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AIRTON JOSÉ DA SILVA

A VOZ NECESSÁRIA
Encontro com os profetas do século VIII a.C.

BRODOWSKI

2011
2

Este livro foi publicado pela Paulus em 1998: A voz necessária: encontro com os
profetas do século VIII a.C. São Paulo: Paulus, 1998, 144 p. - ISBN 8534910634.

Em 30 de julho de 2009 recebi o seguinte comunicado da editora Paulus:

Comunicamos com a presente que a obra supracitada está com estoque zerado e sairá
de nosso catálogo de publicações, retornando os direitos autorais da obra ao AUTOR.
Assinado: Zolferino Tonon - Diretor Editorial Multimedial.

O texto aqui publicado é o mesmo da edição impressa. Apenas os textos que tratam do
contexto histórico, o texto bíblico, as notas de rodapé e a bibliografia foram atualizados.

Sobre o autor, confira http://www.airtonjo.com/ e http://blog.airtonjo.com/ onde há


também e-mail para contatos.

O texto pode ser baixado e utilizado para fins educacionais e não comerciais. Sua
reprodução na Internet é proibida.

Copyright © 2011 Airton José da Silva. Todos os direitos reservados.

Brodowski, 19 de outubro de 2011


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5. ISAÍAS: É PRECISO CONFIAR EM IAHWEH

“Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem mal,


dos que transformam as trevas em luz e a luz em trevas,
dos que mudam o amargo em doce e o doce em amargo!
Ai dos que são sábios a seus próprios olhos
e inteligentes na sua própria opinião!” (Is 5,20-21).

O livro de Isaías tem 66 capítulos, dos quais menos de 20 pertencem ao profeta


do século VIII a.C., que viveu em Jerusalém e atuou sob os reis Joatão, Acaz e
Ezequias.

Isaías 1-39 constitui o primeiro bloco de profecias. Aí boa parte dos oráculos é de
Isaías. Durante o exílio foram produzidos os capítulos 40-55 por um profeta anônimo
que viveu na Babilônia. É chamado de Dêutero-Isaías pelos especialistas atuais. Após o
exílio, durante o século VI a.C., foram escritos os oráculos de Is 56-66, provenientes,
talvez, de vários profetas da época da reconstrução de Judá na época persa.

Assim, o livro original de Isaías acabou se transformando numa coletânea de


oráculos de épocas bem diferentes. A redação final desta obra deve ter acontecido por
volta de 400 a.C., ou mais tarde ainda. Mesmo os capítulos atribuídos ao profeta Isaías,
do século VIII a.C., foram relidos na perspectiva pós-exílica.

É como diz J. Severino Croatto: "Esta constatação leva a uma conclusão


importante: o horizonte de leitura do livro total de Isaías, e também de 1-39, é pós-
exílico, por ocasião da dominação persa, da luta pela sobrevivência da comunidade
judaica, da desonestidade da classe dirigente de Jerusalém, dos conflitos com os
samaritanos etc"1.

Neste roteiro, que abordará somente Is 1-39, veremos a atuação de Isaías


em três momentos:
 na época de Joatão : 739-734 a.C.
 na época de Acaz : 734/3-716 a.C.
 na época de Ezequias : 716/15-699/8 a.C.

Depois olharei os acréscimos feitos a Is 1-39 e, por fim, tentarei uma síntese do
pensamento do profeta.

1 . CROATTO, J. S. Isaías. Vol I: 1-39. O profeta da justiça e da fidelidade. Petrópolis/São


Paulo/São Leopoldo: Vozes/Metodista/Sinodal, 1989, p. 12-13.
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5.1. Na época de Joatão: 739-734 a.C.

A esta época pertencem quase todos os oráculos de Is 1,2-6,13. São textos


que se referem às condições internas de Judá e, às vezes, de Samaria. São o anúncio e
a motivação global de um julgamento que está para se abater sobre o país. Comentarei
alguns deles.

Em Is 1,2-3 são invocados os céus e a terra (v.2). Para o destinatário judaíta


esta invocação levava a uma certeza: vai começar uma acusação. Esta invocação é
feita em um gênero literário específico (rîbh = processo) e tem, além disso, um valor
simbólico. A ruptura da aliança é apresentada ao universo. Os céus e a terra não só
testemunham como sofrem com o processo de ruptura: representam a ordem das
coisas, violada pela culpa de Israel.

"Ouvi, ó céus, presta atenção, ó terra, porque Iahweh está falando:


Criei filhos e os fiz crescer,
mas eles se rebelaram contra mim" (Is 1,2).

Em seguida é apresentado o amor de Iahweh para com o povo: como um pai que
cria e dá tudo a seus filhos. E estes se revoltam contra tal pai, colocando-se em
condição inferior à de animais domésticos, como o burro e o boi.

"O boi conhece o seu dono,


e o jumento, a manjedoura de seu senhor,
mas Israel é incapaz de conhecer,
meu povo não é capaz de entender" (Is 1,3).

Em Is 1,10-20 Judá, e especialmente Jerusalém, é comparada a Sodoma e


Gomorra, símbolos de transgressão e destruição2. O profeta lança-se contra o culto
vazio e formal, sem correspondência na vida real. É um dos textos mais violentos de
todo o profetismo contra o culto.

"Que me importam os vossos inúmeros sacrifícios?, diz Iahweh.


Estou farto de holocaustos de carneiros e da gordura de bezerros
[cevados;
no sangue de touros, de cordeiros e de bodes não tenho prazer.
Quando vindes à minha presença
quem vos pediu que pisásseis os meus átrios?
Basta de trazer-me oferendas vãs:
elas são para mim incenso abominável.
Lua nova, sábado e assembleia,
não posso suportar falsidade e solenidade!" (Is 1,11-13).

2 . "A metáfora de Sodoma e Gomorra, para falar de Jerusalém, se concentra no v. 10 nos chefes e
governantes. O paralelo 'príncipes/povo' demonstra que a acusação é dirigida contra os que dirigem o povo,
prevenindo-nos contra uma frequente generalização do 'povo' de Israel pecador", alerta-nos CROATTO, J.
S. Isaías. Vol I: 1-39, p. 34.
70

Em seguida, o profeta exorta o povo a deixar o mal e procurar o caminho do


bem. A alternativa passa pela decisão humana, pois Iahweh, de sua parte, é
benevolente e pode perdoar as culpas, caso haja conversão. Do contrário, o castigo
será inevitável. Castigo através da espada, símbolo da guerra.

"Lavai-vos, purificai-vos!
Tirai da minha vista vossas más ações!
Cessai de praticar o mal,
aprendei a fazer o bem!
Buscai o direito (mishpât), corrigi o opressor!
Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva!" (Is 1,16-17).

Is 1,21-26 é um lamento fúnebre, uma qiná. Normalmente entoado sobre o


defunto, aqui é usado para um morto-vivo, Jerusalém prostituída ao mal. A cidade é
personificada na imagem de uma prostituta: vendeu-se à injustiça. Qual é essa
injustiça? A corrupção pelo dinheiro e do dinheiro na qual caíram seus dirigentes.
Corrompida pelo dinheiro, a cidade será purificada, como o metal, pelo fogo, tornando-
se, novamente, a cidade da justiça.

Os vv. 21-23 contêm um lamento/repreensão sobre a cidade prostituída:

"Como se transformou em prostituta (zônâh) a cidade fiel?


Sião, onde prevalecia o direito (mishpât), onde habitava a justiça (tsedheq),
mas agora povoada de assassinos" (Is 1,21).

Em seguida, seus líderes são chamados de rebeldes e companheiros de ladrões


que correm atrás de subornos não cumprindo, portanto, seu dever de proteger o órfão e
a viúva (v. 23).

O v. 24a anuncia, então, solenemente, a punição de Iahweh, enquanto os


versículos seguintes mostram a purificação pela qual passará a cidade, tornando-se,
novamente a cidade da justiça:

"Quando isso se der, então sim,


te chamarão Cidade da Justiça (tsedheq)
e Cidade Fiel" (Is 1,26) 3.

Nos capítulos 2-3 Isaías prega a necessidade de uma grande operação de


limpeza no país. Tudo o que enche Judá de injustiça deve ser retirado: adivinhos, prata,
ouro, imensos tesouros, ídolos e assim por diante.

Is 2,6-22 trabalha com a oposição alto/baixo para sublinhar a transcendência de


Iahweh e criticar a situação em que vive o país. Duas coisas, segundo o profeta, se

3 . Na estrutura sonora e verbal do poema aparece claramente a desfiguração da justiça até o v. 23 e


a reviravolta que se opera a partir do v. 24, reconstruindo a justiça desfeita. Para uma análise estilística do
poema, cf. LACK, R. La symbolique du livre d'Isaie: Essai sur l’image littéraire comme élément de
structuration. Rome: Biblical Institute Press, 1973, p. 164-171.
71

opõem à transcendência de Iahweh: os ídolos e o orgulho humano. E têm ambos uma


só raiz: a ganância do homem em possuir (bens e orgulho), o que o conduz à idolatria.

Os vv. 6-8 descrevem um mundo fechado em si mesmo, onde os homens se


curvam diante dos ídolos fabricados por eles mesmos em ouro e prata (v. 8) e creem na
força de suas riquezas e no poderio de seus exércitos (v. 7), importando costumes
estrangeiros proibidos em Israel (v. 6).

"Sua terra está cheia de prata e de ouro: não há fim para seus tesouros;
sua terra está cheia de cavalos: não há fim para seus carros,
sua terra está cheia de ídolos,
e adoram a obra de suas mãos,
aquilo que seus dedos fizeram" (Is 2,7-8).

Isaías acredita que o homem será expulso deste ambiente, será humilhado até o
pó da terra, em condições infra-humanas (vv. 9-11). E nos vv. 12-17 lemos que no "dia
de Iahweh" todas as obras das quais os homens se orgulham, quer sejam da natureza
(cedros, carvalhos, montanhas, colinas), quer sejam aquelas produzidas por suas mãos
(como torres altas, muralhas, navios de grande porte, embarcações de luxo), serão
condenadas por Iahweh, cabendo, por último, ao homem ser diretamente humilhado.

"O orgulho do homem será humilhado,


a altivez dos varões se abaterá,
e só Iahweh será exaltado naquele dia" (Is 2,17).

E o que fará o homem? Os vv. 18-22 concluem que, naquele dia, só lhe restará
tentar esconder-se de Iahweh nos abismos, nas tocas, onde for possível, como bicho
apavorado.

Em Is 5,1-7 encontramos o belíssimo cântico da vinha. É um poema lírico de


grande beleza, uma espécie de "canção de amor", segundo alguns; uma "parábola",
segundo outros; ou, ainda, uma "canção de colheita", cantada durante a colheita da uva.

Canta-se o amor não-correspondido de um noivo, tendo o profeta assumido, no


caso, o papel de "amigo do noivo", uma pessoa de confiança que resolvia qualquer
problema porventura surgido entre o casal.

O cântico desdobra no seu simbolismo o amor de Iahweh (o agricultor) pelo povo


de Israel (a vinha), preparado com todo o cuidado e carinho, mas revelado infiel a
Iahweh.

No v. 7b, através de belíssimo jogo de palavras, descreve-se a situação judaíta:

"Deles esperava o direito (mishpât),


mas o que produziram foi a transgressão (mishpâh);
esperava a justiça (tsedhâqâh),
mas o que apareceu foram gritos de desespero (tse'âqâh)4.

4. "Trata-se de um poema lírico: um dos fragmentos mais puramente líricos de Isaías", diz
SCHÖKEL, L. A. Estudios de poética hebrea. Barcelona: Juan Flores, 1963, p. 96-97. GONZAGA DO
PRADO, J. L. Traduzir: interpretar ou re-criar? Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 32, p. 92, 1991, propõe a
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Is 5,8-24 desenvolve as denúncias e ameaças esboçadas no cântico da vinha,


através de seis "ais". São ameaçados os ricos e latifundiários que concentram sempre
mais propriedades, explorando a maioria dos camponeses:

"Ai dos que juntam casa a casa,


dos que acrescentam campo a campo até que não haja mais espaço
[disponível,
até serem eles os únicos moradores da terra" (Is 5,8).

São atacados os que vivem em bacanais e grandes festas custeadas pelo


dinheiro dos pobres por eles explorados:

"Seus banquetes se reduzem a cítaras e harpas, tamborins e flautas,


e vinho para as suas bebedeiras.
Mas para os feitos de Iahweh não têm um olhar sequer,
eles não veem a obra das suas mãos" (Is 5,12).

São denunciados os que invertem os valores do javismo, que exploram o povo,


negando justiça, e que se fazem grandes e importantes vivendo em banquetes e
coquetéis:

"Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem mal,


dos que transformam as trevas em luz e a luz em trevas,
dos que mudam o amargo em doce e o doce em amargo!
Ai dos que são sábios a seus próprios olhos
e inteligentes na sua própria opinião!
Ai dos que são fortes para beber vinho
e dos que são valentes para misturar bebidas,
que absolvem o ímpio mediante suborno
e negam ao justo sua justiça" (Is,5,20-23).

Is 6,1-13 é o texto que narra a vocação de Isaías. O profeta é preparado para a


sua missão através de uma visão de Iahweh, no Templo, descrito segundo os traços de
um rei oriental. Diz o texto que isto ocorreu no ano da morte do rei Ozias, ou seja, em
740/39 a.C., segundo a cronologia que estamos usando 5

É possível que este texto não se refira à vocação de Isaías de um modo geral,
mas seja uma preparação para uma missão específica na vida do profeta. De qualquer
maneira, como em todo texto de vocação, o relato foi escrito muito tempo depois do

seguinte tradução do v. 7: "Parece que vocês não ouviram bem o que ele queria: 'Esperava o direito, aí o
despeito, a justiça, aí a cobiça!'".

5 . Segundo outra cronologia, Ozias teria morrido em 736 a.C., embora não governasse desde 756
a.C., pois estava atacado pela lepra. Cf. SCHWANTES, M. Isaías: Textos selecionados. São Leopoldo:
Comissão de Publicações da Faculdade de Teologia da IECLB, 1979, p. 25-27.
73

fato6. Isto possibilitou ao profeta refletir sobre o sentido de sua missão e aqui,
especificamente, sobre o insucesso de sua pregação. Sua função foi de fato, reflete
Isaías, pregar o fim e a morte de Judá.

Até quando o profeta deve ser o porta-voz de Iahweh?

"Até que as cidades fiquem desertas, por falta de habitantes, e as


casas vazias, por falta de moradores; até que o solo se reduza a ermo,
a desolação; até que Iahweh remova para longe seus homens e no
seio da terra reine uma grande solidão", reflete o profeta em Is 6,11-
127 .

5.2. Na época de Acaz: 734/3-716 a.C.

A ameaça conjunta das forças israelitas do norte e das forças sírias em 734 a.C.
levou Judá a invocar o auxílio assírio. Deu resultado, mas, para ter esta proteção, Judá
perdeu toda a sua independência.

Entre outras coisas, Judá viu-se obrigado a reconhecer os deuses assírios. Acaz
teve que apresentar-se a Tiglat-Pileser III, rei da Assíria, para prestar-lhe obediência e
render homenagem aos deuses assírios. Uma cópia do altar sobre o qual Acaz
sacrificou aos deuses assírios foi, em seguida, instalada no Templo de Jerusalém, ao
lado do altar de Iahweh ali existente. É o que conta 2Rs 16,10-16.

A situação econômica tornou-se péssima. Judá perdera as províncias que lhe


pagavam tributos. Além disso, o tributo pago à Assíria foi tal que Acaz teve que entregar
parte de seu tesouro e muitas coisas valiosas do Templo. E aumentar, naturalmente, o
imposto pago pelo povo.

E a injustiça correu solta, como denunciam os profetas da época. A religião


oficial era mantida pelo Estado e não o denunciava. Pelo contrário, encobria as
injustiças com cultos faustosos e vazios, sem correspondência na vida de todo dia.

Havia, contudo, uma esperança. Que se chamava Ezequias, e era filho de Acaz.
Ainda criança, Ezequias foi associado ao trono, em 728/7 a.C.

Isto porque ensinava-se em Judá que Iahweh elegera Sião como lugar
privilegiado e fizera à dinastia davídica a promessa de permanência eterna no poder. Se
um rei não fosse bem sucedido no governo, o problema poderia ser resolvido com o rei
seguinte. Acaz estava indo muito mal, mas Ezequias era uma esperança de dias
melhores8.
6 . Como Is 6,1-13 está muito ligado aos capítulos 7-12, que tratam da guerra siro-efraimita, a
redação deste texto supõe a atividade do profeta durante a época de Acaz (734/3-716 a.C.).

7 . "Isaías entrou em choque com todo mundo: lutou contra o rei, os funcionários, às vezes contra
os sacerdotes e, com eles, contra toda a sua sabedoria. Tentou fazê-los ver, ouvir, compreender. Mas eles
deixaram de lado os planos de Deus, as promessas da dinastia, para seguirem seus próprios planos. É por
isso que Isaías declara com frequência: 'Israel não sabe, meu povo não entende'", comenta ASURMENDI, J.
M. Isaías 1-39. São Paulo: Paulus, 1980, p. 33.

8 . Cf. <http://www.airtonjo.com/historia23.htm>.
74

É no contexto da guerra siro-efraimita (734-732 a.C.) e da consequente


dependência assíria que devemos ler os oráculos deste período. Is 7,1-12,6 é, na sua
quase totalidade, desta época. Por causa de 7,14 convencionou-se chamar este bloco
de "Livro do Emanuel".

Tematicamente, os textos falam de invasões ou ataques, de libertações ou


proteções e de ameaças e promessas. Estes seis capítulos são organizados pelo
redator do livro a partir de três princípios 9:
 os sinais, como o do menino que vai nascer, em 7,14-15
 o binômio invasão/libertação (7,1/716; 7,18-21/7,22; 8,5-8/8,9-10; 8,23b/9,1-6)
 o significado de nomes próprios, como o do filho de Isaías chamado Maer-Salal
Haz-Baz, "Pronto-saque-próxima-pilhagem" em 8,1-4, que anuncia o saque de
Damasco e de Samaria pela Assíria e a libertação de Judá na guerra siro-
efraimita; ou seu outro filho Sear-Iasub, "Um resto voltará" (7,3) que é um
anúncio de esperança; e até mesmo o nome de Isaías (= Iahweh é salvação),
conforme diz 8,18: "Eis que eu e os filhos que Iahweh me deu nos tornamos, em
e
Israel, sinais ('othôth) e presságios (môph thîm) da parte de Iahweh dos
Exércitos, que habita no monte Sião".

Is 7,1-9 relata o encontro de Isaías com Acaz, às vésperas da guerra siro-


efraimita, em 734 ou 733 a.C. Os reis de Damasco e de Samaria planejam invadir Judá
para depor Acaz e no seu lugar colocar um rei não-davídico - o filho de Tabeel - que
envolveria o país na coalizão anti-assíria.

Isaías vai ao encontro de Acaz acompanhado por seu filho Sear-Iasub (Um-resto-
voltará), indicação ou sinal de esperança frente à crítica situação que se desenha. Acaz
está cuidando das defesas de Jerusalém.

Segundo Isaías, a dinastia davídica está ameaçada por dois fatores: os planos
inimigos e o medo do rei. Os planos inimigos fracassarão, o temor e as alianças políticas
farão o rei de Judá fracassar. O que dá estabilidade é a fé a confiança em Iahweh 10. O
que Isaías diz a Acaz, segundo os vv. 4-9 do capítulo 7, é o seguinte:

"Toma as tuas precauções, mas conserva a calma e não tenhas medo


nem vacile o teu coração diante desses dois tições fumegantes, isto é,
por causa da cólera de Rason, de Aram, e do filho de Romelias, pois
Aram, Efraim e o filho de Romelias tramaram o mal contra ti, dizendo:
'Subamos contra Judá e provoquemos a cisão e a divisão em seu seio
em nosso benefício e estabeleçamos como rei sobre ele o filho de
Tabeel'.
Assim diz o Senhor Iahweh:
Tal não se realizará, tal não há de suceder,
porque a cabeça de Aram é Damasco, e a cabeça de Damasco é
[Rason; (...)
A cabeça de Efraim é Samaria e a cabeça de Samaria é o filho de
[Romelias.
Se não o crerdes, não vos mantereis firmes".

9 . Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 145-147.

10 . Cf. SCHÖKEL, L. A ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 147.


75

Parece faltar alguma coisa ao texto. Há várias propostas:

"e a cabeça de Jerusalém é Iahweh"


ou
"e a cabeça de Jerusalém é a casa de Davi"
ou
"mas a cabeça de Judá é Jerusalém
e a cabeça de Jerusalém é o filho de Davi".

Is 7,10-17 relata novo encontro de Isaías com Acaz, desta vez, talvez, no
palácio, no qual o profeta oferece ao rei um sinal de que tudo se arranjará diante da
ameaça siro-efraimita.

Com a recusa do rei em pedir um sinal a Iahweh, Isaías muda de tom e relata a
Acaz que Iahweh, por própria iniciativa, dar-lhe-á um sinal.

Que consiste no seguinte: a jovem mulher ('almâh) dará à luz um filho, seu nome
será Emanuel (Deus-conosco) e ele comerá coalhada e mel até que chegue ao uso da
razão. Até lá Samaria e Damasco serão destruídas.

"Pois sabei que o Senhor mesmo vos dará um sinal ('ôth):


Eis que a jovem está grávida (hinnêh hâ'almâh hârâh)
e dará à luz um filho
e dar-lhe-á o nome de Emanuel ('immânû 'êl).
Ele se alimentará de coalhada e de mel
até que saiba rejeitar o mal e escolher o bem.
Com efeito, antes que o menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem,
a terra, por cujos dois reis tu te apavoras, ficará reduzida a ermo"
(Is 7,14-16).

Os LXX, na sua versão grega da Bíblia, traduziram 'almâh por parthénos (=


virgem). Mt usou a versão dos LXX (cf. Mt 1,23): "Idoù he parténos (= a virgem) en gastrì
hécsei (= conceberá) kai técsetai hyón...". Entretanto, a palavra hebraica para designar
virgem é bethûlâh. A palavra 'almâh significa uma jovem mulher, virgem ou não. Em
muitos casos designa uma mulher jovem já casada. Além do que esta jovem é uma
pessoa concreta, conhecida e, provavelmente, presente na ocasião, porque o texto diz:
"Eis aqui (hinnêh) a jovem...".

"À luz do contexto do oráculo e dos textos siro-cananeus bem anteriores, parece
que se pode determinar: essa que é chamada 'almâh é muito provavelmente a jovem
rainha, talvez designada assim antes do nascimento do primeiro filho"11.

É bem provável que o menino seja Ezequias, filho de Acaz. Isaías falou a Acaz
nos primeiros meses de 733 a.C., e Ezequias teria nascido no inverno de 733-32 a.C.

11 . A. VANEL, citado em ASURMENDI, J. M. Isaías 1-39, p. 66. Cf. também CROATTO, S. S.


Isaías. Vol I: 1-39, p. 65; SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 150.
76

O nascimento do menino garante, desta maneira, a continuidade da dinastia


davídica, atualizando a promessa e resumindo a aliança de Iahweh com o povo através
de seu nome, Emanuel ('immânû 'el), que evoca fórmula frequente no AT,
especialmente no deuteronomista:
 Dt 20,4 : "Porque Iahweh vosso Deus marcha convosco"
 Js 1,9 : " Porque Iahweh teu Deus está contigo"
 Jz 6,13 : "Se Iahweh está conosco (weyêsh Yhwh 'immânû)"
 1Sm 20,13 : "E que Iahweh esteja contigo"
 2 Sm 5,10 : "Davi ia crescendo, e Iahweh, Deus dos Exércitos, estava com ele".

Por outro lado, o sinal não seria, segundo alguns, de salvação, mas de castigo.
Acaz é rejeitado porque não confia em Iahweh. O alimento do menino, do mesmo modo,
supõe um período de devastação e miséria em Judá, como consequência da política
filo-assíria de Acaz12. É mais provável, entretanto, que seja um alimento de tempos de
abundância, como sugerem as passagens de Ex 3,8.17 e 2Sm 17,29.

Em Is 8,1-4 o profeta recebe a ordem de escrever numa prancheta o nome


Maer-Salal Has-Baz (= Pronto-saque-próxima-pilhagem). E quando nasce mais um filho,
será este o seu nome. A situação é a mesma no capítulo 7, ou seja, a guerra siro-
efraimita. O nome do menino quer simbolizar a destruição rápida dos inimigos de Judá.

Is 8,11-15 traz uma peça autobiográfica. Trata-se da conduta do profeta


distanciada da conduta da classe dirigente de Jerusalém. Enquanto esta busca soluções
nas alianças políticas e em consultas a espíritos e adivinhos, o profeta confiará só em
Iahweh para que sua atitude seja exemplar. O profeta é, pela distância dos dirigentes,
um oráculo vivo de reprovação da conduta nacional 13 .

"Eis que eu e os filhos que Iahweh me deu


nos tornamos, em Israel, sinais e presságios
da parte de Iahweh dos Exércitos, que habita no monte Sião"
(Is 8,18).

Is 8,23b-9,6 é um belíssimo poema, todo construído segundo um esquema


ternário14 . Assim:

v. 23b: humilhação/glória: Zabulon


Neftali
Galileia
v. 1: trevas/luz: andar
habitar
v. 2: tristeza/alegria: colheita (paz)
despojos (guerra)

12 . Cf. CROATTO, J. S. o. c., p. 65-66; SCHWANTES, M. Isaías, p. 123-128. SCHWANTES lê


esta profecia de Isaías como ruptura e condenação da dinastia davídica.

13. "Deus lhe recomenda tomar distância 'deste povo'. É a terceira vez que aparece esta designação
depreciativa da classe dirigente de Jerusalém (cf. 6,9;8,6)", explica CROATTO, J. S. o. c. p. 70.

14 . Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 159.


77

v. 3: opressão/libertação: jugo
canga
bastão
v. 4: guerra/paz: bota
veste
v. 5a: desespero/esperança: um menino nasceu
um filho nos foi dado

v. 5b: liderança
v. 5c: competência: Conselheiro-maravilhoso: sabedoria na administração
Deus-forte: capacidade bélica
Pai-eterno: zelo pela prosperidade do povo
Príncipe-da-paz: preocupação com a felicidade do povo
v. 6: permanência: domínio multiplicado
paz perpétua
casa de Davi: direito e justiça.

Os verbos estão no hifil, forma causativa do verbo hebraico. Isto indica que é
Iahweh quem faz tudo isso que o poema descreve.

O v. 23b está em prosa e nos coloca no ambiente adequado, enquanto traça a


situação histórica. As três regiões mencionadas, Zabulon (caminho do mar), Neftali (o
Além do Jordão) e Galileia (o distrito das nações) são as conquistadas, entre 734 e 732
a.C., por Tiglat-Pileser III a Israel. Iahweh humilhou estas terras, diz o profeta, Iahweh as
cobrirá de glória. E o povo, que vivia em trevas e na tristeza, viverá na luz e na alegria.

Esta alegria enorme é causada pelo fim da opressão - o jugo, a canga e o bastão
do opressor foram quebrados -, pelo fim da guerra (a bota e a veste militares foram
queimadas) e pelo nascimento de um menino em Judá:

"Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado,


ele recebeu o poder sobre seus ombros, e lhe foi dado este nome:
Conselheiro-maravilhoso (peleh yô'ts),
Deus-forte ('el gibôr),
Pai-eterno ('abhî'adh)
Príncipe-da-paz (sar shâlôm)" (Is 9,5).

Este versículo marca o ápice do poema. Começa com "palavras curtas, não para
maior rapidez, mas para serem pronunciadas lentamente, enchendo, com seu pequeno
volume, uma medida rítmica maior - como o menino em sua pequenez. A sonoridade é
toda cheia de aliterações e sons suaves, para o saborear da pronúncia lenta: kî yeledh
yulladh lânû bên nitan lânû ["Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado"].
Contraste curioso: o verso menor é o mais importante do poema", observa L. A.
Schökel15.

Este menino é, sem dúvida, um personagem da casa real. Confirmam-no os


quatro títulos que lhe são atribuídos. Títulos muito discutidos, onde alguns vêem

15 . SCHÖKEL, L. A. Estudios de poética hebrea, p. 395.


78

características sobre-humanas e messiânicas. Mas que na realidade parecem caber


bem ao reis segundo a mentalidade da época: a sabedoria do rei na administração
aparece no título de Conselheiro, sua capacidade militar em Deus-forte, enquanto que o
zelo pela prosperidade do povo o caracteriza como Pai, expressando Príncipe-da-paz
sua preocupação com a felicidade do povo. Estes títulos ficam mais claros se traduzidos
assim: "Milagre de Conselheiro, Guerreiro divino, Chefe perpétuo, Príncipe da Paz"16.

O v. 6 esclarece ser o menino da "casa de Davi" e caracteriza as suas ações:


governará com direito (mishpât) e justiça (tsedâqâh).

Quem é o personagem de que fala o profeta?

A maioria dos especialistas acredita tratar-se de Ezequias, o filho de Acaz. Trata-


se, talvez, de seu nascimento, anunciado em 7,10-17. Ezequias nasceu no inverno de
733/32 a.C., portanto, logo após o início da guerra siro-efraimita que começara na
primavera17 .

Is 10,1-4 traz uma ameaça aos juízes injustos que abusam de seu cargo para
oprimir e saquear os desvalidos: os fracos: dallîm, os pobres: 'aniyyîm (cf. Am 2,7: "Eles
esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos [dallîm] e tornam torto o caminho dos
pobres ['anâwîm]"), as viúvas e os órfãos. Um dia encontrar-se-ão com uma instância
superior, juiz divino.

Ex 22,21, no "Código da Aliança", ordena: "Não afligireis a nenhuma viúva ou


órfão. Se o afligires e ele clamar a mim escutarei o seu clamor; minha ira se acenderá e
vos farei perecer pela espada: vossas mulheres ficarão viúvas e vossos filhos órfãos".

Em Is 11,1-9 o ponto de referência do profeta, assim como em 7,1-17 e 8,23b-


9,6, continua sendo um rei da época, descendente de Davi, como todos os reis de Judá,
que salvaria o país da catástrofe iminente.

O texto é organizado do seguinte modo:

v. 1: um personagem régio (referência a Jessé, pai de Davi)


1a: "um ramo sairá do tronco de Jessé"
1b: "um rebento brotará das suas raízes"

v. 2: as qualidades do personagem
terá o espírito de Iahweh (rûah Yhwh)
espírito de sabedoria (hokhmâh)
e de discernimento (bhînâh)
espírito de conselho ('êtsâh)
e de fortaleza (gebhûrâh)
espírito de conhecimento (da'ath)
e de temor de Iahweh (yir'ath Yhwh)

vv. 3b-5: a atuação do personagem

16 . SCHÖKEL, L. A. ; MATEOS, J. Nueva Bíblia Española. Madrid: Cristiandad, 1993.

17 . Assim LACK, R. La symbolique du livre d'Isaie, p. 49. Outros acreditam que o texto se refere
à entronização de Ezequias em 728/7 a.C. Assim ASURMENDI, J. M. Isaías 1-29, p. 70.
79

3b: "não julgará segundo a aparência"


"não dará sentença apenas por ouvir dizer"
4a: "julgará os fracos (dallîm) com justiça (tsedheq)
com equidade pronunciará sentença em favor dos pobres da terra
('anâwîm)"
4b: "ferirá a terra com o bastão de sua boca"
"matará o ímpio com o sopro de seus lábios"
5 : "a justiça (tsedheq) será o cinto dos seus lombos"
"a fidelidade ('emûnâh) o cinto dos seus rins".

vv. 6-8: instauração de uma nova realidade


(são elencados sete pares: sete animais selvagens
sete "animais" domésticos: seis animais e uma
criança)
1. lobo + cordeiro
2. leopardo + cabrito
3. bezerro + leãozinho + novilho gordo + menino pequeno
4. vaca + urso (e suas crias)
5. leão + boi
6. criança de peito + áspide
7. criança pequena + víbora

v. 9: conclusão
ninguém fará mal nem destruição em Jerusalém
porque haverá conhecimento de Iahweh (da'ath Yhwh) em Israel.

L. A. Schökel observa que o poema possui grande regularidade e transmite uma


paz impressionante, pois todos os verbos obedecem às normas estritas da gramática
hebraica, o sujeito é quase sempre a terceira pessoa do singular, o paralelismo dos
versos é regular e as imagens usadas não são espalhafatosas, mas exprimem
tranquilidade, num movimento lento e sossegado.

Os verbos que se referem aos animais, por exemplo, como morar, deitar, andar,
guiar, pastar, brincar, transpiram paz, transmitindo o sentido do tempo de prosperidade
e paz anunciado pelo profeta.

As imagens usadas no poema são simples, o que permite o reforço da ideia


apresentada (paz e prosperidade), sem necessidade de identificações alegóricas, do
tipo "leão significa isto, urso significa aquilo...". O mundo da natureza aparece no ramo,
no florescimento, no vento (rûah = espírito, sopro, vento), em rimas cruzadas lembrando
os quatro pontos cardeais, enquanto que os animais, reunindo os selvagens e os
domésticos em pares específicos e o menino que harmoniza tão bem com o quadro
simples e pastoril descrito, compõem o poema.

O personagem esperado, fiel a Iahweh, vai instaurar um reino de justiça, onde o


pobre e o oprimido serão protegidos contra a prepotência dos poderosos. Justiça e paz
que são simbolizadas, no poema, pela convivência harmoniosa de animais selvagens e
domésticos18.

18 . Cf. SCHÖKEL, L. A. Estudios de poética hebrea, p. 396-404.


80

A identificação deste personagem da família davídica é problemática. Alguns


acreditam que o poema trata da utopia profética de Isaías por ocasião da coroação de
Ezequias como rei em 716/15 a.C. 19. Outros defendem que se Ezequias fora o objeto da
esperança de Isaías de tirar o país da crise, como aparece em 7,1-17 e 8,23b-9,6,
agora, decepcionado com sua política pró-egípcia que acaba provocando a invasão do
assírio Senaquerib, pensa em alguém que no futuro possa resgatar Israel 20.

Is 28,1-4 deve ter sido proferido pouco antes da queda de Samaria (722 a.C.),
cidade à qual é endereçada. O profeta denuncia a orgulhosa capital do reino do norte,
cujos habitantes se embebedam e se coroam, como a cidade coroada por suas
muralhas (v. 1), mas que não percebe a aproximação de uma terrível tempestade, a
destruidora Assíria (v. 2). Samaria será engolida como um figo temporão e os
samaritanos esmagados como uma coroa calcada aos pés (vv. 3-4).

"Sim, a orgulhosa coroa dos bêbados de Efraim


será calcada aos pés,
bem como a flor murcha do seu magnífico esplendor
que está no cume do vale da fertilidade.
É como um figo temporão:
quem o vê, devora-o mal o tem na mão" (Is 28,3-4).

L. A. Schökel lembra o paralelismo destes versículos com o capítulo 10: "A


Assíria é um gigante sobre-humano, que muda as fronteiras com a força de sua mão e
derruba os príncipes, que toma os reinos com facilidade, como quem colhe ovos
abandonados em um ninho. Aqui, a Assíria (que não é mencionada) é como uma
tempestade, como um gigante que derruba muralhas e toma uma cidade facilmente,
como quem colhe um figo temporão"21.

5.3. Na época de Ezequias: 716/15-699/8 a.C.

Após tomar posse como rei, com a morte de seu pai Acaz, Ezequias manteve-se
fora das rebeliões anti-assírias, insufladas pelo Egito, que explodiam a todo momento na
região. E aproveitou a situação de pouca vigilância assíria para fazer uma reforma em
Judá.

Um dos alvos da reforma teria sido a ruptura com práticas cultuais não-javistas
dos agricultores. Entre outras coisas, teria abolido os lugares altos (bâmôt), quebrado as
estelas (matsêbôt), cortado o poste sagrado („asherâh). Até mesmo do Templo de
Jerusalém Ezequias teria retirado símbolos dos cultos da fertilidade, como uma serpente
de bronze. É o que nos conta 2Rs 18,4, embora aqui a OHDtr tente apresentar uma
justificativa para a presença desta serpente de bronze no Templo (“que Moisés havia
feito, pois os israelitas até então ofereciam-lhe incenso” – cf. Nm 21,8-9).

19 . Assim ASURMENDI, J. Isaías 1-39, p. 74-77. Asurmendi é partidário da tese de que não há
textos messiânicos no livro do proto-Isaías, pois "o messianismo supõe a falência da instituição régia e uma
intervenção divina que a ultrapassa. Seria de estranhar que um homem tão ligado à instituição, para quem a
ideologia régia é tão central, tenha pensado numa mudança tão radical" (p. 76).

20 . Cf. esta posição em SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 169-172.

21 . SCHÖKEL, L. A. Estudios de poética hebrea, p. 494.


81

Entretanto, há autores, como Finkelstein/Silberman e Liverani, que apresentam


uma perspectiva um pouco diferente: a "reforma" de Ezequias não teria sido a
restauração de uma estrutura desmantelada ao longo do tempo, mas uma inovação. A
idolatria dos judaítas não foi um abandono de seu anterior monoteísmo, pois esta era a
forma como a população de Judá tinha praticado seu culto por centenas de anos. A
reforma sinaliza na direção da transformação de Iahweh de Deus nacional, convivendo
com os deuses regionais, em Deus exclusivo.

A destruição de Samaria levou refugiados de Israel para Jerusalém, pois novas


estruturas foram construídas, como bairros novos, ampliação de muralhas e o túnel que
levava as águas da fonte Gihon para o reservatório de Siloé. Sobre este último feito
testemunham 2Rs 20,20 e a Inscrição de Siloé, que celebra o encontro das duas turmas
de escavadores.

O fato é que Jerusalém superou seu antigo isolamento e, ancorada na política


assíria, cresceu de 5 para 60 hectares e de cerca de 1000 para algo em torno de 15 mil
habitantes. E em Judá, no final do século VIII a.C., podem ser contados cerca de 300
assentamentos e uma população de uns 120 mil habitantes. A fortaleza de Lakish, na
Shefelá, se desenvolveu extraordinariamente. Outros fortalezas foram construídas na
mesma região. Surge portanto, só agora, uma elite judaíta e se formam as estruturas de
um verdadeiro Estado.

Enquanto isso, na Assíria, Senaquerib subiu ao trono em 705 a.C. e


imediatamente teve que enfrentar nova revolta na Babilônia. Todas as províncias do
oeste então se levantaram. Acreditavam ter chegado o momento da libertação. O Egito
prometeu ajuda, mais uma vez. A coalizão integrava Tiro, com outras cidades fenícias;
Ascalon e Ekron, com algumas cidades filisteias; Moab, Edom e Amon; e Ezequias, de
Judá, entrou como um dos líderes da revolta. Fortificou suas defesas e preparou-se
cuidadosamente para esperar a Assíria. Senaquerib não se fez de rogado e já em 701
a.C. ele começou por Tiro, vencendo-a. Logo os reis de Biblos, Arvad, Ashdod, Moab,
Edom e Amon se entregaram e pagaram tributo a Senaquerib. Somente Ascalon e
Ekron, juntamente com Judá, resistiram. Senaquerib tomou primeiro Ascalon. Os
egípcios tentaram socorrer Ekron e foram derrotados. E foi a vez de Judá. Senaquerib
tomou 46 cidades fortificadas em Judá e cercou Jerusalém.

Testemunhos arqueológicos da devastação foram encontrados em várias


escavações por todo o território. Especialmente significativos são a representação
assíria da tomada de Lakish encontrada no palácio de Senaquerib em Nínive - hoje está
no British Museum - e a escavação, feita pelos britânicos na década de 30 e por David
Ussishkin, da Universidade de Tel Aviv, na década de 70 do século XX, da poderosa
fortaleza, esta que era a segunda mais importante cidade do reino e protegia a entrada
de Judá.

Entretanto, por motivos ainda hoje desconhecidos, talvez uma peste, Senaquerib
levantou o cerco de Jerusalém e retornou à Assíria. A cidade voltou a respirar, no último
minuto, mas teve que pagar forte tributo aos assírios. Não se sabe porque Jerusalém se
salvou. 2Rs 19,35-37 diz que o Anjo de Iahweh atacou o acampamento assírio. Existe
uma notícia de Heródoto, História II,141, segundo a qual num confronto com os egípcios
os exércitos de Senaquerib foram atacados por ratos (peste bubônica?). Talvez
Senaquerib tenha partido por causa de alguma rebelião na Mesopotâmia. Ou ainda: há
autores que pensam que Jerusalém nem precisou ser sitiada para ser vencida. Nos
Anais de Senaquerib se diz o seguinte:
82

"Quanto a Ezequias do país de Judá, que não se tinha submetido ao meu


jugo, sitiei e conquistei 46 cidades que lhe pertenciam (...) Quanto a ele,
encerrei-o em Jerusalém, sua cidade real, como um pássaro na gaiola...".

Outra questão é se teria havido uma segunda campanha de Senaquerib na


Palestina. De qualquer maneira, segundo os Anais de Senaquerib, o tributo pago por
Ezequias ao rei assírio foi significativo:
"Quanto a ele, Ezequias, meu esplendor terrível de soberano o confundiu e
ele enviou atrás de mim, em Nínive, minha cidade senhorial, os irregulares e
os soldados de elite que ele tinha como tropa auxiliar, com 30 talentos de
ouro, 800 talentos de prata, antimônio escolhido, grandes blocos de
cornalina, leitos de marfim, poltronas de marfim, peles de elefante, marfim,
ébano, buxo, toda sorte de coisas, um pesado tesouro, e suas filhas,
mulheres de seu palácio, cantores, cantoras; e despachou um mensageiro
seu a cavalo para entregar o tributo e fazer ato de submissão" 22.

Informação que concorda, em termos gerais, com a de 2Rs 18,13-16:

"No décimo quarto ano do rei Ezequias, Senaquerib, rei da Assíria, subiu
contra todas as cidades fortificadas de Judá e apoderou-se delas. Então
Ezequias, rei de Judá, mandou esta mensagem ao rei da Assíria, em Laquis:
'Cometi um erro! Retira-te de mim e aceitarei as condições que me
impuseres'. O rei da Assíria exigiu de Ezequias, rei de Judá, trezentos
talentos de prata e trinta talentos de ouro, e Ezequias entregou toda a prata
que se achava no Templo de Iahweh e nos tesouros do palácio real. Então
Ezequias mandou retirar o revestimento dos batentes e dos umbrais das
portas do santuário de Iahweh, que... rei de Judá, havia revestido de metal, e
o entregou ao rei da Assíria".

Manassés, filho e sucessor de Ezequias, para o Deuteronomista, é o oposto do


pai: governou 55 anos como o pior rei de Judá, especialmente por ter restaurado os
cultos não-javistas. Por que teria Manassés feito isto? Acreditam Finkelstein e Silberman
que a reorganização do território de Judá, agora sob a sombra da Assíria, implicou em
alianças com lideranças clânicas que exigiram a volta aos cultos dos deuses da terra.
Não foi a "maldade" de Manassés que implodiu o javismo, mas as suas necessidades
econômicas é que trouxeram de volta o pluralismo cultual.

Colaborando com a Assíria e deslocando a população judaíta para outras


regiões, depois de perder a fértil Shefelá, Manassés, como a arqueologia pode
comprovar, desenvolveu significativa produção e exportação de óleo de oliva e explorou
as rotas de comércio por onde passavam as caravanas que iam e vinham entre a Assíria
e a Arábia. Importante, neste sentido, foram as escavações das instalações para a
fabricação do óleo de oliva em Tel Miqne (= Ekron) - as maiores existentes em todo o

22 . BRIEND, J. (org.) Israel e Judá: Textos do Antigo Oriente Médio, p. 76. Sobre a reforma de
Ezequias, a invasão de Senaquerib e o governo de Manassés, cf. FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. A
Bíblia não tinha razão, p. 318-364; LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel, p. 195-
209; DA SILVA, A. J. O Contexto da Obra Histórica Deuteronomista. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 88,
p. 11-27, 2005.
83

Oriente Médio naquela época - e dos ossos de camelos adultos em Tell Jemmeh, uma
localidade vizinha a Gaza.

Is 1,4-9 apresenta a situação de Judá após a derrota sofrida em 701 a.C. Mas o
profeta mostra que isto aconteceu porque todo o país estava tomado pela corrupção. O
v. 4 apresenta, por exemplo, quatro denominações para Judá em ordem crescente de
intimidade com Iahweh, enquanto os qualificativos mostram uma ordem crescente de
mal, incompatível com a condição de filhos conferida pouco antes. As consequências da
corrupção são apresentadas nos vv. 5-9, sob a imagem de um escravo flagelado por
seu senhor.

O movimento da corrupção é do interior para o exterior: primeiro, ela atinge a


cabeça e o coração (v. 5),em seguida atinge a superfície do corpo, provocando feridas,
furúnculos e tumores (v. 6), para, depois do corpo, alcançar o ambiente humano, o país,
as cidades e o solo, diz o v. 7.

O movimento de exteriorização da corrupção completa-se no v. 8 com a


personificação de Jerusalém, vista como "a filha de Sião". Três imagens de refúgio são
apresentadas: a choça na vinha, o telheiro no pepinal, a cidade sitiada:

"A filha de Sião foi deixada só,


como choça em vinha,
como telheiro em pepinal,
como cidade sitiada" (Is 1,8).

Em Is 18,1-7 o profeta de Jerusalém denuncia, provavelmente, uma embaixada


enviada pelos etíopes, então senhores do Egito, para propor uma coalizão anti-assíria.
Isaías afirma que os destinos do mundo são decididos por Iahweh e não pelo Egito, em
quem não se deve confiar:

"Ai da terra dos grilos alados,


situada além dos rios de Cuch!
Que envia mensageiros pelo mar
em barcos de papiro, sobre as águas" (Is 18,2a).

Neste mesmo contexto podemos ler Is 19,1-15, onde o profeta, contrário a


qualquer aliança com o Egito para acabar com a ameaça assíria, denuncia a fraqueza
do país do Nilo neste momento: guerra civil, um cruel tirano, falência da economia
baseada no Nilo, fracasso da tradicional sabedoria egípcia... Estes são os argumentos
de nosso profeta para evitar que Ezequias caia na tentação egípcia. E ele conclui de
forma proverbial:

"Nenhum empreendimento conseguirá realizar o Egito,


seja obra da cabeça ou da cauda, da palma ou do junco" (Is 19,15).

Is 22,1-14 protesta contra a alegre comemoração feita em Jerusalém após a


retirada dos exércitos de Senaquerib em 701 a.C. A alegria está fora de lugar, segundo
Isaías, porque o perigo assírio permanece. Iahweh convoca a cidade à penitência e não
aos banquetes, porque ela foi derrotada vergonhosamente e não há motivo para festa.
84

"Que tens tu, afinal, que todos os teus habitantes sobem aos telhados
cheios de júbilo, cidade ruidosa, cidade vibrante?
Os teus trespassados não foram trespassados à espada,
nem foram mortos na guerra.
Os teus comandantes fugiram todos juntos,
sem arcos, foram capturados,
todos juntos foram capturados;
eles tinham fugido para longe.
Diante disso, eu disse:
'Desviai de mim os vossos olhos, que eu choro amargamente;
não insistais em consolar-me
da ruína sofrida pela filha do meu povo'" (Is 22,1b-4).

Is 28,1-33,24 forma uma coleção de oráculos que tratam, com poucas


exceções, da política de Ezequias entre 705 e 701 a.C. Ezequias conduz a nação a
alianças militares com o Egito na esperança de se livrar do jugo da Assíria governada
por Senaquerib. Isaías, como na época da guerra siro-efraimita, denuncia o caráter
ilusório destas alianças e garante que só Iahweh pode defender o país e fazer justiça ao
seu povo.

Este bloco representa o trabalho de um redator pós-exílico que elaborou um


esquema orgânico, onde se alternam oráculos de ameaças e promessas. A linha central
de pensamento é a seguinte 23:
 os homens pretendem realizar seus planos sem contar com Iahweh:
28,1-4;32,9-14 : levam vida boa sem perceberem a desgraça iminente
30,1-7;31,1-6 : fazem aliança com o Egito
28,14-15.18-19 : chegam até mesmo a pactuar-se com os poderes ocultos
da morte
 Iahweh quer guiá-los através da palavra profética, entretanto:
28,7-13;30,8-17 : a palavra profética é rejeitada
28,18-22;29,1-12 : Iahweh, então, castiga-os duramente
29,14;30,16-17 : Iahweh provoca a falência de seus planos
30,18-33;31,4-9;32,1-5: mas Iahweh vencerá o inimigo, julgará o povo e criará
um novo reino

Is 28,7-13 é um oráculo que deve ser datado às vésperas da campanha de


Senaquerib contra Judá em 701 a.C. Isaías narra uma cena de embriaguez, com uma
descrição brilhante da confusão dos sacerdotes e profetas frente à situação. No início
da cena, no v. 8a, o realismo do poema alcança o seu ápice através dos três alef (letra
hebraica que tem som gutural e é transliterada por um ') imitando o som do vômito dos
bêbados:

"Com efeito, todas as suas mesas


estão cheia de vômito e de imundície (mal e'û qî' tso'âh)".

23 . Cf. SCHÖKEL, L. A ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 222-224.


85

Em seguida, há um diálogo entre Isaías e os bêbados, no qual estes


ridicularizam o profeta, imitando uma fala infantil sem sentido. Eles, que não querem
ouvir o profeta, dizem:

"A quem ensinará ele o conhecimento?


A quem fará ele entender o que foi dito?
A crianças apenas desmamadas, apenas tiradas do seio,
quando diz: tsaw lâtsâw tsaw lâtsâw
qaw lâqâw qaw lâqâw
e e
z 'êr shâm z 'êr shâm" (Is 28,9-10).

O profeta responde à provocação de maneira irônica e cruel, ameaçando-os com


outro balbucio, só que em uma língua estranha, a dos assírios. A resposta do profeta
soaria mais ou menos assim: "Está certo, é assim mesmo que Iahweh falará a vocês,
mas através da Assíria que vem aí...".

Em Is 28,14-15.18-19 o profeta denuncia as alianças com o Egito para o


enfrentamento com a Assíria como uma aliança com a morte: as imagens conduzem-
nos a um mundo tenebroso de sheol e morte, apresentados aqui como poderes
personificados:

"A vossa aliança com a morte será rompida,


o vosso pacto com o sheol não subsistirá.
Quanto ao flagelo destruidor, ao passar,
ele vos calcará aos pés" (Is 28,18).

Is 29,1-8 é um poema muito bom, com grande dinâmica. Iahweh declara-se, na


primeira pessoa (vv. 1-4), sitiador da cidade de Ariel, que é Jerusalém. Talvez o termo
Ariel venha de har'el ou 'ari'eyl, nome "dado por Ezequiel à parte superior do altar, o
forno, onde se queimavam as vítimas: isto exprimiria o caráter sagrado da cidade" 24.
Este oráculo deve estar relacionado com o cerco de 701 a.C. Pois quando é crítica a
situação da cidade, Iahweh manifesta-se, desbaratando o inimigo que desaparece como
um pesadelo (vv.5-8).

Em Is 30,1-5 o profeta ameaça aqueles que confiam nas alianças com o Egito e
abandonam Iahweh, cometendo idolatria política25. Isaías demonstra que assim Judá
fracassará. O contexto histórico continua sendo a crescente ameaça de Senaquerib a
partir de 705 a.C. e as negociações de Judá para formar uma coalizão anti-assíria.

"Com efeito, os seus príncipes estiveram em Soã [= Tânis, no Egito],


os seus embaixadores chegaram até Hanes [= Anúsis, Heracleópolis Magna,
no Egito].
Todos se desmoralizam por causa de um povo [= os egípcios]
que não os pode socorrer,
que não pode trazer-lhes ajuda nem proveito,
mas antes, vergonha e opróbrio" (Is 30,4-5).

24 . BÍBLIA DE JERUSALÉM, Is 29, nota d.

25 . Cf. SICRE, J. L. Los dioses olvidados, p. 55-59.


86

Is 30,6-7 é igualmente um poema contra o envio de uma embaixada de Ezequias


ao Egito através do Negueb. O deserto, povoado por leões e serpentes "terra de penúria
e aflição", é descrito com extremo realismo. Os judeus levam ao governo egípcio
presentes sobre jumentos e camelos, levam presentes "a um povo que não lhes pode
valer", pois "o auxílio do Egito é inútil e vão".

Is 30,11-17 é chamado por muitos de "testamento de Isaías" por causa da ordem


dada por Iahweh ao profeta no v. 8:

"Vai agora e escreve-o em uma tabuinha,


grava-o em um livro
que se conserve para dias futuros,
para todo o sempre".

Na verdade, o profeta vai escrever suas denúncias, repetidas mas não ouvidas
por seus contemporâneos. Só o futuro lhe dará razão (vv. 8-11). Entretanto, Isaías
alerta: este comportamento cego da nação vai levá-la à destruição, como uma muralha
rachada que desmorona de repente ou um vaso de barro despedaçado com violência
(vv. 12-14). A confiança de Judá está em seus inúteis exércitos e isto a destruirá, pois
só a confiança em Iahweh garantiria sua sobrevivência na crise que se aproxima (vv. 15-
17).

Is 31,1-3 retoma o tema da aliança com o Egito, denunciando-a como ilusória:


seus numerosos carros de guerra e sua cavalaria poderosa não podem ajudar: Judá
traiu Iahweh e não tem saída.

"Pois o egípcio é homem e não deus,


seus cavalos são carne e não espírito.
Quando Iahweh estender a mão,
Aquele que socorre tropeçará e o socorrido cairá,
e perecerão ambos juntos" (Is 31,3).

Embora pareça não ter mais nenhuma perspectiva, o profeta ainda sonha: Is
31,4-9 descreve a proteção de Iahweh para Jerusalém como um leão que defende sua
presa dos pastores, como aves que voam e vigiam: "Então a Assíria cairá à espada,
mas não de homem; por uma espada, mas não de mortal, ela será devorada" (v. 8a).

5.4. As releituras de Isaías

Muitos dos oráculos de Is 1-39 são bem posteriores à época do profeta. São
acréscimos, adaptações a contextos novos, releituras das profecias do grande Isaías do
século VIII a.C.
87

Os capítulos 13-23, por exemplo, são só parcialmente de Isaías, pois muitos


de seus oráculos refletem uma situação de exílio ou pós-exílio26.

Is 13,1-22 é um lamento fúnebre (qiná) contra a Babilônia, do final do exílio.


Segundo o texto, Babilônia será destruída pelos medos. Os exércitos são terríveis, a
catástrofe é imensa, a crueldade não tem limites:

"Todo aquele que for encontrado será trespassado,


todo aquele que for pego cairá à espada.
Tuas crianças serão despedaçadas sob seus olhos,
suas casas serão saqueadas e suas mulheres violentadas (...)
Os arcos prostrarão os meninos;
eles não terão pena das criancinhas,
seus olhos não pouparão os filhinhos.
Assim Babilônia, a pérola dentre os reinos,
o adorno e o orgulho dos caldeus,
será como Sodoma e como Gomorra
que foram reduzidas a ruína por Deus" (Is 13,15-16.18-19).

Is 14,3-23 é uma sátira (mashal) extremamente bem construída sobre a morte


do rei da Babilônia, provavelmente Nabucodonosor.

Na sátira começam falando os israelitas libertados do jugo opressor, da


arrogância e da impiedade "daquele que feria os povos com furor", que perseguia as
nações sem que ninguém o pudesse deter. Com a sua queda, "o mundo inteiro repousa,
está tranquilo", todos estão muito alegres (vv. 5-9).

No sheol falam os mortos, excepcionalmente despertos, dirigindo-se ao poderoso


rei babilônico com extrema ironia:

"Então, também tu foste abatido como nós,


acabaste igual a nós.
O teu fausto foi precipitado no sheol,
juntamente com a música de tuas harpas" (vv. 10-11a).

A condição do rei morto não é nada privilegiada, como era em vida, segundo a
observação dos habitantes do sheol, pois "sob o teu corpo os vermes formam como um
colchão, os bichos te cobrem como um cobertor" (v. 11b). Logo este rei, ironiza o
poema, que dizia ser superior a todos, que colocaria o seu trono acima das estrelas, que
tornar-se-ia semelhante ao Altíssimo. Hoje quem te vê diz: "Porventura é este o homem
que fazia temer a terra, que abalava reinos? Que reduziu o mundo a um deserto,
arrasou-lhe as cidades e nunca permitiu que os seus prisioneiros voltassem para a sua
pátria?" (vv. 16b-17). E o pior: o rei não terá nem sepultura nem sucessores, conclui o
poema, para que nunca mais se nomeie "esta raça de malvados".

26 . "O texto atual de Isaías 1-39, seja como unidade fechada ou como parte de 1-66, deve ser lido
na perspectiva pós-exílica (...) É a chave situacional para ler todo o 'livro' de Isaías. Esta 'posição' do leitor é
fundamental para compreender este texto como uma obra e não como um aglomerado de oráculos", reitera
CROATTO, J. S. Isaías. Vol I: 1-39, p. 14.
88

Is 19, 16-25 é um trecho em prosa sobre a conversão do Egito. Certamente


posterior ao exílio, pois supõe uma instalação judaica no Egito e prega uma
reconciliação entre Assíria, Egito e Israel.

Is 21,1-10 é um oráculo pós-exílico sobre a queda da Babilônia por obra dos


medos e persas, em 538 a.C. Um vigia, o próprio profeta, anuncia a chegada de
"homens em caravanas e cavaleiros aos pares" para concluir: "Caiu, caiu Babilônia! E
todas as imagens dos seus deuses ele [Iahweh] as despedaçou no chão!"

Is 24,1-27,13 contém capítulos apocalípticos ou proto-apocalípticos,


anunciando já a literatura que aparecerá em Daniel e no livro etiópico de Henoc, entre
outros27 . Estes capítulos tratam da luta de Iahweh contra os inimigos e da vitória final
do povo de Israel. Aqui se fala muito da "terra" e da "cidade". É a realidade do império
persa, onde a "terra" indica seu extenso domínio e a "cidade" sua poderosa capital. Só
que ambos são ampliados e tomados como símbolos da opressão imperialista, para
qualquer época. A data mais provável destes oráculos deve se situar entre 500 e 400
a.C.

Is 34,1-35,10 mostra como Iahweh combate as nações estrangeiras,


destruindo totalmente seus territórios, e como o povo eleito recebe as bênçãos divinas.
Do mesmo gênero de Is 24,1-27,13, também estes oráculos podem ser datados por
volta do século V a.C.

Is 36,1-39,8 são capítulos copiados dos livros dos Reis para completar as
tradições, reunidas pelos redatores, sobre Isaías. A data da redação final é pós-exílica.
Compõem-se os capítulos de três episódios principais: a invasão de Senaquerib e sua
embaixada (36-37), a doença e a cura de Ezequias (38) e a embaixada do rei Merodac-
Baladã, da Babilônia (39).

5.5. Um dia não existirá mais opressão

Para a compreensão da mensagem de Isaías é preciso salientar seus dois


grandes temas: a questão social, especialmente durante seus primeiros anos de
atividade; e a questão política, forte a partir do governo de Acaz e dos acontecimentos
que cercaram a guerra siro-efraimita28 .

Na questão social notamos profunda semelhança entre Isaías e Amós. Talvez


os oráculos do pastor de Técua já fossem conhecidos em Jerusalém na época de
Isaías. Afinal, são quase contemporâneos: Amós é de 760 a.C. e Isaías de 740 a.C. A
problemática social era a mesma para ambos, embora Amós fosse um camponês e
Isaías um homem culto ligado à corte.

Isaías ataca os grupos dominantes da sociedade: autoridades, magistrados,


latifundiários, políticos. É duro e irônico com as damas da classe alta de Jerusalém,
como em Is 3,16-24.

27 . Cf. KAISER, O. Isaiah 13-39. 2. ed. London: SCM Press, 1980, p. 173-179; CROATTO, J. S.
o. c., p. 147-149.

28 . Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 109-111.


89

"Disse Iahweh:
Visto que as filhas de Sião estão emproadas
e andam de pescoço erguido e com olhos cobiçosos,
visto que caminham a passos miúdos, fazendo tilintar as argolas dos
[pés,
o Senhor cobrirá de tinha a cabeça das filhas de Sião,
Iahweh lhes desnudará a fronte" (Is 3,16-17).

Defende, com paixão, órfãos, viúvas, oprimidos, o povo explorado e


desgovernado pelos governantes. Denuncia igualmente a máscara da religião que
encobre a injustiça.

Por outro lado, sua posição política depende das tradições sobre a eleição
divina de Jerusalém e da dinastia davídica. Iahweh está comprometido com a cidade e
com a descendência de Davi. É preciso que o povo confie em Iahweh e mantenha a
calma mesmo nos piores momentos. Nada de recorrer, portanto, a auxílios estrangeiros,
quer venham do Egito, quer venham da Assíria. O contrário da fé é o temor, é o medo
que se manifesta quando Judá busca segurança no poder das armas e das alianças
políticas.

O que pretendia Isaías com a sua pregação?

Isaías quer que o homem de sua época restabeleça o equilíbrio perdido na sua
relação com Iahweh. O homem de seu tempo se colocara no cume de um panteão
terreno, dominando e decidindo tudo segundo mesquinhos interesses, sem exigências
éticas de justiça e de solidariedade. Como diz Is 2,12-17:

"Porque haverá um dia de Iahweh dos Exércitos


contra tudo o que é orgulhoso e altivo,
contra tudo o que se exalta, para que seja humilhado;
contra todos os cedros do Líbano, altaneiros e elevados,
e contra todos os carvalhos de Basã;
contra todos os montes altaneiros
e contra todos os outeiros elevados;
contra toda a torre alta
e contra toda a muralha fortificada
contra todos os navios de Társis
e contra tudo o que parece precioso.
O orgulho do homem será humilhado,
a altivez dos varões se abaterá,
e só Iahweh será exaltado naquele dia".

Isaías percebe Iahweh como soberano, glorioso, santo. E o homem, em geral,


na sua condição humana e, concretamente, o seu povo, os seus contemporâneos, como
impuros e fracos, como aparece no texto de sua vocação no capítulo 6.

Se Israel não aceitar Iahweh como decisivo, então Iahweh o fará à força: virá o
"dia de Iahweh" e a arrogância humana será despedaçada.

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