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XXII

Entrevista em Palo Alto - IV

- O quê?! Como??!!! - o escritor estava estarrecido com a injusta interrupção de seu


sono, após tanto ele oferecer naquela noite, aos colombianos. Como se pudesse ler
seus pensamentos, disse o representante comunitário:
- La comunidad chucreana está muy agradecida. Ahora la luna me ordena que te lleve
al ritual Guataigui. - o sotaque de Orozco era muito fechado e o escritor só
conseguiu entender que ele o levaria a um “ritual”.

Se compôs com pressa, bebeu água e partiu com o misterioso anfitrião, cujo auto,
um antigo carro electrosolar dos anos 2060, de um azul metálico cheio de pontos de
ferrugem, os esperava. Custou a dar partida, e da boca de Orozco saíram palavras em um
idioma incompreensível - para o escritor, um xingamento pelo carro não pegar de primeira.
Foi uma viagem silenciosa, de cerca de duas horas e meia. Em alguns momentos, o escritor
leu placas indicativas de seguirem para “San Onofre” e “Cartagena de las Índias”, até que
desviaram da estrada principal e começaram a subir uma pequena serra. A única
iluminação agora era a do auto de Orozco, que seguia em velocidade baixa para vencer as
pedras, a escuridão e a névoa sinistra que deixava a subida assustadora. O escritor queria
perguntar ou simplesmente gritar. Mas não conseguia dizer nada. Um lado dele se
arrependeu da viagem, mas o outro sentia que Orozco criara uma estranha conexão com
ele, que estaria protegido. Em algum momento, Orozco começa a dizer coisas na estranha
língua do “xingamento”, que não fazia qualquer sentido para o escritor. À medida em que
subiam, a luz da lua entrava no carro e transformava a escuridão em “escuridão brilhante”.
Em algum momento, o escritor deixou de sentir o carro a bater nos caroços da estrada;
depois deixou de enxergá-la, e a partir daí, passou a compreender tudo o que Orozco dizia,
embora o som das palavras seguissem em língua indígena:

- Teve sorte em vir, A Lua lhe ofereceu a oportunidade, e nossa líder


- Que tipo de aviso, Orozco.
- Bem, sou um palabrero e tudo o que faço é contar histórias, quem vai lhe oferecer
as histórias que estão distantes no tempo ou no espaço é nossa Piache Maria.
- Palabrero? Piache? O que é isso?

O carro parou, e ele fez um sinal de que a partir dali teriam de caminhar. Uma trilha
calçada de pedras iluminada pela lua. O sereno não chegava a tornar o ambiente frio,
apesar da altitude. Reparou que Orozco estava de roupas de algodão cru, usava uma série
de adornos nos braços e pescoço. Colocando-se lado a lado com o escritor, seguiu falando:

- Há trinta anos a tecnologia e a reflexão se uniram e uniram os povos que habitam


essa região e suas circunvizinhanças. Nos primeiros dez anos, guajiros e kogi
(descendentes dos taironas) estiveram, por dez anos, reunindo o conhecimento
ancestral de suas culturas, em congressos filosóficas pelos computadores e na
acumulação e diálogo permanente através da educação dos povo. Também se
identificou e selecionou aquilo que as demais culturas poderiam acrescentar,
especialmente a branca e africana, porque muitos de nós a carregam no sangue.
Em seguida, foram mais dez anos para unificarmos nossas línguas e hoje obtermos
energeticamente, moralmente, socialmente, tecnologicamente e misticamente o
melhor para todos. É por isso que apoiamos a biblioteca que o senhor inaugurou
para os chucreanos. Estamos aos poucos transformando a sociedade, em silêncio e
em paz, porque mostramos o que a faz avançar em um campo sem retroceder em
outro. Trago isso para você saber que os palabreros são os portadores da histórias,
são os educadores de nosso povo, que passou a se autodenominar Guataigui.
Piache Maria, lá está ela, é uma espécie de sábia, xamã, curandeira, pajé,
aconselhadora, enfim.

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