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O Desencantamento da História e o desejo de Revolução

(Deleuze e Foucault)

Prof. José Caselas


Prof. Eduardo Pellejero

A condição para poder efectivamente trabalhar a dois é


a existência de um fundo comum implícito, inexplicável,
que nos faz rir ou preocupar pelas mesmas coisas, ficar
enojado ou entusiasmado por coisas análogas.
Gilles Deleuze (citado por Robert Maggiori)

Para além da Revolução?

Qual é o segredo da revolução? Onde se esconde, para além


das condições materiais, que nunca estão dadas onde se produz e
nunca conseguem desencadeá-la onde aparecem reunidas? Onde, para
além da tomada de consciência decisiva, que o intelectual, quando não
o Estado ou o partido, assumem ou confiscam em nome da gente?
Onde para além das traições e das recaídas, que as circunstâncias
objectivas e as vontades individuais encarnam ou contribuem para
precipitar?
Onde, para além das suas determinações históricas, que a
condenam como ideia, se, como sugere Arendt, o acto revolucionário
parte de uma fundação que visa perdurar em si própria, e desse modo,
ao trazer em si a sua irrevogabilidade, condena-se à infâmia: “Na
medida em que o maior acontecimento em toda a revolução é o acto da
fundação, o espírito da revolução contém dois elementos que, para nós,
parecem irreconciliáveis e mesmo contraditórios. O acto de fundar o
novo corpo político, de planear a nova forma de governo, envolve a
difícil preocupação da estabilidade e durabilidade da nova estrutura.” 1
Como ideia, como facto, como promessa ou como instituição,
mas sobretudo como problema, a revolução constitui para boa parte da
filosofia francesa contemporânea, o horizonte de qualquer tematização
efectiva da história, dos seus progressos ou da sua interrupção, da sua

1
Arendt, Hannah, Sobre a Revolução, Lisboa, Relógio D’Água, 2001, p. 274.

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estrutura ou do seu sentido, por fim, da sua possível realização e da sua
eventual subversão. A revolução como conceito, o conceito de
revolução, mas também, e sempre, as revoluções concretas de 1789 e
de 1917, as barricadas de 1848 e as manifestações de 1968, o Estado
soviético ou chinês, e as revoltas que, sob os mais diversos signos,
explodem um pouco por todas as partes no terceiro mundo. Isto é certo
a respeito de Kojève e de Sartre, de Merleau-Ponty e de Lévi-Strauss,
de Althusser e de Lyotard, e não é menos certo a respeito de Foucault e
Deleuze.
Na possibilidade de pensar esta impossibilidade – a revolução –,
joga-se para Deleuze o próprio destino do pensamento, mas ao mesmo
tempo joga-se o destino da revolução, “porque este impossível não
existe senão pelo nosso pensamento” 2 .
Do mesmo modo, para Foucault, a revolução é a possibilidade de
outra coisa, tal como a Filosofia é a hipótese de pensarmos de outra
maneira; trata-se da abertura do campo dos possíveis. E para Arendt, o
conceito moderno de revolução implica a irrupção de um novo começo,

2
Deleuze-Parnet, Dialogues, Paris, Flammarion, 1977, p. 173. Para além das
alternativas biográficas e bibliográficas que parecem permitir periodizar a sua obra, a
polémica em volta da revolução não está nunca ausente na obra deleuziana (ou não
se deixa entender completamente sem esta). É mais ou menos clara na crítica da
dialéctica e na tipologia da vontade que encontramos em Nietzsche et la philosophie
e aparece em primeiro plano na des(cons)trução da psicanálise de L’Anti-Oedipe;
nunca deixa de estar presente nas análises dos casos literários, de Kafka a Bartleby
(passando, muito especialmente, pela leitura de Lawrence), nem certamente nos
estudos sobre cinema, onde a revolução (e a sua crise) determinam essa muito
especial taxonomia das imagens; por fim, em Qu’est-ce que la philosophie?, ocupa
sem dúvida um lugar fundamental na problematização da conjunção da filosofia com
a actualidade. Constatamos também, por exemplo, que a revolução é um dos
objectos de preocupação de Logique du sens, onde aparece, de um modo explícito,
como «revolução permanente», «acção parcial» ou «grande política», no centro da
própria problematização do acontecimento, associada aos principais elementos da
sua definição (distância entre séries, casa vazia, elemento supernumerário, ou como
possibilidade de conjugação dos pequenos acontecimentos em «um só e mesmo
acontecimento» no qual se denunciam todas as violências e todas as opressões ao
denunciar a mais próxima ou o último estado da questão).

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algo inteiramente novo e nunca contado surge, mas também uma nova
experiência de liberdade. 3

«Suponhamos que os universais não existem»

Foucault situa a filosofia como pensamento da actualidade e,


nesse caso, equacionar o nosso presente permite fazer a genealogia da
modernidade como questão. Estamos sempre no meio, nunca no fim,
nunca o acabamento, a teleologia. Deleuze assinalou, neste sentido, a
diferença entre o devir e a história; a sua simpatia pelo texto foucaultiano
«A vida dos homens infames» situa-se nesse apego aos corpos-
acontecimento que escapam ao grande protagonismo dos factos, para
fluírem de modo oculto na entretela do devir como uma linguagem
menor. E inclusive quando um (Deleuze) fala de inactualidade onde o
outro (Foucault) fala de actualidade, o diagnóstico proposto tem o
mesmo sentido: destacar as «linhas de vulnerabilidade» do presente,
fazendo crer que as coisas que são como são podiam não sê-lo,
deixando entrever um excesso de possível ao lado das condições de
(im)possibilidade de um momento histórico qualquer.
Foucault vai colocando minas nos campos da História, acolhendo
a contingência e a singularidade. Como escreve num texto de auto-
apresentação: “Recusar o universal da «loucura», da «delinquência» ou
da «sexualidade» não quer dizer que as coisas a que se referem essas
noções não são nada ou que se trata de meras quimeras inventadas
pela necessidade de uma causa duvidosa; trata-se, no entanto, de muito
mais do que a simples constatação que o seu conteúdo varia com o
tempo e com as circunstâncias. É questionarmo-nos acerca das
condições que permitem, segundo as regras do dizer verdadeiro e falso,
reconhecer um sujeito como doente mental ou de fazer com que um
sujeito reconheça a parte mais essencial de si mesmo na modalidade do
seu desejo sexual.” 4 Recusar o universal é verificar que a subjectivação
se deve aos dispositivos de poder e de saber que operam sobre nós e

3
“A ideia de que a liberdade e a experiência de um novo princípio devem coincidir é
crucial para a compreensão das revoluções na idade moderna.” Arendt, H. op. cit. ,
p. 33.
4
Foucault, «Foucault», Dits et écrits vol IV, Paris, Gallimard, 1994 (doravante
utilizaremos a abreviatura DE seguido do nº do vol), p. 634.

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que fazem com que sejamos qualificados desta ou daquela maneira,
como sujeitos sexuais determinados assim ou como uma imputação de
loucura ou delinquência. Como escapar a essas determinações que,
sendo precárias, se pretendem verdadeiras e incontornáveis? Como
recusar esse modo de subjectivação opondo-lhe uma insubmissão
metódica? Recusar o universal é oferecer resistência a um poder que
prescreve e que nos assinala um destino e uma identidade; é mostrar
que essas determinações não são apenas ilusões, mas práticas
coordenadas segundo um regime de verdade. A política não está isenta
desse regime de verdade; ela é algo que se inscreve no real de acordo
com esse regime de verdade que lhe permite distinguir o verdadeiro do
falso. 5 O devir revolucionário capta essa recusa de um discurso unívoco
perante os factos.
Os pontos de contacto com a perspectiva deleuziana são mais do
que evidentes e passam, antes de mais, pela luta contra os universais.
Assim, para Deleuze a primeira consequência de uma Filosofia dos
dispositivos “é o repúdio dos universais. O universal, com efeito, não
explica nada, é ele que deve ser explicado. Todas as linhas, são linhas
de variação, que não têm inclusivamente coordenadas constantes. O
Uno, o Todo, o Verdadeiro, o objecto, o sujeito, não são universais, mas
processos singulares de unificação, imanentes a tal dispositivo. Desse
modo, cada dispositivo é uma multiplicidade na qual operam tais
processos em devir, distintos dos que operam noutro. É neste sentido
que a filosofia de Foucault é um pragmatismo, um funcionalismo, um
positivismo e um pluralismo.” 6
Para além das filosofias da história (reformistas, revolucionárias
ou niilistas), a revolução é para Deleuze a cifra por excelência do
inactual como irrupção na história (enquanto movimento contra o tempo,
sobre o tempo, a favor de um tempo por vir). Trata-se do inactual como
acontecimento, o acontecimento como política (ou a partir de uma
perspectiva política).
Uma ideia muito particular da revolução, então, virá determinar o
conceito deleuziano de acontecimento, e na mesma medida será

5
Foucault, Naissance de la Biopolitique, Cours au Collège de France, Paris,
Gallimard, 2004, p. 22.
6
Deleuze, Deux régimes de fous: Textes et entretiens 1975-1995, Paris, Minuit,
2003, p. 320.

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determinada por este, a meio caminho entre a inscrição nos factos e o
sentido da história, diferença produtiva ou linha de transformação, que
não dota de sentido político a noção de acontecimento sem ter o seu
estatuto ontológico tocado pela mesma operação. Uma ideia tão
particular, por fim, que poderia chegar a pôr em questão que se continue
a tratar rigorosamente da revolução, mas cuja possibilidade Deleuze
procura salvar a todo o custo, quer pondo em jogo uma série de
distinções subtis, quer elaborando uma concepção verdadeiramente
inactual ou intempestiva do acontecimento, para além do seu
encadeamento numa dialéctica para o fim da história, da sua redução a
epifenómeno das estruturas (ou da praxis), ou da sua assimilação à
«estupidez» ou à «cólera» dos factos, segundo se prefira.
Numa tentativa de superar os diversos intentos contemporâneos
de pensar a realidade, especialmente no que respeita à explicação da
mudança na história, Deleuze desloca o problema dos factos, o sujeito e
a estrutura, em direcção às singularidades. A história está constituída
apenas por transformações que se operam nos estados de coisas, as
vivências e as relações entre os elementos que a compõem, mas o
agente de tais transformações não pertence à história, ou pelo menos
não se reduz à sua efectuação histórica destes objectos, estruturas e
sujeitos. 7 O acontecimento, enquanto singularidade, enquanto linha de
transformação, de inspiração e redistribuição, escapa à história.
Eventualizar (événementialiser) significa, para Foucault, quebrar
as evidências, fazer despontar uma singularidade onde outros tentam
referir-se a uma constante histórica. Uma história feita de singularidades
empíricas, o que significa isto? “Aí onde seríamos tentados a referir-nos
a uma constante histórica ou a um traço antropológico imediato, ou
ainda a uma evidência que se imponha do mesmo modo a todos, trata-
se de fazer surgir uma «singularidade»”. 8 O que Nietzsche chamava a
História Efectiva (Wirliche Historie) e que passa por essa singularização,
um fio de acontecimentos sem um sentido originário, momentos

7
Da mesma forma Foucault escreveu: «As insurreições pertencem à história. Mas
de certa forma, escapam-lhe. […] Varsóvia terá sempre o seu gueto sublevado e os
seus esgotos povoados de insurrectos.» «Inutile de se soulever?» DEIII, p. 790-791.
Na medida em que jogam a sua vida e a sua morte, os insurrectos estão dentro e
fora da História, eles escolhem não obedecer; é essa a sua aposta.
8
Foucault, «Table ronde du 20 mai 1978», DEIV, p. 23.

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descontínuos de um devir sem necessidade de totalização; uma história
sem absoluto, uma história crua dos erros e da verdade. Importa
reconhecer aí os modelos de dominação: o poder sobre o corpo.
Deleuze opera, à conta de todas estas distinções, uma
desnaturação similar da história, que se não a desloca para o lado dos
efeitos (a história continua a ser o domínio das causas materiais),
destitui-a como categoria ontológica fundamental, totalização ideal dos
fenómenos ou processo teleológico absoluto (porque o acontecimento, o
devir, está para além do seu domínio, como uma reserva de possível
sobre o limite do impossível).
E, substituindo a compreensão historicista do acontecimento
como advento (com a subordinação do acontecimento à história que a
mesma implica), pela proposição do acontecimento como evento (no
sentido de uma ocasião especial, extraordinária, singular, que faz
história), propõe-nos algo semelhante ao que Foucault denominava uma
eventualização da história.
Para Foucault a história não se faz a partir de temporalidades e
passado, mas tendo em conta a mudança e o acontecimento, no que
designou história serial. Esse acontecimento inscreve-se por diferentes
camadas, segundo uma multiplicidade de durações, umas mais visíveis,
e outras imperceptíveis aos olhos dos contemporâneos. “A história surge
então não como uma grande continuidade sob uma descontinuidade
aparente, mas como um emaranhado de descontinuidades
sobrepostas.” 9
Neste sentido, a eventualização tem como «primeira função
teórico-política» mostrar que a história não é tão necessária ou não
segue um curso tão determinado como se pensava. Contra a concepção
da história pensada em termos de totalidade, contra a ideia de que a
história é um processo continuo progressivo orientado em direcção a
uma finalidade, contra a atitude homogeneizante dos acontecimentos
em virtude de uma constante histórica qualquer (domínio da natureza,
igualdade dos homens, etc.), apela à ordem do singular, onde se volta a
jogar continuamente a relação e o sentido dos acontecimentos entre si,
com a proliferação do possível que um processo semelhante implica por
si.

9
Foucault, «Revenir à l’histoire», DEII, p. 279.

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Uma lógica do acontecimento efémero, imprevisível, neutro
(événement), substitui, deste modo, a dialéctica totalizante, determinista
e teleológica do advento (avènement).
O resultado é uma concepção do acontecimento como irrupção
intempestiva na história, ou seja, como revolução. Uma revolução de
natureza singular, de costas para a consciência, em ruptura com as
condições objectivas, mas na qual se reconhece, claramente, a
transmutação de um mundo, de uma história, e de uma consciência.
Ponto de crise ou linha de transformação, o acontecimento não tem
outra existência senão a das séries sobre as quais exerce a sua acção,
nas quais aparece, ora como carência, ora como excedente. As
metamorfoses ou redistribuições de singularidades formam uma história,
mas o acontecimento, sendo o agente de toda a história, não tem lugar
em história alguma. O mesmo é dizer que a história não se faz mais
senão através destes acontecimentos; quer dizer que na história não
contamos senão com a espera gratuita e a memória adulterada dos
mesmos. No fundo, nunca contamos senão com os fragmentos e os
farrapos da revolução, se não com a soma dos factores que a fazem
aparecer como impossível.
O acontecimento rompe com a lógica do possível, não depende
do possível (nem do possível objectivo, nem do possível subjectivo); ele
coloca o possível na dependência (ou como produto) do acontecimento.
E isto tem consequências directas no contexto da polémica sobre a
revolução, porque, como assinala François Zourabichvili, o
acontecimento político por excelência – a revolução – deixa de ser a
realização de um possível (projecto revolucionário ou conflito capitalista),
para passar a constituir uma abertura imprevisível de possível 10 .
Maio de 68 como acontecimento micropolítico aponta para uma
linha de fuga molecular, escapando de uma organização macropolítica
da sociedade, um movimento que atravessou todas as instituições.
Neste nível não conta apenas o molar como centro de poder, mas a
infinidade de fluxos que deslizam da centralidade do poder para uma
segmentaridade. É o que autoriza Deleuze a dizer: “A análise das
«disciplinas» ou micropoderes segundo Foucault (escola, exército,

10
Zourabichvili, François, «Deleuze et le possible (de l’involontarisme en politique)»,
em Alliez, E. (comp.), Gilles Deleuze: Une vie philosophique, Paris, Ed. Synthébo,
1998, pp. 338-339.

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fábrica, hospital, etc.) verificam estes «focos de instabilidade» em que se
defrontam agrupamentos e acumulações, mas também escapadelas e
fugas, e onde se produzem inversões.” 11 Se o poder é omnipresente,
não se trata de o eliminar, de fazer desaparecer o Estado, como
pensavam ingenuamente os anarquistas. Do que se trata é da
possibilidade de resistência e da sublevação, de negar o intolerável;
nesse caso a revolução emerge como possibilidade de resistência, para
além das ameaças, das violências e das coerções, diante das forcas e
das metralhas. 12
Do mesmo modo, para Foucault não existe uma totalização do
poder a ponto de impedir qualquer hipótese de liberdade. Mesmo no
auge da sua cristalização, nas circunstâncias em que se torna
patológico, nenhum estado de dominação resiste à morte, ao
definhamento do ditador (Salazar, Franco, Castro) e na sua vigência
comprometida é ainda possível o tentame libertário.13 O que é
desejável na Revolução é o enfrentamento do poder, visto que ele é
sempre perigoso, a singularidade que se subleva confronta-se com o
intolerável. O desencantamento da História dá-se com a ruína do corpo,
das pequenas vidas destroçadas, o corpo do louco, do delinquente, da
criança psiquiatrizável, das vidas infames, a molecularização dos gritos
que povoam as constelações do poder (Guattari designa isto «revolução
molecular»).
Afinal qual o resíduo de uma revolução? Na verdade, não é a
gesticulação revolucionária que conduz ao progresso. O que importa é o
entusiasmo 14 . Pouco importa que ela seja bem sucedida ou que

11
Deleuze-Guattari, Mille plateaux, Paris, Éditions de Minuit, 1980, p. 288.
12
Cf. Foucault, «Inutile de se soulever?», DEIII, p. 791.
13
“Ninguém tem o direito de dizer: «revoltai-vos por mim, resultará daí a libertação
final de todos os homens.» Mas não estou de acordo com aquele que diria: «É inútil
revoltarmo-nos visto que as coisas ficarão na mesma».” Foucault, «Inutile de se
soulever?» DEIII, p. 791. Foucault refere-se aqui ao eclodir da Revolução iraniana
que eventualmente teve, também ela, um devir infame.
14
Foucault retoma a perspectiva de Kant quando este diz: “A revolução de um povo
espiritual, que vimos ter lugar nos nossos dias, pode ter êxito ou fracassar; pode
estar repleta de miséria e de atrocidades […] esta revolução, afirmo, depara todavia,
nos ânimos de todos os espectadores (que não se encontram enredados neste
jogo), com uma participação segundo o desejo, na fronteira do entusiasmo, e cuja
manifestação estava, inclusive, ligada ao perigo, que, por conseguinte, não pode ter

43
fracasse, desde que nesse momento o possível tenha lugar contra o
intolerável. Foi o que sucedeu com Maio de 68. Deleuze escreve: “Maio
68 é sobretudo da ordem do acontecimento puro, livre de toda a
causalidade normal ou normativa. A sua história é uma «sucessão de
instabilidades e de flutuações amplificadas». Em 68 houve muita
agitação, gesticulações, palavras, asneiras, ilusões, mas não é isso que
conta. O que conta é que foi um fenómeno de vidência, como se uma
sociedade visse de um só golpe o que continha de intolerável e visse
também a possibilidade de outra coisa.” 15
Deleuze coloca a sua alternativa deste modo, a saber, a história
das revoluções não é o conceito da revolução, em princípio, porque há
toda uma dimensão da revolução que a história não alcança, o seu devir
(outra linguagem, outro sujeito, outro objecto), pelo que “quando se diz
que as revoluções têm um porvir infame, não se disse ainda nada sobre
o devir-revolucionário das pessoas” 16 . Quando se diz que a revolução já
não avança mais, que não funciona, devemos compreender que o que
se está a fazer é tomar uma parte pelo todo, e, liquidando uma parte do
problema – a parte histórica –, dá-se por terminada a questão, retirando
às pessoas, também, através desse procedimento equívoco, a única
saída possível para conjurar a vergonha, ou responder ao intolerável.
¨ Enquanto nos limitarmos a criticar o insucesso histórico das
revoluções, não deixaremos de confundir duas coisas, o porvir das
revoluções na história e o devir-revolucionário das pessoas, e de tomar
o primeiro por termo único, quando nem sequer se trata da mesma
gente nos dois casos.

O poder e o devir-revolucionário. A tarefa da Filosofia

Pensar a (in)actualidade, (a revolução) em termos filosóficos, eis


o que inaugurou a modernidade. Pergunta foucaultiana por excelência,
que vem redeterminar todo o seu pensamento a partir dos seus últimos
textos: De que modo pertencemos à actualidade? É, de novo, a questão

nenhuma outra causa a não ser uma disposição moral no género humano.” Kant, O
Conflito das Faculdades, Lisboa, Ed. 70, 1993, p. 102
15
Deleuze, «Mai 68 n’a pas eu lieu», in Deux régimes de fous, Paris, Minuit, 2003, p.
215-216.
16
Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990, pp. 208-209.

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da possibilidade de pensar o acontecimento como actualidade. Podemos
encontrar aí uma contingência histórica ou uma mera continuidade de
tempos presentes?
Em todo o caso, existirá um devir-revolucionário em Foucault? Se
assim for, em que consiste? A tarefa do intelectual neste contexto,
responde ele, é desestabilizar o poder, mesmo que isso não conduza a
uma pretensão reformista. Foucault não é um reformista mas um
céptico17 em vias de construir uma antropologia empírica. O intelectual
deve mostrar as coisas como podendo não ser como são, lançar uma
incerteza; uma função de anti-prestidigitador. Questionar a actualidade é
introduzir uma «fractura virtual», abrir um espaço de liberdade. 18
O mesmo devir-filosófico do político tem lugar no pensamento de
Deleuze; a passagem da REVOLUÇÃO como fim da história, à
revolução como processo de transformação, traça uma linha de fuga na
polémica contemporânea sobre a natureza última da revolução, escapa
aos seus lugares comuns: “a questão de uma revolução não foi nunca:
ou espontaneidade utópica ou organização do Estado” 19 .
O papel do intelectual é o de diagnosticar o presente, não o de
dizer verdades proféticas. Escreve Foucault: “Eu caracterizaria este
ethos filosófico próprio de uma ontologia crítica de nós mesmos como
uma prova histórico-prática dos limites que podemos transpor e, deste
modo, como um trabalho de nós mesmos sobre nós mesmos enquanto
seres livres.” 20
A tarefa da Filosofia talvez não seja fazer uma revolução que
realize uma utopia 21 ; o seu objectivo é fazer do filósofo um anti-déspota,

17
Ele próprio se declara céptico, renegando desde os primeiros escritos como
L’Archéologie du savoir, a possibilidade de uma experiência primitiva, surda. Na sua
última entrevista Foucault volta ao tema: « – O senhor não seria um pensador
céptico? – Absolutamente. A única coisa que não aceitarei no programa céptico é a
tentativa dos cépticos de atingir um certo número de resultados numa determinada
ordem, pois o cepticismo jamais foi um cepticismo total! […] para os cépticos, o ideal
era ser optimista sabendo relativamente pouca coisa, mas sabendo-as de maneira
segura e imprescritível, enquanto aquilo que eu quis fazer é um uso da filosofia que
permite limitar os domínios de saber», «Le retour de la morale», DEIV, p. 706-707.
18
Foucault, «Structuralisme et poststructuralisme», DE IV, 449.
19
Deleuze-Parnet, Dialogues, p. 174.
20
Foucault, «Qu’est-ce que les Lumières?», DEIV, p. 575
21
No seu livro Legislators and Interpreters (1987), Zygmunt Bauman apresenta
uma visão da ascensão e queda dos Intelectuais. A sua visão do poder, tributária de

45
denunciando finalmente os abusos de poder; ele deve fazer um trabalho
sobre si mesmo da ordem da autotransformação. Não propriamente um
filósofo conselheiro do princípe; uma tarefa lhe assiste: a de
desempenhar um papel de contrapoder, visto que pode intensificar as
lutas, as resistências, a recusa em participar no velho jogo do poder,
seja o que é aplicado à penalidade, à sexualidade ou ao saber médico.
A filosofia deve confrontar-se com o poder, com esse poder
quotidiano, traçar uma táctica e uma estratégia para o criticar, trazê-lo à
visibilidade: “Há muito tempo que sabemos que o papel da filosofia não
é descobrir o que está oculto, mas sim tornar visível o que precisamente
é visível, ou seja, fazer aparecer o que está tão próximo, tão imediato, o
que está tão intimamente ligado a nós mesmos que, devido a isso, não o
percebemos.” 22 É precisamente esse facto que leva Deleuze a
classificá-lo como um voyant, um filósofo obcecado pelos regimes de
visibilidade, preso da visão, com uma paixão de ver. 23

Foucault, demonstra como no séc XVII e sobretudo XVIII, os intelectuais foram


chamados a desempenhar o papel de legisladores de uma nova ordem social
criando uma république de lettres. Os philosophes saídos do Iluminismo envolveram-
se numa cruzada prosélita para a gestão racional da sociedade, substituindo o
pensamento da Igreja por uma busca secularizada da verdade. Esse esforço
civilizador não foi bem-sucedido pelo que as promessas da modernidade ficaram por
cumprir. Na pós-modernidade, o papel dos intelectuais foi largamente dispensado
pelo mercado. O mercado apenas necessita de publicitários, de gerentes de
marketing, de produtores de televisão para seduzir as massas ao consumo. Com o
pluralismo de culturas da pós-modernidade os philosophes deixaram de ser
legisladores e passaram ao papel de intérpretes, ou seja, depositários da tarefa de
traduzir as linguagens de uma comunidades para outras comunidades ou legislar
apenas numa comunidade específica subcultural. O papel do intelectual numa
racionalidade fragmentada, que já não pode aspirar a um saber/poder
universalizante, é dar conta desse estado de coisas, propor uma redenção
discursiva, expondo os limites da razão instrumental e restaurando a autonomia da
comunicação humana. O proletariado como agente histórico da mudança foi
substituído pelo consumidor falhado/defeituoso; mas este é olhado com indiferença
pelos intelectuais. Poder-se-á cumprir novamente a modernidade em torno dessa
redenção que alargue a democracia a sectores cada vez mais alargados da
sociedade?
22
Foucault, «La philosophie analytique de la politique», DEIII, p. 540 – 541; “Pelo
pequeno gesto de deslocar o olhar, ele [ o intelectual ] torna visível o que é
visível.”«La scène de la philosophie», DEIII, p. 594.
23
“Foucault n’a jamais cessé d’être un voyant”; Deleuze, Foucault, Paris, Minuit,
1986, p. 58.

46
Nesta medida, a descrição genealógica não pretende ser
prescritiva; ela revela as redes de contingência e a forma de
racionalidade que preside à sua instituição. A actualidade que é a nossa
deve ser encarada com modéstia, não que não seja importante, mas não
é um momento único e decisivo da História. É preciso evitar o
dramatismo que qualifica o momento em que vivemos como a perdição
da História, como o mais negativo relativamente a todos os que o
antecederam. Foucault não pretendeu apresentar um programa político
definido. O que designa como política da verdade é, antes, um critério
estético, um modo de fornecer indicadores tácticos, um imperativo
condicional que evite dizer: combatam desta ou daquela maneira! O
sentido da luta é sobretudo indicar os pontos-chave, as linhas de força e
os bloqueios que assumem os mecanismos de poder. 24
Deleuze e Foucault participaram de forma militante em causas de
rebeldia aos poderes instituídos, formas de resistência micropolítica
organizadas, como, por exemplo, em torno do GIP (Grupo de
Informação sobre as Prisões), formado na década de 70, que consistia
sobretudo em conferências de imprensa e inquéritos aos reclusos
destinados a denunciar a situação das prisões francesas nessa época. 25
Em Maio de 68, Deleuze encontrava-se em Lyon e Foucault em
Sidi-Bou-Saïd na Tunísia, mas ambos se entusiasmaram com o evento.
Para Foucault particularmente, Maio de 68 representou o declínio do
marxismo e o surgimento de novos interesses políticos. Esses
acontecimentos de Maio colocaram questões à política que escapavam
ao quadro teórico tradicional (questões sobre as mulheres, as relações
entre os sexos, a medicina, a doença mental, o ambiente, as minorias, a
delinquência) repondo-as num discurso que o marxismo era impotente
para explicar. 26 No entanto, o nível de militância dos dois filósofos não
ultrapassou os pequenos grupos. Para eles, a tarefa do intelectual na
sua luta contra as formas de dominação, não consistia em propor um

24
Foucault, Sécurité, Territoire, Population – Cours au Collège de France, 1977-
1978, Gallimard, 2004, p. 5.
25
Cf. cap. 17 “Deleuze et Foucault: une amitié philosophique” in Dosse, François,
Gilles Deleuze et Félix Guattari. Biographie croisée, Paris, La Découverte, 2007.
26
Cf. Foucault, «Polémique, politique et problématisations», DEIV, p. 595.

47
modelo de sociedade, mas uma experimentação de novas práticas em
grupos restritos e sobretudo uma conceptualização dessas práticas. 27
Há que ler o regresso de Foucault aos gregos nesta linha de
pensamento. Considerando a dupla acepção do que chamou modos de
subjectivação, primeiro, o modo como o poder constitui os sujeitos
(sujeição) e, segundo, o trabalho ou procedimento de si a si, isto é, uma
prática de si (auto-estilização); o estilo de existência. 28 A questão da
actualidade coloca-se, assim, nessa encruzilhada de sujeição e
subjectividade em que nos encontramos e que importa analisar e
problematizar; relatar o conteúdo histórico assenta num
empreendimento crítico sob a forma de um inquérito ao discurso
produzido pelas ciências, desemaranhando a hipótese do poder nesse
saber constituído – é isso a singularização, o procedimento de
eventualização (mostrar as conexões entre o conhecimento e os
mecanismos de coerção). 29
Isto não impediu o céptico Foucault de tomar parte contra ou a
favor de determinadas reivindicações políticas seguindo a elaboração de
um discurso histórico-crítico e problematizador dessas situações, do que
veio a designar uma ontologia do presente (e, assim, era a favor do
aborto, contra a pena de morte, contra o encarceramento injustificado,
etc.).
Foucault situa a emergência das lutas num plano de recusa da
subjectivação. Para ele existem três tipos de lutas: contra as formas de
dominação, contra as formas de exploração e, finalmente, contra aquilo
que constitui uma subjectivação, um modo de identidade, que prende o
indivíduo a um sistema de signos que lhe prescrevem o que ele é. As

27
Ibid., p. 372.
28
«A moral grega está bem morta e Foucault achava tão pouco desejável quanto
impossível ressuscitá-la; mas um detalhe desta moral, a saber a ideia de um
trabalho de si sobre si, parecia-lhe susceptível de retomar um sentido actual, à
maneira de uma dessas colunas dos templos pagãos que vemos por vezes
utilizadas em edifícios mais recentes.» Paul Veyne, «Le dernier Foucault et sa
morale», Critique, Ago-Set 1986, p. 939.
29
“[…] o que é isto, então, que eu sou, eu que pertenço a esta humanidade, talvez a
esta franja, a este momento, a este instante da humanidade que se encontra
sujeitado (assujetti) ao poder da verdade em geral e das verdades em particular?»
Foucault, «Qu’est-ce que la Critique? [Critique et Aufklärung]» in Bulletin de la
Société Française de Philosophie, 1990, p. 46.

48
lutas contemporâneas devem assumir uma resistência contra essa
individualidade social, a que chamou o «governo da individualização». 30
Foucault declara que as relações de poder são da ordem da
estratégia. O que significa isto? Explanando as três acepções de
estratégia: 1) meios para atingir um fim ou um objectivo, 2) acção
segundo o que percepcionamos da acção dos outros; 3) confronto para
levar o adversário a renunciar à luta; ele privilegia claramente esta
última. O poder traz consigo uma resistência e esta sonha sempre em
tornar-se, ela própria, poder. Encontrar o ponto de inversão possível, eis
a estratégia do poder. Por outro lado, o poder em si mesmo desencadeia
estratégias de confronto, uma vontade de insubmissão, um desejo de
Revolução, dizemos nós.
Estamos mais perto que nunca da revolução, mas a revolução
mudou de natureza, ou, melhor, conservou da sua natureza apenas
aquilo que, independentemente de dar ou não um sentido à história,
continua a ter sentido na luta dos homens contra as mais diversas
formas de opressão.
Certamente, não dispomos, nem de facto nem de direito, de
nenhum meio seguro para preservar, e de seguida para liberar as linhas
de fuga subjacentes aos dispositivos de saber e de poder nos quais nos
encontramos comprometidos: “O que nos condena a uma perpétua
«inquietude» (...) não sabemos como pode mudar tal grupo, como pode
recair no histórico… Não dispomos da imagem de um proletariado ao
qual bastaria tomar consciência” 31 . Contudo, desta incerteza não
decorre nenhum imperativo de desmobilização.
Desprovida das opções geopolíticas que conhecia há algumas
décadas atrás, quando ainda era possível escolher entre primeiro e
segundo mundo, logo, exposta a sua inscrição no primeiro mundo ou o
seu afundamento no terceiro; desesperada de todas as formas de utopia
social, logo, dada à dispersão dos seus objectivos locais, imediatos;
destituída inclusive de qualquer projecto progressista, da ideia de que se
faz todo o possível, ou se faz o impossível, as coisas caminharão para
melhor, logo, na possessão da consciência do seu destino trágico,
inconclusivo, aberto; assim e tudo, a luta continua.

30
Foucault, «Le sujet et le pouvoir», DEIV, 227.
31
Deleuze, Pourparlers, p. 209.

49
Deleuze e Guattari e mesmo Foucault não são teóricos
programáticos da libertação; a possibilidade de transformação das
formas de organização material da vida e do desejo, a possibilidade de
redistribuições moleculares e molares de poder e do saber não implica
para eles a abolição da molarização como tal. A filosofia é, assim, do
ponto de vista da praxis, um procedimento de des-sujeição, de recusa
do que somos enquanto identidades formadas pelas instituições, pelo
campo social dominado por uma rede de poder e de conhecimento.
Feitas as contas, diz Deleuze, “o êxito de uma luta só reside na
própria luta, nas vibrações, nos abraços, nas aberturas que deu aos
homens no momento em que se levou a cabo, e que compõem em si um
monumento sempre em devir, como esses túmulos aos que cada novo
viajante acrescenta uma pedra. A vitória de uma luta é imanente, e
consiste nos novos laços que instaura entre os homens, ainda que estes
não durem mais que a sua matéria em fusão e muito rapidamente
cedam passo à divisão, à traição” 32 . O pensamento é o monumento
dessa luta sempre por recomeçar no labirinto das confusas batalhas nas
quais nos vemos comprometidos quotidianamente. Um monumento que
não comemora, que não honra algo que aconteceu, senão que sussurra
ao ouvido do porvir as sensações persistentes que encarnam o
sofrimento eternamente renovado dos homens, e o seu protesto
recreado, o seu combate sempre por retomar.

32
Deleuze-Guattari, Qu'est-ce que la philosophie?, Paris, Éditions de Minuit, 1991, p.
167.

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