tos insuficientemente escolarizados”, bem como “realizar programas
cação a Distância em:
de capacitação para todos os professores em exercício, utilizando
http://www.portal.mec.
também, para isto, os recursos da educação a distância”.
gov.br/seed/
O quadro legal e o panorama político-administrativo se am-
pliaram depois disso. De uma parte, no plano legal, os decretos
de nº 2.494/98 e 2.561/98, mais um conjunto de quatro portarias
ministeriais e uma resolução da Câmara de Educação Superior do
Conselho Nacional de Educação buscam explicitar os dispositivos
legais, regulamentando-os. O mesmo começa a acontecer ao nível
dos Estados e do Distrito Federal. E no plano organizacional e admi-
nistrativo, foi criada a Secretaria de Educação a Distância no âmbito
do Ministério da Educação, responsável pelo Programa Nacional de
Informática na Educação, a partir do qual desencadeou-se uma polí-
tica de formação de quadros para integrar os Núcleos de Tecnologia
Educativa nas diferentes unidades da Federação, núcleos respon-
sáveis pelo apoio às respectivas unidades escolares. O Programa
TV Escola mantém uma presença importante no território nacio-
nal, equipando as escolas com aparelhos receptores e difundindo
uma programação variadíssima para uso dos docentes. Os textos,
de modo geral, insistem no papel que a introdução das tecnolo-
gias da informação na esfera educativa podem trazer para: ampliar
a oferta permanente de programas de formação, sobretudo conti-
nuada, tanto no campo da educação formal, quanto a não-formal,
em todos os níveis e modalidades, ampliando as oportunidades de
educação para todos.
Um aspecto, entretanto, precisa ser salientado: o texto legal
pouco fala do desenvolvimento da infovia, da internet. Esta, parti-
cularmente, vem produzindo uma revolução fundamental nas or-
ganizações, ao mudar nossas habituais coordenadas de espaço e
tempo e de acesso às informações. Trata-se uma profunda revolu-
ção tecnológica responsável pela constituição de um outro tipo de
55
sociedade, a sociedade da informação que, por sua vez, abre cami-
nho para a sociedade do conhecimento. Trata-se de um tipo de socie-
dade perpassada, em todas as esferas, pelo uso de tecnologias da
informação, cujo manejo requer o conhecimento de tais meios para
sua adequada utilização. E, certamente, o futuro da sociedade glo-
balizada está profundamente ligado ao uso de tais recursos, dele
dependendo o tipo de inserção que cada nação pode vir a ter no
cenário mundial. Pois bem, o domínio de tais tecnologias, o acesso
a tal tipo de sociedade, passa pela competência com que cada es-
cola venha a se apropriar e utilizar de tais recursos.
Não se trata, porém, de um uso puramente administrativo, a
serviço das direções e das secretarias, como memória burocrática.
A informatização nas escolas precisa estar a serviço da formação e da
atualização permanente dos docentes e dos estudantes. Enquanto
isso não acontecer, as escolas estarão à margem dos novos tempos,
da nova sociedade, acumulando atraso. Se tais recursos, notada-
mente da informática e internet, não podem, nem devem, ser con-
siderados como o atalho da salvação da educação nacional, enver-
gonhada por pelo menos quatro séculos e meio de descaso, parece
inegável que a adequada utilização pedagógica desses recursos
pode ser de grande valia. Por tal razão, os cursos de formação de
professores, desde as séries iniciais do ensino fundamental, devem
propiciar a iniciação ao uso de tais tecnologias. E cumpre desenca-
dear um movimento para equipar as escolas, todas as escolas. Um
novo dualismo está acontecendo nas redes: escolas, notadamente
da iniciativa privada, que fazem da disponibilidade de tais recursos
matéria de atração de uma clientela de classe média e alta, convi-
vem – inelutável condição da forma de institucionalização assimé-
trica e desigual da sociedade brasileira – com as escolas da rede
pública, mal providas em geral de quase todo tipo de equipamento.
Impõe-se, pois, um movimento de democratização da informática e
da internet, que as faça acessíveis a estudantes e docentes.
A disponibilidade de tais equipamentos ajudará na constitui-
ção de uma “cultura técnica” nos docentes, necessária para que não
fiquem demasiadamente ultrapassados pelos próprios estudantes,
cuja geração, contemporânea de tais recursos, aprende a manejá-
los com facilidade. Por outro lado, a introdução das tecnologias cer-
tamente abrirá as portas de uma profunda revolução escolar, den-
tro e fora das salas de aula. Fora, ignorando os limites de espaço
escolar e acessando ao novo mundo das informações globalizadas.
Dentro, colocando aos educadores o desafio de buscar uma outra
metodologia de trabalho, que ajude a fazer do trabalho educativo
uma fonte de prazer e alegria. Vale lembra o grande educador e pe-
dagogo Celestin Freinet:
“Uma coisa pelo menos é certa: ao modificar as técnicas
de trabalho, modificamos automaticamente as condi-
ções da vida escolar e pára-escolar;criamos um novo
clima; melhoramos as relações entre as crianças e o
meio, entre as crianças e os professores. E é com certe-
za o benefício mais importante com que contribuímos
para o progresso da educação e da cultura”18
56
rior e as universidades. Dentro da perspectiva social-histórica, vale
relembrar: os colonizadores portugueses, diferentemente dos es-
panhóis em relação à América Espanhola, proibiram a implantação
de ensino superior no Brasil. Os primeiros cursos foram criados por
D. João VI, e muito pouco aconteceu durante o Império. Na Repú-
blica começa um movimento de ampliação nos Estados, surgindo
diferentes iniciativas. Entretanto, o termo universidade não corres-
pondia ao conceito de “universidade” concebida como instituição
de formação e de investigação. Tendo prevalecido a criação de ins-
titutos isolados de formação técnico-profissional, era pertinente a
crítica dos Pioneiros, tal como examinamos no primeiro módulo.
A sociedade brasileira vai conhecer a primeira universidade
propriamente dita em 1934, com a criação da Universidade de São
Paulo. E, na esfera federal, a federalização das “universidades” es-
taduais nos anos cinqüenta e sessenta, e a criação do CNPq e da
CAPES, financiando pesquisas e formando os quadros docentes
pós-graduados vão marcar a instituição do espírito universitário e
de uma rede universitária de bom nível no país. Trata-se, pois, de
uma rede com quase setenta anos, no caso paulista, e com cerca de
cinqüenta anos no caso da rede federal. Hoje, uma rede de universi-
dades se articula em todo o país, com pelo menos em cada unidade
da federação. É disso, pois, que se trata quando se discute a questão
do ensino superior e das universidades públicas federais. Interessa
a uma sociedade autônoma uma rede assim constituída? É possível
uma sociedade autônoma sem uma rede universitária digna de tal
nome? E, sem a intervenção e investimento da União, do Poder Pú-
blico federal pode ser mantida uma tal rede? E pode ser a rede uni-
versitária culpabilizada pela situação de atraso das redes de educa-
ção básica? Cabe punir as universidades públicas pelos déficits do
ensino básico - fundamental e médio? Será o setor privado capaz
de manter uma tal rede, na dimensão e na qualificação que o proje-
to de uma sociedade autônoma requer? Feita a introdução, vamos
às disposições institucionais.
De início, no artigo 43, cabe destacar a “finalidade” do ensino
superior: criação de cultura e desenvolvimento do espírito científi-
co e do pensamento reflexivo; formação de diplomados para atu-
arem nos diferentes setores profissionais, participarem do desen-
volvimento da sociedade e colaborar na sua formação contínua;
incentivar a pesquisa e a investigação científica, criar e difundir a
cultura; promover a divulgação dos conhecimentos culturais, técni-
cos e científicos; suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento
cultural e profissional, possibilitar sua concretização; integrar tais
conhecimentos numa “estrutura intelectual sistematizadora do co-
nhecimento de cada geração”; “estimular o conhecimento dos pro-
blemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais”;
prestar serviços especializados à comunidade, estabelecendo com
ela uma relação de reciprocidade; promover a extensão, aberta à
participação da população, visando difundir as conquistas e benefí-
cios da criação cultural e da pesquisa.
Deixando, por ora, de lado, algumas definições mais formais,
cumpre destacar as seguintes determinações:
57
período letivo, os programas dos cursos e demais componentes
curriculares, sua duração, requisitos, qualificação dos professores,
recursos disponíveis e critérios de avaliação, obrigando-se a cum-
prir as respectivas condições”(artigo 47, parágrafo 1º);
As instituições de educação superior oferecerão, no período
noturno, cursos de graduação nos mesmos padrões de qualidade
mantidos no período diurno, sendo obrigatória a oferta noturna nas
instituições públicas, garantida necessária previsão orçamentária”.
58
ATIVIDADES SUGERIDAS
59
60
3
A escola como instituição
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
61
1 A escola como instituição e suas ins-
tituições
1.1 O papel da escola
Existe o pressuposto, e a convicção, de que nada vai mudar
em educação, no final de contas, se não houver mudanças na esco-
la e, mais ainda, dentro das salas de aula. E é por isso que existe na
legislação um conjunto de disposições normativas determinando
procedimentos e atitudes dentro das escolas e das salas de aula, na
organização do trabalho educativo. Neste módulo se quer trabalhar
sobre essa questão, especificamente. Pois ela não pode ser confun-
dida com as discussões macro-políticas. Ao contrário, é neste plano
Instituições são organi- micro-político que a instituição educativa se revela e se realiza na-
zações ou mecanismos quilo que tem de mais tradicional e efetivo. Por isso é preciso lan-
sociais que controlam çar os holofotes sobre este plano. E fá-lo-emos guiados por alguns
o funcionamento da elementos colhidos no movimento da Pedagogia Institucional. Este
sociedade e dos indiví- movimento, forte nos anos sessenta do século XX, teve em Michel
duos. São produtos do Lobrot um de seus mais importantes líderes. Entendo ser correto
interesse social que re- afirmar que Paulo Freire terá sido, no Brasil, a grande figura da peda-
fletem as experiências gogia institucional, ainda que não seja conhecido sob esse prisma.
quantitativas e qualita- Trata-se de um prisma que amplia a análise da instituição educativa
tivas dos processos so- em seus diferentes planos, não se contentando nem com a dimen-
cioeconômicos. Orga- são macro, nem com a dimensão micro. Mas articula ambas as di-
nizadas sob a forma de mensões, levando em conta a “transversalidade” da instituição.
regras e normas, visam
à ordenação das inte-
1.2 Uma abordagem institucional
rações entre os indiví- De acordo com a escolha teórica que preside a este trabalho,
duos e suas respectivas assume-se o pressuposto de que a “instituição” da escola e de suas
formas organizacionais. “instituições” é momento de um processo mais amplo e envolvente
Fonte: Wikipédia de “instituição” da própria sociedade, enquanto tal, determinada,
tendo, desse modo, em foco “esta” sociedade e não outra. Para Cor-
nelius Castoriadis, lembremos, a sociedade é auto-instituição, auto-
criação. E as organizações que a compõem são instituições deriva-
das, são a encarnação de instituições centrais, originárias, constituí-
das como magma de significações imaginárias sociais.
A escola em nossa sociedade é uma dessas organizações fun-
damentais. Nesta linha encontramos elementos capazes de nos
orientar na interpretação desse fenômeno que é a natureza do pro-
cesso de institucionalização de nosso sistema de ensino. Como e
por que se manifesta e persiste, no caso brasileiro em específico,
a distância entre os “valores proclamados” e os “valores reais”? O
que significam os dados referentes ao renitente “fracasso escolar”,
repetência e evasão? Uma significação, relembremos, longe de ser
apenas um conceito ou representação abstrata, é uma significação
operante, com suas conseqüências sociais e históricas. Ela age no
fazer e na prática de uma sociedade, vale dizer, dos indivíduos que a
compõem, “como sentido organizador do comportamento humano
e das relações sociais, independentemente de sua existência ‘para
a consciência’ dessa sociedade”. Os dados estatísticos são as conse-
qüências, os resultados, os derivados da ação dessas significações
sociais profundas. Os dados estatísticos são conseqüência da ação
do nosso “imaginário efetivo”, que presentifica as significações nas
62
quais e pelas quais agimos. Assim, quem produz o fracasso é, sim, o
“sistema”. Mas quem é o sistema? O sistema somos nós. O “sistema”
é a instituição que articula uma sociedade, pela sua encarnação nas
normas, escritas ou não, que regem a sociedade. Nas instituições
que fazem essa sociedade. E os indivíduos são igualmente institui-
ções, pois foram instituídos pela sociedade que instituem. No caso
brasileiro, somos uma sociedade excludente e profundamente assi-
métrica, simbolizada e sancionada por regras profundas, mais pro-
fundas que as leis positivas. São significações articuladas entre si,
caracterizando a forma típica de ser de uma tal sociedade.
As disposições legais acima referidas representam um es-
forço, talvez tímido, de decantar o imaginário subjacente à orga-
nização do trabalho escolar, uma tentativa de fissurar o imaginário
instituído. Duas dimensões estão presentes no caso: as finalidades
proclamadas para a educação e a organização do trabalho escolar.
Cabe, agora, um mergulho nessa organização chamada escola e
perguntar: para que serve, afinal, a escola? Qual sua função?
A organização da educação, do trabalho escolar com todas as
suas diretrizes metodológicas, que se pode mencionar como orga-
nização curricular, num sentido bem amplo, é uma questão cen-
tral, senão a questão central quando se trata da educação escolar.
Com efeito, é nessa organização do trabalho escolar – na definição
das atividades a serem desenvolvidas, na seleção dos conteúdos
programáticos, das “disciplinas” ou das atividades, na escolha das
metodologias de aprendizagem e de ensino, nas estratégias de ava-
liação, na organização dos tempos e dos espaços, que os ditos siste-
mas de ensino em geral, e cada estabelecimento em particular, con-
cretizam aquilo a que se denomina “projeto político-pedagógico”.
Como vimos na análise da LDB, o texto fala de “proposta pe-
dagógica”, correspondendo à expressão “projeto pedagógico” em
uso nos meios educativos. Este projeto, expressão pro-jetada ou
diferida daquilo que a educação escolar quer alcançar, tem uma
dupla dimensão. De um lado, lembra J. Ardoino, remete a um pro-
jeto intencionalidade, expressão do projeto de sociedade que de-
sejamos construir. E um projeto de sociedade remete aos valores,
às significações centrais, às regras fundamentais sobre as quais se
erige a vida humana associada, na expressão de Guerreiro Ramos.
É neste plano que a sociedade afirma o que é e o que não é, o que
vale e o que não vale, o que pode e o que não pode, o que é “certo”
e o que é “errado” (Castoriadis). Estes valores costumam ser expres-
sos , legalmente, pela explicitação ou declaração das finalidades da
educação, em especial da educação escolar. Complementarmente,
os desdobramentos normativos entram pela organização da edu-
cação escolar. Entram naquilo que se pode denominar de “currículo”
com todas as dimensões mencionadas há pouco. Nos termos de J.
Ardoino, entra-se no plano do projeto-programa. Este é a tradução
organizacional daquele. É o seu equacionamento operacional. Quais
metas? Quais conteúdos? Quais metodologias? Qual a duração das
atividades? Qual seqüenciação das atividades? Quais critérios de
progressão e de avaliação? Aqui aparecem termos tais como: pro-
moção, reprovação, aproveitamento de estudos, seriação, organi-
zação por ciclos ou por fases, certificação, aproveitamento ou ren-
dimento escolar, matrícula, repetência, dependência e outros. E é
63
exatamente nesta tradução da teoria na prática, das intenções num
programa de trabalho, da praxis em poiesis 19(F. Imbert) que se joga
a sorte dos princípios e ideais formulados nas finalidades gerais, fi-
losófica, política e eticamente, no geral, bastante bem formulados.
É na escolha e na organização dos meios que reside um mo-
mento crucial, no sentido mais originário do termo, da educação
escolar. Assim como, de resto, de outras tantas atividades humanas
interativas. É importante, então, retomarmos a verificação de am-
bos os momentos na legislação educacional brasileira. De um lado,
a declaração das finalidades. De outro, a tradução organizacional
de tais finalidades no currículo dos estabelecimentos de ensino.
Mas, antes, vamos fazer mais uma incursão no plano da teoria da
instituição e das organizações escolares.
64
esconder elementos qualitativos importantes, proclamando fun-
ções “nobres” (crescimento, desenvolvimento, cidadania e outros)
“a expensas das funções não confessadas ou inconfessáveis, mas
inteiramente objetivas, das organizações” (LOURAU:14). No caso da
escola, ela proclama a integração, mas na verdade os resultados es-
tatísticos indicam que ela, de fato, realiza a seleção e a exclusão, que
são traduzidas por “fracasso escolar”. E esses processos, conforme
vimos no primeiro módulo, são perfeitamente compatíveis com a
história da instituição da sociedade brasileira, escravista, colonial,
dependente, excludente, genocida, capitalista, patrimonial, esta-
mental. Os dados estatísticos sobre a exclusão escolar são perfei-
tamente compatíveis com o quadro de uma sociedade excludente.
Expressam a forma como essa sociedade se auto-reproduz.
Voltando a Castoriadis, propõe ele que o processo educati-
vo acontece como socialização da psique, pelo que ele denomina,
seguindo Freud, de “sublimação”. É por esse processo que a psique Você considera que a
retoma as formas socialmente instituídas e as significações que as escola cumpri seu pa-
acompanham. A psique se apropria do social pela constituição de pel da melhor forma?
uma interface de contato entre o mundo privado e o mundo públi- Para você, qual papel a
co ou comum. Do ponto de vista dos indivíduos, é preciso que eles escola deve cumprir?
criem modelos identificatórios. Da parte da sociedade, é preciso
que ela ofereça objetos a serem investidos. E para que haja socieda-
de, é preciso que os objetos de sublimação sejam, ao mesmo tem-
po, típicos, categorizados e complementares uns dos outros. Assim,
por exemplo, ao pólo identificador “senhor” deve necessariamente
corresponder o pólo identificador “servo” e, no mundo capitalista,
ao pólo “capitalista” deve corresponder o pólo “proletário”, que se
devem produzir e multiplicar nas proporções devidas para a manu-
tenção do sistema.
Este sistema se expressa como um conjunto de instituições
solidárias, formando um magma de significações operantes, de ins-
tituições secundárias: capitalistas, proletários, máquinas, Estado,
ciência e tecnologia, educação, religião e assim por diante. Um ou-
tro autor, Michel Lobrot21, em “Para que serve a escola” retoma essa
questão, já dentro da perspectiva da organização escolar.
65
imaginação, etc. E são atividades que, “além de seus efeitos exte-
riores, suscitam por si próprias, necessariamente, prazeres, dores,
frustrações, angústias, esperanças”. Mas, por outro lado, “têm suas
leis e mecanismos próprios que não se confundem com os dos fe-
nômenos acionados exteriormente”, ainda que dificilmente fiquem
reduzidas à dimensão interior, e possam vir a ter traduções e mani-
festações exteriores de suma importância. As atividades transitivas
passam a ser o lado objetivo, exteriorizado, das atividades imanen-
tes, que são percebidas através daquelas. São exteriorizadas nos
“comportamentos”. As atividades imanentes, porém, ainda que sus-
citem atividades transitivas, não se confundem com elas. Elas têm
eficácia, utilidade e interesses próprios e distintos. Lobrot quer cha-
mar a atenção para a importante dimensão psicológica da cultura,
por contraponto a uma leitura sociológica, exterior e objetivante.
Sendo assim, a escola teria surgido como uma criação das grandes
civilizações para propiciar um lugar que desse oportunidade aos
processos de caráter imanente: as aprendizagens. Estas são, para
ele, e apesar de seus impactos utilitários, transitivos, fenômenos
imanentes.
Uma aprendizagem, então, para ser durável, precisa ir além do
caráter utilitário, instrumental, passageiro e circunstancial. Para ser
durável, é importante que ela se debruce sobre si mesma e vise seus
próprios mecanismos. Há um êxito na realização dessas atividades
que vai além da realização de um objetivo extrínseco: “Neste caso,
o que se torna interessante já não é o resultado, mas sim o próprio
processo, a saber, a descoberta dos meios que permitem atingir de-
terminados objetivos. Isto implica que esta descoberta suscite pra-
zer e satisfação. Isto também é válido para a memória, fenômeno
estreitamente ligado à cultura” (LOBROT:1990, p. 8). Dentro de tal
perspectiva, a retenção na memória acontece quando se põem em
prática operações imanentes interessantes por si próprias.
A escola nasceu na humanidade, foi criada, para dar lugar às
exigências de aprendizagem, instituindo-se um período da infân-
cia centrado sobre ela, consagrando-lhe tempo, destinando-lhe
adultos para ajudar os indivíduos nesse processo, construíram-se
indivíduos para acolhê-los, destinou-se montantes de recursos fi-
nanceiros. Seu nascimento se dá com o aparecimento da escrita, na
Mesopotâmia, nos III e IV milênios antes de nossa era, e isto tem a
ver com o processo de simbolização que lhe permite produzir dire-
tamente, e quase sem intermediários, “efeitos psicológicos de cará-
ter permanente”. Com ela, toda a literatura se constitui num corpus,
entre o espaço existencial, faz entrar na humanidade um conjunto
de realidades e valores, um grande desenvolvimento cultural.
A escola, pois, desde suas origens, se articula com a cultura,
com essa “realidade essencialmente exterior, gratuita e que, sob
determinados pontos de vista, pode parecer inútil”. E aí começam
também seus problemas. Como as sociedades tratarão o problema
da articulação na escola entre o desenvolvimento do indivíduo e
a utilidade social? A história da escolarização oscilará, pois, entre
dois pêndulos: ora a utilidade social será a referência básica, ora a
cultura, enquanto atividade imanente, será desvalorizada em si e
será considerada por sua função socialmente instrumental. Se na
civilização greco-romana, com a paidéia, essas duas dimensões
66
chegaram a coexistir mais ou menos bem, sem que uma dimen-
são elimine a outra, dava-se grande valor à cultura do corpo e do
espírito sob todas as formas possíveis (filosofia, retórica, ginástica,
música, desenho, etc.). Mas, com o surgimento, na alta idade média,
do imperialismo, do espírito de dominação, a generalização da es-
cravatura, o totalitarismo imperial, a burocracia, a exploração social,
tudo isso vai propiciar um “desvio” da escola.
67
quem os possuem e posicioná-los no sistema produtivo.(LOBROT:
1990, p. 14). A aprendizagem gratuita deixou de existir.
68
e, com esta, a difusão dos livros. A esta altura, prossegue Lobrot,
apoiado em Chartier e Neveu, as escolas se multiplicam por todo
lado a partir de iniciativas provenientes das cidades, das comunas
e de particulares. Mas, se na Idade Média a expansão das escolas
monásticas, em si um fenômeno interessante, se fez ás custas da
autoridade religiosa, agora o processo acontece sob a autoridade
civil.
As cidades descobrem o dever educativo, instituem fiscaliza-
ção municipal nos estabelecimentos onde se dá educação, e fisca-
lizam sem restrições. Surgem as escolas, geralmente gratuitas, sur-
gem, os colégios:
“O Colégio é uma realidade nova que vai servir de en-
quadramento a uma nova concepção de educação.
O que antes tinha sido uma instituição para bolsei-
ros que estudam na Universidade, torna-se um lugar
onde se faculta o ensino. O que o caracteriza e dis-
tingue da Universidade medieval é a sua organização
do tempo e simultaneamente do espaço, com siste-
ma de turmas. Os alunos estão submetidos a uma
forte disciplina. Montaigne fala de uma ‘juventude
cativa’ evocando a disciplina reinante nos colégios”
(LOBROT:1992, p. 24).
E prossegue:
“O fenômeno a que se vai assistir é a substituição
progressiva do contido pelo conteúdo, nos objetivos
destinados ao ensino. [...] No entanto, os métodos não
são em nada diferentes do de hoje em dia. Essencial-
mente magistrais e ‘simultâneos’, não deixam muito
lugar à individualização e à iniciativa do aluno”. E a
ratio studiorum, dos jesuítas, fala das finalidades: edu-
car os jovens de maneira a que se formem nas belas-
letras e ao mesmo tempo nos bons costumes (dignos
de um cristão).
69
conjunto de regras de boas maneiras e de cortesia, buscando uma
conformidade profunda, interiorizada, com os princípios da vida
social, com uma crítica acentuada a todas as formas de hipocrisia a
que aquela dá lugar (LOBROT:1990, p. 28).
A aplicação de tal concepção às classes populares, todavia,
faziam-na permanecer excluída da cultura (no sentido imanente).
Assim, apenas as classes superiores se beneficiavam de tal cultura,
na medida em que eram as detentoras do “capital intelectual” ne-
cessário para dela tirar proveito, por possuírem livros em suas casas,
criando um ambiente propício a seu aproveitamento. Era uma bur-
guesia “técnica” que se constituía: médicos, advogados, oficiais, no-
tários, parlamentares, procuradores, escrivães, dentre outros. Daí, e
do acúmulo de livros onde a história passa a substituir a teologia,
emergem as sociedades literárias, as sociedades dos pensadores,
de hipnotismo, as sociedades maçônicas e outras que vão ter papel
fundamental na Revolução Francesa.
A Revolução Francesa marca uma ruptura e, ao mesmo tem-
po, uma continuidade. Dela nasce uma escola diferenciada da do
Antigo Regime, mas subsiste uma continuidade relacionada à con-
cepção de uma escola estatal e tecnocrática, que emergira com for-
ça anteriormente a ela. Data de antes da Revolução a concepção
de que a educação deveria ser nacional e controlada pelo Estado,
tendo as instituições educativas definidas com clareza sua natureza
política e jurídica. A Revolução traz consigo a idéia de generalização
da instrução, que deveria ser o motor do progresso social e huma-
no. No caso francês, a escola assume, outra vez com maior ênfase,
o papel de disseminar a “sabedoria” (os conhecimentos), prepon-
derantemente à doutrina religiosa e aos bons costumes. É a escola
propugnada pelos enciclopedistas. Ela é tributária da concepção
do século XVIII relativamente ao desenvolvimento da ciência e da
técnica:
“Agora a sociedade é concebida como uma gran-
de máquina que os dirigentes políticos conduzem
à prosperidade. Nesta máquina é importante que
cada qual ocupe seu lugar e trabalhe, o que implica
aptidões e capacidades. Estas adquirem-se na escola
e, entre elas, a aprendizagem da leitura – a alfabeti-
zação – constitui a base. Assim, a escola assume um
papel principal” (LOBROT:1990, p. 31).
70
imanente, que depois se traduz exteriormente e serve a outras ins-
tituições sociais. “É um ato capital no domínio humano que, neces-
sariamente, comporta uma boa dose de criatividade, de prazer, de
esforço, de elaboração” (LOBROT:1990, p. 35). Não obstante, registra
ele, isto pode parecer supérfluo, ou incômodo, ou inútil, num “siste-
ma centrado exclusivamente sobre um efeito útil, sobre uma dada
vantagem bem delimitada”. E, de fato, desde o século XIX, a escola
segue o objetivo de “aquisição da sabedoria” (conhecimentos). Pois
é ela que permitirá aos indivíduos agirem sobre o mundo, sobre si
próprios, sobre os outros. Que permite modificar seu destino, so-
breviver e progredir, viver ou morrer. É um fator de adaptação e de
sucesso. É, para Lobrot, uma visão pragmática que prevalece, por
conta dos processos de dominação e controle sociais. E que deixa
na obscuridade uma outra dimensão fundamental: a da sabedoria
como ato psicológico á base de representação, contendo uma dose
variável de abstração e susceptível de investimento afetivo (“desejo
de sabedoria”). Esta remete à preocupação com a felicidade e com
o desenvolvimento humano. E não se trata de escolher entre um ou
outro, porquanto um e outro são inelimináveis e devem ser indisso-
ciáveis. Mas isto traz conseqüências decisivas para a organização da
escola e o alcance dos resultados que declara buscar.
A ênfase na dimensão pragmática e utilitária da sabedoria
deixa na obscuridade o discente em sua dimensão psicológica, em
sua subjetividade, com seus sentimentos e aspirações, passando a
acentuar a dimensão do agente eficaz capaz de efetuar determina-
dos atos e alcançar determinados resultados. É isto que se afirma,
que se reivindica, pois é disso que depende “o progresso social e a
prosperidade coletiva”. Decorre daí que a escola seja um lugar de
“trabalho”, no qual as crianças devem “trabalhar”, pois a criança que
não “trabalha” põe em risco o sucesso, o futuro de sua sociedade.
A criança que não trabalha “põe em risco” seu futuro, o de sua fa-
mília, o de seu grupo social, o da nação... Então, levar em conta a
psicologia dos sujeitos, seus desejos, suas reflexões interiores, suas
revoltas, suas deformações perceptivas, suas necessidades, espe-
ranças e desesperos, eis algo que incomoda a escola, que deixou
de ser seu eixo fundamental, seu postulado essencial. A felicidade
e o êxito pessoal dos indivíduos enquanto sujeitos são contrapos-
tos ao “bem da sociedade como um todo”. E desta concepção de
bens concorrentes, nasce a coação como instrumento pedagógico.
É preciso realizar os objetivos sociais a qualquer custo. Como diz
Augusto Matraga, personagem guimarãesroseano, ao missionário
que o buscava converter: “No céu eu hei de entrar nem que seja a
porrete”.
O ensino se torna, sem hesitação, mas com toda legitimida-
de institucional, um exercício de coação: é-se obrigado a aprender
isto, isso e aquilo. E alcançamos o âmago do problema: “Esta coação
nada seria se se limitasse à pressão de um indivíduo sobre outro,
de um professor sobre um aluno. De fato é muito mais que isto.
É um sistema altamente organizado. Está de tal maneira presente
nas sociedades modernas que já não é possível vê-lo. Quase nunca
é analisado, nem sequer descrito. Paradoxalmente, nas sociedades
democráticas em que a palavra é dada a todos, aparece como um
gigantesco corporativismo” (LOBROT: 1990, p. 37). Isso significa que
71
as sociedades modernas, democráticas, que afirmam ter abolido o
corporativismo, na verdade continuam a praticá-lo, aperfeiçoan-
do-o agora, é o Estado que, em lugar das antigas corporações, de-
termina quais são os diplomas exigidos para exercer as profissões
diferentes, quais os níveis exigidos, os exames que permitem obtê-
los: “qualquer indivíduo deve, necessariamente, estar certificado,
rotulado, verificado, para poder trabalhar e até para poder existir
socialmente (a carteira de identidade é apenas uma entre outras
formas de certificação. A finalidade do sistema é essencialmente, e
antes de tudo, preparar isto” (LOBROT: 1990, p. 37). E Lobrot cita R.
Boudon que, por sua vez, citando P. Sorokin, afirma: “A escola não
tem apenas a função de fornecer as competências necessárias às
sociedades; tem, também, a função de selecionar os indivíduos e de
os orientar na direção das posições sociais existentes”.
As exigências do sistema são realizadas pelas escolas e, con-
cretamente, pelos docentes singular e coletivamente considerados.
Quando ensinam e preparam os indivíduos para exercerem deter-
minadas tarefas, são os docentes que os selecionam, aceitando ou
não a entrada deles numa ou noutra atividade, são os docentes
que atestam a competência para receberem (ou não) os diplomas.
O exercício docente é uma resposta às exigências da sociedade. E
dificilmente, senão nunca, é uma resposta às exigências e interes-
ses dos alunos (ainda que os documentos oficiais proclamem que
o aluno é o centro das atividades escolares). Se por vezes os inte-
resses e exigências podem coincidir, muitas vezes mal se articulam,
outras vezes estarão em plena contradição.
A finalidade principal da escola é a transmissão de conheci-
mentos (sabedoria), desse modo, esta define suas escolhas peda-
gógicas. E aquilo que em si é bom – transmitir sabedoria/conheci-
mentos – desvinculado das imposições ou determinações subjeti-
vas (culturais ou imanentes) –, produz uma abordagem tecnicista
do processo de ensino-aprendizagem: “organiza-se, pois, segundo
estruturas de caráter funcional. Cria-se um sistema possuidor de
uma forte racionalidade, tanto ao nível dos suportes (turmas, dis-
tribuição e encaminhamento dos alunos, etc...), como ao nível dos
conteúdos (programas, cursos, etc.)”. Mas o pior de tudo consiste
no fato de que a escola não faz seriamente a verificação quanto à
viabilidade de suas finalidades e de sua organização, pois, quando
o faz, o faz igualmente em termos técnicos, ou seja, ao invés de de-
finir suas finalidades como “formação real dos espíritos”, o faz em
termos formais: sucesso nos exames, obtenção de diplomas e assim
por diante: “Ora, os exames mais não são do que provas que medem
a inculcação, e não uma determinada formação; e os diplomas são
a expressão social e utilitária desse sucesso (registro escrito e oficial
de um determinado sucesso, um documento destinado a ser mos-
trado. Portanto, a escola se fecha sobre si mesma, como determi-
nadas pessoas que ficam solteiras. Torna-se um universo fechado,
incapaz de compreender e de se controlar a si próprio, condenado
a seguir cega e indefinidamente a sua louca corrida. Instala-se na
rigidez, torna-se incapaz de evoluir” (LOBROT: 1990, p. 39).
A opção pela alternativa técnica, mata a alternativa pedagó-
gica. A preocupação com o conhecimento (os programas!), funda-
mentais para a ciência e a tecnologia, encoberta a preocupação
72
com os sujeitos e sua formação humana. É uma instituição centrada
na transmissão do conhecimento, que esquece o sujeito psicológi-
co ao qual o conhecimento se destina, concretamente. Resulta, na
prática, que “a conseqüência da opção tecnicista é uma evolução
muito clara para a opressão, o enquadramento, o autoritarismo, a
centralização” (LOBROT: 1990, p.39). E este é um movimento que
data do século XVI, quando da criação dos colégios:
“Passa-se, assim, [na criação dos colégios] de uma regra que
estabelece os princípios diretores de uma moral e de um gênero
de vida, para uma regra que determina com rigor cada ocupação
do dia. Passa-se de uma administração colegiada para um regime
de autoridade; [passa-se] de uma comunidade de mestres e alunos,
para uma administração rigorosa dos alunos feita pelos mestres
[...] antes do século XV o estudante não se encontrava submetido
a uma autoridade disciplinar extracorporativa, a uma hierarquia es-
colar [...] Simultaneamente aparecem duas novas idéias: a noção de
enfermidade da infância e o sentimento de responsabilidade moral
dos mestres [...] Para definir este sistema, distinguir-se-ão as suas
três características principais: o vigiar constante, a delação – eleva-
da a princípio de governo e de instituição–, e a aplicação alargada
de castigos corporais (...) Doravante os educadores reconhecem um
valor moral nos uniformes e na disciplina militar” (citação extraída
de Philippe Ariés: L´enfant et la vie familiale sous l´Ancien Régime).
73
com numerosos canais de informação, de sorte que a escola as aju-
da a progredirem, apesar do quadro opressor que ela cria, pois que
o apetite cultural já vem de casa...
Tais hipóteses sustentam uma explicação para o fracasso es-
colar, que consiste exatamente nisto: ainda que aumentem vertigi-
nosamente as taxas de escolarização – como é o caso brasileiro –, as
taxas de alfabetização e de aproveitamento não acompanham tal
crescimento (se coloca o problema da “qualidade” do sistema). Ao
contrário, os dados estatísticos apenas corroboram esse insucesso.
Da mesma forma testemunham-no as diferentes proposições que,
ao longo das leis, são sugeridas para alterar o quadro, alterando a
organização do trabalho escolar: seriação, não seriação, ciclos, fases,
exames de segunda época, atividades e períodos de recuperação
(que são a tortura de professores e estudantes), turmas de acelera-
ção, matrículas por dependência, formação de turmas por nível de
aproveitamento, e todo um arsenal de medidas pontuais, buscando
alterar os sintomas de um mal profundo: a incapacidade de a escola
ser uma verdadeira agência de motivação cultural imanente.
O sistema escolar, organizando burocraticamente o tempo,
os espaços e as convivências, é um sistema opressor e irrealista. A
atividade de aquisição da sabedoria, programada, obrigatória, defi-
nida desde “fora”, deixa de levar em conta que a aquisição do desejo
da sabedoria requer uma experiência positiva no ato de aprender. A
organização do trabalho escolar – os conteúdos, os tempos, os es-
paços, as convivências (turmas) – é fonte de frustração intelectual, e
não de desenvolvimento. E é dessa forma que a escola contribui para
a diferenciação social, mantendo o corte que separa dominantes e
dominados. Isso é tão mais grave quanto, a partir da Revolução In-
dustrial, e agora na sociedade da informação ou do conhecimento,
a sabedoria técnica e científica assume papel central, é condição de
progresso individual e social. As novas tecnologias requerem cada
vez maior qualificação, sendo esta a chave do segredo para todos. O
que se impõe, então, segundo Lobrot, é a superação dos equívocos
organizacionais da escola: o despotismo tecnocrático e burocrático
não conduz à sabedoria, ao domínio da ciência e da tecnologia. An-
tes afasta dessa meta as grandes massas de alunos, notadamente
os das classes populares. A organização não pode ser o único valor
e a única realidade, deixando em segundo plano os valores huma-
nos. A organização escolar contém e anuncia a organização fabril:
espaço de alienação, superorganização que neutraliza as iniciativas
e a autonomia. Ao tecnicismo em que mergulham as classes diri-
gentes, pode muito bem corresponder, nas classes subalternas, o
afundamento no anti-tecnicismo, no desprezo pela cultura erudita,
pelo progresso social tal como apresentado, produzindo uma des-
qualificação radical, uma desculturação, uma hostilidade contra a
escola, favorecendo uma degradação cultural que os espetáculos
televisivos saciam, mais que promovem.
A cultura, a leitura, convertida em instrumento, desconside-
rada enquanto valor em si, não é capaz de motivar os estudantes.
A escola se converte em espaço/tempo de tédio e ceticismo. E, ao
invés de estimular a criação de outras formas de organização do
trabalho, de outras relações humanas, de outros tipos de participa-
ção, a escola estimula o oportunismo: ao invés de estimular a ca-
74
pacidade de empreendimento (e nesta época tanto se fala do em-
preendedorismo), a educação escolar estimula a espera da salvação
vinda do Estado ou dos organismos públicos, cria as “rãs à espera de
um rei”, abrindo caminho a todas as investidas demagógicas de es-
querda e de direita, sendo capazes de eleger democraticamente os
regimes políticos mais tirânicos, reeditando o Dezoito Brumário em
várias latitudes e longitudes. A escola contribui para isso ao dividir
a sociedade em classes sócio-culturais antagônicas, ao produzir a
desculturação das classes populares, sob um discurso que promete
exatamente o contrário. O insucesso da escola passa pela sua in-
capacidade de propor desenvolvimento no plano das relações e,
assim, encontrar soluções humanas para os problemas humanos. A
violência escolar encontra aqui muitos elementos explicativos.
O insucesso da escola, a incapacidade de alcançar suas fina-
lidades e sua missão declarada, é tanto mais grave quanto atinge a
todas as camadas da população, ainda que em proporção menor:
“Defino essa impotência como uma incapacidade de levar em con-
ta o desejo do estudante – aluno, escolar, etc.– seja ele de um meio
social elevado ou baixo [...]. Por desejo é preciso entender duas
coisas. Em primeiríssimo lugar, trata-se do desejo que o estudante
leva para a escola e que se construiu nele, no seio de sua família e
em contato com o seu meio. Em seguida, é necessário entender o
desejo que nasce, ou que pode nascer, a partir deste desejo inicial,
devido aos contatos que suscita e permite [...]. O desejo gera o de-
sejo. O desejo não nasce do nada, mas sim de um desejo anterior,
que cria uma situação favorável ao aparecimento de outro desejo.
A escola não se enquadra na dinâmica dos desejos. Prefere prever
programas e avanços a priori, que normalmente não se adaptam
aos desejos concretos [...]. O fenômeno central é que a escola não
cria o incentivo centrado na sabedoria” (LOBROT: 1999, p. 60).
75
Montessori, Freinet, Decroly, Paulo Freire, Oliveira Lima e outros).
Trata-se de uma escola redefinida: ela abre espaços à subjetivida-
de, à afetividade (e à sexualidade), aos incentivos, à relação com os
outros, bem como ao conhecimento, à sabedoria. É uma escola vol-
tada à formação. Os professores deixam de ser apenas peritos em
determinados saberes, mas passam a ser, sobretudo, animadores
de grupos, e até mesmo terapeutas23. Que assumem a dimensão
relacional de suas atividades, respeitando a personalidade dos es-
tudantes, não afastando o problema, recalcando-o. Esta escola se
redefine pela sua missão educativa, formativa, não apenas instruti-
va. É um espaço de desenvolvimento humano multirreferenciado, e
não apenas intelectual, atuando como um meio social formador.
A escola moderna, na perspectiva institucionalista de M. Lo-
brot e outros, é filha da burguesia técnica, caracterizada pela capa-
cidade de gestão-informação-direção. Tem um poder direto sobre
os homens e as instituições, mediados pela organização. É claro
que a organização é fundamental, da mesma forma que o é o es-
pírito organizativo. Como ser de outra maneira para gerir uma rede
que envolve toda a população, milhões de estudantes, milhares de
docentes e de técnico-administrativos? Mas ela não pode matar a
formação, atividade voltada para a interioridade: aprender é uma
atividade interior, de assimilação, que depende da vontade profun-
da dos sujeitos, de suas motivações e de seus fantasmas. É ato sub-
jetivo, difícil de objetivar, medir, planificar, organizar. É atividade da
práxis. E tudo passa a dar errado se a primazia passa da pedagogia
(práxis) para a organização e os organizadores e o espírito de or-
ganização (poiesis). Pois a educação não pode ser reduzida a um
problema de técnica, no qual se decide, se impõe, se resolve tecno-
craticamente, ainda que citando pedagogos ilustres. As exigências
da formação não são redutíveis a critérios simples como sucesso
em exames, pois objetivos demasiadamente simplificados não são
atingidos e impedem o alcance de outros, diz Lobrot.
76
existência de uma sabedoria universal, de conhecimentos de base,
de corpus propedêuticos universalizados, busca-se o elemento co-
mum a todas as disciplinas e a todas as ciências, busca-se então a
“cultura geral”, métodos, linguagens e instrumentos comuns. Há os
troncos comuns e as especializações, definidos num contexto neu-
tro e desprovido de interesse, pois definido sem os interessados.
O acesso à instituição escolar é gratuito, a freqüência é obrigató-
ria: não se concebe a escolaridade como uma escolha pessoal, mas
como uma imposição social, fenômeno tipicamente tecnocrático:
“é necessário que se tenha instrução”. É um princípio de base que
afasta muito o desejo de aprender. E, de quebra, definem-se des-
de fora as ações a realizar, os programas, os cursos. Ao pretender
regras extremamente rigorosas, forma-se um verdadeiro arquéti-
po no plano dos objetivos pretendidos: para além da igualdade, se
busca uma igualização, uma indiferenciação, uma nivelação. Busca-
se um “sistema”. Propõe-se um ideal inatingível para muitas crian-
ças, colocando-as numa situação de insucesso, de inferiorização
relativamente aos demais colegas.
A busca da igualdade a todo preço gera uma hierarquização
maciça, uma seleção impiedosa, pois é o meio social que está na
origem da incapacidade de atingir as normas. E o sistema suposta-
mente democrático se converte num sistema profundamente an-
ti-democrático, em razão da seletividade que opera. Ela amplia as
diferenças sociais. Quando o processo termina, ele classifica e hie-
rarquiza a futura vida social (LOBROT:1990, p. 76-77). A lógica pro-
duz resultados perversos, o arquétipo imposto desde cima, pelas
exigências planificadoras, conduz a uma média. Então, proclamam-
se os objetivos: ler, escrever e contar, ter conhecimentos, ser cida-
dão honesto, profissional competente. Mas os resultados não são
alcançados, porque não operacionalizáveis pedagogicamente. Daí
resulta o fracasso. As diferenças sociais iniciais se transformam em
inferioridade, em exclusão, em seletividade.
Os processos pedagógicos são psicológicos e sociais, não sus-
cetíveis de abordagens mecanicistas. Submeter todo mundo a uma
igualdade inicial, ao mesmo regime, não assegura que se chegue à
igualdade no fim do processo. Esta é a grande ilusão tecnocrática.
As desigualdades devem ser tratadas desigualmente.
78
aprender certas coisas – a ler, por exemplo –, em certo período de
tempo (apesar de a maioria fracassar). É que a escola fabrica seus
programas, seus ritmos, seus métodos, seus objetivos não levando
em conta os estudantes, suas bagagens e interesses, mas refletindo,
ao nível institucional, os programas e os empregos do tempo que
são os da sociedade em geral. “Não há qualquer vontade diabóli-
ca nisso, mas apenas a mania planificadora que não leva em conta
nem os indivíduos, nem as suas diferenças. As crianças do povo não
podem adaptar-se a essas normas porque são normas ideais, abs-
tratas, que se dirigem a um aluno teórico, espécie de protótipo, que
possuiria, à partida, todas as qualidades exigidas para realizar as
normas. O mecanismo é o mesmo quando se impõe aos operários
na cadeia de produção um certo ritmo, sob o pretexto de que os
cronometradores calcularam que este corresponderia ao tempo de
um indivíduo médio. Não se procura, ao fazer isso, perseguir aquele
que não se pode adaptar a estas normas, mas procura-se assegurar
a produção num esquema mecanicista e desumano” (LOBROT: 1990,
p. 106-107). E nós, professores, ao aceitarmos as normas burocrati-
zadoras, contribuímos, ainda que involuntariamente, ao processo
elitizante. Somos os perfeitos agentes do sistema, que cumpre seus
desígnios com nossa mediação.
Lobrot encaminha para a conclusão de sua tese: “...a escola
atual está obcecada pelo igualitarismo e pela homogeneidade por-
que é de essência burocrática. Em vez de considerar a criança como
um ser humano integral, considera-a como um objeto escolarizável,
idêntico em tudo às outras crianças que, também elas, não passam
de objetos escolarizáveis. Feito isso ela responde a outro esquema
de dominação [...] no qual certos indivíduos, em posição adminis-
trativa, pretendem fazer o bem de todos pela coerção e pela ser-
vidão de cada um, o que lhes atrai a simpatia e o apoio daqueles
que, possuídos pelo medo do outro, procuram a sua salvação nesse
processo. O constrangimento operado sobre a criança satisfaz, com
efeito, os pais e a sociedade inteira, que vêem nele o seu futuro mais
precioso. A escola é a instituição encarregada de aplicar este cons-
trangimento. A seleção que daí resulta [...] é, de preferência, uma
rejeição por não-conformidade” (LOBROT: 1990, p. 113).
79
uma nova sociedade, uma sociedade outra, no sentido que Casto-
riadis empresta ao termo “outro”, referindo-se a uma outra forma/
figura de sociedade (e que no fundo consiste em tornar realidade
as finalidades proclamadas pela sociedade liberal), deve-se criar
uma outra escola (ou uma escola outra) como parte integrante de
criação dessa nova sociedade. Esta nova escola (ou escola “outra”)
deverá ter em conta:
1) a diversidade dos estudantes, adaptando-se a todos, a to-
das as mentalidades, a todos os níveis sociais, a todas as psicologias,
a todas as desvantagens e vantagens, a todos os ritmos, a todos os
indivíduos;
2) o ponto comum é a formação máxima: oferecer os meios
materiais e humanos para o máximo desenvolvimento pessoal, no
sentido que cada um escolher, respeitada a soberania de cada indi-
víduo, sem que ninguém se substitua a ele dizendo-lhe o que lhe
interessa, o que o preocupa, o que ele procura, o que ele deve ob-
ter;
3) considerar o “princípio da livre disposição”: não há enrique-
cimento interior possível se este não for verdadeiramente desejado
pelo seu autor. Esta é a lei da aprendizagem;
4) permitir reformas institucionais que facultem uma liber-
dade de movimentos suficiente, suprimindo a “canga dos exames”,
que ocupam o espaço da avaliação e que servem apenas como ele-
mento de pressão para “trabalhar” escolarmente;
5) criar dispositivos pedagógicos e estruturais adequados,
tais como:
i) princípio de imersão: deixar aos indivíduos possibilidades de
se porem em contato com certos tipos de objetos ou atividades du-
rante tempos extremamente longos, meses ou anos, pois é assim
que se fazem as grandes aquisições, superando a dispersão dos cur-
rículos e programas oficiais padronizados e desconectados;
ii) princípio do desenvolvimento “primal”: o ingresso numa ati-
vidade requer permanecer durante muito tempo num nível extre-
mamente baixo, primário, infantil, embrionário, que constitui a ma-
triz de qualquer desenvolvimento. A aprendizagem pressupõe um
apelo para a aquisição, um gosto, uma aspiração que são de ordem
afetiva. É preciso criar a motivação, fazer nascer os interesses. É uma
função iniciática, como na educação infantil;
iii) princípio do dualismo: articular animação e ensino. Fazer
conviver uma dualidade: de um lado, estruturas e objetos relativa-
mente rígido e fixos, portadores da informação e, de outro, estru-
turas e objetos que suportam e reforçam a atividade subjetiva. “O
essencial está num processo de suporte da própria atividade que
foi aceita, encorajada, prolongada, valorizada e que pode afirmar-
se e ir até ao fim”. A escola viva, centrada nas pessoas em formação,
terá uma estrutura centrada inteiramente sobre o saber e os conhe-
cimentos (bibliotecas, laboratórios e outros) e uma estrutura para
ajudar os alunos a desenvolverem a comunicação, a viverem expe-
riências desejadas, a afirmarem seus objetivos, a elaborarem seus
fins, a falarem de seus problemas, estrutura esta, evidentemente,
apoiada em animadores competentes. Os alunos circulariam entre
essas duas estruturas: entre animação e saber, saber e animação.
Esta leitura institucionalista da organização escolar deve pro-
80
curar aguçar nossa capacidade de reler atenta e criticamente os di-
positivos legais que regem nossas escolas, sua organização e seus
processos. Isso é o que faremos a seguir.
81
estabelecimentos de ensino poderia ser feita. Aos Conselhos cabia
“definir a amplitude e o desenvolvimento dos seus programas em
cada ciclo” (artigo 35, parágrafos1º e 2º). E fala em “currículo” – o
das duas primeiras séries do 1º ciclo deveria ser comum a todos os
cursos de ensino médio no que se refere às matérias obrigatórias
(parágrafo 3º).
O Capítulo I do Título VII é o mais rico da Lei 4024 no que se
refere à organização do trabalho educativo propriamente falan-
do. O artigo 36 estabelece a necessidade de aprovação em “exame
de admissão” para se poder ingressar “na primeira série do primeiro
ciclo dos cursos de ensino médio”, devendo ficar devidamente “de-
monstrada satisfatória educação primária”, além de o candidato ter
“onze anos completos ou (vir) a alcançar essa idade no correr do
ano letivo”. O artigo 38, ao dispor sobre a “organização do ensino de
grau médio”, é todo feito de “ normas”, que definem:
82
A Lei 5.692/71 traz interessantes e sugestivos elementos ino-
vadores quanto à organização do trabalho escolar. É importante
ter presente que, àquela época, estava em voga a teoria do capital
humano, e segundo ela se apregoava a importância da educação
para o desenvolvimento econômico – era a época do denominado
“milagre brasileiro” e as estatísticas educacionais eram pouco ani-
madoras. Elevadas taxas de analfabetismo, insuficiência de cober-
tura escolar, elevados índices de evasão e repetência –com seus
custos muito bem calculados – faziam a preocupação dos siste-
mas. Assim, por exemplo, no Estado de Santa Catarina, em 1969,
se implantou uma nova legislação de ensino que propunha o fim
das reprovações e repetências, introduzindo o “avanço progressivo”,
modalidade de organização em que não mais haveria reprovação, a
avaliação dos alunos devendo ser feita mais qualitativamente, seu
histórico sendo registrado numa ampla folha corrida de avaliação
escolar. Dentro deste espírito, podem-se registrar no texto da lei as
seguintes disposições:
83
tados, respeitadas as normas dos respectivos Conselhos de Educa-
ção;
8) Mantida a duração do ano e do semestre letivos em 180
e 90 dias, respectivamente, instituíam-se os períodos de “recupe-
ração” para os alunos de aproveitamento irregular e, inclusive po-
dem-se ministrar disciplinas, áreas de estudo ou atividades “em ca-
ráter intensivo” nos períodos de férias ou “entre os períodos letivos
regulares”;
9) A verificação do rendimento escolar, sob responsabilidade
dos estabelecimentos de ensino, deveria considerar a “avaliação
do aproveitamento e a apuração da assiduidade”, sendo que, re-
lativamente ao aproveitamento, “aspectos qualitativos” deveriam
prevalecer sobre os “quantitativos”, introduzindo-se a expressão da
avaliação por “menções” e não apenas “notas” e, mais importante
talvez,
10) Poder-se-ia admitir, “verificadas as condições necessárias”,
“a adoção de critérios que permitam avanços progressivos dos alu-
nos pela conjugação dos elementos de idade e aproveitamento”;
11) Admitia-se a matrícula “com dependência de uma ou duas
disciplinas” a partir da 7ª série;
12) Explicitava-se que o ensino de 1º grau se destinava à “for-
mação da criança e do pré-adolescente, variando em conteúdo e
métodos segundo as fases de desenvolvimento dos alunos”, en-
quanto o ensino de 2º grau era destinado “à formação integral do
adolescente”;
13) Finalmente, o artigo 64, talvez o menos utilizado da lei,
dispunha que os Conselhos de Educação poderiam autorizar “expe-
riências pedagógicas, com regimes diversos dos prescritos na pre-
sente lei, assegurando a validade dos estudos assim realizados”.
84
to a primeira do ensino fundamental, considerando promoção com
aproveitamento na série ou fase anterior; por transferência para os
alunos procedentes de outras escolas e até independentemente de
escolarização anterior mediante avaliação feita pela escola, consi-
derando o grau de desenvolvimento e experiência do candidato;
3) Formas de progressão parcial, quando seriada;
4) Organização de turmas ou classes com alunos de séries dis-
tintas, segundo o adiantamento na matéria;
5) Verificação do rendimento escolar com base em avaliação
contínua e cumulativa, prevalência de aspectos qualitativos, pos-
sibilidade de aceleração de estudos, possibilidade de avanço nos
cursos e nas séries mediante a verificação do aprendizado, obriga-
toriedade de estudos de recuperação.
85
A Lei 6692/71 se expressa assim:
ATIVIDADES SUGERIDAS
86
ou força-auxiliar do sistema?
Certamente um dos ramos mais antigos do sistema de ensino
brasileiro seja o da formação de “normalistas”. As escolas normais,
de fato, vêm do século XIX, e as “normalistas” são decantadas em
prosa e verso. Há até um romance de Inglês de Sousa cujo título é A
Normalista. Mas, deixando de lado uma certa visão romanceada da
profissão e de suas (ou seus) profissionais, elas e eles exercem uma
função vital na sociedade: a formação das gerações.
O crescimento das redes, sua expansão espetacular trouxe
professoras e professores a uma situação sócio-econômica tipica-
mente proletarizada. Longe está a época em que “chopim” era a
denominação maliciosa de marido de professora (invejavelmente
remunerada, em termos relativos!). Como quer que seja, a categoria
se ampliou, se proletarizou (ou foi proletarizada), ao mesmo tempo
em que se organizou, se associou, se sindicalizou, e passou a ser um
ator coletivo dentro do “sistema educacional”.
Já foi visto, na segunda parte deste trabalho, como, no Títu-
lo IV, ao dispor sobre a “organização da educação nacional”, a Lei
9394/96 inicia pelas responsabilidades da União, desce pelos Es-
tados, Distrito Federal e Municípios, para “aterrissar” nos estabele-
cimentos (Artigo 12) e, dentro deles, desembocar nos professores
(Artigo 13). O texto da lei, plenamente verticalista, isto é, situando
numa posição “de cima para baixo”, passa aos professores as atribui-
ções operativas de:
88
e demais instituições que mantenham cursos de duração plena”. Os
especialistas, entendendo-se como tais “administradores, plane-
jadores, orientadores, inspetores, supervisores de demais...”, eram
formados em curso superior de graduação, com duração curta ou
plena, ou de pós-graduação. Completam o quadro geral (afora de-
talhes que não vêm ao caso, neste momento) as seguintes disposi-
ções:
89
ção, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional
para a educação básica, seja feita em cursos de graduação em Pe-
dagogia, ou em nível de pós-graduação, a critério da instituição de
ensino;
II) essa formação deve ter “uma base comum nacional”;
III) deve incluir “prática de ensino” de no mínimo trezentas ho-
ras;
IV) a preparação para o magistério superior deve se fazer em
nível de pós-graduação, prioritariamente em mestrado ou douto-
rado.
90
urbanas de ensino fundamental para o regime de escolas de tempo
integral), determina:
91
A criação dos Institutos Superiores de Educação certamente
não precisa ser apenas isso, pois os espaços de formação docente
podem ser repensados, recriados, reestruturados, ainda há muitos
desafios a superar. Pode-se aceitar a idéia de “constituição de todo
um novo ambiente institucional, mais propício à renovação das
práticas necessárias à formação dos docentes”26, mas não podem
ser inferiores em instalações e quadros docentes às Faculdades de
Educação e seus cursos de Pedagogia, com tradição e experiência
acumuladas historicamente.
Entretanto, a Resolução CP nº 1, de 30 de setembro de 1999,
admite um corpo docente com “pelo menos 10% (dez por cento)
com titulação de mestre ou doutor” e “1/3 (um terço) em regime
de tempo integral”. (artigo 4°, parágrafo 1º, itens I e II). Pelo Parecer
n.º CP 10/2000, de maio de 2000, o Conselho Nacional de Educação
aprovou a substituição da expressão “exclusivamente” por “prefe-
rencialmente”, mitigando a situação criada pelo Decreto nº 3.276,
de dezembro de 1999. Mas não marcou posição contra a iniciativa
do decreto que, autoritário, usurpou as competências do próprio
Conselho e feriu de morte o conceito de democracia no processo
formativo, dando um exemplo de educação autoritária exatamente
aos futuros formadores. O gesto autoritário do Presidente da Repú-
blica valeu, por enquanto, apenas para aquela categoria que mais
se tem afirmado como sujeito social-histórico na instituição da so-
ciedade e da educação brasileiras...
Será possível, algum dia, uma educação democrática sem
formar os docentes para tal sociedade e tal educação? Um projeto
legislativo, negociado com as bancadas oposicionistas, tramita no
Congresso Nacional objetivando desfazer tamanho acinte à demo-
cracia e à formação. Seu resultado certamente depende da mobili-
zação da categoria que está desafiada a “educar o educador presi-
dente”. Estes esclarecimentos são importantes, pois os educadores
e educandos não podem estar alienados em relação a tais questões,
vitais para seu próprio processo “formativo”, e não apenas “qualifica-
tivo” ou “certificativo”.
Mas, para não destacar apenas o lado negativo, é importante
ressaltar o que se destaca nos trabalhos sobre a formação docente,
como ponto, a meu ver, positivo:
i) a instituição de mecanismos de entendimento das institui-
ções formadoras com os sistemas de ensino para assegurar o de-
senvolvimento da parte prática da formação em escolas de educa-
ção básica;
ii) a organização da parte prática da formação com base no
projeto pedagógico da escola em que vier a ser desenvolvida (pro-
piciando o diálogo entre ambas as instituições);
iii) a supervisão da parte prática da formação através de semi-
nários multidisciplinares;
iv) a participação da escola na avaliação dos formandos em
sua parte prática;
v) a preocupação com a articulação entre teoria e prática, va-
lorizando o exercício da docência;
vi) a preocupação com a articulação entre as áreas de conhe-
cimento ou disciplinas;
26
Diretrizes Gerais para os Institutos Superiores de Educação. Parecer n.º CP 53/99,
do Conselho Nacional de Educação.
92
vii) o aproveitamento da formação e experiências anteriores
em instituições de ensino e na prática profissional;
viii) a preocupação com a ampliação dos horizontes culturais
e o desenvolvimento da sensibilidade para as transformações do
mundo contemporâneo.
Abre-se uma nova perspectiva para a formação docente, ape-
sar dos pesares. Resta exigir que os Poderes Públicos não passem
essa responsabilidade ao setor privado, deixando os docentes à
mercê dos interesses do capital lucrativo. E resta que as instituições
formadoras públicas sejam corajosas no enfrentamento das inova-
ções propostas e de seus desafios, assumindo a iniciativa e a lide-
rança do processo, ocupando os espaços que são seus e, a partir
deles, lutando pelos recursos indispensáveis.
ATIVIDADES SUGERIDAS
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Bibliografia
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Dispõe sobre a formação em nível superior de professores para atuar
na educação básica, e dá outras providências.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CP nº 1, de
30.09.99. Dispõe sobre os Institutos Superiores de Educação, conside-
rados os artigos 62 e 63 da Lei 9.394/96 e o artigo 9º, parágrafo 2º, alí-
neas “c” e “h” da Lei 4.024/61, com a redação dada pela Lei 9.131/95.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer nº CP 115/99, apro-
vado em 10/08/99. Diretrizes Gerais para os Institutos Superiores de
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