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De Bichos e Homens: Ontologia e Estética em ‘Como Ataca a Sucuri’, de João Guimarães


Rosa

Sueli Cavendish – Universidade Federal de Pernambuco – UFPE

Como ataca a Sucuri é conto de Tutaméia –(Terceiras Histórias), último livro de João

Guimarães Rosa publicado em vida (1967). Tutaméia é um livro repleto de idiossincrasias: o

título impresso na folha de rosto é o acima - Tutaméia (Terceiras Estórias) -, enquanto na

última página toma a forma invertida de Terceiras Estórias (Tutaméia), abaixo do que se lê

“Índice de releitura”, além de uma epígrafe de Schopenhauer 1 na qual a releitura é

recomendada. Quatro são os prefácios que apresentam, intercaladamente, se considerarmos o

livro na direção que vai da primeira à última página, os quarenta contos, os quais se tornam

quarenta e quatro, uma vez que neste tipo de leitura eles mesmos prefácios são tomados como

contos. Se folhearmos o livro de trás para frente, porém, os prefácios se encontram destacados

do índice, agrupando-se em quatro, no que se reduz o número de contos a quarenta. Vários são

os gestos de auto-inclusão do autor nesta obra, gestos que outros autores de ficção vêm

exercitando há muito, mas que se tornaria uma marca especial a partir de Poe, de Mallarmé e

outros simbolistas, bem como dos modernistas, entre os quais destacamos o William Faulkner

de “O Som e a Fúria”. Para falar dos paratextos em Rosa nada melhor que recorrer a quem os

tomou como assunto de tese: em “A Velhacaria nos Paratextos de Tutaméia –Terceiras

Estórias”, Ana Maria Bernardes de Andrade se propõe a “sísifa tarefa de buscar o projeto

estético de Guimarães Rosa nas cifras dos paratextos de Tutaméia, . . . [partindo] do princípio

de que existe aí uma intensa elaboração teórico-criativa do autor acerca de si mesmo, de sua

obra, de suas intenções como escritor, de sua relação com a literatura” (2004: 24). A detecção

de marcas autorais, no corpo de Tutaméia pode começar pela definição dada pelo próprio autor

ao título, no último prefácio que escreveu para o livro, Sobre a Escova e a Dúvida: nonada,
1
“Já a construção, orgânica e não emendada, do conjunto, terá feito necessário por vezes
ler-se duas vezes a mesma passagem.
2

baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica,

quase-nada; mea omnia, grafado assim mesmo, em itálico. Observe-se que mea omnia, ao final

da enumeração, tomará o sentido de “tudo o que eu penso a respeito do que faço e abordo”

(Covizzi apud Santos 2008: 78) e/ou “tudo meu ou tudo de mim” (Spera apud Santos 2008:78).

Paulo Rónai acentuara o exotismo de uma “etimologia, tão sugestiva quanto inexata, [o que

faz] de tutaméia vocábulo mágico tipicamente rosiano, confirmando a asserção de que o

ficcionista pôs no livro muito, se não tudo, de si” .Assim sendo, “Tutaméia é menos ‘nonada’ e

mais ‘mea-omnia’” (Rosa 1985:216).

Compreendemos como a “velhacaria” nos textos de Tutaméia, que Ana Maria B. de

Andrade assume como tese, o que se segue: o autor propõe ao leitor um jogo que ultrapassa as

bordas das páginas da ficção e alcança os paratextos. Esta radicalização do jogo, a transgressão

que desrealiza o real para que tudo se torne ficção, na verdade é o outro modo pelo qual Rosa

intenta inscrever-se no interior do seu universo ficcional; e assim instalando-se neste ‘meio de

reflexão’, que é a linguagem, imprime à sua obra o caráter de ficção moderna auto-reflexiva.2

Não nos ocuparemos aqui de todas as evidências encontradas por Andrade com

respeito aos modos de auto-inserção do autor no texto, apenas ressaltando que o mais

importante talvez esteja numa interrupção da ordem alfabética do primeiro índice para a

inserção das iniciais JGR (João Porém, o criador de perus, Grande Gedeão e Reminisção),

após o que a dita ordem segue o seu curso. Também formam a palavra Hans -- João em alemão

Um exemplo da ‘velhacaria” de Rosa no contexto de sua produção ficcional pode ser vista em “Meu Tio
o Iauaretê,”, onde ela é a atitude principal de Tonho Tigreiro com relação ao seu hóspede. Michelle Valois (2009
-171) enumera o repertório de jogos e enganos envolvendo autor, narrador, narratário e leitor, que são a tônica da
produção ficcional rosiana e que Andrade sustenta estender-se aos paratextos :
“Em meu tio o Iauaretê, technê, poiésis e mímesis simetrizam o agon-luta da narrativa em
agon-jogo da narração. A technê de Tonho Tigreiro, narrador que enleia, intriga, ludibria e embosca
narratário e leitor, reencena a technê caçadora, predadora, do onceiro tornado onça. Na obra acabada,
seus feitos como personagem transmutam-se em poiésis – suas proezas de bravo caçador têm ares de
boasting poems, seus massacres de predador operam a damnatio ad bestias dos vícios humanos
estetizados em tableaux vivants. A onça que ele mimetiza se faz ver e ouvir no tecido mesmo da palavra
- nas armadilhas da narração, no cratilismo da linguagem - operando uma mímesis em mise en abyme
que, denunciando as astúcias da feitura, exime-se da aspiração a cópia da realidade (2009: 171).”
3

-- as iniciais dos quatro prefácios intercalados no índice e agrupados ao final. Em suma,

Andrade, apoiando-se em vários outros estudos (Sperber, 1982, Novis, 1989, Araujo, 2001),

organiza os contos de Tutaméia em quatro subgrupos: aqueles em que personagens são

nomeados com o pronome “eu” e variantes3; aqueles cujos personagens são homônimos do

autor ou seus heterônimos anagramáticos4; Aqueles cujos personagens são chamados Ladislau

(santo do dia de nascimento do escritor)5; e aqueles que têm personagens chamados Joaquim.6

O que Andrade considera “velhacaria” nada mais é, portanto, que gestos de auto-

inclusão -- que não são prerrogativa de Rosa, conforme já ressaltado, mas vários autores da

modernidade – contidos nos paratextos de Rosa. A declaração que ele faz a Edoardo Bizarri,

seu tradutor italiano, de que seus livros “defendem o altíssimo primado da intuição, da

revelação, da inspiração sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, da

megera cartesiana”7 será vista, então, sob luz diversa, desde que a velhacaria do autor infundirá

no leitor inclinação suspeitosa. Além de fazer do leitor objeto de uma pressão agonística, o

sentido mesmo dos gestos é a saturação da obra com as marcas do autor, a fim de que o

movimento de leitura não escape dos trilhos da reflexividade, garantindo a onipresença do eu

autoral nas sucessivas dobras do infinito “eu sou”.8

3
“Barra da Vaca” (Jeremoavo) ,“Estoriinha” (Mearim, Elpídia) “Lá, nas Campinas” (Drijimiro), “Mechéu” ,
“Retrato de cavalo” (Bio) “Se eu seria personagem”, “Tresaventura” (Maria Euzinha), “— Uai, eu?”
4
“Como ataca a sucuri” (Pajão), “Estória n.º 3” (Joãoquerque),“João Porém, o criador de perus” (o “J”), “Melim
Meloso” (João Barandão),“Grande Gedeão” (o “G”), “Ripuária” (João da Areia),“Reminisção” (O “R”, Romão).
5
Intruge-se”, “Vida ensinada”, “Zingaresca”
6
“Curtamão” (Requincão), ), “Orientação” (Yao Tsing-Lao, ou Seô Quim) , “Rebimba, o bom” (Joaquim José ou
Aquino Jaques ou Tio Quim).
7
ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. 3 ed. Rio de Janeiro:
Editora UFMG, Nova Fronteira, 2003.
8
“Tal afirmativa é atestada pelo documento “Motivos para a capa de Tutaméia — Terceiras Estórias”, presente no
Acervo Guimarães Rosa, no Instituto de Estudos Brasileiros/USP, no qual o autor descreve e, aparentemente,
esboça alguns dos desenhos a serem efetivados pelo ilustrador Luís Jardim. No que se refere às outras ilustrações,
cada conto do volume é encerrado ora com um desenho de uma coruja, ora com um desenho de um caranguejo.
Ambos os desenhos são significativos dentro do contexto da obra. Simbolicamente, a coruja está relacionada ao
“conhecimento racional” e à “reflexão” (Chevalier; Gheerbrant 1997:293). Portanto, parece referir-se à exigência
de interpretação. Já o caranguejo, conforme adianta a citação acima, é o símbolo de câncer, o signo do autor. Mais
uma vez, tem-se a reafirmação de Tutaméia como sendo mea omnia. (Santos:2008 p. 84)
4

Como ataca a Sucuri apresenta a techné autoral elevada à sua máxima potência. Nele,

Rosa compõe, ao modo de fragmento, a narrativa que tem como um dos temas centrais a

suspeição em si mesma. Narrada em terceira pessoa, a história põe em destaque a relação

agonística entre Pajão, morador de um brejão escuro e imundo no fundo do mato e Drepes,

personagem citadino e racional que vem ao brejo para pescar, trazendo cavalo, burro de carga,

transportando caixas e mais caixas de apetrechos e equipamentos. Confirmando a suspeita que

é a tônica da relação Drepes – Pajão no conto, que não pode deixar de contaminar a atitude do

leitor, logo ao chegar Drepes repete, para não parecer presa fácil, a afirmação de que seus

companheiros viriam encontrá-lo mais tarde. Pajão, senhor do brejão escuro, porém, sabia que

não viria companheiro algum.

Embora seja o conto narrado em terceira pessoa, é evidente a proximidade do

narrador/autor com respeito a Pajão, cuja fala mimetiza desde o início, sugerindo que é sob a

pele deste, malgrado sua figura asquerosa, que se insinua o eu autoral :

“O HOMEM queria ir pescar? Pajão então levava-o ao certo

lugar, poço bom, fundo, pesqueiro. O resto, virava com Deus. . .Inda

que penoso o caminhar, dava gosto guiar um excomungado, assim,

hum, a mais distante, no fechado da brenha.”9

Falando por Pajão o narrador nos faz crer que o autor implícito está decidido a fazer da

leitura uma experiência tenebrosa:

“Aqui, Pajão agora o largava, ao pé do poço oculto, quieto, conforme

ele mesmo influído pedira. Ife! Pescasse. Entendia o mundo de mato, usos,

estes ribeirões de águas cinzentas?”10

9
Rosa, João Guimarães. Tutaméia:terceiras estórias, 6º Ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1985.
10
P. 38
5

Ao tratar da reação de Drepes, todavia, o narrador guardará, por meio de diegese e não

de mímesis, uma distância respeitosa:

“Drepes entendia, porém. Deixou passar o tempo, não à beira, mas

cauto encostado em árvore. Deu tiro, para o alto, ao acaso. E escutou

resposta: o ronco, quase gemer, que nem surdo berro de gado. Ah, seu

aleijado hospedeiro tivera manha e motivo, para o sorrisão com caretas! Sim

—serpente gigante ali se estava, saída de sob a água, sob folhas. Drepes ia

esperar, trepado à árvore, havia a ver.” 11

Desde esta abertura até o desenlace não se passarão quatro páginas. Nelas se constrói a

ambiência em que viceja a suspeita, tanto de Pajão com relação a Drepes – “O terrível homem

cidadão, azougado da cabeça, xê, pensando ferros e vermelhos,”(Rosa 1967:39) quanto de

Drepes com relação a Pajão, suspeita para a qual não lhe faltarão razões: Pajão é figura do

homem bestializado tanto na forma física – aleijado, andar de caranguejo – quanto na alma –

deixa o Drepes, desavisado, dentro do raio de alcance da cobra e por essa crueldade de querer

submeter o forasteiro a uma espécie de damnatio ad bestas com que se massacravam cristãos

na Roma antiga, assim como pelos traços físicos e pelo coxear, “estragando muito espaço”,

considera-se, em algumas análises, que Pajão é metaforizado pela cobra. De todo modo a

suspeição de um contra o outro é reforçada porque nem o Drepes declara o motivo real que ali

o trouxera nem Pajão dá ciência ao visitante da existência do enorme réptil em um buraco

coberto de folhas do brejão escuro. Drepes, que se mostra, para surpresa de Pajão, indiferente à

sujeira e escuridão do lugar, é cauteloso, moderado, encenando a alteridade do autor implícito,

cujo encargo é garantir o desenrolar da história a bom termo. Assim se o autor real nos fizera

acreditar na sua ojeriza à razão, megera cartesiana, fará entretanto de antagonista e herói aquele

que a representa, enquanto Pajão, anagrama de João -proto agonístes, o primeiro a falar -

encarnará o vilão. Por essa manobra a narrativa introduz complicações e inversões na projeção
11
P. 38
6

ficcional da psique autoral que dificultam para o leitor estabelecer expectativas quanto ao

desfecho.

Observamos também que na fala do narrador está implícita a aprovação pela atitude

cuidadosa e comedida de Drepes. De ora em diante é a desocultação do ser da cobra que está

em jogo, para que a empreitada de Drepes seja bem sucedida. Drepes, orquestrador dessa

desocultação, terá que se haver, estrategicamente, com a suspeita de Pajão, pois é este quem

detém o conhecimento sobre o modo de ataque da sucuri, que servirá por sua vez de modelo ao

contra-ataque de Drepes. A potencialidade para essa investida se tornará ato por duplicação

mimética, mas tal duplicação tem por base um conhecimento, uma techné. Ocorre porém, que

ao contrário do que diz “a expressão-chave de Aristóteles, segundo a qual o poema é imitação

de ação” (Aristóteles apud Ricouer/Iser, 1996), aqui a ação é imitação da imagem criada na

mente do personagem por descrição de outrem: “A mímesis pressupõe, portanto, uma noção

comumente aceita sobre aquilo que constitui uma ação; esta ação é então transplantada para um

texto, e por fim, concretizada pelo leitor”. (Iser: 1996)

Contornando, porém, o desdobramento da mímesis e seu efeito mise en abîme no conto

de Rosa retornamos ao brejo: na primeira noite, um dos filhos de Pajão vem buscar o Drepes

no poço, “taciturno, bronco, só matéria e eventual maldade.” Drepes movimenta a primeira

pedra do jogo lançando-lhe a pergunta: “De que jeito é que sucuri pega capivara?” Mas não

obtém resposta.

Ao chegar à casa, que ficava à boca da floresta e fedia a couros podres, é Pajão quem

responde: “Sucruiú? Aqui nunca divulguei. . .” E Drepes como Sócrates, perseguidor de almas,

não lhe dá trégua: Ela morde a presa, mas fica com o rabo enganchado num pau? Se aquela

corre, larga-lhe trela, estirada, afinada, depois repuxa e mata, tomando-lhe o fôlego das

ventas?”– Pajão de boca retorcida: -- “O senhor está dizendo.”


7

Isso, conforme registrado, ocorre na primeira das duas noites em que pernoita Drepes

em casa de Pajão. Na parte escura da casa ficam Pajão e a família. No quarto o Drepes, com o

candeeiro. Pajão evita fitá-lo: “seu ódio se derramava pelos cantos.” A raiva que nutre Pajão

pelo Drepes aumenta à visão da parafernália que para ali este levara, revólver, carabina,

barômetro, bússola, gravador, objetos que pertencem à esfera de uma razão tecnológica. Cresce

assim no leitor conhecedor dos paratextos rosianos a identificação do autor com o protagonista

vilão, ambos hostis à razão e seus produtos. Drepes retorna ao poço na manhã seguinte e à noite

à casa, sem demonstrar medo nenhum. O narrador, inconfiável, imita Pajão imitando o Drepes:

“’Sucruiú come homem?’ Deus querendo come.” A techné caçadora de Drepes impõe que ele

arranque a verdade do guardião da cobra, provocando-o para além dos limites, sem disfarces.

Nesta segunda noite faz uso dos instrumentos que para ali trouxera, denominados por Pajão de

as “trenheiras malditas”, pondo para rodar “os carretéis daquele cego relógio”, cumulando-o de

perguntas sobre o modo de operar da cobra e finalmente logrando enfurecê-lo ao espargir na

água e na comida um “pó branco que ‘Instrui de qualquer veneno: formicida, feitiço, vidro

moído. Tendo, o remédio fica azul. . .’” No paroxismo da ira, que lhe desenha linhas retas no

rosto, Pajão cede à pressão do forasteiro e deixa que lhe saia da boca o discurso que descreve

com exatidão o modo pelo qual a sucuri ataca a sua presa: “ Sucruiú agride de açoite, feito o

relâmpago, pula inteira no outro bicho. . .[. . .] Um vê: ela já ferrou dente e enrolou no outro o

laço de suas voltas, duas ou três roscas, zasco-tasco, no soforçoso. . .O bicho nem grita, mal

careteia, debate as pernas de trás, o aperto tirou dele o ar dos bofes. Sucruiú sabe o prazo,

que é só para sufocar, tifetrije. . .Aí, solta as laçadas de em redor do bicho morto, que ela

tateia todo, com a linguazinha. Começa a engolir . . .”12 Esta imagem competente e precisa do

ataque da sucuri segue o roteiro platônico da Sétima Carta, que prescreve os passos necessários

ao conhecimento da coisa-em-si: “Todo ser [...] tem três coisas que são os meios necessários

pelo qual o conhecimento dessa coisa é conquistado; o conhecimento é uma quarta coisa; e
12
Idem 40
8

como quinta deve-se pôr a coisa mesma, que é cognoscível e verdadeiramente é. Primeiro vem

o nome [onoma]; em segundo lugar a definição [logos]; em terceiro, a imagem (eidolon); em

quarto o conhecimento etc. (Platão apud Agamben: 1999- 29) O Drepes reconhece que não se

enganara quanto a Pajão: “O ogro conhecia bem a cobra-grande!”. A parceria narrativa –

conquanto forçada – entre Drepes e Pajão mediante a qual se desenovela o nome e a descrição

do ataque evoca a de outro grande ficcionista, o William Faulkner de “Absalão! Absalão!”,

romance cujo mistério é narrado a duas vozes à medida que vai sendo conjuntamente

descoberto por Quentin Compson e Shreve num quarto de dormitório em Harvard.

O fato é que os autores submetem tais personagens, tanto neste conto quanto no

romance de Faulkner, ao que Heidegger chamara de experiência na linguagem. Em “A

Caminho da Linguagem” o filósofo, referindo-se ao último verso do poema The Word (A

Palavra) de Stefan George, Where word breaks off no thing may be (Onde a palavra falta nada

pode existir), esclarece em que consiste uma tal experiência: “A experiência decisiva é aquela

a que o poeta se submeteu com a palavra – e com a palavra na medida em que apenas ela pode

conferir uma relação com uma coisa. Dito de forma mais explicita, o poeta experimentou que

somente a palavra faz uma coisa aparecer como a coisa é, e a deixa assim estar presente. A

palavra se declara ao poeta como aquilo que fixa e sustenta uma coisa em seu ser.” (1982:63-

66) A coisa a que a palavra de Pajão dará presença, tornará visível, será o ataque, tão

instantâneo e veloz que ocorre, dir-se-ia, num átimo, da cobra, que revelando-se também se

oculta, escapando à apreensão. Por isso no conto não tem lugar senão como e quando narrado

por Pajão, algo que por sua fugacidade ou mera ausência na narrativa, somente será apreendido

em seus efeitos.

A descrição de Pajão ilustra para o leitor as operações imaginativas que dele, leitor,

serão requeridas a fim de dar corpo a uma representação do ataque em sua própria mente; a

relação entre Pajão e Drepes reduplica simetricamente, desse modo, a relação narrador/leitor.
9

Mas nos remete também à questão da ut pictura poiesis - representação por meio de palavras

da imagem do ataque da sucuri, que neste caso é representação móvel, cinética. Aqui mais um

paradoxo do conto de Rosa se faz apresentar, desde que Pajão, rude homem do brejo, hostil a

razão, domina porém com perfeição a techné retórica que acresce à natureza, segundo a

teleologia natural com que Aristóteles a põe, que não deixa de caracterizar-se por seu caráter

racional:

“A posição de Aristóteles é esclarecida por sua observação de


que a techné pode algumas vezes completar o trabalho da natureza, ou
suprir as suas deficiências e por um número variado de outras conexões
e comparações feitas entre as duas forças. De todo o material que trata
deste ponto emerge que o que a natureza e a techné tem em comum é a
teleologia: ambas, como diria Aristóteles, controlam processos
destinados a trazerem as coisas ao ser, e ambas são guiadas, e em um
sentido determinadas, pelos fins ou propósitos para cujo preenchimento
elas se movem. É um pressuposto desta teoria que a techné e a natureza
ambas tem tendência similar a objetivar o melhor, a efetuar a mais
perfeita ou mais bem sucedida organização do seu material.”(Halliwell
1998: 47 e 48)

De posse do discurso verdadeiro a respeito da cobra, que Drepes reconhece como

“desfábula” ou desmistificação, este mesmo discurso porém desestabiliza o forasteiro. Vê Pajão

transmudado em monstro – “aquele rude ente, incompleto, que sapejava, se arrimando às

paredes do casebre, no andar defeituoso, de tamanduá, já pronto para pesadelo” (Rosa 1985:

40) . E na manhã seguinte, metamorfoseado em cobra -- “Pajão cravando-lhe os olhos como

dentes” – tendo em volta os três filhos ameaçadores. Até que Drepes, empalidecendo, resolvido

já a partir antecipadamente quando sabe da fuga do cavalo e do burro, armadilha que lhe

preparavam, senta-se todavia com calma no jirau, com carabina, barômetro e gravador e apela

de novo para o artifício da palavra, falando ao microfone como se falasse “a um pé-de-

exército”(40): “. . .Aqui, no que é de um Pajão, brejos da Sumiquara!” convocando assim o

mundo de fora em seu socorro, no que é bem sucedido, uma vez que, logo, Pajão, rodando o

pescoço como um demônio, assegura-lhe que os animais seriam encontrados. A partir desse
10

ponto o que somos capazes de ver é somente o relato do efeito de uma ação já ocorrida. Vemos

a cena através dos olhos de Pajão que, tendo ido ao poço ao entardecer, avisar que os animais

tinham sido encontrados . . . “Ouviu os tiros! Viu o demo do homem, revólver na mão, a cara

de fera. . .O cachorro, salvo, tremia demais, deitado, babado, arrepiado. A sucuriju, cabeça

espatifada, movia corpo, à beira do aguaçal.”(41) Pondo em contiguidade este relato e a

definição do ataque, logos, fornecida por Pajão, o leitor terá a sensação de havê-lo

experimentado, de haver presenciado e visto o relâmpago, witz, no qual a sucuri ataca a sua

presa, o cachorro Pacomã, que Drepes levara consigo até o poço no último dia de sua estada em

casa de Pajão. Temos então que se Pajão “diz” do modo de ataque, dando-lhe presença

antecipada, também o Drepes será capaz de, numa ação relâmpago, responder a ele,

conduzindo a história a bom termo, com a morte da cobra, o cachorro a salvo, ele próprio

incólume e Pajão “quase quadrumanamente, desembainhando o facão, feio, tão antigo, que

parecia uma arma de bronze. Ele queria o couro do bicho dragonho”. O contra-ataque infalível

do Drepes é a resposta da razão humana/autoral que imita a natureza. O narrador entrará em

relação agonística com o próprio personagem Pajão, ao fornecer imagem mais precisa ainda da

sucuri após o ataque, “cabeça espatifada, movendo corpo à beira do lamaçal”. A luta entre

Drepes e Pajão, que em alguns momentos poderia ter-se convertido em catástrofe, tornada mais

perigosa pela ameaça da cobra, se resolve numa conciliação final: “Drepes saiu-se indo, dali a

hora, pagara-lhes bem a hospedagem. Acenavam-lhe vivo adeus.” (41)

Ao invés de explorar o jogo de espelhos em que se desdobram os elementos miméticos

da narrativa, correndo o risco da paralisia que a sucuri –metáfora da razão – com seus laços,

inflige aos animais que ataca (não podemos esquecer que Pajão figura em parte o autor JGR e

que cada um desses personagens multiplica vertiginosamente os gestos do outro, espelho em

que se vê ) pomos em relevo o modo fragmentário desse e de outros contos de Rosa em


11

Tutaméia, assim como o witz sugerido pelo ataque da sucuri que o autor mesmo, no prefácio

“Aletria e Hermenêutica”, define:

Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os


planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para
mágicos novos sistemas de pensamento (1967: 7)

Tanto fragmento, quanto witz, naturalmente nos conduzem ao romantismo de Jena, mas

ao abordá-los seria importante notar que o vôo da serpente e o contra-ataque de Drepes

sobretudo evocam a plasticidade que a eles se associam, o momento da gestalt que se instala no

witz, a conversão e reconversão imediata entre bestas e homens, entre feras e bestas, que

convivem em promiscuidade - no brejo imundo e escuro e ali se metamorfoseiam

incessantemente :

Witz está relacionado ao fragmento, antes de tudo, pelo fato de


que esses dois “gêneros” ( tanto quanto seja possível dar-lhes tal nome)
implicam a “súbita idéia”(Einfall, a idéia que subitamente “cai” sobre
você, de tal forma que o achado é menos encontrado que recebido). O
“motley heap of sudden ideas” implica algo do Witz, da mesma forma
que, porque “muitas idéias espirituosas e súbitas”[witzige Einfälle] são
como o encontro súbito de dois pensamentos amistosos depois de uma
longa separação,” Witz parece implicar em si mesmo toda a estrutura
fragmentária, dialógica e dialética que esboçamos. Como resultado de
uma tradição que remonta ao século dezessete, Witz é basicamente
qualificado como a unificação de elementos heterogêneos (LACOUE-
LABARTHE & NANCY 1988: 52)

Logo às primeiras palavras o conto nos marca com a sensação de estranhamento, a

obscuridade da ambiência torna-a remota, como se despregada do seu sistema de origem, como

se nos contaminasse de esquecimento. O próprio nome ‘Drepes’ a faz soar como se muitos de

seus traços tivessem sido extraídos de antigos mitos e velhas narrativas; as palavras

“desembainhando o facão, feio, tão antigo, que parecia uma arma de bronze. Ele queria o
12

couro do bicho dragonho” remetem a uma possível simetria entre este conto e poemas de Sir

Gawain, escritos por autor anônimo em inglês médio:

Bot of the dome of the douthe for dedes of schame


He is so skoymos of that skathe he scarres bylyve;
He may not dryye to draw allyt bot drepes in haste (versos 597-9)

But concerning the punishment of men for deeds of shame


He is so revolted by that sin that he takes alarm at once;
He cannot bear to hold back but kills in haste. (Anderson 2005:99)

Drepes, terceira pessoa do verbo matar, no inglês médio, seria convertido em nome

próprio de um pretenso cavalheiro a serviço da razão iluminadora em demanda de um rincão

remoto e obscuro no qual o ogro Pajão guarda e esconde a serpente gigante –bicho dragonho.

Seria este um argumento plausível para explicar como e onde a narrativa foi buscar o seu

quinhão de Umheimliche?13 O próprio witz é um chiste destituído de comicidade, o fragmento

por si só, se de fato assim podemos nomear o gênero praticado por Rosa em seus contos, é

constituído por enorme variedade e diferença. Lacoue-Labarthe e Nancy esclarecem que nos

textos dos românticos de Jena o “termo quase nunca é confundido com a peça destacada pura e

simples, com o resíduo de um conjunto quebrado (aquilo que os românticos chamam de

Bruchstück, peça, literalmente: peça quebrada) ou mesmo com o bloco errático [. . .] Se o

fragmento é de fato uma fração, ele não enfatiza antes de tudo a fratura que o produz. Mas

designa as bordas da fratura como uma forma autônoma tanto quanto a falta de forma ou

deformidade das bordas. Continuemos, pois, a recorrer ao poema Cleanness, dos Gawain-

Poems, de autor anônimo medieval, através de J. J. Anderson:

13
Estranho familiar
13

Em Cleanness se combinam a discussão de uma virtude religiosa com o recontar de

histórias bíblicas do Velho Testamento, que focalizam Noé, Sodoma e Gomorra e o Banquete

de Belsazar. (Cf ANDERSON 2005: 82). Os episódios do poema ilustram a proposição,

apresentada nas páginas de abertura, de que Deus ama a limpeza e a pureza, e odeia a

imundície e a depravação. No contexto religioso do inglês médio a palavra cleanness tem dois

sentidos abstratos: O mais geral é “livre do pecado” e o mais particular é “castidade”, oposta à

lascívia. De todo modo os pecados da carne, entre eles a homossexualidade, são considerados

pecados extremos que provocam a imediata e destrutiva fúria divina, mas deve-se levar em

conta que este é apenas um dos exemplos extremados do pecado em geral. O que se observa é

que os efeitos que têm os chamados ‘pecados da carne’ sobre a ira divina são mais impactantes

que os dos pecados comuns: “Na apresentação da sua segunda história, Sodoma e Gomorra, o

narrador se refere à diferença na resposta divina a diferentes tipos de impureza:

Thus all illes He hate as helole that stynkkes;


But non nuyes hym, on naght ne never upon dayes,
As harlottrye unhonest, hethyng of selven;
That schames for no schrewedschyp, schent mot he worthe!

[Assim Ele odeia todos os pecados como ao inferno fétido, mas nenhum o enraivece,
seja de noite seja de dia, tanto quanto a suja lascívia, o desprezo pela própria pessoa; aquele
que não se envergonha de nenhuma perversão, deixem-no ser destruído.] (2005: 90)

No que diz respeito à rapidez com que Deus inflige sua vingança sobre os pecadores da

carne, ou sobre a imundície da carne (filth of flesh,) Anderson acrescenta:

“A característica diferencial desse tipo especialmente odioso de


pecado é que ele suscita em Deus a fúria destrutiva. Deus perde o
controle e sua punição se torna uma questão não de julgamento mas de
reação furiosa. Fazer penitência, que oferece [. . .] em princípio um
remédio para todo pecado não está disponível para os extremos pecados
da sujeira física e espiritual. Simplesmente não há tempo para isso. Não
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é apenas a ira divina que é tão danosa mas a velocidade com a qual sua
ira O leva a agir.” (2005:99)

Não haveria como comprovar, para além de qualquer dúvida, que Rosa tenha feito tal

incursão nos Gawain-Poems, e especificamente em Cleanness, no qual o valor atribuído à

limpeza tanto dos corpos quanto das almas denuncia o código de honra cortês, que não será

contudo estranho à obra rosiana, na qual tantos paralelos com as epopéias medievais e o

romance de cavalaria têm sido fartamente apontados.(Cf PROENÇA 1991) Mas resta neste

conto qualquer coisa da atmosfera dos Gawain-Poems, especialmente de Cleanness, na

caracterização do lugar como um sujo brejão, na imundície da casa de Pajão que fedia a couros

podres, na própria figura de Pajão, pronto para pesadelo, coxeando, torto, dando sinal da

manifestação da ira divina, na invocação de Deus por este ogro – “Sucruiú come homem? Deus

querendo, come”, na própria serpente, pivô do drama cristão, e sobretudo no ataque veloz da

sucuri, que Pajão descreve, e no igualmente veloz contra-ataque de Drepes, tomado de ira, “a

cara de fera”, de que sabemos através do narrador. Assim Deus na figura de Drepes, se imiscui

entre os viventes, gesto de auto-inclusão na criação semelhante ao de Rosa, no livro,

estabelecendo a reflexividade como movimento infinito da obra. Nestes dois últimos episódios

vislumbramos a imagem da síntese dos vários traços que unem fragmento, o conto de Rosa e

Cleanness, ocorrendo como “the motley heap of sudden ideas”, ou o empilhamento

heterogêneo de idéias súbitas, em outras palavras, verdadeiramente como Witz, que não se furta

ao elemento de comicidade, se pensarmos em como a cobra em suas dobras “se empilha” sobre

a vítima.

Terceira pessoa do verbo matar, Drepes desliza dos Poemas de Sir Gawain para o texto

de Rosa, da função sintática de verbo para a de nome próprio, efetivando-se por uma

intertextualidade curiosa, da qual se exclui a possibilidade de cópia. É a noção de referente que

se pulveriza no processo imaginativo rosiano, dando lugar à ação de inscrições iconográficas


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que se desencaminham nas malhas de uma intertextualidade processada numa região de

sombras, lusco-fusco entre inconsciente e consciente; ou então, como observara Valois, no

velamento e no desvelar-se das astúcias da feitura. No fragmento de Rosa, assim como no Witz,

inexistem resquícios de um sistema remoto em que o pecado do sexo é abominável ao olhar

divino. Há apenas a sujeira comum da natureza e dos humanos. E a força da techné autoral, que

os redime.

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