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O Desejado

e o Encoberto:

potências
de movimento
de um mito
andarilho
MARCIO HONORIO DE GODOY

Q
ue especial e curioso trajeto de vida perfaz a história de um rei ao receber,

muito antes do seu nascimento, o sugestivo epíteto de o Desejado e,

depois de sua morte, ter agregado, ao seu nome, um outro qualificativo,

de significado não menos instigante, como o Encoberto? Quantas coisas podem


nos tocar, nos fazer viajar nesta vida tão cheia de singularidades pronta a existên-

cias múltiplas no âmbito da fabulação histórica, mítica, religiosa, artística, etc.?

Dom Sebastião, o Desejado e o Encoberto, não recebeu essas denominações por

alcançar ou construir algum feito extraordinário em vida. Ao contrário, formou sua

personalidade, tanto histórica quanto mítica, agindo (em sua existência histórica)

e sendo reinventado (em moventes textos da cultura) muito pelos impulsos ema-

nados dos adjetivos que foram se acoplando a ele, e acompanhando sua pessoa.

Com a afirmação do nome próprio com o qual é batizado, em homenagem a um

MARCIO HONORIO
DE GODOY
é pesquisador do
grupo de pesquisa
Mídia e Cultura:
Barroco e Mestiçagem
e do Centro de
Estudos da Oralidade
da PUC-SP.
santo católico dos mais populares e res- até seu desaparecimento, quando se torna
peitados por causa da demonstração de também o rei Encoberto. Alguns detalhes
tenacidade na fé em Cristo, junto com a levantados pretendem dar pistas e discutir
significativa carga trazida pelos epítetos expectativas criadas em torno do jovem
recebidos, é composta a persona da qual monarca português anteriores ao seu nasci-
estará investido Dom Sebastião, que come- mento, o que pode estimular luzes e sombras
çou a esboçar-se antes do seu nascimento, sobre o caminho que percorremos para
nos anseios do povo e da corte portuguesa, tatear sua controvertida presença histórica
e irá se desenvolver nas configurações e ingresso em um complexo mítico, que
extraordinárias posteriores ao misterioso ainda hoje o projeta para uma existência
desaparecimento do rei em batalha contra futura, em processo.
os mouros, em Alcácer Quibir, no norte
da África.
Os dois epítetos o eternizaram, pois ele
já existia antes de nascer, como Desejado, DO DESEJADO NASCIMENTO
encarnando as expectativas e vontades
de uma nação ávida por manter seu papel Durante boa parte do reinado de Dom
especial entre as outras nações do mundo. João III, muitos anos antes do nascimento
E ele continua existindo mesmo depois de Dom Sebastião, que se efetivou em 1554,
de sua morte, ou desaparecimento, como além de problemas que diziam respeito à
o Encoberto, trazendo, ao mesmo tempo, política externa e interna de Portugal, outra
traços humanos e divinos, além de provocar questão mais simples, porém mais devasta-
a possibilidade de se sonhar, de se continuar dora, afligia a nação portuguesa. Dom João
a desejar. III teve grandes dificuldades para gerar um
A trajetória de sua vida continua ina- herdeiro da coroa. Casado com Dona Cata-
cabada enquanto há o desejo no homem rina, irmã do grande e respeitado imperador
de se alçar sobre si mesmo, em busca da Carlos V de Espanha, viu a morte de todos
proximidade com o encantamento do mundo os seus nove filhos e, consequentemente, o
e com o sagrado. Assim, Dom Sebastião, o quase rompimento do fio hereditário, que
jovem monarca Desejado e Encoberto, per- determinava a independência de Portugal
manece presente, em constante atualização. com relação a Castela. Porém, dois desses
Enquanto houver a renovação de sonhos nove filhos conseguiram chegar à idade de
e desejos, enquanto existir no homem a procriação. Foram eles Dona Maria, que se
vontade de tornar-se algo além do seu es- casou com o príncipe Felipe II, sobrinho de
tado atual, algo que o torne mais potente Dona Catarina e mais tarde rei de Castela e
que sua condição presente, Dom Sebastião Portugal, e o infante Dom João.
retorna eternamente renovado. Possui, em Dom João, nascido em 1537, bem cedo
sua história de vida, e em sua personalidade revelou uma saúde muito frágil. Desse
mítica, a idéia de que o desejo só é desejo modo, o rei ainda tinha grandes preocupa-
enquanto não é totalmente satisfeito, lan- ções quanto à herança do trono. Resolveu
çando sempre quem deseja numa busca, que então fazer casar às pressas o infante Dom
requer a transformação constante, quando João, então com 14 anos de idade. A esposa
objetos do desejo, ou o objeto do desejo, escolhida foi uma prima do adolescente:
ainda permanecem encobertos. Dona Joana, filha de Carlos V. Tal matrimô-
Cartografar a “viagem” de Dom Sebas- nio revelava as desesperadas tentativas para
tião por épocas e lugares diferentes, como a manutenção da independência portuguesa,
venho propondo no intuito de compreender embora insistisse em uma prática perigosa
a formação, traduções e transformações para a segurança das unidades nacionais
do fenômeno cultural, exige um olhar so- quando levamos em conta o casamento de
bre alguns pontos, partindo do seu trajeto um membro da nobreza portuguesa com
inaugural, em Portugal, como o Desejado, outro de Castela. Se existe certo alívio para

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a nação com esses arranjos matrimoniais, independente, massageando a confortável
por outro lado a tensão sorrateiramente se sensação de pertença a uma nação impor-
instala e vai, num crescendo, se alastrando tante, à época, na geopolítica mundial.
desde o centro às periferias do reino en- Acabava-se a ameaça que pairava sobre o
quanto a expectativa de um novo herdeiro reino de se tornar mero coadjuvante sob a
não é atendida. dependência do reinado de Castela.
Mas finalmente a estratégia teve êxito, O nascimento de Dom Sebastião desper-
e não foi tão demorado se pensarmos no ta novamente o desejo da retomada de um
fruto advindo do casamento realizado em projeto de conquista de territórios iniciado
1552 entre o infante Dom João e Dona pela dinastia de Avis; projeto esse que estava
Joana. Porém, ainda eram bastante tênues um tanto quanto abandonado pela atual co-
as linhas que poderiam compor a imagem roa de Dom João III. Enfim, diversos outros
da próxima figura a sentar no trono de elementos que fizeram as glórias passadas
Portugal. Ainda adolescente e de consti- de Portugal, e que se encontravam em es-
tuição frágil, Dom João foi afastado de sua tado de profunda sonolência por causa de
esposa, por sentir-se doente, e pouco tempo um reinado apático, parecem ganhar novo
depois morreu, em decorrência de uma forte fôlego no dia mesmo da chegada ao mundo
crise de diabetes. Dona Joana, que estava do futuro rei.
grávida, recebe a informação da morte do Tanto é assim, que recriações feitas do
marido somente depois do nascimento do dia desse nascimento estiveram presentes,
tão esperado Dom Sebastião, em 20 de ja- depois, em várias épocas e em diversos
neiro de 1554, dia do santo que daria nome autores. O impacto da vinda ao mundo do
ao tão aguardado filho. Envolvida em luto, tão ansiosamente esperado herdeiro do trono
Dona Joana, jovem ainda, provavelmente ganhou grande repercussão no imaginário
sem muito afeto pelo casamento arranjado, português. Um exemplo da força desse
que durou tão pouco tempo, imediatamente acontecimento é encontrado na evocação
deixa Portugal e seu filho, revelando pouco histórica a esse rei, escrita por Antero de
ou nenhum entusiasmo para com o fruto do Figueiredo, em 1924, e chamada Dom Se-
casamento, e retorna a Castela para nunca bastião Rei de Portugal:
mais voltar (Pires, 1969, p. 41).
O desfecho da armação matrimonial “Bendito seja São Sebastião, que nos livra
parece tão frio quanto seu início, no entanto da peste, e, em seu dia, nos dá um rei! Riem,
o nascimento de Dom Sebastião parece choram, cantam! Deus e Pátria! Que alegria.
colocar fim a um período de escuridão e E essas almas, de leves, como que levantaram
apreensão em torno do destino de Portu- o corpo. [...] Arrepiam caminho, sobem a
gal. Esse pequeno acontecimento se revela viela, irrompem de roldão na Sé. Nos vidros
imenso, efervescente para a vida do reino, das janelas altas coalha-se a luz alvaiada da
por significar um momento no qual, mesmo primeira hora fresca do dia. No altar-mor
sendo relâmpago, consegue fazer coincidir, acendem-se muitas velas, muitas. Queima-
novamente, os desejos da coroa portuguesa se incenso. Toca o órgão; e, então, aqueles
com os do povo. outros cantos de rogo, substituindo-se por
De um lado, a corte concretiza sua von- cantos de agradecimento, elevam-se, sono-
tade de perpetuação e conservação do poder rosos, num Te-Deum laudamus gratíssimo,
institucional, político, social e territorial que transborda dos corações, se avoluma, e
através da figura do neto recém-nascido de sobe às alturas das abóbadas da velha cátedra,
Dom João III. Novamente se vê garantida transpassa-se e ergue-se aos céus. Hossana!
a independência portuguesa diante das Hossana! Nasceu finalmente o Desejado, o
ameaças externas e internas. De outro, o Desejado” (Pires, 1969, p. 41).
nascimento do rei Desejado, esperado pela
população exterior ao castelo, simbolizava Parece claro nessa evocação de Antero
um novo fôlego de Portugal como nação de Figueiredo, mesmo separada por tanto

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tempo do acontecimento histórico, o quan- “Sendo El-rei menino, não sómente o exor-
to o reino se encontrava em suspenso na tavam com palavras e exemplos de grandes
espera de um rei que desse continuidade à Reis e de grandes vitórias que houvéram,
sua independência e sustentasse o orgulho mas em matéria de escrever e nos livros por
nacional. O nascimento de Dom Sebastião onde lhe dávam lição, o persuadiram a tais
estimula a movimentação da nação, e aciona emprêsas e exercício militar. [...]
todo um conjunto de sentidos que parecia O menino, de sua real condição, éra esfor-
encontrar-se em estado letárgico. Luzes, çado e de coração altívo, de tal maneira
cores, cheiros e sons aparecem nesse enun- bebía estas doutrinas que lógo começou
ciado, ressaltando a passagem de um estado a dar móstras de ânimo invencível: mas
apático a outro, cheio de vida, despertado como a conquista dêste Reino seja África,
por um pequeno grande acontecimento. visínha e inimiga, a principal guerra que
Eis uma imagem, um quadro mesmo, do os Mestres de El-rei mostrávam era ésta,
que representou o nascimento do rei. Todo contra o qual já o môço, com capital ódio,
esse movimento coletivo tomou conta do desejava mostrar seu esforçado caráter, e
ambiente, com a chegada do Desejado. assim, não falava em outra cousa senão na
Nome próprio e epíteto se encontravam, Arte Militar” (Serpa, 1925, p. 13).
finalmente. Dom Sebastião era o Deseja-
do; e se tornaria a expressão do desejo de A ideia de reconquistar territórios na
todo o reino. África é central para os mestres de exercí-
cios militares de Dom Sebastião. O fato de
que a todo momento o jovem rei tem gosto
em falar de “Arte Militar”, como aponta o
FORMAÇÃO DA PERSONA cronista, já nos indica traços de que ele tra-
balhava para se tornar um monarca guerreiro
HISTÓRICA: TRAÇOS EM FAVOR e conquistador, características tão almejadas
por seus contemporâneos em Portugal.
DA COMPOSIÇÃO DA PERSONA Seguindo a linha que podemos chamar
de pedagógica, pelo menos três textos
MÍTICA institucionais, chamados “Espelhos de
Príncipes”, elaborados com a finalidade
Agora era preciso que o futuro rei fosse de educar o rei – tradição altamente desen-
educado de maneira a ganhar ousadia e força volvida na Idade Média, mas que chega à
para continuar as glórias de Portugal. Tanto Renascença –, foram criados e dedicados
na educação que adquiria de padres jesuítas a Dom Sebastião (Buescu, 1994). Neles
quanto no exercício das armas, Dom Sebas- constatamos o tratamento dado ao príncipe
tião recebia mensagens formadoras de sua como se ele fosse um títere, completamente
personalidade voltadas ao preenchimento das desprovido de vontade própria, prisioneiro
expectativas acumuladas e condensadas no em sua corte, separado da vida do seu reino,
Desejado. Os ensinamentos direcionavam a apenas cumprindo e reiterando um papel
atenção do futuro jovem monarca para que simbólico de legitimidade do poder do
ele se tornasse um rei pronto a lutar contra os Estado1. Porém, o “Espelho de Príncipes”
mouros para expandir a religião cristã pelo escrito por Diogo de Teive libertava os
1 A respeito dos cuidados de
legitimação do poder, Roger mundo. Era preciso conquistar novas terras movimentos do rei e o incitava à ação, aos
Chartier (1988) nos fala do e assegurar as já conquistadas, pois o antigo ímpetos de conquista. Ao comportamento a
esforço pela ritualização da
vida cotidiana e privada do reinado teria se descuidado dessas premissas. ser seguido na maioridade pelo destinatário
monarca, em que o Estado O padre Amador Rebelo, cronista de Dom do seu enunciado, Diogo de Teive sugere:
utiliza três estratégias, numa
trama complexa de textos, Sebastião, deixou muitos registros sobre a “Ao ânimo também já convém outro/ Man-
práticas e ritos, utilizando- educação despendida ao futuro jovem rei, timento maior de mais substância/ cavalgue
se da ordem do discurso,
da ordem dos sinais e da
que nos dão a ideia da mentalidade que ia já em cavalo de maior fúria/ [...] E incitará
ordem das cerimônias. envolvendo os pensamentos do infante. o corpo a maior glória/ Então desejará ves-

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tir-se d’armas/ Quais nas duras batalhas se independência de Portugal. Estão em causa
costumam/ E combater com forte inimigo as prioridades a serem levadas em conside-
duro” (Hermann, 1998, p. 88). ração pelo jovem rei, e elas rememoram a
Como esse, muito textos irão atravessar “antiga liberdade”, relacionada aos quase
a formação do jovem monarca, inclusive quinhentos anos da formação de Portugal.
obras geradas com intenções artísticas, umas Ainda como preocupação e reverência
mais comprometidas com a corte, outras sobre a liberdade e glória da nação por-
com grandeza de expressão universal. Para tuguesa, Camões deposita esperanças no
ilustrar o grupo de discursos da vertente que homenageado no que se refere à expansão
traz preocupações estéticas literárias com não apenas das terras, mas também da cris-
os quais teve contato el-rei menino, nada tandade. O autor d’Os Lusíadas qualifica o
melhor que o exemplo de uma das maiores sujeito ao qual se destina como competente
obras já criadas em língua portuguesa, Os nova figura que trilhará o obstinado cami-
Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões, que tem nho de impor o cristianismo aos mouros
dedicatória consagrada a Dom Sebastião. A “infiéis”, pois ele é, sem dúvida alguma, o
obra foi impressa em 1572, quando o mo- “novo temor da maura lança”. 2 Uma lenda, provavelmente
de disseminação oral intensa,
narca já estava com 18 anos de idade. Avançando e transbordando as preten- que irá ser reelaborada
A mensagem destinada a Dom Sebastião sões portuguesas, Dom Sebastião é chamado escrituralmente por letrados
da corte em épocas de crise
é extensa e aproxima-se das intenções dos de “maravilha fatal”, o que lhe confere um ou de reforço da unidade
“Espelhos de Príncipes”. Recorre, ainda, à caráter de predestinado, por ser uma mara- de Portugal como nação, é
conhecida até hoje como
lembrança da singularidade do rei dotado vilha que fatalmente já estava prevista para o “Milagre de Ourique”.
de dois corpos, conceito propagado durante ser “dada ao mundo por Deus”. E é exata- Dom Afonso Henriques,
considerado o primeiro rei
a política monárquica da Idade Média, em mente neste mundo que o predestinado deve português, teria recebido,
que o rei é provido de: um corpo físico trabalhar para conquistá-lo inteiramente, em combate contra mou-
natural, fortíssimo e preparado para sua para “que todo o mande”. No entanto, deve- ros pelo restabelecimento
territorial do ainda Condado
saga mundana, mas revelando imperfeições se observar que a conquista deste mundo Portucalense, uma mensa-
e características temporais e destrutíveis não está ligada a questões seculares, mas gem do próprio Cristo em
uma visão no campo de
como o de qualquer ser humano; e um corpo sim à continuidade do projeto português, batalha. Cristo teria revelado
místico, perfeito e imortal, conferido pela iniciado desde sua fundação como nação, que o destino de Portugal
era o de encabeçar o Quinto
graça divina (Kantorowicz, 1998). de encabeçar o alargamento da religião de e último Império Universal,
Uma estrofe apenas pode nos dar uma Cristo por todo o mundo, criando o Quin- este de Cristo, na Terra. E
o grande rei que assumiria
noção da mensagem que Camões quer to Império Universal Cristão2. Por isso é de vez essa condição seria
passar com seu poema a Dom Sebastião. necessário mandar em todo o mundo, mas o da décima sexta geração;
Magistralmente descreve, em oito versos, visando entregá-lo a Deus: “Pera [Para] do ora, coincidentemente Dom
Sebastião era o décimo
o desejo da nação incorporado na figura do mundo a Deus dar parte grande”. sexto monarca e esse fato foi
monarca Desejado: Camões dá expressão aos desejos lu- por ele valorizado quando,
dizem alguns historiadores,
sitanos depositados em Dom Sebastião. tomou a espada de Dom
“E vós, ó bem nascida segurança Procura inculcar no espírito do jovem rei Afonso Henriques para
seguir em batalha a Alcácer
Da lusitana antiga liberdade, uma “realidade” que deve lhe caber como Quibir (cf. Mattoso, 1987, p.
E não menos certíssima esperança um grande papel, o de novo conquistador. 224). Dentre outras coisas,
a importância dessa lenda
De aumento da pequena Cristandade; Além disso, busca consagrá-lo como futuro é tão vasta que foi prota-
Vós, ó novo temor da maura lança, mediador do poder divino, para que a obra gonista da criação de um
Maravilha fatal da nossa idade, de Cristo na Terra seja iniciada. dos símbolos maiores de
Portugal, que é sua bandeira
(Dada ao mundo por Deus, que todo o Ao apontar tão altos desígnios ao jovem nacional até hoje, com algu-
[mande, rei, Camões alimenta a sede de aventura des- mas modificações gráficas,
representando as ordens
Pera do mundo a Deus dar parte grande) se monarca, que não era então mais do que de Cristo para o reconhe-
[...]” um adolescente. Portanto, Dom Sebastião cimento dessa nação como
importante objeto para Sua
(Camões, 1980, Canto I, 6). causava a impressão de ser uma persona- vitória sobre o século e o
lidade que ainda estava se formando e que tempo, com o intuito de
instituir a misteriosa ordem
A dedicatória, em primeiro lugar, não estava completamente direcionada aos divina entre os homens (cf.
chama Dom Sebastião para assegurar a desejos da nação. Embora apresentasse os Godoy, 2005, pp. 56-67).

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traços de um sujeito imbuído de esperança A jornada para Alcácer Quibir estava
patriótica, atribuída por autores importantes prevista para 1577. No entanto, a expedição
de sua época, alguns discursos buscavam teve que ser adiada em virtude de dificulda-
dar a Dom Sebastião as “medidas do traje” des financeiras e militares. Uma das saídas
que lhe fariam vestir melhor as expectativas desse percalço foi transformar em Cruzada
em torno da sua figura. os esforços de se lançar contra os mouros
E não demorou para que el-rei, agora não em Marrocos. Entre outras coisas, essa
tão menino, vestisse esse traje. Preocupado medida tinha um caráter estratégico para
com os avanços territoriais promovidos dar continuidade à expedição: os problemas
pelo líder islâmico Muley Malik no norte econômicos para se levantar uma armada
da África, Dom Sebastião já preparava, seriam amenizados, e também seria possi-
desde 1573, uma organização militar dentro bilitado o envolvimento de outros reinos
do território português, e fora dele, graças interessados na manutenção da cristandade
a alianças com exércitos de outros países. contra a “ameaça” islâmica.
Portugal pretendia então dar continuidade Dom Sebastião, alguns meses antes da
a uma política de conquistas territoriais batalha, tomou a iniciativa de procurar o
praticamente abolida por Dom João III. Ao papa Gregório XIII, solicitando-lhe uma
mesmo tempo, o avanço muçulmano sobre o bula de Cruzada. Prova de que não havia
norte da África reavivava um antigo receio inocência na atitude de Dom Sebastião é
escatológico cristão. Ao lado de epidemias, a concessão dessa bula pelo papa e, prin-
fomes e inundações que seriam responsáveis cipalmente, de todos os benefícios que a
pela chegada do fim do mundo, as constantes acompanharam. Com esse gesto da Igreja,
ameaças de um crescimento territorial por é entregue, ao exército de Dom Sebastião,
parte do islamismo também reforçavam a uma quantia de 180 mil cruzados, como
crença em que estava próximo o final dos parte das rendas eclesiásticas, além de
tempos (Delumeau, 1989). outro valor considerável, demonstrando
o entusiasmo da Igreja com a empreitada
de Portugal. Outra facilidade encontrada
por Dom Sebastião foi a composição da
A BATALHA DE ALCÁCER QUIBIR: armada, quando são contratados, a partir
do momento em que a expedição ganhou
EM VIAS AO ENCOBERTO caráter de Cruzada, homens franceses,
alemães e italianos. Tendo apoio popular,
O cruzamento dessas séries culturais, uma corte articulada em torno do projeto
políticas e religiosas nos dá uma pista do de avançar no norte da África e recebendo
que significou a batalha de Alcácer Quibir o aval da Igreja e de reinos cristãos, decerto
para a concretude de alguns elementos não eram muitos os que julgavam que Dom
míticos dentro de um processo histórico. Sebastião estivesse possuído por uma mente
Dom Sebastião resume muito bem o sentido desvairada, como aponta a história às vezes
de sua investida ao norte da África através com grande ênfase.
de um pequeno mas valioso enunciado Em 24 de junho de 1578, parte a armada
escrito por ele. Assim ele se compromete de Portugal rumo a Tanger. Segundo a carta
perante todo o seu reino em um dos raros de um autor anônimo, 847 velas levavam
documentos que trazem seus posiciona- 24 mil homens aos campos africanos. Um
mentos descritos de próprio punho: “Tra- conselho formou-se em Arzila para discutir
balharey por dilatar a fé de Christo, para a melhor estratégia de se atacar os mouros
que se convertão todos os infiéis...”. E, em Marrocos. Organiza-se então uma in-
demonstrando suas inclinações guerreiras vestida em campo aberto, por se entender
de conquistador, ele continua: “para con- que tal estratagema é mais eficaz.
3 Esses pensamentos vêm
citados na obra de Queiroz
quistar, e povoar a Índia, Brasil, Angola Na manhã de 4 de agosto de 1578, fi-
Velloso (1945, p. 116). e Mina” (Pires, 1969, p. 45)3. nalmente é travada uma batalha em campo

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Reprodução
A notícia da derrota chegou semanas Coroação de
depois, com relatos de várias naturezas.
Carlos V em
Imediatamente a nação rangeu os dentes por
causa do desespero e da dor causados pela afresco de
possibilidade da perda dos entes familiares. Giorgio Vasari
Simultaneamente a esse impacto, sente-se
o golpe nas esperanças da volta de um
caminho glorioso destinado a Portugal. A
coroa fica novamente ameaçada pelo reino
vizinho, Castela. O caos se instalou na corte
e nas ruas do reino.
Mas um espectro começava a rondar
todos os cantos da nação. Junto às notícias
sobre a derrota do exército português,
circulava a informação de que o rei Dom
Sebastião havia desaparecido. De quando
em quando testemunhas afirmavam que o
corpo do Desejado nunca fora computado
entre os mortos e prisioneiros feitos na
batalha. Um fio de esperança começava a
correr por todo o reino, tecendo o espectro
de um rei desaparecido, um soberano que
não permitiria o abatimento completo dos
ânimos da nação, que pressentia a inevitável
aberto nas campinas de Alcácer Quibir. anexação ao reino de Castela.
Vozes esparsas agrupadas pelo historiador De 1578 a 1580, o cardeal Dom Henri-
António Machado Pires nos dão uma ideia que, tio-avô de Dom Sebastião, sustentou
de como se deu o episódio: a coroa em suas mãos, retardando o fim da
independência de Portugal. Porém, após sua
“El-rei colocou-se na vanguarda, à frente morte, em 1580, diversas batalhas no campo
de uma cavalaria na ala esquerda, sendo político e jurídico das cortes acabam sendo
a ala direita comandada pelo Duque de vencidas pela corte de Castela, e Felipe II,
Aveiro; Dom Sebastião procurou manter rei de Castela, finalmente assume também
a organização da batalha, e ao primeiro o trono português.
rompimento de fogo do inimigo a cavalaria Nesse ínterim, a crença de que Dom
portuguesa acometeu, abrindo largas bre- Sebastião estava vivo toma grande vulto,
chas na hoste moura. Houve um momento não só por ser ele um monarca herdeiro da
vitorioso em Alcácer. Mas uns momentos coroa portuguesa, mas por tudo o que já
de indecisão e a voz de ‘ter, ter!’ do sar- representava para a história de Portugal.
gento-mor Pero Lopes, bastaram para a Enquanto estavam sob o jugo de Caste-
superioridade numérica do adversário la, os portugueses aguardavam a volta de
prevalecer sobre a bravura dos portugue- Dom Sebastião. Nesse momento alguns
ses, que foram dispersados. [...] Do rei casos de embuste foram se alastrando com
pouco se soube. A História fixou que ele o decorrer dos anos. Pelo menos temos
combateu denodadamente e se embrenhou notícias de quatro tentativas de se forjar a
pela hoste inimiga até mais não ser visto. O identidade do rei desaparecido. Ao longo
resto do seu destino perdeu-se na incerteza do tempo, com maior ou menor apoio da
e na lenda. Na memória nacional ficou o população, quatro personagens se fizeram
seu grito, ‘morrer, mas morrer devagar!’ passar por Dom Sebastião, procurando
e uma grande página de dor e de luto na conseguir o restabelecimento da indepen-
História” (Pires, 1969, p. 56). dência portuguesa. Houve casos de até

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mesmo ter sido criada uma corte paralela desaparecido torna-se presente em outro
à de Castela, e o rei impostor conseguiu, discurso, paralelo ao que se quer oficial, ao
nesse simulacro de governo, apoio da que pretende continuar seguindo a lógica do
população, fazendo circular documentos discurso temporal das cortes. Aos poucos, o
falsificados com assinaturas grosseiras de rei Desejado vai sendo confundido e, mais
Dom Sebastião, além de distribuir títulos tarde, amalgamado de vez a uma figura de
honoríficos aos que o apoiavam. Porém, textos proféticos, envolvido na trama mítica
um a um dos falsos reis foram desbaratados de projeções apocalípticas, tornando-se um
por Castela4. dos fenômenos culturais mais marcantes da
Apesar de ter sua imagem envolvida em história de Portugal.
casos embebidos em ações fraudulentas,
Dom Sebastião ganhava maior potência
no imaginário português: cada vez mais
era tido como um rei desaparecido capaz AS TROVAS PROFÉTICAS DE
de retornar a qualquer momento para trazer
a salvação de Portugal. A ideia de que o BANDARRA: ENFIM
monarca teria que peregrinar para se refazer
de possíveis erros provindos de sua dema- O DESEJADO É O ENCOBERTO
siada existência secular ganhava corpo na
configuração de um soberano que voltaria Em 1603, Dom João de Castro, um
purificado, santificado e, assim, apto a res- nobre português que lutou pela soberania
tabelecer a salvação nacional e, depois, do do seu reino depois do desaparecimento
mundo. Estava se delineando, assim, em de Dom Sebastião, inclusive ajudando na
surdina, com vagar, um projeto de cons- falsificação de um dos reis que se queriam
trução do caráter de Dom Sebastião como passar pelo rei desaparecido, imprime e
herói messiânico, cuja história pessoal não comenta, pela primeira vez, as Trovas de
descartava sua qualidade de rei Desejado. um sapateiro de Trancoso chamado Ban-
Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz darra. As Trovas, de forte teor profético
(2003, p. 30), o messias segue sempre os messiânico, haviam sido escritas entre
4 Aprofundo-me mais na mesmos passos: eleição divina; provação; 1530 e 1540, em Trancoso, e João de Castro
questão dos falsos reis em
meu livro Dom Sebastião retiro; volta gloriosa. as publica com o nome de Paraphrase et
no Brasil (Godoy, 2005, pp. Ela afirma ainda, baseada em estudos Concordancia de Alguas Propheçias de
70-9).
de Max Weber e Paul Alphandéry, que Bandarra Çapateiro de Trancoso. Certa-
5 O carisma é entendido
“o messias [de tradição judaico-cristã] é mente, ele não nos entrega o texto original
por Max Weber, citado
por Maria Isaura, como “a alguém enviado por uma divindade para de Bandarra, que conheceu outras várias
qualidade extraordinária trazer a vitória do Bem sobre o Mal, ou para edições e versões ao longo dos séculos
que possui um indivíduo
(condicionada de forma corrigir a imperfeição do mundo, permitindo (Pires, 1969, pp. 68-9).
mágica em sua origem, o advento do Paraíso Terrestre, tratando-se, Vendo fracassar as tentativas de retomar
quer se trate de profetas,
de feiticeiros, de árbitros, pois, de um líder religioso e social” (Pereira a coroa portuguesa por caminhos oficiais,
de chefes de bandos ou de Queiroz, 2003, p. 27). Seu status não é percebeu que, em meio a tantas empresas
de caudilhos militares); em
virtude desta qualidade, o
adquirido apenas por posição privilegiada frustradas, sobrevivia a crença na volta do rei
indivíduo é considerado conquistada diante de uma ordem estabe- Dom Sebastião. Dom João de Castro foi en-
ora como possuidor de
lecida; levam-se em conta também suas contrar, no discurso profético do Bandarra, a
forças sobrenaturais ou
sobre-humanas – ou pelo qualidades pessoais extraordinárias, as leitura que preenchia expectativas e crenças
menos especificamente quais lhe dão uma configuração de líder suas e do povo. A partir de sua interpretação,
extra-quotidianas, que não
estão ao alcance de ne- carismático5. surge, enfim, um sebastianismo que ressalta
nhum outro indivíduo – ora Dom Sebastião passa por todo o pro- contornos milenaristas, utópicos e escato-
como enviado de Deus, ora
como indivíduo exemplar cesso que define um líder carismático lógicos, transformando esse texto na bíblia
e, em consequência, como conjuminado com traços messiânicos. E do sebastianismo, como bem observou João
chefe caudilho, guia ou
líder” (Pereira de Queiroz,
essa configuração de sua personalidade Lúcio de Azevedo em seu conhecido livro
2003, p. 27). se torna mais contundente quando o rei A Evolução do Sebastianismo.

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Gonçalo Annes Bandarra era um cris- letivo, os valores próprios e o significado
tão-novo descrito como grande conhecedor latente dessa voz”.
da Bíblia, tendo ganhado respeito entre
cristãos e judeus que viviam escondidos As Trovas de Bandarra foram compostas
em Trancoso e nas proximidades. A certa em quatro partes. Na primeira, o canto refe-
altura, o sapateiro de Trancoso é tido como re-se criticamente aos mandos e desmandos
uma espécie de oráculo, promovendo, em da Igreja Católica, da nobreza e da classe
diversas reuniões, o início de uma nova judiciária. Aponta, ainda, para o estado de
leitura sobre as profecias bíblicas. Partindo pobreza e confusão em que vive a população
da leitura das Escrituras (palavra de poder mundial, enfatizando a miséria e o declínio
institucionalizada por dogmas da Igreja), da nação portuguesa depois de uma época
com o tempo passa à prática oral, ao dis- auroral que conheceu período áureo na
cutir a tradição judaico-cristã mesclada condição secular da história humana.
a textos, concepções, entendimentos de Com essa localização espaço-temporal,
outras procedências. Surge daí uma ora- o sapateiro de Trancoso ativa uma enorme
lidade laicizada – embora muito ciente gama de enunciados divinos revelados pro-
e conhecedora da Bíblia –, trabalhando feticamente no Antigo Testamento, tendo
processos tradutórios, que ampliava e ex- por finalidade ler os acontecidos temporais
plodia a dureza do significado das palavras até seu presente, numa chave de reconhe-
cristalizadas pela leitura oficial das Escri- cimento de que a palavra da Bíblia está
turas; elas deixam de ser apenas meio de se realizando no tempo, assim como fora
transmissão de uma doutrina para ganhar prevista e dada à luz pelos livros de Daniel,
a competência de palavra fundadora da fé. Isaías, Esdras, etc. Seguindo a história linear
Nesse processo dá-se o sopro que produz proposta pela Bíblia, Bandarra lançou-se
um desvio da Palavra da Verdade Divina na aventura perigosa (enfrentando os olhos
imposta pela Igreja, e essa Palavra passa atentos e as mãos pesadas prontos a captar e
a ser direcionada e recodificada por uma esganar qualquer aberração que fugisse ao
voz encharcada pelo espaço cotidiano, signo da verdade que a Inquisição resguar-
que pretende aproximar a experiência do dava em posse da Igreja) de comprovar a
sagrado com a do profano, afastando-se proximidade de acontecimentos futuros.
do recolhimento e contemplação. Bandar- Fazendo transbordar a matéria contida
ra certamente experimentou e exercitou no espaço bíblico, promove o encontro
essa voz, “que se identificava ao Espírito dessas águas com profecias de diversas
vivo, sequestrado pela Escrita”. Assim, tradições, costurando e elaborando uma
ele trabalhou uma verdade que se liga- trama em que avança, com as revelações
va ao poder vocal, corporal e espiritual que acredita estarem sendo concretizadas,
experimentado na tentativa de vivenciar em direção ao final do Novo Testamento,
o sagrado e não só contemplá-lo pura e ao Apocalipse, ao fim dos tempos, ao
simplesmente; uma verdade perpetuada, além da História. Dessa forma cumpre “o
como diz Paul Zumthor (1993, p. 79) ao pressuposto de toda visão profética que é
analisar as potências performáticas e de a crença de que o processo histórico não
vocalidade da “religiosidade popular”, por se faz por um agregado de eventos casuais.
seus discursos amparados em No horizonte do profeta, a História seria
dotada de um telos, direção, um sentido
“[...] retalhos do Evangelho aprendidos de final, que, por sua vez, tende a ser totali-
cor, lembranças de histórias santas, elemen- zante” (Bosi, 1998, p. 16).
tos dissociados do credo e do Decálogo, Três sonhos de Bandarra, regados do
afogados num conjunto móbil de lendas, mesmo teor profético, completam as Trovas
de fábulas, de relatos hagiográficos. Daí, por ele compostas, introduzindo, pouco a
pode-se pensar a profundidade em que se pouco, a figura de um misterioso rei a sur-
inscreviam, no psiquismo individual e co- gir para instalar um não menos misterioso

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império que encaminhará a humanidade O Leão, símbolo de poder, de sabedoria
para a vivência na lei divina, ultrapassando e justiça, está relacionado, naturalmente
a lei secular corrompida. Essas aparições pela visão que positiva o partido ao qual o
estão muito calcadas em Daniel, 2: 31-36, enunciador se identifica, a um grande rei
em que o profeta desvenda o sonho do da cristandade que deveria carregar esses
imperador Nabucodonosor a respeito de atributos. Já o mouro, representado pela
uma estátua com os pés de barro que foi figura do porco, imagem vinculada, na
demolida por uma enorme pedra que desce época, à ignorância, ao impuro e a aspectos
de um morro. A estátua, constituída por negativos, será sobrepujado pelo Leão. Eis
quatro materiais diferentes, representaria as personagens históricas sinedoquicamente
quatro reinos que, de acordo com cada agindo em ressonância às profecias bíblicas
material, mostra a degradação dos reinos segundo a visão do sapateiro Bandarra.
até o mais fraco e corrompido, que é o Entrançado a essa alegoria, ele vê emergir
império representado pelo pé de barro da o lendário rei Encoberto num cenário esca-
6 Jean Delumeau nos indica
uma ligação entre febres estátua. A pedra que rola e destrói a estátua tológico, em que a batalha do Juízo Final,
milenaristas e grupos sociais significa, para Daniel, o Quinto e Último revelada no Apocalipse de João no Novo
em crise. Diz ele que “os
atores dos movimentos Império na Terra, dessa vez o derradeiro, Testamento, está prestes a se concretizar
escatológicos são frequen- composto pelos desígnios divinos. na história do século. Assim, Bandarra, ao
temente marginalizados, de-
senraizados ou colonizados Amalgamadas a essas visões, o sapateiro compor suas Trovas, vê, em seu presente, os
que aspiram a um mundo de Trancoso introduz, em sua narrativa, len- sinais do passado sendo concretizados, o que
de igualdade e de comuni-
dade”. No cristianismo, ele
das tradicionais que percorriam a Península lhe permite elaborar os sinais futuros dando
chama de milenarismo “a Ibérica bem antes das suas profecias. Vê, a eles maior concretude e proximidade no
crença num reino terrestre
no cruzamento dessas lendas, a antiga luta tempo-espaço do profeta, embora alguns
vindouro de Cristo e de seus
eleitos – reino este que deve entre cristãos e mouros, na qual, para a tra- elementos ainda permaneçam indefinidos,
durar mil anos, entendidos dição cristã ocidental, logicamente temos o como o nome do rei messiânico, a data e
seja literalmente, seja sim-
bolicamente. O advento do enaltecimento da imagem da cristandade e a os locais dos eventos do Juízo Final que
milênio foi concebido como desqualificação e destruição do islamismo. encaminharão a humanidade ao advento
devendo situar-se entre uma
primeira ressurreição – a Atento aos avanços mouros no norte da Áfri- da ordem divina.
dos eleitos já mortos – e ca em sua época, Bandarra compreende que Na leitura de Dom João de Castro so-
uma segunda, a de todos os
outros homens na hora de
é chegada a hora de acontecer a intervenção bre as Trovas de Bandarra, Dom Sebastião
seu julgamento. O milênio do rei Encoberto, figura lendária bastante recebe a potência messiânica do soberano
deve, portanto, intercalar-se
difundida na península, principalmente pelo esperado havia muito tempo, e que navegava
entre o tempo da história
e a descida da ‘Jerusalém famoso respeitado orador e estudioso cristão em diversas lendas e profecias, em obscuros
celeste’. Dois períodos de da Idade Média, Santo Isidoro de Sevilha. relatos, nos quais não podemos ver o seu
provações irão enquadrá-lo.
O primeiro verá o reino do Pela primeira vez aparece, nas Trovas, o rosto, mas sabemos de sua existência como
Anticristo e as tribulações rei mítico tão importante para a construção o misterioso Rei Encoberto envolvido em
dos fiéis de Jesus que, com
este, triunfarão das forças futura do fenômeno cultural sebastianista. um papel importante diante das concepções
do mal e estabelecerão o Eis a estrofe que revela a aparição do mo- escatológicas e apocalípticas promovidas
reino de paz e felicidade.
O segundo, mais breve,
narca messiânico: pela tradição judaico-cristã. O poderoso
verá uma nova liberação monarca, de gênese, substância e destino
das forças demoníacas, que
“LXXV misteriosos, incorporaria, depois de indefi-
serão vencidas num último
combate”. Diversamente do Já o Leão é experto nida e fantasmagórica perambulação secular
que se afirma, o milenarismo Mui alerto. pela tradição oral e escrita, o aguardado
não é a expectativa do ano
1000 ou 2000, mas a de mil Já acordou, anda caminho. Imperador dos Últimos Dias.
anos de felicidade na terra Tirará cedo do ninho Dom João de Castro lê, nessa alusão
antes do Juízo Final, onde o
homem viverá em perfeita O porco, e é mui certo. ao Rei Encoberto, a volta messiânica de
harmonia, livre da dor e do Fugirá para o deserto, Dom Sebastião no tempo do milênio6 que,
mal, além de prescindir das
leis do Estado e da própria
Do leão, e seu bramido, para ele, é o tempo em que Portugal deve
Igreja. Introdução e apresen- Demonstra que vai ferido retomar seu destino como cabeça do Quinto
tação do livro Mil Anos de
Desse bom Rei Encoberto” Império Universal Cristão a se estabelecer
Felicidade: Uma História do
Paraíso (Delumeau, 1997). (Bandarra, 1996, p. 57). em todo o mundo. Não resta dúvida, então,

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que a figura messiânica do Rei Encoberto mais atingida pela crença – era enviada para
tem papel fundamental nesse processo a colônia. Da existência de um pelo menos
histórico desenhado pelo texto profético de temos prova concreta, pois foi denunciado,
Bandarra, que prevê o fim da história – feita em 1591, ao Santo Ofício, na Bahia. Tratava-
pelos homens – em função da conjunção se de um Gregório Nunes, ‘meo framengo
final e definitiva do homem com Deus. Ao filho de framengo e de cristã nova’, o qual,
interpretar que Dom Sebastião era o Rei sabedor das Trovas, ‘as dezia pelo Mexias,
Encoberto, acreditamos que João de Castro esperando inda por ele...’” (Pereira de Quei-
contribui infinitamente para a criação de roz, 2003, pp. 217-8).
uma potência de permanência e atualização
da figura do rei Desejado e agora também Gregório Nunes, ou Gregório Nidrophi,
Encoberto. A partir desse momento, a crença foi denunciado ao Santo Ofício em 13 de
em Dom Sebastião será sempre lançada a agosto de 1591 por um tal João Batista.
desejos individuais e coletivos direcionados Ambos eram cristãos recém-conversos
a um futuro de perfeição da humanidade. e provavelmente por esse motivo foram
Dom Sebastião, o Desejado e Encoberto, degredados para o Brasil. No entanto, um
ganha o estatuto de fenômeno cultural, pôs-se a colaborar com a Santa Inquisição
mítico, religioso e social, e começa a viajar e o outro encontrou, nas novas terras, novo
pelo tempo-espaço. fôlego e a sensação de liberdade para propa-
gar sua crença calada em outro ambiente.
Apesar de esse ser o único documento
que indica a presença das Trovas de Ban-
DAS PRIMEIRAS PRESENÇAS darra, ainda que em versão bem diferente
da divulgada por João de Castro, arriscamos
DA FIGURA DE DOM SEBASTIÃO levantar a hipótese de que outros conhe-
cedores desse material podem ter passado
NO BRASIL incólumes das garras da Santa Inquisição
e conseguido divulgá-lo no Brasil. A difi-
No Brasil, o jovem monarca desapa- culdade de se conseguir localizar focos de
recido se faz presente logo no primeiro heresias nas recentes vastas terras desco-
período da colonização. Como Felipe II bertas não eram pequenas. Além do mais, o
anexara Portugal a Castela, os portugueses Brasil despertava concepções escatológicas
conhecem um período traumático de perda e milenaristas, como promessa de um Paraí-
da independência e, como já exploramos so Terreal redescoberto e sinais de utopias
acima, Dom João de Castro encarregou- muito divulgados na Idade Média, com
se de propagar as Trovas de Bandarra. ressonâncias no Renascimento da Europa,
A pesquisadora Maria Isaura Pereira de principalmente da Península Ibérica7.
Queiroz encontrou, em documentos por Algum tempo depois, com o avanço da
ela levantados, vestígios das Trovas em povoação do Brasil, algumas visionárias
terras brasileiras nas mãos de pelo menos condenadas pela Santa Inquisição foram
um degredado que possivelmente também degredadas para território brasileiro e, tendo
sentia o impacto da independência de Por- mais liberdade para divulgar suas visões
tugal perdida: em uma terra ainda sob fraca vigilância
da Igreja e do Estado, puderam espalhar
“Os primórdios da colonização brasileira suas experiências místicas com Dom Se-
coincidiram com esta época conturbada, e bastião. Em 1647, Luzia de Jesus recebe 7 A esse respeito, conferir a
obra pioneira e monumen-
é lícito supor que desde os primeiros tem- sua sentença e, em 1660, é a vez de Joana tal de Sergio Buarque de
pos tivessem aqui chegado indivíduos que da Cruz ser condenada ao desterro. Ambas Holanda (2000).

conhecessem as Trovas de Bandarra, tanto recebiam visitas, em sonho ou em vigília, 8 Para maiores informações
sobre esses dois casos con-
mais que boa quantidade de cristãos-novos do jovem rei, disfarçado de animal ou em ferir o livro de Laura de
– talvez a camada da população portuguesa forma humana8. Mello e Souza (1993).

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Luzia de Jesus afirmava – seguindo agora minha amada que já é chegado o
características de quem se diz iniciado e tempo de muitas glórias e pregam minhas
preparado para receber e divulgar revelações misericórdias; que eu te comecei a criar,
– que era elogiada por São João Batista e logo comecei a descansar’, e ouvindo a
pelo próprio Deus, além de ser imersa em nova do rei português, lhe deu o Senhor
ensinamentos dados pelo próprio Jesus a entender que este era o tempo de suas
Cristo ainda quando estava no ventre de sua glórias, e o muito que ama este reino”
mãe. Tudo isso fazia parte de sua preparação (Hermann, 1998, p. 275).
como intermediária entre o Céu e a Terra.
Dentre suas visões conservadas em Luiza de Jesus afirmava que o rei exal-
cadernos como peça de processo da In- tado em sua visão era Dom João. Não
quisição, em linguajar truncado e cheio sabemos a qual Dom João refere-se Luiza.
de elipses, numa ela relata a aparição do A historiadora Jacqueline Hermann levanta
próprio Deus, em uma igreja rodeada por a hipótese de que poderia ser Dom João IV
anjos na porta, e lá Ele teria entregue a ela o rei que é revelado na visão, pois o padre
a seguinte mensagem: Antonio Vieira, grande orador e famoso
por seus sermões já naquele momento,
“[...] e entre eles o anjo da guarda do rei- defendia esse monarca da Restauração
no, lembrando-lhe [a ela] o grande perigo portuguesa como o rei messiânico das
Retrato de que corriam os portugueses. Pediam-lhe Trovas de Bandarra. De qualquer modo,
atenção e muito trabalho. Deus também Luiza relembra e reforça a sacralidade dos
Dom Sebastião
viera com os anjos e lhe pedira que fosse a reis portugueses diretamente confirmada
por Cristóvão mão dos pecadores. Dias depois, o Senhor por Deus na revelação, e reafirma Por-
de Morais tornou a lhe aparecer e disse: ‘Descansa tugal como reino responsável pela volta
da sacralização das outras nações. Ainda
Reprodução insegura a independência lusitana diante
da geopolítica europeia, Luiza projeta
os anseios do povo português depois do
recente trauma que teria balançado as es-
truturas de uma nacionalidade desejada e
ostentada naquele tempo.
A outra visionária, Joana da Cruz, teve
experiências parecidas às de Luiza. Visitada
por Deus da mesma forma, teria recebido
mensagens escabrosas aos olhos da Inqui-
sição. Para ela, a revelação traz elementos
catastróficos como a redução de Roma a
cinzas. Em seguida, personagens próximos
a ela tomariam lugares estratégicos de
poder e colaborariam, no enredo que nos
entrega, para a trama tecida como visões
anunciadoras e profecias. Um dos pilares
do material visionário que habitou Joana é
a afirmação dela de que um amigo seu se
tornaria papa e proclamaria a canonização
de Dom Sebastião como santo purificado
corporal e espiritualmente após longa pe-
regrinação.
Enquanto isso não acontecia, a pró-
pria alma de Dom Sebastião aparecia ora
encoberta na figura de um porco, ou seja,

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incorporando impurezas de sua condição de mória implica, na ‘reiteração’, incessantes
alma perambulante em um limbo restaura- variações re-criadoras”, que Paul Zumthor
dor, travestido do símbolo degradante com (2000, pp. 76-7) chamará de “movência”.
o qual os cristãos representavam os mouros Essa movência claramente tem a ver com
como já mencionamos anteriormente, ora movimento, transformação, ou seja, com
em pessoa simples, quase desprovida de o que é recriado e retorna como o mesmo,
sua realeza. Mas, apesar dessas aparições mas diferentemente, já que é reiterado em
grotescas que apresentavam uma figura outra performance, partindo de um outro
ridícula do jovem rei, Joana recebia as transmissor que já foi receptor da narra-
visitas de Dom Sebastião acreditando que tiva por ele transformada e recontada. As
essa imagem nada mais era que a condição modificações do texto a ser transmitido
do processo purgativo pelo qual ele passava se darão com acréscimos do repertório do
para retomar, finalmente, seu papel de rei enunciador, com interesses específicos dele
messiânico. em transmitir e discutir suas reelaborações
Enfim, essas foram as primeiras mani- da narrativa, no pacto estabelecido entre
festações de que temos notícia já em terri- ele e destinatários (receptores), na busca
tório brasileiro e, embora com intensidade de compactuar e compartilhar o mesmo
mítica que já extrapolava o fato histórico, repertório, tentando causar interesse para
ainda carregavam forte carga nacionalista que se efetive a comunicação.
e patriótica. Afinal, Dom Sebastião era o Ora, tentando aproximar-me dessa di-
salvador e redentor do povo português, num nâmica viva, procurei olhar esse fenômeno
primeiro momento. da cultura cartograficamente, buscando
compreender sua potência de permanência
e atualização ao entrar em ressonância com
utopias, existências e vivências várias. As-
CONEXÕES, ENTREMOVIMENTO sim, confirmando esse caráter “movente”
e “andarilho” de Dom Sebastião, é muito
E DEVIR: POÉTICAS DA VOZ, importante perscrutar as espacialidades e
temporalidades nas quais irá se manifes-
DO CORPO E DA MEMÓRIA tar, pois muito nos dizem sobre os usos e
hábitos que levaram determinado grupo,
De qualquer forma, o rei português ou uma pessoa específica, a manipular as
desaparecido já dava grandes saltos nos ca- potências messiânicas que permanecem
minhos de sua existência mítica. O “eterno” nesse grande texto virtual. Dessa forma,
retorno de Dom Sebastião, como persona- palmilhamos caminhos e espaços por onde
gem messiânica e encantada, configura-se, se manifestou e ainda se manifesta a figura
dessa forma, como um grande texto virtual de Dom Sebastião. Mapeando o fenômeno,
andarilho, “quando a repetição contínua de procurei perceber como ele se abre, como
algumas situações faz com que elas ganhem é conectável em todas as suas dimensões,
o estatuto de matriz oral, que também ga- sendo suscetível de receber modificações
rante o sentido das novas criações geradas constantemente desde quando foi imerso
a partir delas”9. em um complexo mítico que o acompanha
Dom Sebastião, como texto da cultura, até hoje em suas mutáveis transduções e
passa a fazer parte de uma rede de trans- transfigurações.
missão e recepção que permite sua viagem Assim, como exemplos finais deste 9 Sobre a ideia de matriz
virtual e matriz oral, que
pelo tempo-espaço. O que garante sua artigo, não poderia deixar de mencionar a prefiro chamar de grande
permanência é a conservação de algumas grande disseminação que teve a figura do texto virtual, ver definição
detalhada desse mecanismo
situações que formam seu contexto de jovem monarca Desejado e Encoberto por de permanência e atualiza-
origem como Desejado e Encoberto. A meio da verve barroca do padre jesuíta An- ção de textos da cultura
no trabalho de Jerusa Pires
conservação, por sua vez, está envolvida tonio Vieira. Um dos maiores construtores Ferreira (1993, pp. XVI e
com o trabalho da memória, mas “a me- da língua portuguesa (como já o reconhecia segs.).

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o poeta Fernando Pessoa) e visionário de processo de mestiçagem que ocorreu na
problemas filosóficos, religiosos, políticos, colônia. Tudo isso desencadearia, como
portador de fina sensibilidade etnográfica, podemos perceber claramente, em um im-
Vieira promoveu leituras acerca do país que pério mestiço, e a figura de Dom Sebastião
adotou, e previa, ou até queria profetizar, o já experimenta as singularidades das novas
Brasil como sendo uma terra nutriz do novo terras que passa a habitar com seu complexo
homem universal por ele aguardado. O rei mítico amalgamado à novidade efervescente
Sebastião estará “encoberto” no “Sermão compositiva de imagens e imaginários em
de São Sebastião”, apesar de, mais tarde, tenso e intenso movimento.
ser substituído no papel de rei messiânico, Daí, entrando pelo século XIX e indo em
depois da restauração do trono português, frente, a figura de Dom Sebastião compa-
por Dom João IV, figura responsável por recerá em movimentos populares rebeldes
esse evento. Ainda assim, junto às Trovas e religiosos do sertão nordestino (Cidade
de Bandarra, a matéria mítica que envolvia do Paraíso Terreal, PE; Pedra Bonita, PE;
Dom Sebastião, como a ideia de Quinto Canudos, BA). E hoje ainda “vive”, com
Império e a sacralidade dos reis portugue- forte presença, no antigo território do Grão-
ses, foi fundamental para a composição da Pará – Maranhão, Pará e Amazonas –, em
grande obra profética História do Futuro de narrativas de lendas transmitidas oralmente
Antonio Vieira. Portanto, embora a presença e em manifestações da religiosidade afro-
de Dom Sebastião seja embaçada, de tona- brasileira do tambor de mina e da pajelança,
lidades vacilantes, não podemos dizer que sofrendo transformações constantes em sua
não frequentou o púlpito e a pena do padre viagem virtual10.
jesuíta, agora finalmente trazendo traços Diante de tudo isso, podemos concluir
de componentes do país no qual transitará que Dom Sebastião é um fenômeno cultural
em intensa transfiguração dependendo do de movimentos rizomáticos que
contexto no qual vai revelando e sendo
revelado. “[...] não começa nem conclui, ele se en-
Ainda peregrinando, Dom Sebastião contra sempre no meio, entre as coisas,
habita os sonhos visionários de uma santa inter- ser, intermezzo. A árvore é filiação,
popular negra, ex-escrava, ex-prostituta, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança.
chamada Rosa Egipcíaca que, em mea- A árvore impõe o verbo ‘ser’, mas o rizo-
dos do século XVIII, em suas profecias ma tem como tecido a conjunção ‘e... e...
apocalípticas, previa um grande dilúvio e...’. Há nesta conjunção força suficiente
universal. Salva desse dilúvio por ter seu para sacudir e desenraizar o verbo ser. [...]
convento milagrosamente se transformado Entre as coisas não designa uma correlação
em uma nau, a visionária relata que nave- localizável que vai de uma para outra e
gará à deriva, acompanhada por algumas reciprocamente, mas uma direção perpen-
companheiras, todas pobres, também ex- dicular, um movimento transversal, que as
prostituas e algumas mães solteiras. Depois carrega uma e outra, riacho sem início nem
de dias cruzando águas sem nenhum rumo, fim, que rói suas duas margens e adquire
10 Sobre a cartografia dessas
abordará a nave do rei Sebastião e de sua velocidade no meio” (Deleuze & Guattari,
narrativas e acontecimentos
em territórios e épocas tripulação, também à deriva. Nesse encontro 1995, p. 37).
diversas visitadas pela fi- ocorrerá a conjunção carnal entre ela e o
gura de Dom Sebastião,
ver meu livro já citado e rei, nascendo daí o novo Cristo, um Cristo Sendo assim, como dizer mais alguma
minha tese de doutorado mestiço, um Cristo do mundo. Assim, Rosa, coisa? Ou como deixar de dizer sempre algo
Dom Sebastião no Brasil:
das Oralidades Tradicionais em sua profecia, por meio do encaixe de mais sobre o rei Desejado e Encoberto? Por
à Mídia, defendida em 2007 histórias de nacionalidades diferentes, de isso concluímos este artigo nesse entre,
no programa de Pós-gra-
duação em Comunicação
séries raciais, culturais e religiosas hete- onde inevitavelmente nos encontramos
e Semiótica da PUC-SP. rogêneas, consegue montar um retrato do também.

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REVISTA USP, São Paulo, n.82, p. 16-31, junho/agosto 2009 31

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