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Como ataca a Sucuri é conto de Tutaméia –(Terceiras Histórias), último livro de João
última página toma a forma invertida de Terceiras Estórias (Tutaméia), abaixo do que se lê
livro na direção que vai da primeira à última página, os quarenta contos, os quais se tornam
quarenta e quatro, uma vez que neste tipo de leitura eles mesmos prefácios são tomados como
contos. Se folhearmos o livro de trás para frente, porém, os prefácios se encontram destacados
do índice, agrupando-se em quatro, no que se reduz o número de contos a quarenta. Vários são
os gestos de auto-inclusão do autor nesta obra, gestos que outros autores de ficção vêm
exercitando há muito, mas que se tornaria uma marca especial a partir de Poe, de Mallarmé e
outros simbolistas, bem como dos modernistas, entre os quais destacamos o William Faulkner
de “O Som e a Fúria”. Para falar dos paratextos em Rosa nada melhor que recorrer a quem os
Estórias”, Ana Maria Bernardes de Andrade se propõe a “sísifa tarefa de buscar o projeto
estético de Guimarães Rosa nas cifras dos paratextos de Tutaméia, . . . [partindo] do princípio
de que existe aí uma intensa elaboração teórico-criativa do autor acerca de si mesmo, de sua
obra, de suas intenções como escritor, de sua relação com a literatura” (2004: 24). A detecção
de marcas autorais, no corpo de Tutaméia pode começar pela definição dada pelo próprio autor
ao título, no último prefácio que escreveu para o livro, Sobre a Escova e a Dúvida: nonada,
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“Já a construção, orgânica e não emendada, do conjunto, terá feito necessário por vezes
ler-se duas vezes a mesma passagem.
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quase-nada; mea omnia, grafado assim mesmo, em itálico. Observe-se que mea omnia, ao final
da enumeração, tomará o sentido de “tudo o que eu penso a respeito do que faço e abordo”
(Covizzi apud Santos 2008: 78) e/ou “tudo meu ou tudo de mim” (Spera apud Santos 2008:78).
Paulo Rónai acentuara o exotismo de uma “etimologia, tão sugestiva quanto inexata, [o que
ficcionista pôs no livro muito, se não tudo, de si” .Assim sendo, “Tutaméia é menos ‘nonada’ e
Andrade assume como tese, o que se segue: o autor propõe ao leitor um jogo que ultrapassa as
bordas das páginas da ficção e alcança os paratextos. Esta radicalização do jogo, a transgressão
que desrealiza o real para que tudo se torne ficção, na verdade é o outro modo pelo qual Rosa
intenta inscrever-se no interior do seu universo ficcional; e assim instalando-se neste ‘meio de
reflexão’, que é a linguagem, imprime à sua obra o caráter de ficção moderna auto-reflexiva.2
Não nos ocuparemos aqui de todas as evidências encontradas por Andrade com
respeito aos modos de auto-inserção do autor no texto, apenas ressaltando que o mais
importante talvez esteja numa interrupção da ordem alfabética do primeiro índice para a
inserção das iniciais JGR (João Porém, o criador de perus, Grande Gedeão e Reminisção),
após o que a dita ordem segue o seu curso. Também formam a palavra Hans -- João em alemão
Um exemplo da ‘velhacaria” de Rosa no contexto de sua produção ficcional pode ser vista em “Meu Tio
o Iauaretê,”, onde ela é a atitude principal de Tonho Tigreiro com relação ao seu hóspede. Michelle Valois (2009
-171) enumera o repertório de jogos e enganos envolvendo autor, narrador, narratário e leitor, que são a tônica da
produção ficcional rosiana e que Andrade sustenta estender-se aos paratextos :
“Em meu tio o Iauaretê, technê, poiésis e mímesis simetrizam o agon-luta da narrativa em
agon-jogo da narração. A technê de Tonho Tigreiro, narrador que enleia, intriga, ludibria e embosca
narratário e leitor, reencena a technê caçadora, predadora, do onceiro tornado onça. Na obra acabada,
seus feitos como personagem transmutam-se em poiésis – suas proezas de bravo caçador têm ares de
boasting poems, seus massacres de predador operam a damnatio ad bestias dos vícios humanos
estetizados em tableaux vivants. A onça que ele mimetiza se faz ver e ouvir no tecido mesmo da palavra
- nas armadilhas da narração, no cratilismo da linguagem - operando uma mímesis em mise en abyme
que, denunciando as astúcias da feitura, exime-se da aspiração a cópia da realidade (2009: 171).”
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Andrade, apoiando-se em vários outros estudos (Sperber, 1982, Novis, 1989, Araujo, 2001),
nomeados com o pronome “eu” e variantes3; aqueles cujos personagens são homônimos do
autor ou seus heterônimos anagramáticos4; Aqueles cujos personagens são chamados Ladislau
(santo do dia de nascimento do escritor)5; e aqueles que têm personagens chamados Joaquim.6
O que Andrade considera “velhacaria” nada mais é, portanto, que gestos de auto-
inclusão -- que não são prerrogativa de Rosa, conforme já ressaltado, mas vários autores da
modernidade – contidos nos paratextos de Rosa. A declaração que ele faz a Edoardo Bizarri,
seu tradutor italiano, de que seus livros “defendem o altíssimo primado da intuição, da
megera cartesiana”7 será vista, então, sob luz diversa, desde que a velhacaria do autor infundirá
no leitor inclinação suspeitosa. Além de fazer do leitor objeto de uma pressão agonística, o
sentido mesmo dos gestos é a saturação da obra com as marcas do autor, a fim de que o
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“Barra da Vaca” (Jeremoavo) ,“Estoriinha” (Mearim, Elpídia) “Lá, nas Campinas” (Drijimiro), “Mechéu” ,
“Retrato de cavalo” (Bio) “Se eu seria personagem”, “Tresaventura” (Maria Euzinha), “— Uai, eu?”
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“Como ataca a sucuri” (Pajão), “Estória n.º 3” (Joãoquerque),“João Porém, o criador de perus” (o “J”), “Melim
Meloso” (João Barandão),“Grande Gedeão” (o “G”), “Ripuária” (João da Areia),“Reminisção” (O “R”, Romão).
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Intruge-se”, “Vida ensinada”, “Zingaresca”
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“Curtamão” (Requincão), ), “Orientação” (Yao Tsing-Lao, ou Seô Quim) , “Rebimba, o bom” (Joaquim José ou
Aquino Jaques ou Tio Quim).
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ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. 3 ed. Rio de Janeiro:
Editora UFMG, Nova Fronteira, 2003.
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“Tal afirmativa é atestada pelo documento “Motivos para a capa de Tutaméia — Terceiras Estórias”, presente no
Acervo Guimarães Rosa, no Instituto de Estudos Brasileiros/USP, no qual o autor descreve e, aparentemente,
esboça alguns dos desenhos a serem efetivados pelo ilustrador Luís Jardim. No que se refere às outras ilustrações,
cada conto do volume é encerrado ora com um desenho de uma coruja, ora com um desenho de um caranguejo.
Ambos os desenhos são significativos dentro do contexto da obra. Simbolicamente, a coruja está relacionada ao
“conhecimento racional” e à “reflexão” (Chevalier; Gheerbrant 1997:293). Portanto, parece referir-se à exigência
de interpretação. Já o caranguejo, conforme adianta a citação acima, é o símbolo de câncer, o signo do autor. Mais
uma vez, tem-se a reafirmação de Tutaméia como sendo mea omnia. (Santos:2008 p. 84)
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Como ataca a Sucuri apresenta a techné autoral elevada à sua máxima potência. Nele,
Rosa compõe, ao modo de fragmento, a narrativa que tem como um dos temas centrais a
agonística entre Pajão, morador de um brejão escuro e imundo no fundo do mato e Drepes,
personagem citadino e racional que vem ao brejo para pescar, trazendo cavalo, burro de carga,
é a tônica da relação Drepes – Pajão no conto, que não pode deixar de contaminar a atitude do
leitor, logo ao chegar Drepes repete, para não parecer presa fácil, a afirmação de que seus
companheiros viriam encontrá-lo mais tarde. Pajão, senhor do brejão escuro, porém, sabia que
narrador/autor com respeito a Pajão, cuja fala mimetiza desde o início, sugerindo que é sob a
lugar, poço bom, fundo, pesqueiro. O resto, virava com Deus. . .Inda
Falando por Pajão o narrador nos faz crer que o autor implícito está decidido a fazer da
ele mesmo influído pedira. Ife! Pescasse. Entendia o mundo de mato, usos,
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Rosa, João Guimarães. Tutaméia:terceiras estórias, 6º Ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1985.
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Ao tratar da reação de Drepes, todavia, o narrador guardará, por meio de diegese e não
resposta: o ronco, quase gemer, que nem surdo berro de gado. Ah, seu
aleijado hospedeiro tivera manha e motivo, para o sorrisão com caretas! Sim
—serpente gigante ali se estava, saída de sob a água, sob folhas. Drepes ia
Desde esta abertura até o desenlace não se passarão quatro páginas. Nelas se constrói a
ambiência em que viceja a suspeita, tanto de Pajão com relação a Drepes – “O terrível homem
Drepes com relação a Pajão, suspeita para a qual não lhe faltarão razões: Pajão é figura do
homem bestializado tanto na forma física – aleijado, andar de caranguejo – quanto na alma –
deixa o Drepes, desavisado, dentro do raio de alcance da cobra e por essa crueldade de querer
submeter o forasteiro a uma espécie de damnatio ad bestas com que se massacravam cristãos
na Roma antiga, assim como pelos traços físicos e pelo coxear, “estragando muito espaço”,
considera-se, em algumas análises, que Pajão é metaforizado pela cobra. De todo modo a
suspeição de um contra o outro é reforçada porque nem o Drepes declara o motivo real que ali
coberto de folhas do brejão escuro. Drepes, que se mostra, para surpresa de Pajão, indiferente à
cujo encargo é garantir o desenrolar da história a bom termo. Assim se o autor real nos fizera
acreditar na sua ojeriza à razão, megera cartesiana, fará entretanto de antagonista e herói aquele
que a representa, enquanto Pajão, anagrama de João -proto agonístes, o primeiro a falar -
encarnará o vilão. Por essa manobra a narrativa introduz complicações e inversões na projeção
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ficcional da psique autoral que dificultam para o leitor estabelecer expectativas quanto ao
desfecho.
Observamos também que na fala do narrador está implícita a aprovação pela atitude
cuidadosa e comedida de Drepes. De ora em diante é a desocultação do ser da cobra que está
em jogo, para que a empreitada de Drepes seja bem sucedida. Drepes, orquestrador dessa
desocultação, terá que se haver, estrategicamente, com a suspeita de Pajão, pois é este quem
detém o conhecimento sobre o modo de ataque da sucuri, que servirá por sua vez de modelo ao
contra-ataque de Drepes. A potencialidade para essa investida se tornará ato por duplicação
mimética, mas tal duplicação tem por base um conhecimento, uma techné. Ocorre porém, que
de ação” (Aristóteles apud Ricouer/Iser, 1996), aqui a ação é imitação da imagem criada na
mente do personagem por descrição de outrem: “A mímesis pressupõe, portanto, uma noção
comumente aceita sobre aquilo que constitui uma ação; esta ação é então transplantada para um
de Rosa retornamos ao brejo: na primeira noite, um dos filhos de Pajão vem buscar o Drepes
pedra do jogo lançando-lhe a pergunta: “De que jeito é que sucuri pega capivara?” Mas não
obtém resposta.
Ao chegar à casa, que ficava à boca da floresta e fedia a couros podres, é Pajão quem
responde: “Sucruiú? Aqui nunca divulguei. . .” E Drepes como Sócrates, perseguidor de almas,
não lhe dá trégua: Ela morde a presa, mas fica com o rabo enganchado num pau? Se aquela
corre, larga-lhe trela, estirada, afinada, depois repuxa e mata, tomando-lhe o fôlego das
Isso, conforme registrado, ocorre na primeira das duas noites em que pernoita Drepes
em casa de Pajão. Na parte escura da casa ficam Pajão e a família. No quarto o Drepes, com o
candeeiro. Pajão evita fitá-lo: “seu ódio se derramava pelos cantos.” A raiva que nutre Pajão
pelo Drepes aumenta à visão da parafernália que para ali este levara, revólver, carabina,
barômetro, bússola, gravador, objetos que pertencem à esfera de uma razão tecnológica. Cresce
assim no leitor conhecedor dos paratextos rosianos a identificação do autor com o protagonista
vilão, ambos hostis à razão e seus produtos. Drepes retorna ao poço na manhã seguinte e à noite
à casa, sem demonstrar medo nenhum. O narrador, inconfiável, imita Pajão imitando o Drepes:
“’Sucruiú come homem?’ Deus querendo come.” A techné caçadora de Drepes impõe que ele
arranque a verdade do guardião da cobra, provocando-o para além dos limites, sem disfarces.
Nesta segunda noite faz uso dos instrumentos que para ali trouxera, denominados por Pajão de
as “trenheiras malditas”, pondo para rodar “os carretéis daquele cego relógio”, cumulando-o de
água e na comida um “pó branco que ‘Instrui de qualquer veneno: formicida, feitiço, vidro
moído. Tendo, o remédio fica azul. . .’” No paroxismo da ira, que lhe desenha linhas retas no
rosto, Pajão cede à pressão do forasteiro e deixa que lhe saia da boca o discurso que descreve
com exatidão o modo pelo qual a sucuri ataca a sua presa: “ Sucruiú agride de açoite, feito o
relâmpago, pula inteira no outro bicho. . .[. . .] Um vê: ela já ferrou dente e enrolou no outro o
laço de suas voltas, duas ou três roscas, zasco-tasco, no soforçoso. . .O bicho nem grita, mal
careteia, debate as pernas de trás, o aperto tirou dele o ar dos bofes. Sucruiú sabe o prazo,
que é só para sufocar, tifetrije. . .Aí, solta as laçadas de em redor do bicho morto, que ela
tateia todo, com a linguazinha. Começa a engolir . . .”12 Esta imagem competente e precisa do
ataque da sucuri segue o roteiro platônico da Sétima Carta, que prescreve os passos necessários
ao conhecimento da coisa-em-si: “Todo ser [...] tem três coisas que são os meios necessários
pelo qual o conhecimento dessa coisa é conquistado; o conhecimento é uma quarta coisa; e
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Idem 40
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como quinta deve-se pôr a coisa mesma, que é cognoscível e verdadeiramente é. Primeiro vem
quarto o conhecimento etc. (Platão apud Agamben: 1999- 29) O Drepes reconhece que não se
conquanto forçada – entre Drepes e Pajão mediante a qual se desenovela o nome e a descrição
romance cujo mistério é narrado a duas vozes à medida que vai sendo conjuntamente
O fato é que os autores submetem tais personagens, tanto neste conto quanto no
Palavra) de Stefan George, Where word breaks off no thing may be (Onde a palavra falta nada
pode existir), esclarece em que consiste uma tal experiência: “A experiência decisiva é aquela
a que o poeta se submeteu com a palavra – e com a palavra na medida em que apenas ela pode
conferir uma relação com uma coisa. Dito de forma mais explicita, o poeta experimentou que
somente a palavra faz uma coisa aparecer como a coisa é, e a deixa assim estar presente. A
palavra se declara ao poeta como aquilo que fixa e sustenta uma coisa em seu ser.” (1982:63-
66) A coisa a que a palavra de Pajão dará presença, tornará visível, será o ataque, tão
instantâneo e veloz que ocorre, dir-se-ia, num átimo, da cobra, que revelando-se também se
oculta, escapando à apreensão. Por isso no conto não tem lugar senão como e quando narrado
por Pajão, algo que por sua fugacidade ou mera ausência na narrativa, somente será apreendido
em seus efeitos.
A descrição de Pajão ilustra para o leitor as operações imaginativas que dele, leitor,
serão requeridas a fim de dar corpo a uma representação do ataque em sua própria mente; a
relação entre Pajão e Drepes reduplica simetricamente, desse modo, a relação narrador/leitor.
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Mas nos remete também à questão da ut pictura poiesis - representação por meio de palavras
da imagem do ataque da sucuri, que neste caso é representação móvel, cinética. Aqui mais um
paradoxo do conto de Rosa se faz apresentar, desde que Pajão, rude homem do brejo, hostil a
razão, domina porém com perfeição a techné retórica que acresce à natureza, segundo a
teleologia natural com que Aristóteles a põe, que não deixa de caracterizar-se por seu caráter
racional:
paredes do casebre, no andar defeituoso, de tamanduá, já pronto para pesadelo” (Rosa 1985:
dentes” – tendo em volta os três filhos ameaçadores. Até que Drepes, empalidecendo, resolvido
já a partir antecipadamente quando sabe da fuga do cavalo e do burro, armadilha que lhe
preparavam, senta-se todavia com calma no jirau, com carabina, barômetro e gravador e apela
mundo de fora em seu socorro, no que é bem sucedido, uma vez que, logo, Pajão, rodando o
pescoço como um demônio, assegura-lhe que os animais seriam encontrados. A partir desse
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ponto o que somos capazes de ver é somente o relato do efeito de uma ação já ocorrida. Vemos
a cena através dos olhos de Pajão que, tendo ido ao poço ao entardecer, avisar que os animais
tinham sido encontrados . . . “Ouviu os tiros! Viu o demo do homem, revólver na mão, a cara
de fera. . .O cachorro, salvo, tremia demais, deitado, babado, arrepiado. A sucuriju, cabeça
definição do ataque, logos, fornecida por Pajão, o leitor terá a sensação de havê-lo
experimentado, de haver presenciado e visto o relâmpago, witz, no qual a sucuri ataca a sua
presa, o cachorro Pacomã, que Drepes levara consigo até o poço no último dia de sua estada em
casa de Pajão. Temos então que se Pajão “diz” do modo de ataque, dando-lhe presença
antecipada, também o Drepes será capaz de, numa ação relâmpago, responder a ele,
conduzindo a história a bom termo, com a morte da cobra, o cachorro a salvo, ele próprio
incólume e Pajão “quase quadrumanamente, desembainhando o facão, feio, tão antigo, que
parecia uma arma de bronze. Ele queria o couro do bicho dragonho”. O contra-ataque infalível
relação agonística com o próprio personagem Pajão, ao fornecer imagem mais precisa ainda da
sucuri após o ataque, “cabeça espatifada, movendo corpo à beira do lamaçal”. A luta entre
Drepes e Pajão, que em alguns momentos poderia ter-se convertido em catástrofe, tornada mais
perigosa pela ameaça da cobra, se resolve numa conciliação final: “Drepes saiu-se indo, dali a
da narrativa, correndo o risco da paralisia que a sucuri –metáfora da razão – com seus laços,
inflige aos animais que ataca (não podemos esquecer que Pajão figura em parte o autor JGR e
Tutaméia, assim como o witz sugerido pelo ataque da sucuri que o autor mesmo, no prefácio
Tanto fragmento, quanto witz, naturalmente nos conduzem ao romantismo de Jena, mas
sobretudo evocam a plasticidade que a eles se associam, o momento da gestalt que se instala no
witz, a conversão e reconversão imediata entre bestas e homens, entre feras e bestas, que
incessantemente :
obscuridade da ambiência torna-a remota, como se despregada do seu sistema de origem, como
se nos contaminasse de esquecimento. O próprio nome ‘Drepes’ a faz soar como se muitos de
seus traços tivessem sido extraídos de antigos mitos e velhas narrativas; as palavras
“desembainhando o facão, feio, tão antigo, que parecia uma arma de bronze. Ele queria o
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couro do bicho dragonho” remetem a uma possível simetria entre este conto e poemas de Sir
Drepes, terceira pessoa do verbo matar, no inglês médio, seria convertido em nome
remoto e obscuro no qual o ogro Pajão guarda e esconde a serpente gigante –bicho dragonho.
Seria este um argumento plausível para explicar como e onde a narrativa foi buscar o seu
por si só, se de fato assim podemos nomear o gênero praticado por Rosa em seus contos, é
constituído por enorme variedade e diferença. Lacoue-Labarthe e Nancy esclarecem que nos
textos dos românticos de Jena o “termo quase nunca é confundido com a peça destacada pura e
fragmento é de fato uma fração, ele não enfatiza antes de tudo a fratura que o produz. Mas
designa as bordas da fratura como uma forma autônoma tanto quanto a falta de forma ou
deformidade das bordas. Continuemos, pois, a recorrer ao poema Cleanness, dos Gawain-
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Estranho familiar
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histórias bíblicas do Velho Testamento, que focalizam Noé, Sodoma e Gomorra e o Banquete
apresentada nas páginas de abertura, de que Deus ama a limpeza e a pureza, e odeia a
imundície e a depravação. No contexto religioso do inglês médio a palavra cleanness tem dois
sentidos abstratos: O mais geral é “livre do pecado” e o mais particular é “castidade”, oposta à
lascívia. De todo modo os pecados da carne, entre eles a homossexualidade, são considerados
pecados extremos que provocam a imediata e destrutiva fúria divina, mas deve-se levar em
conta que este é apenas um dos exemplos extremados do pecado em geral. O que se observa é
que os efeitos que têm os chamados ‘pecados da carne’ sobre a ira divina são mais impactantes
que os dos pecados comuns: “Na apresentação da sua segunda história, Sodoma e Gomorra, o
[Assim Ele odeia todos os pecados como ao inferno fétido, mas nenhum o enraivece,
seja de noite seja de dia, tanto quanto a suja lascívia, o desprezo pela própria pessoa; aquele
que não se envergonha de nenhuma perversão, deixem-no ser destruído.] (2005: 90)
No que diz respeito à rapidez com que Deus inflige sua vingança sobre os pecadores da
é apenas a ira divina que é tão danosa mas a velocidade com a qual sua
ira O leva a agir.” (2005:99)
Não haveria como comprovar, para além de qualquer dúvida, que Rosa tenha feito tal
limpeza tanto dos corpos quanto das almas denuncia o código de honra cortês, que não será
contudo estranho à obra rosiana, na qual tantos paralelos com as epopéias medievais e o
romance de cavalaria têm sido fartamente apontados.(Cf PROENÇA 1991) Mas resta neste
caracterização do lugar como um sujo brejão, na imundície da casa de Pajão que fedia a couros
podres, na própria figura de Pajão, pronto para pesadelo, coxeando, torto, dando sinal da
manifestação da ira divina, na invocação de Deus por este ogro – “Sucruiú come homem? Deus
querendo, come”, na própria serpente, pivô do drama cristão, e sobretudo no ataque veloz da
sucuri, que Pajão descreve, e no igualmente veloz contra-ataque de Drepes, tomado de ira, “a
cara de fera”, de que sabemos através do narrador. Assim Deus na figura de Drepes, se imiscui
estabelecendo a reflexividade como movimento infinito da obra. Nestes dois últimos episódios
vislumbramos a imagem da síntese dos vários traços que unem fragmento, o conto de Rosa e
heterogêneo de idéias súbitas, em outras palavras, verdadeiramente como Witz, que não se furta
ao elemento de comicidade, se pensarmos em como a cobra em suas dobras “se empilha” sobre
a vítima.
Terceira pessoa do verbo matar, Drepes desliza dos Poemas de Sir Gawain para o texto
de Rosa, da função sintática de verbo para a de nome próprio, efetivando-se por uma
velamento e no desvelar-se das astúcias da feitura. No fragmento de Rosa, assim como no Witz,
divino. Há apenas a sujeira comum da natureza e dos humanos. E a força da techné autoral, que
os redime.
ANDRADE, Ana Maria Bernardes de. A velhacaria nos paratextos de Tutaméia : terceiras
HEIDEGGER, Martin. On The Way to Language. Translation of: Unterwegs zur Sprache.
Theory of Literature in German Romanticism. Translated by Philip Barnard and Cheryl Lester.
PROENÇA, Manuel Cavalcanti. Don Riobaldo do Urucuia, Cavalheiro dos Campos Gerais.
In: Guimarães Rosa. Coleção Fortuna Crítica 6. Direção de Afrânio Coutinho. Seleção de textos
ROSA, João Guimarães. “Tutaméia (Terceiras Estórias)”. 6ª Ed. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1985.
dose_Adilson-Santos_art.05ed.21
VALOIS, Michelle. Meu Tio o Iauaretê: O Tecido da Obra nas Malhas da Onça. Recife,
http://www.eutomia.com/pdfn03/n03arti14.pdf