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CPN A et Moar et et er FATS Digitalizada com CamScanner Titulo origin: Le langage, cet inconnu ©S.G.P.P,-OS.P.A.D.E.M.cA.D.A.G.P, 1969 ‘Tradugio de Maria Margarida Barahona Capa de Edigdes 70 Depésito Legal n° 1668/88 ISBN 972-44-0352-1 Direitos reservados para todos os pafses de lingua portuguesa, excepto Brasil por Edigdes 70, Lda, / Lisboa / Portugal EDIGOES 70, LDA. Rua Luciano Cordeiro, 123 - 2.° Esq ~ 1069-157 LISBOA / Portugal Telef.: 213 190 240 Fax: 213 190249. E-mail: edi,70@mail.telepac.pt wwwedicoes70.pt Esta obra esté protegida pela lei. Nao pode ser reproduzida no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocépia ¢ xerocépia, sem prévia autorizagiio do Editor. Qualquer transgressiio & Lei dos Direitos do Autor serd pass{vel de procedimento judicial. — Digitalizada com CamScanner INTRODUCAO A LINGUISTICA Fazer da linguagem um objecto privilegiado de reflexio, de ciéncia e de filosofia, eis um gesto cujo alcance ainda nfo foi completamente avaliado. Com efeito, embora a linguagem se tenha tornado um objecto de reflexao especffico ha j4 muitos séculos, a ciéncia lingufstica, essa, € muito recente. Quanto 4 concepgo da linguagem como «chave» do homem e da histéria social, como via de acesso as leis do funcionamento da socie- dade, essa talvez constitua uma das mais importantes caracteris- ticas da nossa época. Pois trata-se realmente de um fenémeno novo: a linguagem, cuja pratica o homem sempre dominou — que constitui um todo com o homem e com a sociedade, aos quais est4 intimamente ligada -, essa linguagem, agora mais do que em qualquer outro momento da histéria, € isolada e como que colocada a distancia para ser captada enquanto objec- to de conhecimento particular, susceptivel de nos dar acesso ndo apenas as leis do seu proprio funcionamento, mas também a tudo o que resulta da ordem do social. A partir de agora, podemos admitir que a relagao do sujeito falante com a linguagem conheceu duas etapas, das quais a segunda define a nossa época: Primeiro, pretendeu-se conhecer aquilo que jé se sabia pra- ticar (a linguagem), ¢ assim se criaram os mitos, as crengas, a filosofia, as ciéncias da linguagem. Em seguida, projectou-se o conhecimento cientifico da lin- guagem sobre o conjunto da pratica social tornou-se possivel estudar como linguagens as diversas manifestagGes signifi- 13 Digitalizada com CamScanner SS cantes, estabelecendo-se assim as bases de uma abordage, m cientifica no vasto dominio dito humano, O primeiro movimento — isto é, 0 acto de con linguagem como objecto especifico de conhecimento que ela deixe de ser um exercicio que se ignora a para se por a «falar as suas proprias leis»: digamos fala se poe a falar o falado». Este retorno paradox; sujeito falante (0 homem) daquilo que o constitui (a linguagem), e obriga-o a dizer 0 modo como diz. Momento com varias con. sequéncias, a primeira das quais é permitir a0 homem nao se considerar j4 como uma entidade soberana e indecom pontvel mas analisar-se como um sistema falante — uma linguagem, Talvez possamos dizer que, se o Renascimento substitui Oculto do Deus medieval pelo do Homem com maitiscula, a nossa €poca, apagando qualquer culto, traz uma revolucao nao menos importante, visto que substitui 0 ultimo, o do Homem, por um sistema acessivel a andlise cientifica: a linguagem. O homem como linguagem, a linguagem no lugar do homem, sero gesto desmistificador por exceléncia, que introduz a ciéncia na zona complexa e imprecisa do humano, no ponto onde se instalam (habitualmente) as ideologias e as religdes. E a linguistica que parece ser a alavanca dessa desmistificacio; € ela que supée a linguagem como objecto de ciéncia, e que nos ensina as leis do seu funcionamento. Nascida no século passado ~a palavra lingufstica é atestada pela primeira vez em 1833, mas 0 termo linguista ja se encontra em 1816 em Raynouard, em Choix des poésies des troubadours, tomo I, p.1 -, a ciéncia da linguagem avanga a um ritmo ace- lerado, e ilumina sob Angulos sempre novos essa pratica que sabemos exercer sem a conhecermos. Mas quem diz linguagem diz. demarcagao, significacio ¢ comunicagao. Neste sentido, todas as praticas humanas sao tipos de linguagem visto que tém a fungiio de demarcar, de significa, de comunicar. Trocar as mercadorias e as mulheres na rede social, produzir objectos de arte ou discursos explicativos como as religides ou os mitos, € formar uma espécie de sistema linguistico secunddrio em relagdo & linguagem, e instaurar 12 base desse sistema um circuito de comunicagao com sujeitos, um sentido e uma significagio. Conhecer esses sistemas (esses sujeitos, esses sentidos, essas significagdes), estudar as suas —_— | Digitalizada com CamScanner Siderar a —Implica 5! Pr6prio que «uma al descola particularidades enquanto tipos de linguagem, ¢ este o segundo movimento que marca a reflexzio moderna que toma o homem por objecto apoiando-se na linguistica. O que éa linguagem? Responder a esta pergunta introduz-se no préprio cerne da problematica que sempre foi a do estudo da linguagem. Cada €poca ou cada civilizagao, em conformidade com o conjunto do seu saber, das suas crengas, da sua ideologia, responde de modo diferente e vé a linguagem em fungiio dos moldes que a constituem a si prépria. Assim, a época crist’, até ao século XVIII, tinha uma visio teolégica da linguagem, pondo em primeiro lugar o problema da sua origem, ou em rigor, as regras universais da sua légica; 0 século XIX, dominado pelo histo- ricismo, considerava a linguagem como um desenvolvimento, uma mudanga, uma evolugio através dos tempos. Hoje em dia, sfo as visdes da linguagem como sistema e os problemas do funcionamento desse sistema que predominam. Portanto, para captarmos a linguagem, temos de seguir 0 rasto do pensamento que, através dos tempos e antes mesmo da constituigéo da linguistica como uma ciéncia particular, esbogou as diferentes visdes da linguagem. A pergunta «O que é a linguagem?» pode e deve ser substitufda por uma outra : «Como é que a linguagem péde ser pensada?». Pondo assim o problema, recusamo-nos a procurar uma pretensa «esséncia» da linguagem, e apresen- tamos a pratica lingufstica através desse processo que a acompa- nhou: a reflexdo que suscitou, a representagiio que dela se elaborou. No entanto impdem-se alguns pontos prévios para situar, na sua generalidade, o problema da linguagem, e para facilitar a compreensio das suas representagdes sucessivas elaboradas pela humanidade. 15 Digitalizada com CamScanner I. A LINGUAGEM, A LINGUA, A FALA, ODISCURSO Seja qual for o momento em que tomemos a linguagem — nos mais afastados perfodos histéricos, nos povos ditos selva- gens ou na época moderna -, ela apresenta-se sempre como um sistema extremamente complexo em que se misturam problemas de ordem diferente. Em primeiro lugar, e vista do exterior, a linguagem reveste- -se de um cardcter material diversificado cujos aspectos e re- lagdes temos de conhecer: a linguagem é uma cadeia de sons articulados, mas também uma rede de marcas escritas (uma escrita), ou um jogo de gestos (uma gestualidade). Quais sio as relag6es entre a voz, a escrita e 0 gesto? Porqué estas dife- rengas € o que é que elas implicam? A linguagem pGe-nos estes problemas logo que chegamos ao seu modo de ser. Ao mesmo tempo, esta materialidade enunciada, escrita ou gesticulada produz e exprime (isto é, comunica) aquilo a que chamamos um pensamento. Quer dizer que a linguagem é simultaneamente o nico modo de ser do pensamento, a sua tealidade e a sua realizagdo. Levantou-se demasiadas vezes 0 problema de saber se existe uma linguagem sem pensamento € um pensamento sem linguagem. Além do facto de mesmo o discurso mudo (0 «pensamento» mudo) no seu labirinto se servir da rede da linguagem e nao a poder dispensar, parece impossfvel hoje em dia, sem abandonar 0 terreno do materialismo, afirmar aexisténcia de um pensamento extralingufstico. Se observamos diferengas entre a prdtica da linguagem que serve a comuni- cago e, digamos, a do sonho ou de um processo inconsciente 16 ou pré-consciente, a ciéncia de hoje tenta, nao excluir estes Digitalizada com CamScanner fenémenos «particulares» da linguagem, mas pelo contrario alargar a nogio de linguagem permitindo que englobe aquilo que & primeira vista parece escapar-lhe. Por isso evitamos afirmar que a linguagem € 0 instrumento do pensamento. Tal concepgaio podia fazer crer que a linguagem exprime, como um utensilio, qualquer coisa — uma ideia? — de exterior a si. Mas 0 que ¢ esta ideia? Existira sem ser forma de linguagem? Dizer que sim equivaleria a um idealismo cujas raizes meta- fisicas siio demasiado visiveis. Vemos assim como a concepgaio instrumentalista da linguagem, que, na sua base, supGe a exi: téncia de um pensamento ou de uma actividade simbélica sem linguagem, pelas suas implicagées filosGficas vai terminar na teologia. Se a linguagem é a matéria do pensamento, é também o préprio elemento da comunicagio social. Nao h4 sociedade sem linguagem, tal como nao hd sociedade sem comunicagio. Tudo o que se produz como linguagem tem lugar na troca social para ser comunicado. A pergunta cléssica: «Qual € a fungdo primeira da linguagem: a de produzir um pensamento ou a de comunicar?» nao tem nenhum fundamento objectivo. A lin- guagem € tudo isso simultaneamente, e nao pode existir uma destas fungGes sem a outra. Todos os testemunhos que a arque- ologia nos oferece de praticas de linguagem se encontram em sistemas sociais, e por conseguinte participam de uma comu- nicagao. «O homem fala» e «o homem é um animal social» so duas proposigées tautolégicas em si mesmas e sinénimas. Portanto acentuar 0 cardcter social da linguagem nao quer dizer que se dé uma predominancia sua fungiio de comunicagao, Pelo contrério, depois de ter servido contra as concepg6es espi- ritualistas da linguagem, a teoria da comunicagio, se tomar uma posi¢io dominante na abordagem da linguagem, pode ocultar qualquer problematica respeitante a formagio ea produ- gdo linguistica, isto é, 4 formagao ea produgio do sujeito falante € da significagiio comunicada que, para esta teoria da comu- nicagio, sao constantes nao analisveis. Depois de feita esta adverténcia, podemos dizer que a linguagem é um processo de comunicagaio de uma mensagem entie dois sujeitos falantes pelo menos, sendo um 0 destinador ou 0 emissor, e 0 outro, 0 destinatdrio ou 0 receptor. 17 Digitalizada com CamScanner mensagem destinador — — — — — —————> destinatario Ora cada sujeito falante é simultaneamente o destinador e 0 destinatario da sua prépria mensagem, visto que é capaz de ao mesmo tempo emitir uma mensagem decifrando-a, e em prin- cipio ndo emite nada que nao possa decifrar. Assim, a mensagem destinada ao outro é, num certo sentido, destinada em primeiro lugar ao mesmo que fala: donde se conclui que falar é falar- se. rmensogem mensagem = destinador destinador — — — — — — — — — -destinatario = destinatario hows) Do mesmo modo, o destinador-decifrador s6 decifra na medida em que pode dizer aquilo que ouve. ‘Vemos portanto que o circuito de comunicagao lingufstica assim estabelecido nos introduz num dominio complexo do sujeito, da sua constituigao em relagiio ao seu outro, da sua maneira de interiorizar esse outro para af se confundir com ele, etc. Embora seja uma pratica que se realiza na comunicagio so- cial e através dela, a linguagem constitui uma realidade material que, participando do proprio mundo material, nao deixa por isso de levantar o problema da sua relagao com aquilo que néo é linguagem, isto é, com o exterior: a natureza, a sociedade, etc., que existem sem a linguagem apesar de nao poderem ser nomeadas sem ela. O que € que quer dizer «nomear»? Como é que se produz 0 «nomear», e como é que 0 universo nomeado € 0 universo que nomeia se distribuem? Eis uma outra série de quest6es cujo esclarecimento nos vai ajudar a compreender 0 facto «linguagem». Por fim, aquilo a que chamamos linguagem tem uma historia que se desenrola no tempo. Do ponto de vista desta diacronia, a linguagem transforma-se durante as diferentes épocas, toma diversas formas nos diferentes povos. Tomada como um Digitalizada com CamScanner sistema, isto é, sincronicamente, tem regras precisas de fun- cionamento, uma estrutura determinada e transformacGes estru- turais que obedecem a leis estritas. Vemos portanto que, como observou Ferdinand de Saussure, «tomada no seu todo, a linguagem é multiforme e¢ heterdclita; abrangendo varios dominios, simultaneamente fisica, fisiolégica e psiquica, pertence ainda ao dominio individual e ao dominio social; nao se deixa classificar em nenhuma categoria de factos humanos porque nao sabemos como destacar a sua unidade». Pela complexidade e pela diversidade dos problemas que levan- ta, a linguagem tem necessidade da anilise da filosofia, da antro- pologia, da psicanilise, da sociologia, sem falar das diferentes disciplinas lingufsticas. Para isolar desta massa de tragos que se referem a linguagem um objecto unificado e susceptivel de uma classificagao, a lin- guistica distingue a parte lingua no conjunto da linguagem. Segundo Saussure, «podemos localiz4-la na porgdo determinada do circuito onde uma imagem auditiva (i) se vem associar a um conceito (c)», e Saussure dé o seguinte esquema desse circuito: audigao fonagio fonagao audigio A lingua é «a parte social da linguagem», exterior a0 individuo; no pode ser modificada pelo individuo falante e parece obedecer as leis do contrato social que é reconhecido por todos os membros da comunidade. Assim, a lingua est4 isolada do conjunto heterogéneo da linguagem: deste retém apenas um «sistema de signos em que 0 essencial € s6 a unitio do sentido e da imagem acistica». Enquanto a lingua é por assim dizer um sistema anénimo constitufdo por signos que se combinam segundo leis especi- ficas, e como tal nao se pode realizar na fala de nenhum sujeito, mas «sé existe perfeitamente na massa», a fala € «sempre indivi Digitalizada com CamScanner 20 dual e o individuo é sempre senhor dela». Portanto a fala é, segundo a definigao de Saussure, «um acto individual de von- tade e de inteligéncia» : 1) as combinagoes pelas quais 0 sujeito falante utiliza 0 cédigo da lingua; 2) o mecanismo psicofisico que Ihe permite exteriorizar esas combinagdes. A fala é, em suma: a) combinagées individuais pessoais introduzidas pelos sujeitos falantes; b) actos de fonagio necessarios 4 execugio dessas combinagées. Esta distingao linguagem-lingua-fala, discutida e muitas vezes rejeitada por certos linguistas modernos, serve no entanto para situar de um modo geral 0 objecto da linguistica. Mesmo para Saussure, ela implica uma divisio do estudo da linguagem em duas partes: a que examina a lingua, e que por conseguinte é social, independente do individuo e «unicamente psiquica»,; e outta, psicofisica, que observa a parte individual da linguagem: a fala, incluindo a fonagio. Na realidade, as duas partes sio insepardveis uma da outra. Para que a fala se possa produzir, a lingua € necesséria anteriormente, mas ao mesmo tempo nao hd lingua em abstracto sem o seu exercicio na fala. Sao assim necessdrias duas linguisticas inseparaveis uma da outra: linguis- tica da lingua e lingufstica da fala, das quais a segunda esté ainda muito em principio. A introdugiio de nogées préprias da teoria da comunicagao no campo linguistico contribui para a reformulacao da distingao lingua-fala e para lhe dar uma significag&o nova e operatéria. O fundador da cibernética, Norbert Wiener, tinha j4 observado que nao existe nenhuma oposigao fundamental entre os pro- blemas que se apresentam aos especialistas da comunicagao e os que se poem aos linguistas. Para os engenheiros, trata-se de transmitir uma mensagem com 0 auxilio de um céddigo, isto é, de um néimero minimo de decisdes bindrias, por outras palavras, de um sistema de classificagio ou, digamos, de um esquema que represente as estruturas invaridveis e fundamentais da men- sagem, estruturas proprias do emissor e do receptor, e segundo as quais 0 receptor pode reconstruir a prépria mensagem. Do mesmo modo, 0 linguista pode encontrar na complexidade da mensagem verbal tracos distintivos cuja combinagiio Ihe fornece 0 cédigo dessa mensagem. Como observa Roman Jakobson, os interlocutores pertencentes & mesma comunidade lingufstica podem ser definidos como os utentes efectivos de um mesmo e Digitalizada com CamScanner Unico cédigo; a existéncia de um cédigo comum fundamenta a comunicagao ¢ torna possfvel a troca das mensagens. O termo discurso designa de um modo rigoroso, ¢ sem ambiguidade, a manifestagao da lingua na comunicagio viva. Precisado por Emile Benveniste, opde-se ao termo /inguat, que recobre doravante a linguagem enquanto conjunto de signos formais, estratificada em escaldes sucessivos, que formam siste- mas e estruturas. O discurso implica primeiro a participagao do sujeito na sua linguagem através da fala do individuo. Uti- lizando a estrutura anénima da lingua, 0 sujeito forma-se no discurso que comunica ao outro. No discurso, a lingua comum a todos torna-se o vefculo de uma mensagem tinica, propria da estrutura particular de um determinado sujeito que imprime sobre a estrutura obrigatéria da lingua uma marca especifica, em que se marca o sujeito sem que por tal ele tenha consciéncia disso. Para precisar 0 plano do discurso, podemos op6-lo ao da fala e da histéria. Para Benveniste, na enunciagio hist6rica, 0 locutor € exclufdo da narrativa: qualquer subjectividade, qualquer referéncia autobiogrifica ¢ banida da enunciagiio da verdade. O termo «discurso», pelo contrério, designa qualquer enunciagao que integre nas suas estruturas 0 locutor eo auditor, com 0 desejo do primeiro de influenciar 0 segundo. Por isso 0 discurso transforma-se no campo privilegiado da psicandlise. «Os seus meios», diz Jacques Lacan, «so os da fala porquanto confere um sentido as fungGes do individuo; o seu dominio é 0 do discurso concreto enquanto realidade transindividual do su- jeito; as suas operacdes sao as da histéria pois constitui a emer- géncia da verdade no real.» Torna-se agora evidente que estudar a linguagem, captar a multiplicidade dos seus aspectos ¢ fungGes, é construir uma ciéncia e uma teoria estratificadas cujos diferentes ramos abran- gem os diferentes aspectos da linguagem, para poderem, num. tempo de sintese, fornecer um saber sempre mais preciso do funcionamento significante do homem, Portanto é necessario conhecer tanto a linguagem vocal como a escrita, tanto a lingua como 0 discurso, a sistematica interna dos enunciados e a sua relagdio com os sujeitos da comunicagao, a légica das mudangas historicas ¢ a ligacio entre o nivel lingufstico ¢ o real. Aproxi- mamo-nos assim das leis especfficas do trabalho simbélico. 21 Digitalizada com CamScanner qe II. O SIGNO LINGU{STICO A ideia de que o nicleo fundamental da lingua reside no signo € prépria de varios pensadores ¢ escolas de pensamento, desde a Antiguidade grega até 4 Idade Média e até aos nossos dias. Com efeito, qualquer locutor esté mais ou menos cons- ciente do facto de que a linguagem simboliza, representa, no- meando-os, os factos reais. Os elementos do encadeamento falado, digamos por agora as palavras, estiio associados a certos objectos ou factos que eles significam. O signo ou «representamen», diz Peirce, 6 aquilo que substitui qualquer coisa para alguém. O signo dirige-se a alguém e evoca para ele um objecto ou um facto na auséncia desse objecto e desse facto. Por isso dizemos que o signo significa «in absentia». «In praesentia», isto é, em relagao ao objecto presente que ele representa, o signo parece estabelecer uma relacao de convengao ou de contrato entre o objecto material representado e a forma fénica representante. Etimologicamente, a palavra grega oDNBoAOV vem do verbo oupBa&AAEtv que quer dizer «reunir», e que foi muitas vezes utilizado para signi- ficar uma associag4o, uma convengio ou um contrato. Para os Gregos, uma bandeira ou uma insignia sao simbolos, tal como um bilhete de teatro, um sentimento ou uma crenga: vemos que 0 que une estes fenémenos ¢ torna possivel uma denomi- nagdo comum € 0 facto de todos substituirem ou representarem qualquer coisa ausente, evocada por um intermediério, e, por conseguinte, incluida num sistema de troca— numa comunicacio. Na teoria de Peirce, o signo é uma relagao triddica que se estabelece entre um objecto, o seu representante e 0 interpre- Digitalizada com CamScanner tante. O interpretante, para Peirce, € uma espécie de base sobre aqual se instaura a relagiio objecto-signo, e corresponde a ideia no sentido platénico do termo, Pois 0 signo nao representa todo 0 objecto, mas apenas uma ideia dele, ou como diria Sapir, 0 conceito desse objecto. Teoricamente, podemos afirmar que os signos lingu‘sticos esto na «origem» de qualquer simbolismo: que o primeiro acto de simbolizagao é a simbolizagao na e pela linguagem. Isto no exclui o facto de nos aparecer uma grande diversidade de signos nos diferentes dominios da pratica humana. Consoante arelacao entre o representante e 0 objecto representado, Peirce conseguiu classificé-los em trés categorias: — 0 fcone refere-se ao objecto por uma semelhanga com ele: por exemplo, o desenho de uma rvore que representa a Arvore real parecendo-se com ela é um fcone. ~ 0 indice nao se parece forcosamente com 0 objecto, mas éafectado por ele e, deste modo, tem qualquer coisa de comum com o objecto: assim, o fumo é um indice do fogo. —o simbolo refere-se a um objecto que ele designa por uma espécie de lei, de convengao, por intermédio da ideia: so assim os signos linguisticos. Embora Peirce tenha feito uma teoria geral dos signos, é a Saussure que devemos o primeiro desenvolvimento exaustivo e cientffico do signo lingufstico na sua concepgao moderna. No seu Curso de Linguistica Geral, 1916, Saussure observa que seria ilus6rio acreditar que o signo lingufstico associe uma coisa e um nome; a ligagiio que o signo estabelece é entre um conceito e uma imagem aciistica. A imagem actistica nao é 0 som em si mesmo, mas «a marca psiquica desse som, a repre- sentagio que dele nos é dada pelo testemunho dos nossos sentidos». Assim, para Saussure, o signo € uma realidade psf- quica com duas faces, sendo uma o conceito e a outra aimagem actistica. Por exemplo, para a palavra «pedra», 0 signo é cons- titufdo pela imagem actistica pedra e pelo conceito «pedra»: um invélucro cémodo que contém aquilo que € comum aos milhares de representagdes que podemos ter do elemento distinto «pedra». 23 Digitalizada com CamScanner t (See) 44 (-), pedra pedra Estas duas faces insepariiveis do signo, que Saussure des- creve como as duas faces de uma mesma folha, chamam-se significado (o conceito) ¢ significante (a imagem actistica), Para Saussure, 0 signo linguistico ¢ definido pela relagio signifi- cante-significado, da qual é excluido 0 objecto, designado sob o termo de referente: a linguistica nio se ocupa do referente, interessa-se apenas pelo significante, pelo signific sua relagio. Qual € a relagiio entre o significante ¢ o significado? Um dos postulados de base da lingufstica é que o signo é arbitrério, Quer dizer que nao hi nenhuma relagio necessiria entre o significante ¢ 0 significado: o mesmo significado «pedra» tem como significante em francés pia em russo kame, em inglés stoun, em chinés, shi, A. Isto niio quer dizer que os significantes sejam escolhidos arbitrariamente por um acto voluntario indivi- dual e que por conseguinte possam ser alterados de um modo igualmente arbitrério. Pelo contririo, 0 «arbitrario» do signo é por assim dizer normativo, absoluto, vilido e obrigatério para todos os sujeitos que falam a mesma lingua. A palavra «arbitré- rio» significa mais exactamente imotivado, quer dizer que nao hd nenhuma necessidade natural ou real que ligue o significante eo significado. O facto de certas onomatopeias e exclamagdes parecerem imitar os fenémenos reais e, deste modo, parecerem motivadas nao suprime este postulado linguistico, visto que se trata de facto de um caso com uma importincia secundaria. No entanto, a teoria do signo, que tem a vantagem de pér 0 problema da relacio entre a lingua e a realidade no exterior do campo das preocupagées lingufsticas, e de permitir 0 estudo da Imgua como um sistema formal, submetido a leis e constitufdo por estruturas ordenadas e transformacionais, est hoje exposta auma critica que, embora nao a destrua completamente, Ihe impée certas modificagées. Assim, a teoria assenta na redugiio da rede fénica complexa que € 0 discurso a uma cadeia linear na qual se isola um elemento minimo correspondente 4 palavra. Ora torna-se cada do e pela Digitalizada com CamScanner vez mais dificil admitir que a unidade minima da lingua seja a palavra. Com efeito, a palavra sé ganha a sua significagao com- pleta numa frase, isto €, por e numa relagio sintdctica. Por outro lado, essa mesma palavra é decomponivel em elementos morfolégicos mais pequenos do que ela, os morfemas, eles mesmos portadores de significagao, e cujo conjunto constitui a significagdo da palavra. Assim, nas palavras dar, dddiva, dador, podemos isolar o morfema da -, que implica a ideia de oferta, e os morfemas — 1, — diva, - dor, que atribuem diversas modalidades raiz. da ~. Por fim, a significagio dessa palavra nao fica completa se nao a estudarmos num discurso, tendo em conta a enunciagio do sujeito falante. Compreende-se que a palavra, concebida como entidade indivisfvel e valor absoluto, se torne suspeita aos olhos dos linguistas e deixe de ser, hoje em dia, o apoio fundamental da reflexao sobre o funcionamento da linguagem. E cada vez mais necessério afast4-la da ciéncia da linguagem. Martinet escreve com razio que «a semiologia (a ciéncia dos signos), tal como a deixam entrever certos estudos recentes, nado tem nenhuma necessidade da palavra. E nao se imagine que os semidlogos estejam a pensar, de facto, na ‘palavra’ quando escrevem ‘signo’ Alguns talvez pensem de preferéncia em ‘frase’ ou ‘enunciado’, sem esquecerem nunca, aliés, que o—r— de pagard também é um signo». Martinet prope a substituig&o da nogao de palavra pela de «‘sintagma’, ‘grupo de varios signos minima’ a que chamaremos monema: ‘por conseguinte’ € um mesmo e nico monema visto que depois de ter escolhido a utilizagao de con- seguinte 0 locutor nfo pode deixar de dizer 0 resto». Através deste exemplo, vemos que a lingu{stica procura captar, para além das aparéncias imediatas, por detrds do «écran da palavra», os «tragos realmente fundamentais da linguagem humana». Além disso, e sem dtivida em estreita dependéncia com 0 isolamento da palavra como elemento de base da lingua, a teoria do signo constréi-se sobre a dominancia do conceito como interpretante matricial dos elementos de linguagem. Portanto nao hé linguagem no exterior do conceito visto que 0 conceito enquanto significado constr6i a propria estrutura do signo. A aceitacao, até ao extremo, desta tese leva-nos a banir do dominio da linguagem tudo o que nao € da ordem do conceito: o sonho, o inconsciente, a poesia, etc., ou pelo menos a reduzir a sua 25 Digitalizada com CamScanner especificidade a um mesmo ¢ tinico tipo de funcionamento con- ceptual. Conduz-nos a uma visio normativa do funcionamento significante, que nZio consegue abordar a multiplicidade das praticas significantes, isto quando nao as relega para uma pato- logia a reprimir, Certos linguistas, como Sapir, observam aeste respeito que é inexacto confundir a linguagem com o pensa- mento conceptual tal como ele se exerce actualmente; Sapir chega mesmo a afirmar que a linguagem é antes de tudo uma fungiio «extra-racional», o que quer dizer que a sua matéria se oferece a praticas de diferenciagao e de sistematizagiio que nao resultam forcosamente da razio do sujeito definido actualmente como sujeito cartesiano. Por fim, a nogo do arbitrdrio do signo foi posta em causa por um exame critico. O raciocinio saussuriano parece ter admi- tido um erro: embora afirme que a substAncia (0 referente) nao faz parte do sistema da lingua, Saussure pensa justamente no referente real quando afirma que [béf] ¢ [oks], tao diferentes pelos seus significantes, se referem a uma mesma ideia (a um mesmo significado), ¢ que por conseguinte a relagao significan- te-significado é arbitréria. No fundo, como observa Benveniste, nao é a relagio entre o significante [béf] e 0 significado «boi» que 6 arbitréria. A ligago [ba] - «boi» é necesséria, o conceito eaimagem acistica sdo insepardveis e encontram-se em «sime- tria estabelecida». O que é arbitrdrio € a relagdo desse signo (significante-significado: [béf] - «boi») com a realidade que ele nomeia, ou por outras palavras, a relagéio do simbolo de linguagem na sua totalidade como exterior real que ele simbo- liza. Parece haver aqui uma contingéncia que, no estado actual da ciéncia linguistica, nao conseguiu encontrar uma explicagao que nao fosse filoséfica ou tedrica. Quais foram as teorias que apareceram a favor da brecha assim aberta na concepgiio da lingua como sistema de signos? A propria lingufstica, apoiando-se na concep¢ao (permitida pela teoria do signo) de que a lingua é um sistema formal, desin- teressa-se dos aspectos simb6licos da linguagem, e estuda sua ordem estritamente formal como uma estrutura «transfor- macional». Estas sto as teorias actuais de Noam Chomsky. Numa primeira fase, este abandona o nivel da palavra para Se ocupar da estrutura da frase que se torna assim o elemento lingufstico de base susceptivel de ser sintetizado a partir de _ad Digitalizada com CamScanner ne fungGes sintdcticas. Num segundo tempo, os elementos sintac- ticos fundamentais (0 sujeito e 0 predicado) sio decompostos, representados pelas notagdes «algébricas» X e Y, e tornam-se, no decorrer de um processo dito «gerativo», nomes e verbos. Os problemas de significagao sao substituidos por uma formali. zagio que representa 0 processo de sintese através do qual os «universais» lingufsticos (constituintes e regras gerais) podem engendrar frases gramaticalmente —e, por conseguinte, semanti- camente — correctas. Em vez de investigar por que é que a lin- gua éconstitufda por um sistema de signos, a gramatica gerativa de Chomsky mostra o mecanismo formal, sintdctico, desse con- junto recursivo que € a lingua e cuja realizagao correcta tem como resultado uma significagdo ("). Vemos pois que a linguis- tica moderna vai mais longe que Saussure, «dessubstancializa» a lingua e representa a significago (com que a principio nao se preocupa) como o resultado de um processo de transformagao sintdctica que engendra frases. Hé aqui uma tentativa que lem- bra ado linguista Bloomfield, que j4 exclufa a seméntica do dominio da linguistica e a remetia para o dominio da psicologia. De outro ponto de vista, baseando-se numa. critica filoséfica do proprio conceito de signo que liga a voz ¢ 0 pensamento de tal modo que chega a apagar o significante em proveito do sig- nificado, outros autores observaram que a escrita, essa, en- quanto marca ou trago (aquilo a que se chama, segundo uma terminologia recente, um grama), desvenda no interior da lingua uma «cena» que o signo e o seu significado no podem ver: uma cena que, em vez de instaurar uma «semelhanga» como o faz o signo, é pelo contratio o proprio mecanismo da «diferen- gar. Com efeito, na escrita, hi trago mas nao hd representacio, © esse trago — essa marca — forneceu as bases de uma nova ciéncia te6rica a que se chamou gramatologia (?). () Ver, na segunda parte, capitulo XVI desta obra, uma anélise mais pormenorizada das teses de Chomsky. ©) fildsofo francés Jacques Derrida prope 0 conceito de escrita que nos permite pensar a linguagem, incluindo a sua manifestagio fénica, como uma diferenga (que Derrida escreve voluntariamente diferdincia {Em francés férance», com prontincia idéntica a de «différence» N. T.] para marcar bem 0 processo de diferenciagao). J4 para Saussure a lingua é um sistema de diferencas: ¢, com efeito, nfo existe nenhuma estrutura sem haver diferencas que constituam os seus elementos... Mas Derrida vai mais longe: no seu sistema, 0 «grama» é simultaneamente uma estrutura e um movimento; 6, 27 Digitalizada com CamScanner 28 diz ele, «0 jogo sistemético das diferengas, das marcas de diferengas, do espacamento pelo qual os elementos se relacionam uns com os outros». E esta a razo por que, com o «grama-diferdncia», a lingua se apresenta como uma transformagao ¢ uma geracdo, e 0 lugar do conceito classico de «estru- tura» se vé colocado entre paréntesis: 20 mesmo tempo, a linearidade saus- suriana do encadeamento falado (que se limita a imitar 0 processo sonoro ¢ a sua propensio) é posta em questo. Assim a escrita é inerente a linguagem, ea fala fonética pode ser encarada como uma escrita, Portanto a dominancia do sistema signo-sentido-conceito € deslocada, ¢ abre-se a possibilidade de pensar, na linguagem, aquilo que niio € signo-sentido-conceito, O sujeito depende do sistema de diferengas, 86 se constitui dividindo-se, espagando-se, diferenciando-se: «A subjectivi- dade — como a objectividade ~ é um efeito de diferenga, um efeito inscrito ‘num sistema de diferdncia», escreve Jacques Derrida, Compreende-se pois como 0 conceito de grama neutraliza a hipéstase fonolégica do signo (a primazia que ele concede ao fonético), ¢ introduz no pensamento do sign (da lingua) a substancia gréfica com os problemas filoséficos que levanta, através de toda a hist6ria e de todos os sistemas de escrita, para além da érea ocidental de escrita fonética. — Digitalizada com CamScanner Ii. A MATERIALIDADE DA LINGUAGEM Embora seja uma rede de diferencas estabelecidas que fun- damenta a significagao e a comunicagiio, a lingua est longe de ser uma idealidade pura. Realiza-se por e numa matéria concreta e nas leis objectivas da sua organizagao. Por outras palavras, embora conhegamos a linguagem por um sistema conceptual complicado, o corpo da linguagem em si mesmo apresenta uma materialidade duplamente discernfvel: Por um lado, no aspecto fénico, gestual ou grafico de que a lingua se reveste (nao ha linguagem sem som, sem gesto ou sem escrita); Por outro, na objectividade das leis que organizam os dife- rentes subconjuntos do conjunto lingufstico, e que constituem a fonética, a gramitica, a estilfstica, a semAntica, etc.: estas leis reflectem as ligagdes objectivas entre o sujeito falante ea reali- dade exterior; reflectem igualmente as relagdes que regulam a sociedade humana, sobredeterminando, ao mesmo tempo, essas ligagGes e essas relagées. O fonético Osigno linguistico, como vimos, no contém o som material: © significante é a «imagem aciistica» e niio 0 rufdo concreto. Ora este significante nao existe sem o seu suporte material: 0 som real produzido pelo animal humano. E necessdrio distinguir cuidadosamente este som, portador de sentido, dos diferentes gritos que servem de meio de comunicagio entre os animais, O Ppa Digitalizada com CamScanner 30 som lingufstico pertence a uma categoria completamente dife- rente visto que instaura esse sistema de diferenciagio, de signiti- cagio e de comunicagio que é a lingua no sentido que the demos atrs, e que pertence apenas & sociedade humana. O som linguistico é produzido por aquilo a que chamamos impropriamente «os érgios da fala». Como observa Sapir, no fundo, «nao ha, falando com propriedade, érgdos da fala; ha apenas 6rgiios que fortuitamente sio titeis 4 produgao dos sons da linguagem», Com efeito, embora certos 6r pulmées, a laringe, o palato, o nariz, a lingua, os dentes e os labios participem na articulagiio da linguagem, no podem ser considerados o seu instrumento. A linguagem nao é uma fungiio bioldgica como a respiragio, o olfacto, ou o gosto, que tm o seu érgio nos pulmées, no nariz, na lingua, etc. A linguagem é uma fungio de diferenciagiio e de significagio, isto é, uma funco social e niio bioldgica, possibilitada todavia pelo fun- cionamento bioldgico. Também no podemos dizer que a linguagem esta biolo- gicamente localizada no cérebro. E certo que a psicofisiologia consegue localizar as diferentes manifestagdes materiais da linguagem em diversos centros cerebrais: 0 centro auditivo co- manda a audigao do sentido; os centros motores, os movimentos da lingua, dos labios, da laringe, etc.; 0 centro visual, o trabalho de reconhecimento visual necessério na leitura, etc. Ora todos estes centros s6 controlam partes constituintes da linguagem, mas nio so o fundamento dessa fungiio altamente sintética ¢ social que é a pratica da lingua. Noutros termos, os Orgaos corporais que participam na formagio material da linguagem podem fornecer-nos os fundamentos quantitativos e mecfnicos do funcionamento lingufstico, sem explicarem esse salto qua- litativo que o animal humano efectua quando comega a marcar diferengas num sistema que se torna assim a rede de significa- ges através da qual os sujeitos comunicam na sociedade. Esta rede de diferengas nao pode estar no cérebro nem em nenhum outro lugar. E uma fungao social sobredeterminada pelo proces- So complexo da troca ¢ do trabalho social, produzido por elae incompreensivel sem ela. Dito isto, € possivel descrever os Orgios que fornecem 2 base mec§nica da articulagdo linguistica: o aparelho fonador € © seu funcionamento. ‘giios como os — Digitalizada com CamScanner Expelido pelos pulmées, o ar segue pelas vias respirat6rias ¢ faz vibrar a glote que no entanto nao imprime nenhuma dife- renciagdio aos sons. Formada por duas cordas vocais, que sio dois mtisculos paralelos que se comprimem ou se afastam, a glote forma o som laringeo por aproximagao das cordas vocais. Este som uniforme pode atravessar a cavidade bucal ou a cavidade nasal, que particularizam os diferentes sons da lingua. A cavidade bucal compreende os labios, a lingua, os dentes superiores, 0 palato (com uma parte anterior inerte ¢ 6ssea, & uma parte posterior mével: o véu palatino), a tivula, os dentes inferiores. Através do funcionamento destes componentes, a cavidade bucal pode alargar-se ou estreitar-se, enquanto a lingua € os labios podem atribuir diversos valores ao som laringeo. Assim, a cavidade bucal serve simultaneamente para produzir sons e para fazer ressoar a voz. Em caso de grande abertura da glote, isto é, na auséncia de vibragio da laringe, é a cavidade bucal que produz o som. Em caso de vibragao da glote, isto é, quando as cordas esto préximas, a boca nao faz mais do que modelar o som laringeo. ‘A cavidade nasal, pelo contrério, permanece completamente imével, e s6 faz 0 papel de ressoador. Conseguimos isolar alguns critérios de articulagaio de sons segundo os quais se pode estabelecer uma classificagao perti- nente que corresponde as suas qualidades aciisticas. Assim Saussure propde-se ter em conta os seguintes factores para isolar as caracteristicas de um som: a expiragio, a articulagao bucal, a vibragio da laringe, a ressondncia nasal: «Ei necessario esta- belecer para cada fonema qual é a sua articulacgio bucal, se comporta ou nao um som laringeo, se comporta ou nao uma ressonancia nasal». Distingue por conseguinte os sons surdos, os sons sonoros, os sons surdos nasalados e os sons sonoros nasalados, Segundo a sua articulagio bucal, Saussure apresenta a seguinte sistematizagio dos elementos minimos da cadeia falada ou fonemas («o fonema é a soma das impresses actisticas e dos movimentos articulatérios, da unidade ouvida e da uni- dade falada...»): As oclusivas: obtidas pelo fechamento completo ou pela oclusiio hermética, mas momentinea, da cavidade bucal. a) labiais: p, b, m b) dentais; t, d, n 31 Digitalizada com CamScanner c) guturais: k, g,1), As nasais so oclusivas sonoras nasaladas, As fricativas ou aspirantes: a cavidade bucal nao est4 com. pletamente fechada e permite a passagem do ar. a) labiais: f, v b) dentais: s, z, § (cha), 3(francés génie) ¢) palatais: x’ (ich, alemdo) y'(liegen, alemdo do Norte) 4) guturais: x (Bach, alemdo), y (Tage, alemdo do Norte) As nasais. As liquidas. a) laterais: a lingua toca no palato anterior deixando uma abertura a direita e 4 esquerda: como para 0 I dental, !’ palatal e/[ gutural; b) vibrantes: menos pr6xima do palato, a Ifngua vibra contra ele; como para o r miltiplo apical (produzido com a ponta da Ingua batendo nos alvéolos), 0 r velar (produzido com a parte posterior da lingua). As vogais exigem a supressao da cavidade bucal como pro- dutora de som: a boca actua unicamente como ressoador, e 0 timbre do som larfngeo faz-se ouvir plenamente. ImpGem-se algumas distingOes entre as vogais: ie ii podem chamar-se semivogais, segundo Saussure; os Jabios esto esticados para a prontincia de i e arredondados para ii; nos dois casos, a lingua esta levantada para o palato: estes fonemas sao palatais, e, 0, 6: a prontincia exige um ligeiro afastamento das maxilas em relacao a série precedente; a: articula-se com a abertura maxima da boca. A descrigio da produgao fonética tanto das vogais como das consoantes deve também ter em conta o facto de que os fonemas nao existem no estado isolado, mas fazem parte de um conjunto: o enunciado, no interior do qual se encontram numa relagdo de dependéncia interna. Portanto a ciéncia dos sons tem de ser uma ciéncia dos grupos sonoros para dar conta do verdadeiro cardcter da fonagao. Assim, consoante um som numa sflaba se pronuncie fechado ou aberto, podemos distin- guir no primeiro caso uma implosdo (>) ¢ no segundo caso uma explosdo (<). Exemplo: app. Estas duas prontincias com binadas produzem grupos explosivo-implosivos, implosiv” 32 | -explosivos, etc. Chegamos assim & definigo de ditongo: €u™ _——d Digitalizada com CamScanner «clo implosivo de dois fonemas dos quais o segundo é relativa- mente aberto, ¢ daf uma impressio actistica particular; dir-se-ia que a soante continua no segundo elemento do grupo». Exem- plo: Saussure cita os grupos nd id em certos dialectos alemies (buob, liab). Os sons lingufsticos distinguem-se igualmente pela sua du- ragdo, aque chamamos quantidade: esta propriedade é varidvel nas diferentes Iinguas, ¢ depende também da posigzo do som no conjunto da cadeia pronunci: és, a quanti- im, em francés dade longa sé existe em sflaba acentuada. Vemos portanto que a interinfluéncia dos sons no encadea- mento falado da lugar a uma fonética combinatdria que estuda as modalidades de influéncia das vogais ¢ das consoantes se- gundo a sua ocorréncia. Estas modificagées nem sempre alteram ocardcter fundamental dos sons. Assim fe d podem palatalizar- -se pelo contacto com uma vogal palatal (ti -, di -, no tém a mesma consoante de tom, dom); velarizar-se pelo contacto com vogais posteriores ou labializar-se por causa do arredonda- mento dos labios que acompanha a articulagdo de vogais labiais vizinhas. No entanto ha fendémenos que provocam mudangas mais considerdveis dos sons. Assim: aassimilagdo: 0 facto de um som se aproximar de um outro no que diz respeito ao seu modo de ser articulado, e ao seu ponto de articulagiio. Exemplo: entender —0 n esté articulado no ponto do re do d; a dissimilagdo: acentuagao da diferenga dos fonemas. As- sim, o portugués falado regista menistro em vez de ministro; a interversdo, quando os fonemas mudam de lugar, e a metdtese, quando essa mudanga se faz distancia. Deste modo, ‘o nome préprio Rolando tomou também a forma Orlando; a haplologia (ou hapaxipia), desaparecimento de um ele- mento do encadeamento falado que devia ser repetido. O exem- plo que se da frequentemente € tragicomédia em vez de tragico- -comédia. Oencadeamento falado, constituido assim por fonemas, nao se reduz todavia a uma linha dividida em fragmentos represen- tados pelos fonemas isolados. Na pratica de linguagem, os seus fonemas combinam-se em unidades superiores, como as silabas. Para Grammont e Fouché, cuja formulagao foi confirmada pela fonética actistica, a sflaba caracteriza-se por uma tensdo crescente Digitalizada com CamScanner 33 — | dos misculos fonatérios, qual se segue uma tensdo decres- cente. A um nivel superior, 0 encadeamento falado apresenta, nao palavras, mas grupos fonéticos constituidos por um acento de intensidade sobre a ultima sflaba. Em «o amigo do povo», h4um tinico acento em po, o que faz da expressiio um s6 grupo fénico. Acima dos grupos fonéticos, encontramos a frase deli- mitada pela respiracéo que corta o encadeamento falado. Note-se por fim que estas particularidades materiais do fone- tismo lingufstico, de que aqui damos apenas um resumo dema- siado abreviado e sistemitico, siio especfficas para cada lingua nacional e variam segundo as épocas: o fonetismo do portugués da Idade Média nao é igual ao de hoje em dia. O grAfico e o gestual Apesar dos numerosos trabalhos sobre os diversos tipos de escrita que a humanidade elaborou através dos tempos, a ciéncia actual ainda nao propés uma teoria satisfatéria da escrita, da sua relago com a Iingua ¢ das regras do seu funcionamento. Desenvolveu-se uma discussao de caracter metaffsico sobre a questio de saber o que é que estava na «origem»: a linguagem vocélica ou o grafismo. Van Ginneken, baseando-se nos traba- Ihos do estudioso chinés Tchang Tcheng-Ming, defendeu, quase contra todos, a tese da anterioridade da escrita em relagio & linguagem fonética. Apoiava-se no facto de que a escrita chi- nesa, por exemplo, parecia imitar a linguagem gestual, que por conseguinte seria anterior a linguagem fonética. Esta controvérsia, além de constituir uma impertinéncia cientffica na medida em que dispomos de poucos dados para decidirmos de uma «origem» da linguagem, parece-nos caduca hoje em dia por causa da inconsisténcia tedrica que formula a questo de base. O problema da «prioridade» do escrito sobre © vocal, ou inversamente, nao pode ter um sentido histérico, mas apenas puramente te6rico: se admitirmos que 0 trago ( escrito) é uma marca da diferenga que constitui a significagao, € que como tal é inerente a qualquer linguagem, incluindo @ fala vocal, o fonético € ja um trago, apesar da matéria fonética ter contribuido para o desenvolvimento no sistema da lingua 34 | gem de particularidades que a escrita talvez tivesse marcad0 a Digitalizada com CamScanner de outra forma. Na troca social, 0 fonético obteve uma indepen dénciac uma autonomia, ca escrita surgi num segundo tempo para fixar o vocalismo. Aescrita dura, transmite-se, act au falantes, Utiliza 0 espago para nele se marcar, langando um de safio ao sempo: enquanto a fala se desenrola na temporalidade, através do tempo representando-se como uma © espacii séneia dos sujeitos aeserita pas: configu mento em que o sujeito, diferenciando-se daquilo que o rodeia, na medida em que 0 marca, nao sai di |, niio fabrica uma dimensiio ideal (a voz, 0 folego) para af organizara comunica- io, mas pratica matéria © no préprio espago dessa reali- dade de que faz parte, embora diferenciando-se dela visto que a marea. Acto de diferenciagio ¢ de participagiio em relagio ita € uma linguagem sem um além, sem transcen- as «divindades» escritas pertencem ao mesmo mundo da matéria que as traga e da que as recebe. Por isso dizemos: marca escrita, tal como o gesto, embora constitua um acto io ¢ de designagio, nfo é ainda um signo no sentido atras definido. O triingulo do signo (referente-signifi- cante-significado) parece estar aqui reduzido a uma marca (na escrita) ou a wma relagdo (no gesto) entre 0 sujeito aquilo que existe fora dele, sem o intermédio de uma «ideia» «em si» ¢ jA constitufda (interpretante, significado). Conseguiu-se observar a estreita relagiio entre 0 gesto © certas escritas como a dos Chineses ou a dos indios da América do Norte. Segundo Février, que se refere aos trabalhos de G. Mallery e de Tehang Tcheng-Ming, os Winter-Counts no es- crevem «cachimbo» representando o objecto, mas sim tragando ogesto que o designa. Para os Chineses, 0 hieréglifo para «ami- go» ou «amizaden € um desenho do gesto amigavel de duas mios dadas:£ ou. Um objecto real ou uma combinagio de objectos podem ja representar uma escrita, isto é, uma linguagem. Neste caso, 0 objecto ou 0 conjunto de objectos desligam-se da sua utilidade pratica, ¢ articulam-se como um sistema de diferengas que se tornam signos para os sujeitos da comunicagiio. O exemplo mais evidente deste tipo de linguagem concreta, em que 0 «signo» nfo se distinguiu ainda do referente, mas é apenas esse referente inclufdo num sistema comunicado, é-nos dado 35 . Designa assim um tipo de funciona- scril déncia: Digitalizada com CamScanner por Herédoto (II, 16). Ele conta que, quando o rei Dario invadiu o pats dos Citas, estes Ihe enviaram um presente composto por um passaro, um rato, uma ra ¢ cinco flechas. Esta mensagem devia ser lida do seguinte modo: «A nao ser que te transformes em passaro para voares no ar, em rato para penetrares sob a terra ou em ri para te refugiares nos pintanos, no conseguiras escapar as nossas flechas». Um exemplo mais apropriado de um grafismo que se apro- | xima mais da escrita verdadeiramente tragada é-nos fornecido pelas «escritas» formadas por um «equivalente geral», isto 6, por uma sé matéria cujas diferentes apresentag6es servem para marcar diversos objectos. 5 0 caso dos nds, para os Incas, que marcavam desse modo os animais mortos nas batalhas. O histo- riador espanhol Garcilaso de la Vega descreve-os assim: «Para os assuntos da guerra, do governo, para os tributos, | para as cerim6nias, havia diversos quipos e em cada conjunto destes havia muitos nés e fios ligados: vermelhos, verdes, azuis, brancos, etc.; ¢ tal como nés descobrimos diferengas entre as nossas vinte € quatro letras, colocando-as de maneiras diversas para obtermos sons variados, os indios obtém um grande ni- mero de significagdes através das diferentes posigdes dos nés e das cores». Ora, por mais longe que a ciéncia arqueolégica e antropo- Iégica remonte na histéria, as verdadeiras escritas sao ja tragos, gramas, grafismos complexos. Os tragos mais antigos foram situados no fim do perfodo mustierense, e propagaram-se sobre- tudo por volta de 35 000 antes da nossa era, durante o perfodo de Chatelperron. Sao entalhes na pedra ou no osso, sem nenhu- ma figuragdo que permita supor que a escrita seja mimética, que copie ou represente uma «imagem» jé existente, ou mais tarde um fonetismo estabelecido. Podemos citar 8 maneira de exemplo as escritas dos australianos Churinga que desenhavam de ‘forma abstracta os corpos dos seus antepassados e as diversas coisas que os rodeavam. Outros achados paleontolégicos confir- mam a tese segundo a qual as primeiras escritas marcavam 0 ritmo e nio a forma de um processo em que se engendra a sim- bolizacao, sem se tornarem por isso uma representacio. Por volta do ano 20 000 antes da nossa era, a figuragio grdfica é corrente e evolui rapidamente para atingir por volta de 15 000 uma perfeigao técnica de gravura e de pintura quase 36 — Digitalizada com CamScanner igual & da época moderna. FE surpreendente verificar que as representagdes humanas perdem o scu cardcter «realista» ¢ se tornam abstractas, construfdas por meio de tidngulos, quadra- dos, linhas, pontos, como nas paredes das grutas de Lascaux, enquanto os animais sao representados de uma forma realista, que se esforga por reproduzir a sua forma ¢ 0 seu movimento. Vemos portanto que a linguagem (falada ¢ escrita) ¢ a arte ‘figurativa se confundem naquilo a que Leroi-Gourhan chama «0 par intelectual fonagao-grafia». Para ele, uma grande parte da arte figurada provém da «pictoideografia», modo sintético de marcagiio que, representando imagens (latim: pictus, pintado, representado), transmite uma «conceptualizagiio», ou antes, uma diferenciagao e uma sistematizagio irrepresentiveis («ideia»). Este tipo de escrita nao é uma simples transposigio do fonetismo, e até talvez se constitua de uma forma totalmente independente dele; mas nao deixa de ser uma linguagem. Para ns, sujeitos pertencentes a uma zona cultural em que a escrita é fonética e reproduz a letra a linguagem fonética, ¢ dificil imaginar que possa ter existido, e exista ainda hoje para numerosos povos, um tipo de linguagem— uma escrita-, que funciona independen- temente do encadeamento falado, que por conseguinte nao € linear (como a emissao da voz) mas espacial, e que regista assim um dispositivo de diferengas em que cada marca adquire um valor segundo 0 seu lugar no conjunto tragado. Assim, desde as grutas de Lascaux, podemos observar as relagdes topograficas constantes entre as figuras dos animais representados: no centro, o bisonte e 0 cavalo; nos lados, os veados € os cabritos-monteses; na periferia, os ledes € os rinocerontes. Segundo Leroi-Gourhan, «por detras da reunido simbélica das figuras existiu forgosa- mente um contexto oral com 0 qual a reuniao simbélica estava coordenada e cujos valores reproduzia espacialmente». Estes dispositivos espaciais parecem constituir 0 suporte grAfico-material, e por conseguinte durvel e transmissfvel, de todo um sistema mitico ou césmico préprio de uma determinada sociedade, Podemos dizer que estes grafismos, semiescrita, semi-representagiio «artfstica», magica ou religiosa, so mito- gramas. Por outro lado, esta propriedade combinat6ria dos elementos graficos permite a constituigao de conjuntos de escrita que mar- cam j4 formagées sintdcticas ou légicas mais complexas. E 37 Digitalizada com CamScanner == 1 aquilo a que os sinélogos chamam agregadas légicos, por uma justaposi¢a0 de varios grafemas (elemento Do mesmo modo, para indicarem que duran wabundancia de came», os Winter-Counts desenham um cfreu (

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