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Villa-Lobos: Bachianas Brasileiras nº5

Cândido Portinari: Chorinho

A ária das Bachianas Brasileiras nº5 do brasileiro Heitor Villa-Lobos


(1887-1959) talvez seja sua composição mais famosa – apesar de que, aqui no
Brasil, ela dispute a fama par a par com o Trenzinho do Caipira. Mas, enfim,
atendendo a um pedido recorrente de muitos leitores do blog, vamos então
falar um pouco de música clássica brasileira. Não sem antes fazer uma ponte
com a música clássica européia!

À moda de Bach

Uma das técnicas de composição preferidas do mestre alemão Johann Sebastian


Bach (1685-1750) era tomar melodias de corais luteranos e usá-las como base
ou complemento em obras próprias. Por exemplo, com a melodia do coral
luterano Werde munter, mein Gemüte de Johann Schop (1590-1667)…

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/06/bwv359.mp3|titles=Sc
hop: Werde munter, mein Gemüte (harmonização de Bach BWV.359 – trecho) (Nicol
Matt – Nordic Chamber Choir)]

… ele criou o final de sua cantata Herz und Mund und Tat und Leben BWV.147,
um movimento que hoje é popularmente conhecido por “Jesus Alegria dos
Homens”; ouça:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/06/bwv147-10.mp3|titles
=Bach: Cantata Herz und Mund und Tat und Leben BWV.147 – 10. Choral: Jesu
bleibet meine Freude (trecho) (Pieter Jan Leusink – Holland Boys Choir –
Netherlands Bach Collegium)]
Villa-Lobos tinha uma imensa paixão por Bach, e empregou muitas de suas
técnicas. Em 1925, por exemplo, ele pegou a canção Rasga o Coração (Iara) de
Anacleto de Medeiros e letra de Catulo da Paixão Cearense (que no áudio
abaixo você ouve na voz de Paulo Tapajós)…

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/06/rasga-o-coracao-tapa
jos.mp3|titles=Anacleto de Medeiros e Catulo da Paixão Cearense: Rasga o
Coração (Paulo Tapajós)]

… e inseriu no Chôros nº 10, obra que herdou o mesmo nome da canção. Ouça um
trecho:

Se tu queres ver a imensidão do céu e mar,


Refletindo a prismatização da luz solar,
Rasga o coração, vem te debruçar,
Sobre a vastidão do meu penar!
(…)

(Aguardem, eu ainda hei de dedicar um post a esta magnífica obra!)

As Bachianas Brasileiras

A partir de 1930, Villa-Lobos assumiu de vez o empréstimo das técnicas de


composição de Bach e iniciou um ciclo de composições que ele chamou de
Bachianas Brasileiras. No período entre 1930 e 1945 nove Bachianas foram
escritas, misturando o estilo neoclássico europeu com o nacionalismo
brasileiro.

Todas as Bachianas têm de dois a quatro movimentos, e a grande maioria dos


movimentos possui dois títulos: um que remete a algo do universo “bachiano”
como por exemplo Prelúdio, Fuga, Toccata, e outro título evocando algo
“brasileiro”. Mas essa mistura de Bach e Brasil vai bem mais além do que
apenas o título. Vamos ver um exemplo?

Bachianas Brasileiras nº 5

As Bachianas foram escritas para diferentes combinações instrumentais;


algumas são para orquestras completas, outras para orquestras de câmara, e
outras para formações mais camerísticas. A Bachianas Brasileiras nº 5, que se
encaixa nesta última categoria, foi escrita para uma soprano e um conjunto de
oito violoncelos. A obra tem apenas dois movimentos: a famosa Aria
(Cantilena) que foi escrita em 1938, e o segundo movimento, Dança (Martelo),
escrito em 1945.

1. Aria (Cantilena)

O primeiro movimento abre com uma bela melodia cantada somente sobre um “Ah”,
repetida depois pelo primeiro violoncelo:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/06/BB5-1A1.mp3|titles=V
illa-Lobos: Bachianas Brasileiras nº5 – 1. Aria (Cantilena) – seção A (Donna
Brown – Antonio Meneses – Roberto Minczuk)]

Tanto o título “Aria” quanto a melodia nos fazem lembrar de uma outra ária de
Bach, a ária da Suíte nº3 em Ré Maior BWV.1068 que muitos conhecem por “Ária
na corda Sol” ou “Ária na quarta corda” devido a um arranjo de um violinista
do século XIX. Sabem de que música eu estou falando? Essa aqui:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/06/bwv1068-2.mp3|titles
=Bach: Suíte nº3 BWV.1068 – 2. Aria (trecho) (Robert Haydon Clark – Consort
of London)]

Muito bem, conseguimos identificar a parte bachiana; mas e a parte


brasileira, onde está? Está ali, atrás da melodia; se pudéssemos isolar só o
acompanhamento dos violoncelos em pizzicato, ouviríamos isto:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/06/aria.mp3|titles=Vill
a-Lobos: Bachianas Brasileiras nº5 – 1. Aria (Cantilena) – acompanhamento da
melodia]

Os seis violoncelos que fazem o acompanhamento funcionam como um grande


violão acompanhando a cantiga, ou cantilena, da soprano. Mais: eles parecem
tocar um choro ou chorinho, outra paixão de Villa-Lobos. Não acredita?
Compare então o áudio anterior com o próximo, o Carinhoso de Pixinguinha, e
preste atenção no acompanhamento do violão:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/06/carinhoso.mp3|titles
=Pixinguinha: Carinhoso (trecho)]

A parte central da Aria (Cantilena) é cantada à maneira de um recitativo –


olha outra referência a Bach aí, gente! Os versos em português (a língua do
Brasil!-sil-sil-sil) são de Ruth Valadares Corrêa, ouça:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/06/BB5-1B.mp3|titles=Vi
lla-Lobos: Bachianas Brasileiras nº5 – 1. Aria (Cantilena) – seção B (Brown –
Meneses – Minczuk)]

Tarde, uma nuvem rósea lenta e transparente,


Sobre o espaço sonhadora e bela!
Surge no infinito a lua docemente,
Enfeitando a tarde, qual meiga donzela
Que se apresta e a linda sonhadoramente,
Em anseios d’alma para ficar bela,
Grita ao céu e a terra, toda a Natureza!
Cala a passarada aos seus tristes queixumes,
E reflete o mar toda a sua riqueza…
Suave a luz da lua desperta agora
A cruel saudade que ri e chora!
Tarde uma nuvem rósea lenta e transparente,
Sobre o espaço sonhadora e bela!

E por fim, a melodia inicial é reprisada, porém com a soprano cantando em


bocca chiusa (como um “mmmm”):

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/06/BB5-1A2.mp3|titles=V
illa-Lobos: Bachianas Brasileiras nº5 – 1. Aria (Cantilena) – reprise seção A
(Brown – Meneses – Minczuk)]

Hum… acho que não é bem


isso…

2. Dança (Martelo)

Muitas vezes encontramos este movimento grafado como Dansa, com s e não ç, e
por isso vale a pena lembrar que esta era a grafia correta da palavra até a
Reforma Ortográfica de 1943. Problema maior é quando encontramos pela
internet afora o título “Dança do Martelo”, o que descaracteriza muito a
intenção do Villa-Lobos. “Dança” deve lembrar as danças das suítes de Bach –
não seriam as Bachianas Brasileiras uma espécie de suíte de danças? – e
“Martelo” é o título que deve lembrar o Brasil. Mas não, não estamos falando
aqui do instrumento de trabalho do carpinteiro, e nem do instrumento musical
criado e utilizado por Gustav Mahler em sua Sexta Sinfonia. Martelo é um
estilo de poema com versos de 10 sílabas; ele ganhou este nome do seu
criador, o francês Jaime Pedro Martelo (1665-1727). Aqui no Brasil, o Martelo
foi adotado pelos cordelistas nordestinos na Literatura de Cordel, sofrendo
várias modificações com o decorrer dos anos. No vídeo abaixo é possível
conferir uma das suas variantes, o Martelo agalopado, criado pelo paraibano
Silvino Pirauá de Lima (1848-1923):

http://www.youtube.com/watch?v=PlRIFnEQ28Q&t=24s

Villa-Lobos quis imitar esse estilo de recitação de versos, e o português


acelerado dos cordelistas deu lugar ao la-la-la-la-li-la-li-li-li-li-li-li-
la-li-la que ouvimos tanto nos violoncelos quanto na voz da soprano na
primeira parte da Dança (Martelo):

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/06/BB5-2A1.mp3|titles=V
illa-Lobos: Bachianas Brasileiras nº5 – 2. Dança (Martelo) – seção A (Donna
Brown – Antonio Meneses – Roberto Minczuk)]

Irerê, meu passarinho do sertão do Cariri,


Irerê, meu companheiro,
Cadê viola? Cadê meu bem? Cadê Maria?
Ai triste sorte a do violeiro cantadô!
Ah! Sem a viola em que cantava o seu amô,
Ah! Seu assobio é tua flauta de irerê:
Que tua flauta do sertão quando assobia,
Ah! A gente sofre sem querê!
Ah! Teu canto chega lá no fundo do sertão,
Ah! Como uma brisa amolecendo o coração,
Ah! Ah!
Irerê, solta teu canto!
Canta mais! Canta mais!
Prá alembrá o Cariri!

Repare que quando a soprano fala em “flauta


do sertão”, um dos violoncelos toca várias
notas em harmônico, de som flautado. E
“sertão do Cariri”, para os que desconhecem,
é uma região do sertão nordestino.

Naturalmente alguém há de perguntar: então esses versos estão escritos no


estilo Martelo? Não, infelizmente não: primeiro Villa-Lobos escreveu a música
imitando o som dos cordelistas, e só depois ele pediu ao amigo Manuel
Bandeira para ele escrever alguns versos que se encaixassem na música. Certa
vez o poeta desabafou:

“Esta tarefa de escrever texto para melodia já composta, coisa que


fiz duas vezes para [Jaime] Ovalle e muitas vezes para Villa-Lobos,
é de amargar. Pode suceder que depois de pronto o trabalho o
compositor ensaia a música e diz: ‘ah, você tem que mudar esta rima
em i, porque a nota é agudíssima e fica muito difícil emiti-la
nessa vogal'”.

A seção central da Dança (Martelo) é um pouco menos movimentada que a seção


inicial, confira:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/06/BB5-2B.mp3|titles=Vi
lla-Lobos: Bachianas Brasileiras nº5 – 2. Dança (Martelo) – seção B (Brown –
Meneses – Minczuk)]
Irerê (Dendrocygna
viduata)

Canta, cambaxirra! Canta, juriti!


Canta Irerê! Canta, canta sofrê
Patativa! Bem-te-vi!
Maria acorda que é dia
Cantem todos vocês
Passarinhos do sertão!
Bem-te-vi! Eh! Sabiá!
La! liá! liá! liá! liá! liá!
Eh! Sabiá da mata cantadô!
Liá! liá! liá! liá!
Lá! liá! liá! liá! liá! liá!
Eh! Sabiá da mata sofredô!
O vosso canto vem do fundo do sertão
Como uma brisa amolecendo o coração.

O poema cita vários passarinhos, e a música parece mesmo imitar o canto dos
pássaros: cambaxirras, juritis, irerês, patativas, bem-te-vis e sabiás.
Manuel Bandeira até insere alguns liá! liá! liá! no seu poema para imitar as
sabiás, enquanto que os pizzicatos dos violoncelos nesse momento sugerem o
barulho dos passarinhos piando ou pulando de galho em galho.

E então a primeira parte é reprisada, tal como uma dança barroca ou clássica:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/06/BB5-2A2.mp3|titles=V
illa-Lobos: Bachianas Brasileiras nº5 – 2. Dança (Martelo) – reprise seção A
(Brown – Meneses – Minczuk)]

Confira no vídeo abaixo a soprano Paloma Friedhoff Bello com violoncelistas


da Jacobs School of Music da Universidade de Indiana, EUA. Apesar de
espanhola, a soprano tem uma boa dicção do português.

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