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Capa: Relogio D ‘© Relégio D’Agua Editores, Maio de 2006 1 igo na Quetzal Bitoes, 194 José Gil Monstros Tradugdo de José Luis Luna Antropos Oo oS Neste fim de século, os monstros proliferam: vemo-los por todos os lados, no cinema, na banda desenhada, em gadgets e brinquedos, livros e exposigdes de pintura, no teatro e na danga. Invadem o planeta, tomando-se familia- res. Cessario, muito em breve, de nos parecer monstruosos € ser-nos-do até simpdticos, como jé acontece a tantos extra- terrestres das séries de televisdo. Havemos de falar entao da como se fala agora da «violéncia precisamente, uma aberracao. que inquieta realmente € que no hé seleccao nem es- colha preferencial destes novos invasores: assim como a Antiguidade adorou os centauros, as quimeras ¢ 0s sétiros, também nés terfamos podido privi gindrios, resultado de cruzamentos entre espécies diferen- tes. Mas gostamos indiferentemente do Elephant-man ¢ dos andes dos Freaks, das «regas fabulosas» e dos monstros te- ratolégicos. Esta atitude € sinal da grande diivida que as- saltou © homem contempordneo quanto & sua propria hu- manidade, Ao verificar, com efeito, a estabilidade do gosto pelos ‘monstros teratol6gicos, desde os tempos em que o Renasci- mento pés cobro as racas fantdsticas de ciépodes, cinocéfa- los e outras que tais, espantamo-nos com este retorno do «monstruosidade banal 12 José Gil imaginério: como se 0 saber biol6, n sobre 0 ser humano tivesse perdido as suas virtudes , fundado- ras de uma determinada idei le do homem. E que a propria teratologia se tomou fant nos contentamos com as classificagdes bem ordenadas de um Geoffroy Saint-Hilare que pacificavam finalmente um confuso, racionalmente escandaloso, incapaz, des- de estabelecer «as leis da aberragion. Ao classificd-las segundo a sua teoria — a prim tifica do desvio teratolégico — Geoffroy monstruosidade aos monstros. Ora nés exigimos mais dos monstros, pedimos-Ihes, justamente, que nos inguietem, que nos provoquem vertigens, que abalem permanentemen- te as nossas mais sélidas certezas; porque necessitamos de certezas sobre a nossa identidade humana ameagada de it definigao. Os monstros, felizmente, existem ndo para nos mostrar 0 que nao somos, mas 0 que poderiamos ser, Entre estes dois pélos, entre uma possibilidade negativa e um acaso possivel, tentamos situar a nossa humanidade de ho- mens. Ao tomar-se fantastica, a teratologia modificou o seu as- pecto. O monstro artificial impés-se com Frankenstein e, desde entiio, nao deixou de se desenvolver; a manipulagio genética prosseguiu a tarefa, prometendo-nos um belo futu- to de homens-monstros imagindrios (fazendo votos para que nunca viessem a ser reais). Doravante, testamos «expe- Timentalmente» os limites da nossa humanidade: até que grau de deformagao permaneceremos ainda homens? Ques- to antiga que preocupara Santo Agostinho a propésito das ragas fabulosas do Oriente, Excepto que, para nds, se trata de uma questd creta, em que a sobrevivéncia da humanidade esté e © a resposta depende dos nossos meivs e do nosso querer. ica. JA no Monstros 13 Até onde podemos levar 0 artificio sem prejudicar a nossa identidade humana «natural»? O artificio esté a tomar-se si- nénimo de aberrago e, contudo, continuamos apanhiados hha vertigem da experimentagdo e da aventura, queremos Cconhecer e tocar 0s confins de nés préprios, aquele limit onde deixamos de ser homens. Forgamos a Natureza até aos seus limites extremos — transformamo-nos em homens- -moscas, homens-leopardos ou outros: 0 «humandider € uum termo que designa uma zona de esséncias difusas de se- res cada vez mais numerosos e variados. Reencontramos, deste modo, os sonhos mais antigos do devir-animal chaménico; e, a0 mesmo tempo, perguntamo- nos, angustiados: que corpo podemos nés ter hoje? Que corpo «natural», humano, para uma alma que se tornou, completamente artificial, anti-natural, destruidora da natu- ~ reza? Pomos & prova os limites da nossa «naturalidade>, procuramos pontos de referéncia por toda a parte ¢ € por is- de monstros: 0s fabulo- : estd em situago de se tomar real através da manipulagdo genética e 0 tera toldgico invadiu o imagindrio gragas as mais diferentes es- pécies de extraterrestres, Os monstros t anomalia em g ia Freud que 0 neurstico acredita que existe sempre 4, °° uma determinada deformagao seus males psiquicos? — mas porque, ao contririo, 0 do- se contraiu: hé cada vez me- das Américas (sobre 0 qual wou Alvares Cabral na via- 14 gem de descoberta do Bra la se interrogava se seria humano ou «bestial»), jé ndo existem mais monstros, uni camente homens. A extensio dos «direitos do homem» ato- da a Natureza, bem como certas ciéncias como a etologia,-! contribuem, paradoxalmente, para o desaparecimento das fronteiras: descobrem-se formas de lidade avangada nos mamfferos superiores e falar das ternas variantes do amor cortés nas c sedugo sexual de certas aves. Assim, dividido entre «tudo (na natureza) € humano» (visto que © homem ndo € sendo natureza e cédigo genéti- co) € «tudo (no homem) é artificial», 0 homem ocidental contempordineo j4 nao sabe distinguir com nitidez 0 contor- no da sua identidade no meio dos diferentes pontos de refe- réncia que, tradicionalmente, Ihe devolviam uma imagem estavel de si propr Daf 0 intenso fascinio actual pela monstruosidade. Os monstros so-Ihe absolutamente necessdrios para continuar a.crer-se homem. No entanto, 0 monstro ndo se situa fora do dominio hu- mano: encontra-se no seu limite. Com efeito, nao é na simples oposigo que 0 homem se define em relag&o aos monstros, mas num sistema comple- xo de afinidades com figuras (entre as quais, sobretudo, a da divindade e a do animal) que mantém distncias estrutu- rais estdveis com a situago que ele ocupa. Esse sistema postula uma boa distancia entre os diferen- tes pélos da estrutura. Se essa distancia se altera, produ- zem-se anomalias e novas formas podem surgir: se a divin- dade, ou os poderes sobrenaturais, se aproximam demasiado da humanidade, se se cruzam com o homem, po- dem nascer monstros teratoldgicos; se a animalidade inva- de a humanidade, surgem monstros afabulosos» — centau- rer Monstros 15 108, sétiros, cinocéfalos, homens selvagens!. Uma aproxi- magao excessiva entre a Natureza ¢ 0 homem resulta — nesta perspectiva antropoldgica — num desregramento da cultura, tal como o contacto directo, sem mediagoes (rituais iais), entre os homens ¢ os deuses. Em ambos os casos (visto os animais incarnarem sempre os poderes sobrenaturais), € a intervengao divina que se manifesta na monstruosidade do corpo humano. E € por es- Sa razo que constitui um sinal anunciador, uma mensagem_ divina, um «augtirio». ‘Assim, o monstro surge por aproximagio do que deve ser mantido a distancia (divindade/homem; natureza/homem). Além destas duas, outras combinagdes so possiveis: pode- -se dar um cruzamento entre ragas monstruosas (elas pré- prias resultado de uma aproximagao excessiva entre cultu- ra e natureza) e nascimentos teratol6gicos individuais. E ao que se assiste na aurora da Renascenga quando a crenga nas ragas declina ao misturar-se com 0 interesse nas- cente pelos corpos humanos monstruosos: nascem porcos com cabega humana (Sébastien Brandt), homens com asas ou com cabega de elefante (Aldrovandi). Certos tragos das racas rebatem-se sobre os individuos que passam a possuir as caracteristicas daquelas, 0 que corresponde a uma pre- senga mais forte (do que a normal) da divindade na nature- za. A Tdade Média tarda a passar: na iconografia, 0 desapa- 1 Adoptdmos este termo, um povco redundante (mas ndo € a prépria mons- truosidade fisica redundante?), de «monsto teratoldgico» para designar as de- ormagBes corporais do corpo préprio, iferenciando-se das fantasias imaginé- ras das ragas fabulosas — das quas algumas, todavia, sfo «teratoldgicas». A Gistingdo € cémoda porque © monstro teratolégico & sempre individual, en- {quanto o fabuloso pertence a uma eraga» (neste texto, ocuparo-nos apenas da Ronstruosidade humana); e, sendo individual, é no entanto diferente do “Chomem.animal» (homent-porco, p. eX.) que resulta também de um nascimen- {to monstruoso, mas em cruzamento com uma ri 16 José Gil recimento das ragas monstruosas faz-se progressivamente, como se a dificil transformago da humanidade do homem devesse corresponder uma igual dificuldade no seu referen- te inverso. Como se uma nova forma para essa humanidade exigisse um tempo de transigao ¢ de «muda: porque & nos periodos transitérios, de intensa mudanga «cultural», que surgem as mais variadas aberragoes. Representemos sumariamente a estrutura das «di cias» que determinam os tipos principais de monstruosida- de: Esfera Sobrenatural Divindade ~ Y Monstros teratolégicos a ~‘ Cultura Homem-porco, Humanidade Homem-clefante, ete. ~~ a 4 Centauros, sétiros a” Natureza Animalidade Esta estrutura constitui parte de um sistema mais vasto de figuras do Outro, e seria necessério descrever todo esse Conjunto para situar com preciso o lugar do monstro, Di- Monstros 7 gamos, simplesmente, que a questo de saber se tal ser é um. Outro (um alter ego) tem apenas a ver com um humano. Mesmo que a humanidade, formulada em primeiro lugar, seja a seguir posta em diivida, é com fundamento nessa cer teza inicial que se interroga a humanidade do outro. O caso recfproco nunca acontece: nao nos perguntamos se um gol- finho, ou um chimpanzé, € humano, apenas nos interroga- ‘mos quanto a sua inteligéncia ou linguagem — aproxima- mo-nos, por certo, do limiar para ld do qual a animalidade cessa. Mas a interrogagao refere-se & animalidade, néo a al- teridade do golfinho ou do chimpanzé. ‘Assim, 0 outro mantém-se sempre entre fronteiras exte~ riores: 0 animal e a divindade nao representam limites do humano. Como outros radicalmente-outros, j4 se encon- tram para 1é do humano. O outro toma forma no intervalo que vai do Ego-homem ao animal e aos deuses, resultando sempre de uma transformagiio da humanidade do homem. gE fa natureza dessa transformagio que temos de definir em cada caso se quisermos compreender 0 significado do Outro. E por isso que as diferentes formas do Outro tendem pa- ra a monstruosidade: contrariamente ao animal e aos deu- ses, 0 monstro assinala 0 limite «interno» da humanidade do homem, Por exemp! 08 indios e negros desco- bertos nos séculos Xv e xviem Africa e nas Américas se en- contrassem aquém das fronteiras da monstruosidade, a sua humanidade foi objecto de divida: eram monstros, ani- mais? Por outras palavras, a sua alteridade € mobil, no fi- xa e, por definig&o, instavel. Segue sem cessar a interroga- Ho que os des ja, 0 declive do movimento das pulsdes que conduz naturalmente ao monstro, tiltimo ponto de referéncia do Outro, com uma forma tio nitida ¢ estével ‘como era a sua iconografia. I 18 José E verdade que a tradigéo das ragas monstruosas na peri- feria do mundo age influenciando o olhar, mas nao deixa de seguir a tendéncia mais fécil, mais >>, pois 0 mons- tro ndo é sendo a «desfiguraco» tiltima do Mesmo no Ou- tro. E 0 Mesmo transformado em quase-Outro, estrangeiro a si proprio. E uma deméncia do corpo, uma loucura da came. E no quadro de um tal sistema da alteridade (mais supos- to que explicito) que procuramos compreender a fungao da monstruosidade, desde os fins da Idade Média até ao pr cipio do século xvit. A ambigao deste pequeno ensaio € ape- nas procurar saber a faz4o pela qual.os monstros sempre fascinaram os homens. A fenomenologia da monstruosida- de é sempre acompanhada pela apresentagao de textos, de Santo Agostinho a Descartes, da viagem ficticia de Mande- ville aos contos populares. Poe-se uma questiio fundamental monstro no pensamento simbélico? Mais precisamente: 0 que é que se pensa quando se pensa na monstruosidade? Definimos uma ldgica a partir das crengas nos monstros, entre o simbélico e o real, que vemos aplicada a propésito das ragas fabulosas da Idade Média e da unio da alma e do corpo em Descartes. O monstro é pensado como uma aber- ragdo da «realidade» (a monstruosidade é um excesso de realidade) a fim de induzir, por oposigo, a crenga na «ne- cessidade da existéncia» da normalidade humana. Uma existéncia que seja um dado adquiri imprescindivel no questionar a nossa identidade de homens como seres reais. A nossa facticidade é de direito. © «monstro» constitui assim uma espécie de operador «quase-conceptual» que, embora inquietando a razio, per- mite convencer que a existéncia do homem € produto de ‘Monstros 19 uma necessidade: em resumo, que 0 real humano € racional. Trata-se de um conceito aberrante (um quase-conceito ou quase-simbolo), semelhante a tantos outros que povoam 0 discurso dos fil6sofos (como 0 «Deus enganador» de Des- cartes). Se bem que contradit6rios ou « Segue-se uma lista de povos monstruosos que repete a ordem adoptada por ‘Santo Agostinho no parece in- clinado a crer na sua existéncia: «Nao 6 necessério acreditar em todos esses géneros hu- manos que se diz. existirem.® Ora isto, em alguém tio 5S De Civitate Dei, XVI, VIL, 6 Idem. 30 José Gil aberto a acreditar em factos estranhos e maravilhosos e que encheu a sua obra de uma vasta colecciio de mirabilia, des- critas unicamente pelo prazer da curiosidade, parece-nos insdlito. E que hé fortes razdes para recusar as ragas mons- truosas, e Santo Agostinho submete sempre os factos & con- veniéncia dos textos sagrados — mesmo quando emprega 0 método inverso para fazer mentir os autores que combate. Neste caso, contudo, ndo hé somente preocupagdes de or- dem teolégica: hé igualmente toda uma visdo da realidade que se elabora e para a edificagao da qual Santo Agostinho, com a sua vontade de reabsorver todo o saber antigo no co- nhecimento que o texto biblico propunha ao mundo, muito fortemente contribui. O significado dos nascimentos monstruosos como pressi- gios é negado pela recusa em acreditar na existénci vos fabulosos; e dessas duas negagSes surge a poss de compreender os dois fenémenos, mas transformados e si- tuados num outro contexto: «A razo que se dé para o nas- cimento de humanos monstruosos entre nés pode também explicar a monstruosidade de certos povos. Com efeito, Deus, Criador de todos os seres, sabe em que lugar e em que altura €, ou foi preciso, criar um ser, como sabe igualmente por que ordenaco de partes diversas, ou semelhantes, se ob- tém a beleza do Universo. Mas quem nao tem uma visio do conjunto fica chocado pela aparente disformidade de uma parte de que ignora a conveniéncia e a relagao com 0 junto. Assistimos ao nascimento de criangas com mais de cinco dedos nas mos e nos pés — 0 que ndo passa de uma ligeira estranheza; se bem que as raz6es de tal fendmeno Ihe escapem, que ninguém, no entanto, tenha a leviandade de aereditar que 0 Criador se enganou a contar os dedos.»? nm 7 ibid, XVI, VI ‘Monstros 31 Em resumo, nao é pelo facto de o homem nao compreender © porqué da monstruosidade que ela nao existe ¢ se possa di- ' zer que nao foi desejada por Deus. Pelo contrério, para que 0 no digam, Deus criou precisamente as ragas fabulosas: «Mas, se se trata de homens nessas descrigées maravilhosas, porque 6 que Deus nio teria querido criar, do mesmo modo, certos povos, temendo que acreditéssemos, ao ver nascer um mons- tro entre nds, que a sabedoria que moldou a natureza humana tivesse, como um artista pouco hébil, falhado a sua obra? Lo- ‘g0, no nos deve parecer absurdo que haja ragas de monstros no seio da humanidade, pois existem monstros humanos em todas as ragas. E, para concluir com prudéncia e circunspec- fo: ou o que se conta acerca das ragas é falso; ou nao sao ho- mens; ou, entio, se so homens, descendem de Adio» Hartmann Schedel, Chronica mundi, Nuremberg, Anton Koberger, 1493 8 wid 32 José Gil Santo Agostinho explica a incompreensibilidade do nas- cimento monstruoso (que no € uma adverténcia divina) através da existéncia de ragas fabulosas. Uma ndo explica a utra, mas prova que a primeira tem uma razo de ser, ape- sar de ndo a compreendermos. O nascimento monstruoso é uma realidade incontestével (mas aparentemente escanda- losa, teologicamente «absurda»); temos por conseguinte de admitir ragas de monstros para reduzir 0 absurdo aparente desse facto — e, por sua vez, a existéncia de uma raga monstruosa deixard de ser um absurdo teol6gico. Assim, Santo Agostinho deduz a possibilidade, a probabilidade mesmo, de existirem ragas fabulosas no Oriente. A «probabilidade», em primeiro lugar, de «certos» povos apenas (Sto. Agostinho rejeitaré os Antipodas). No se deve acreditar a letra nos textos antigos. Depois, a certeza da sua existéncia ndo pode ser senio parcial, co- medida,

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