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ONDE ESTEVE A “CULTURA”?

ONDE ESTÁ A ANTROPOLOGIA?


WHERE CULTURE HAD BEEN? WHERE THE ANTHROPOLOGY IS?

Darnisson Viana Silva1

RESUMO obras e/ou autores considerados clás-


sicos. Dessa forma, nos interessa avaliar
Esta comunicação busca examinar possí- como esses pensamentos se entrecruzam
veis interseções entre dois artigos, um em suas abordagens e nos propõe refle-
que trata de forma panorâmica a trajetó- xões acerca, de certo modo, um retorno
ria do conceito de cultura na antropolo- às origens da disciplina.
gia e outros temas que a autora considera
relevantes, de Alícia Ferreira Gonçalves Palavras-chaves: Antropologia; Cultura;
(2010)2 e outro de Mariza G. S. Peirano Clássicos; História teórica.
(1997)3 que tem por objetivo, questões
relativas às diversas manifestações da
Antropologia em contextos atuais, espe- ABSTRACT
cificamente buscando refletir, sobre o que
sustenta a disciplina no atual contexto de
fragmentação dos saberes. Ao discorre- This communication seeks to examine
rem sobre contextos da história teórica possible intersections between two
da disciplina antropológica, os dois arti- articles, one that treats the trajectory
gos ressaltam a escola norte-americana, overview of the concept of culture in
o multiculturalismo e a pós-moderni- anthropology, author Alícia Gonçalves
dade como foco analítico e trazem para a Ferreira (2010) and another Mariza G.
discussão, de modo distinto, o papel das S. Peirano (1997) which aims, issues

1
Doutorando no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (Campus- Campina
Grande/PB). Possui mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (Campus- João Pessoa/PB). E gradua-
ção em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Campus -Marília/SP). Atualmente desenvolve
pesquisa cuja preocupação estão os modos de vida de pescadores artesanais e os regimes de conhecimento aí implicados na região do
Baixo Tapajós (PA). É integrante discente do Laboratório de Estudos sobre Tradições - LETRA - CNPq, da UFCG.
2
Professora na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), pesquisadora do Grupo Interdisciplinar em Cultura, Sociedade e Ambiente
e Coordenadora Adjunta do Grupo Etnografias do Capitalismo Contemporâneo da UNICAMP, o artigo referido é GONÇALVES, Alícia
Ferreira. Sobre o conceito de cultura na Antropologia. Cadernos de Estudos Sociais, v. 25, n.1, p. 61-74, 2010.
3
Professora Titular, aposentada, da Universidade de Brasília, é atualmente Pesquisadora Sênior do Departamento de Antropologia da
UnB e do Núcleo de Antropologia da Política (NUAP) e CNPq, o artigo referido é PEIRANO, Mariza. Onde está a antropologia? In: Mana
(UFRJ. Impresso), Rio de Janeiro, v. 3, n.2, p. 67-102, 1997.
ONDE ESTEVE A “CULTURA”? ONDE ESTÁ A ANTROPOLOGIA?

relating to the various manifestations of Na cena contemporânea da disci-


Anthropology in the current contexts, plina, as questões levantadas por
specifically trying to answer, what sustains Gonçalves (2010) e por Peirano (1997), de
this discipline in the current context of modo distinto, porém complementares,
fragmentation of knowledge. Discourse trazem para análise do contexto a atenção
about the contexts of theoretical history voltada às histórias teóricas, a reflexão em
of anthropological discipline, the two torno do conceito de cultura e sua atua-
articles highlight the American school, lidade, a crítica à matriz norte-americana
multiculturalism and postmodernity de profusão do conhecimento antropo-
as analytical focus and bring to the lógico e o “ambiente” pós-moderno, o
discussion differently, the role of the works movimento multiculturalista e, por fim, o
and / or authors considered classics. Thus, questionamento da base de sustentação
we are interested in evaluating how these do fazer antropológico nos dias atuais. O
thoughts intertwine in their approaches tratamento empírico tanto quanto norma-
and proposes reflections on, in a sense, a tivo dessas questões, faz jus ao reconhe-
return to the origins of the discipline. cimento da importância das propostas
colocadas por essas duas antropólogas.
Keywords: Anthropology; Culture;
Classical; Theoretical history.

DIÁLOGOS E TENSÕES

INTRODUÇÃO
Os diálogos e tensões que permeiam
a construção do conhecimento em
Segundo Roberto Cardoso de Oliveira Antropologia podem ser analisados,
(1988) a história do pensamento antro- fundamentalmente, no âmbito dos méto-
pológico se realiza por meio de diálogos e dos, implicações e influências de cada
tensões entre os paradigmas que compõe escola de pensamento4. Dessa forma,
as escolas de pensamento antropológico. faz-se necessário um percurso histórico
É nesse contexto sociológico, portanto, acerca de seu objeto central, embora aqui
que se faz de extrema relevância revisi- ainda modesto, devido seu círculo infin-
tar as obras e/ou autores considerados dável, que seja o de cultura.
clássicos, pois tanto contribuíram para Especificamente, e numa perspec-
esses diálogos e tensões e cimentaram o tiva comparativa, é a partir do final do
caminho de iniciação para todos aque- século XIX que esse conceito toma corpus
les que se propõe hoje, a formação numa de análise e centro das preocupações da
tradição de conhecimento. disciplina, em contraponto às épocas

4
Ver matriz disciplinar formulada por Roberto Cardoso de Oliveira (1988).

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perspectiva evolucionista e unilinear


anteriores e cujos desdobramentos virão em: selvageria, barbárie e civilização.
compor o cenário das discussões poste- (GONÇALVES, 2010, p. 63).
riores. Dessa forma, Alicia F. Gonçalves
(2010) nos situa:
Configura-se nessa época uma
Neste sentido, na história da referida concepção de cultura com conotações
disciplina esse conceito começou a ser
formulado a partir do embate entre
universais e etnocêntricas, na medida
duas concepções: cultura pensada em que, esse contexto também influen-
como sinônimo de civilização formu- ciado por ideias darwinistas e spenceria-
lada na tradição iluminista francesa nas (Origem das espécies, 1859; Sistema
a partir da metade do século XVIII e
cultura concebida a partir da tradição
da Filosofia Sintética, 1855) o primeiro, ao
romântica alemã como sinônimo de tentar colocar a prova de que os homens
Kutur. (GONÇALVES, 2010, p. 63). teriam se originado de espécies de maca-
cos e teriam passado por estágios de
Na primeira concepção há uma pers- evolução até se tornarem “civilizados”. O
pectiva racionalista de pensamento, onde segundo, operando conceitos de evolução,
a razão é o núcleo distintivo que particu- estrutura e função em sua investigação do
lariza o ser humano, seu desenvolvimento entendimento humano, influenciaram as
refletiria o progresso dos grupos sociais Ciências Sociais vigentes (BAIARDI, 2008).
em direção a um estágio último, que seria Assim, os europeus fizeram surgir
o de civilização. No processo de desen- categorias preconcebidas como, superio-
volvimento da mentalidade do homem, ridade e inferioridade, no que diz respeito,
nessa perspectiva, pressupunha uma aos critérios para classificar os seres
unidade psíquica universal, certos germes humanos. Em suma, como bem aponta
elementares presentes na mente humana Gonçalves (2010), havia “um projeto polí-
dariam indícios de uma universalidade tico condizente com o cenário intelec-
presente no comportamento humano, em tual e político europeu, particularmente
que seria possível concluir, que existe uma França e Inglaterra do final do século XIX”
razão única em uma única direção civi- (GONÇALVES, 2010, p. 63).
lizatória. Tais ideias poderiam ser assim Do outro lado, a segunda apropriação
contextualizadas. do conceito, proposta pela tradição român-
tica alemã, traz para o debate a noção de
Neste contexto intelectual o obje- Kultur – que seria o espírito imanente
tivo posto para a disciplina era a
reconstrução da história das origens
realçando os valores espirituais de um
e dos estágios de evolução da huma- determinado grupo social. Partindo desta
nidade definidos a partir de uma premissa, as artes e os trabalhos manuais

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são elementos genuínos da cultura e alta- Esses eram, basicamente, os proble-


mente valorizados nas suas ressonâncias mas epistemológicos mais gerais envolvi-
reveladoras do Geist5. Essa noção influen- dos no embate e que, no decorrer do tempo
ciou marcadamente a Antropologia norte- e dos aperfeiçoamentos das técnicas de
-americana, representada na figura de análise, levantaram novos problemas mais
Franz Boas e seu artigo “As limitações do específicos. No que diz respeito a cada
método comparativo em Antropologia escola de pensamento, os métodos utili-
Social” (1896). Nele, enfatizam-se o rela- zados é que vão caracterizar seus funda-
tivismo cultural e as particularidades de mentos. Ao pensarmos nesses aspectos,
cada grupo social, em contraposição as é possível afirmar que cada escola teve
ideias evolucionistas que, ao estudarem importância significativa no desenvol-
fenômenos similares em diferentes povos vimento da disciplina, o Evolucionismo
do mundo, postulavam que os aspectos com todas as ressalvas deu a Antropologia
universais da cultura observados, eram o status de uma Ciência. O Difusionismo,
desenvolvidos a partir das mesmas causas buscando estudar os empréstimos de
e que as variações eram detalhes meno- traços culturais em regiões limitadas, ou
res diante da grande evolução uniforme. melhor, o processo de transmissão de
Assim, os tensionamentos entre as duas uma cultura para outra, dentro de certos
perspectivas podem ser observados: limites geográficos, trouxe importante
contribuição “baseando-se em dados de
O embate entre Kultur e civilização sociedades tribais vivas do mundo inteiro,
foi abordado por vários intelectuais,
dentre eles Norbert Elias – particu-
sem grandes pretensões de descobrir as
larmente no primeiro capítulo do culturas humanas há milhares de sécu-
“Processo Civilizador” e Adam Kuper los, como foi o evolucionismo” (STORNI,
no primeiro capítulo de “Cultura, 2006, p. 17).
a visão dos antropólogos”. Há um
embate pelos corações e mentes
Se analisarmos que até o final do
entre duas perspectivas: etnocêntrica século XIX as pesquisas tinham uma divi-
que aspira uma validade universal e a são entre: observadores-viajantes, missio-
relativista que defende as particulari- nários, administradores de colônias e os
dades culturais e que reconhece que
não há conceitos, valores e verdades
antropólogos que organizavam e siste-
universais. Afinal, civilização e Kultur matizavam os dados coletados por seus
correspondem ao embate clássico informantes. No século XX, essas tarefas
constitutivo da história do pensa- ficaram atribuídas exclusivamente aos
mento antropológico que orbita entre
dois eixos: o universalismo e o parti-
antropólogos. Esses compreenderam que
cularismo. (GONÇALVES, 2010, p. 63). precisavam viver entre os povos pesqui-
sados não apenas como hóspedes, mas
também como nativos, ou seja, aprender a

5
“Geist que remete à tradição e aos valores nacionais (idiossincráticos) que se contrapõem às forças do progresso, a noção de Geist
realça os valores espirituais em oposição à ciência e à tecnologia” (GONÇALVES, 2010, p. 63).

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língua, os hábitos, conhecer a culinária, a comportamentos, o estudo dos sonhos e


habitação e até sentir suas emoções, essas desejos dos indivíduos. Diz o autor:
se tornaram “habilidades” fundamentais
do profissional antropólogo. Surge, dessa Ao estabelecer as leis e regularidades
dos costumes nativos, e ao obter uma
forma, o trabalho de campo antropológico. fórmula precisa para elas com base na
Um dos expoentes e defensores dessa coleção de dados e depoimentos nati-
técnica de fazer Antropologia foi Bronislaw vos, verificamos que essa precisão é
Malinowski, representante daquilo que se estranha à vida real, a qual jamais adere
rigidamente a quaisquer regras. Deve
enveredou chamar funcionalismo cultural. ser suplementada pela observação da
Esse autor, segundo Adam Kuper (1978), maneira como um dado costume é
diferenciava-se das ideias evolucionistas, posto em prática, do comportamento
precisamente na questão do método, pois dos nativos na obediência a regras
tão precisamente formuladas pelo
ele próprio colocou: etnógrafo das próprias exceções que
quase sempre ocorrem nos fenôme-
Minha indiferença pelo passado e sua nos sociológicos (MALINOWSKI, 1927
reconstituição não é, portanto, uma apud KUPER, 1978, p. 27).
questão de pretérito, por assim dizer;
o passado sempre será atraente para
o antiquário, e todo antropólogo é um Malinowski enfatiza que é preciso
antiquário... eu, pelo menos, certa- apreender o ponto de vista do nativo, sentir
mente sou. A minha indiferença por
certos tipos de evolucionismo é uma
suas emoções, descrever apresentando
questão de método. (MALINOWSKI, um corpus inscriptonum, como docu-
1927 apud KUPER, 1978, p. 19). mentos da mentalidade nativa, narrativas
características etc. Assim, é possível uma
Seus princípios metodológicos enfa- análise profunda da cultura observada.
tizavam um trabalho exaustivo de descri- Contudo, realiza um estudo sincrônico,
ções detalhadas da vida daqueles grupos não considerando a historicidade desses
observados. Sua perspectiva teórica povos sem escrita. A priori, o antropólogo
partia do pressuposto que os indivíduos deve ter o instrumental teórico antes de se
possuem necessidades físicas, biológi- chegar ao campo e fazer valer suas ferra-
cas e sociais intrínsecas e cada cultura mentas de análise funcional.
tem como função a de satisfazer à sua Maurice Godelier (1976), por outro
maneira essas necessidades básicas. Cada prisma analítico que privilegia os aspectos
sociedade realiza isso elaborando insti- econômicos das culturas, realiza a crítica
tuições (econômicas, políticas, jurídicas, aos métodos de Malinowski, realçando
educativas etc.) que fornecem respostas que suas análises retratam a realidade
coletivas organizadas aos seus hábitos e social como se fosse estática no tempo e
constituem ao seu modo soluções origi- como se houvesse sempre relações harmô-
nais. Para Malinowski uma verdadeira nicas e equilibradas por dividirem suas
ciência antropológica deveria incluir o instâncias em setores funcionais estáveis,
estudo das motivações psicológicas dos no entanto, essa situação dos sistemas

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moldados de acordo com a cultura.


sociais é aparente. Segundo esse autor, Nesse sentido, os hábitos sociais
as sociedades estão sempre imersas em de um determinado grupo refle-
mudanças e processos contraditórios, às tem os traços culturais constitutivos
quais o funcionalismo acaba escondendo. da cultura do referido grupo. Este
pressuposto [a primazia da dimen-
são cultural sobre as disposições
psíquicas individuais] irá perpassar
os estudos de toda uma geração de
SOBRE O CONCEITO DE CULTURA NA antropólogos nos Estados Unidos até
meados da década de 1940. Desse
ANTROPOLOGIA modo, para Alfred Kroeber, Ruth
Benedict, Ralfh Limpton, Margareth
Mead, dentre outros a grande ques-
O artigo de Gonçalves (2010) discute tão era: o que nós devemos à cultura?
O que nós devemos ao nosso código
esses diálogos e tensões levantados até genético? Aos nossos ancestrais? O
aqui, perfazendo, como bem aponta em que se transmite pelo sangue? O que é
seu texto introdutório, uma trajetória inato e o que é adquirido pela cultura?
do conceito de cultura na antropologia, (GONÇALVES, 2010, p. 64).
de forma panorâmica, dando ênfase a
produção acadêmica norte-americana, A escola de cultura e personali-
mas trazendo para o debate, funda- dade, assim denominada pelos pares e
mentalmente, reflexões nos campos dos composta por esses últimos, desenvol-
estudos culturais e das políticas das dife- veram uma série de estudos importan-
renças, que sinalizam para a problemá- tes sobre padrões culturais, instituições
tica da alteridade cultural na sociedade e conduta desviante. Especificamente
contemporânea. Margareth Mead e Ruth Benedict por
Dessa forma, nos interessa a meio de seus trabalhos6 utilizaram abor-
exposição das ideias em torno dos pressu- dagens que refletiram em críticas às práti-
postos que desencadearam esses campos cas da Psiquiatria e Psicologia ocidentais
de estudos e suas implicações para o “A abordagem das autoras [...] é um exer-
entendimento do que ocorre dentro e cício de relativização cultural, de autorre-
fora da academia. Segundo a autora, a flexão dos nossos padrões culturais e um
partir da escola boasiana, o pressuposto reconhecimento que a tradição cultural
da primazia da dimensão cultural sobre pode ser tão neurótica quanto o esquizo-
as disposições psíquicas individuais, irá frênico” (GONÇALVES, 2010, p. 66).
influenciar toda uma geração de antropó- A noção de conduta desviante
logos americanos nos anos 40. abriu um amplo leque de discussão em
torno dos estudos de gênero e dos estu-
Para Boas e seus discípulos, os dos multiculturais nos Estados Unidos,
comportamentos individuais são
que por sua vez, fez surgir o movimento

6
BENEDICT, Ruth. Padrões de cultura. Lisboa: Edições livros do Brasil, 2005. MEAD, Margareth. 1988 [1950]. Sexo e temperamento.
3. ed. São Paulo: Perspectiva.

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pós-moderno após a década de 1960. Esse autor inaugura a crítica pós-mo-


Esse movimento representado na figura derna na Antropologia que tem por base a
de Clifford Geertz, atualmente autor noção de autoridade do texto etnográfico
de referência no debate em torno do e sua relação histórica com a expansão
conceito de cultura. A partir de uma colonial. A crítica de matriz norte-ameri-
abordagem semiótica da cultura, formu- cana congrega vários interlocutores dos
lou sua definição de cultura durante suas campos dos estudos culturais, de natureza
experiências de campo no Marrocos nos interdisciplinar, que advogam por atua-
intervalos de 1964 a 1972 e na Indonésia ção no campo da política por direitos das
entre 1952 a 1971. Seu conceito está minorias étnicas, religiosas e de gênero.
baseado em princípios hermenêuticos e James Clifford é um dos representantes
entende por cultura “uma teia de signifi- dessa linha de abordagem nos Estados
cados”. Em seu livro A interpretação das Unidos e Stuart Hall na Inglaterra. Esses
culturas, escrito em 1973, propõe uma autores realizam a crítica dos conceitos de
reformulação nos objetivos e métodos da cultura e de identidade apontando como
Antropologia, realizando uma crítica à essas noções estão, na verdade, relacio-
Antropologia clássica (britânica, norte- nadas a projetos de política externa das
-americana e francesa) e às etnografias principais economias nacionais ameri-
de “gênero realista”. canas e europeias. Dessa forma, questio-
nam a representação da diferença, tratada
No primeiro capítulo do livro, Geertz pelas elites norte-americanas e euro-
indaga: em que medida a antro-
pologia pode ser considerada uma
peias como inferiores e/ou patológicas e
ciência? No contexto da teoria inter- buscam a valorização das culturas popu-
pretativista formulada por Geertz, a lares, em contraponto a “alta cultura”
antropologia também é uma ciência, disseminada pelas mídias, essas últi-
porém uma ciência interpretativa.
Geertz é explicito, quando denomina
mas como forma de reproduzir o status
a teoria interpretativa de ciência, mas, quo de um determinado extrato social.
com algumas diferenças – a ciência Assim, nasce o movimento multicultu-
interpretativa ao invés de buscar por ralista, após Segunda Guerra Mundial
regularidades, leis gerais, estruturas,
função, inspirada na semiótica teria
no contexto de processos de descoloni-
como objetivo apreender os signifi- zação e que tomam essas nações como
cados: as estruturas significantes que fragmentadas culturalmente.
tornam inteligíveis e/ou informam
os atos de nossos sujeitos. Define Multicultural é qualificativo- socie-
o conceito como essencialmente dades multiculturais, como Estados
semiótico, para o autor, a cultura seria Unidos, Grã Bretanha, Malásia, África
um contexto – algo dentro do qual; do Sul, e que apresentam problemas
os acontecimentos e os processos de governabilidade associados aos
podem ser descritos com densidade. interesses divergentes dos grupos
(GONÇALVES, 2010, p. 69).

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étnicos que são por definição cultu-


ralmente heterogêneos. No caso o papel da ação social em detrimento
específico norte-americano, refe- de uma visão que privilegia o enrijeci-
rem-se aos imigrantes e aos negros, mento da estrutura. Gonçalves retoma
e argumentam que toda diferença Kuper para explicar como o culturalismo
cultural deve ser tratada com respeito
e simetria e não como inferioridade norte-americano e as formulações teóri-
(GONÇALVES, 2010, p. 70). cas de alguns antropólogos utilizaram a
diferença cultural para justificar, de certa
forma, a dominação colonial e a interven-
Nesse cenário a teoria cultural ção nas ex-colônias do pós-guerra. Além
mescla-se entre teoria e ativismo político da imprecisão conceitual acerca do termo
e coloca para o debate entre os antropó- cultura, o determinismo cultural e o rela-
logos, qual o papel da própria disciplina tivismo cultural, como forma de invo-
nesse contexto? Para essa perspectiva a car a cultura para qualquer ação política,
cultura ou “alta cultura” serve unicamente era motivo de um olhar desconfiado do
para manutenção do poder e reproduzir a pesquisador sul-africano.
dominação social. Diante do mal-estar do conceito, sua
vulgarização e potencial perda do valor
A discussão gira em torno do conceito explicativo e analítico, Gonçalves vai apon-
de cultura em sua vertente sistêmica
e funcionalista e de identidade como
tar como Marshall Sahlins, em 1997, reali-
entidade ontológica fixa e ancorada zou uma defesa apaixonada do conceito
em elementos irredutíveis, nos estu- de cultura e de sua pertinência explicativa
dos culturais cultura é sinônimo de para os eventos contemporâneos:
“alta cultura” e funciona como ideo-
logia – falsa consciência no sentido
A resposta ao argumento de que
marxista refere-se às artes, à mídia
as teorias antropológicas formula-
e ao sistema educacional, contudo
das em torno do conceito de cultura
podemos afirmar que se trata de uma
estivessem a serviço da dominação
concepção restrita de cultura, que
colonial o autor rebate dizendo que
difere da concepção antropológica –
em sua gênese no marco da tradição
essa problemática foi discutida por
idealista alemã que remete a Herder
Marcus e Fischer em texto publicado
ocorre justamente o contrário. Este
em 1992, “Antropologia como crítica
conceito fora formulado justamente
cultural”. (GONÇALVES, 2010, p. 70,
em oposição ao projeto civilizatório
grifo nosso).
capitalista, valorizando as particulari-
dades nacionais, os valores e a tradi-
ção em contraposição ao progresso da
Os autores filiados a esse movimento, técnica e da ciência capitalista. Neste
portanto, concebem cultura e identidade sentido a intenção original da cultura
como historicamente construídos, nas era “anti-imperialista” (GONÇALVES,
2010, p. 71).
relações sociais e de poder, híbridas, ressig-
nificadas e manipuladas política, econô-
mica e ideologicamente (GONÇALVES, Para Sahlins é preciso “indigenizar” a
2010). Os autores estão preocupados em modernidade, descobrir padrões inéditos
realçar o caráter histórico da cultura e de cultura humana, essa seria a tarefa atual

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da Antropologia. Para tanto, exemplifica Dessa forma, os clássicos tornam-


com etnografias recentes de Lederman, -se fundamentais no que diz respeito às
Epeli Hau´ofa e Verry Turner, onde iden- novas formulações e à continuidade dos
tifica e defini sociedades insulares do questionamentos da disciplina. Se num
Pacífico como transculturais, ao se inse- determinado momento, os clássicos cons-
rirem na economia de mercado a partir tituíram autores-chave que trouxeram o
de suas próprias categorias cosmológicas, exótico à consciência do Ocidente, tanto
essas sociedades estão ressignificando em para servir-lhe de espelho existencial,
seus próprios termos o processo de globa- quanto para elaboração de um instru-
lização e remodelando suas identidades mental teórico abrangente, agora servem
culturais de forma inédita. “Não se trata de âncora das relações entre cientistas de
apenas de uma ligação simbólica com a várias origens, que os tem como iniciado-
terra natal, trata-se de conceber esta liga- res numa tradição ideológica intelectual.
ção como central no processo de transcul- A centralidade dos clássicos, assim
turação” (GONÇALVES, 2010, p. 72). reconhecida, não implica em transformar
as ciências sociais ou a antropologia em
um relato (história) delas, mas significa ter
em vista, as diferentes propostas, internas
ONDE ESTÁ A ANTROPOLOGIA? e externas, colocadas aos seus praticantes
e estudiosos, devidamente considerados.

Para Mariza G. S. Peirano, as Ciências Tal reconhecimento não faz dos clás-
sicos autores eternos e desvinculados
Sociais se organizam como comunidade do contexto no qual tem origem e/
transnacional, a partir de uma ideologia ou são apropriados. Mas tem como
comum, que deve manter os ideais de resultado observar que, apesar das
universalidade. Essa condição segundo a variações existentes, eles são essen-
ciais para a continuidade de um
autora, imprescindível, nos leva a leitura conhecimento que, em determinadas
e conhecimento indispensável das obras circunstancias, se tornou disciplinar:
clássicas, bem como do reconhecimento a questão de se saber quem são, onde
de sua relevância singular e contínua. são gerados, ou como se formam,
embora extremamente importante, é
secundária diante da sua existência
É aceitação, consciente ou não, de indispensável (PEIRANO, 1997, p. 68).
uma determinada história teórica que
situa determinadas obras e/ou auto-
res como clássicos de uma vertente
e estabelece uma linhagem não só Tendo como pano de fundo essas
de etnógrafos, mas de perguntas e questões gerais, Peirano perfaz um exercí-
de problemas, de questionamentos cio que tem por objetivo examinar ques-
teóricos enfim, que as novas gerações tões relativas às diversas manifestações da
herdam, procuram responder e legam
modificadas a seus descendentes. Antropologia em contextos contemporâ-
(PEIRANO, 1997, p. 68). neos. Visto que, a ideia difundida por uns
é o fim das disciplinas, a autora está preo-
cupada com os resultados de processos de

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aculturação no meio acadêmico e que, por Assim, a autora faz um alerta ao


conseguinte, o que sustenta a Antropologia perigo que norteia as tendências dessas
frente à fragmentação do conhecimento. A novidades e que são logo incorporados
partir do foco no cenário da Antropologia à transmissão da disciplina nos meios
contemporânea mediante o contraste de acadêmicos, mais recentemente, por
quatro livros7 publicados na década de 90 programas do tipo, Science, technology and
e uma breve etnografia em livrarias norte- society. O fato é que se as universidades
-americanas, procura levantar alguns refletem tais reconfigurações, “o melhor”
elementos relevantes para a discussão em lugar para observá-las, diz a autora, é nas
torno da situação da Antropologia produ- livrarias acadêmicas norte-americanas,
zida nos últimos anos. onde se insinuam como representantes
Embora a Antropologia feita nos templos do conhecimento e cuja avidez
Estados Unidos, tem ocupado lugar de do poder do mercado divide espaço. Nelas
destaque na cena internacional, a disci- também estão refletidos, o gerenciamento
plina não está isenta de críticas e ameaça daquilo que é considerado tradicional/
de dissolução, no mundo em que a frag- clássico e novidades/tendências.
mentação é valorizada e de ambiên-
cia pós-moderna, o cruzamento de A primeira impressão é a de que os
livros estão fora de lugar, migrados
forças ocorre e ainda assim, ela “resiste”. para outras áreas. O caminho que
Observando esses aspectos nos depar- levou esses livros de antropologia
tamentos americanos de Antropologia, para as estantes de cultural and criti-
Peirano acaba identificando, curiosa- cal theory, e destas para as de filosofia
e ciência, não demorou mais de uma
mente, algumas alterações: década. Nesse processo há outras
surpresas. Publicações de um só autor
Primeiro, modificaram-se os campos podem ser classificadas em diferen-
vizinhos da antropologia (como tes categorias: por exemplo, Homo
opositores ou aliados) - em vez da Hierarchicus fica em Asia/Pacific,
arqueologia, biologia, sociologia enquanto German Ideology, em filo-
ou linguística das últimas décadas, sofia. As chamadas antidisciplinas
quando saem de seus departamen- são indexadas pela presença do termo
tos os antropólogos hoje podem studies (media studies, feminist studies,
ser encontrados nos de história da science and technology studies, cultural
ciência, crítica literária ou filosofia. studies), e tornam-se áreas de ponta.
Segundo, um espaço extra é reservado [...] Nesse contexto fragmentado, de
nos seminários de formação teórica a forma (in) esperada, distinções poli-
um tipo de leitura que familiariza o tico-geográficos (ou culturais) sobre-
estudante com os recentes cultural vivem com vigor renovado. Esse tipo
studies. (PEIRANO, 1997, p. 69). de definição, em muitos casos, supera

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São eles: dois nos Estados Unidos (After the Fact, de Clifford Geertz, e Making PCR, de Paul Rabinow) e dois na Índia (Pathways, de
T.N. Madan, e Critical Events, de Veena Das).

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a classificação por áreas de conhe-


cimento: assim, monografias antro- literatura de estilo normal Science. Na
pológicas recentes, como Writing seção de Antropologia encontrará os
Women´s Words. Bedouin Stories (de clássicos canônicos, como Malinowski,
Michael Fisher e Medhi Abedi), em Boas, Margaret Mead, Evans- Pritchard,
Islamic Studies; e, em Latin America,
o destaque é para Death without Radcliffe-Brow, Lévi-Strauss etc. As publi-
Weeping (de Nancy Scheper-Hughers). cações recentes, apenas o que se enqua-
(PEIRANO, 1997, p. 70). dra como sinônimo de estudo do exótico
e temas consagrados como, ritual, reli-
Peirano coloca, que “nesse processo gião, etnografia, sociedades indígenas
de deslocamento e fragmentação, nas e livros não tão recentes, porém assi-
livrarias, a antropologia tornou-se ela nados por nomes que se tornaram legí-
própria um fenômeno pós-moderno, timos da área, como Mary Douglas e
multi-side.” (PEIRANO, 1997, p. 71) e Clifford Geertz. Em termos do que se vê
aponta para um problema específico nas prateleiras de autores/livros aqui
de crise de identidade da disciplina nos citados, a autora se questiona, onde está
Estados Unidos - seria a especificidade Antropologia contemporânea? O que se
social e cognitiva da Antropologia que verifica é que ela (as publicações recen-
estaria fugidia ou mesmo em algum lugar tes) migrou para a área dos studies, ou,
perdida? Parece que os indícios suplicam então, para cognitive science ou simples-
por algo a ser considerado nesse sentido. mente Science. Essa dispersão em que a
Felizmente, seguindo seus argumen- produção antropológica se encontra ou
tos, a Antropologia não está presa aos se perde, confirma a “moda” multi-sited
catedráticos da área e nem aos anseios da disciplina e remete para uma questão
dos centros metropolitanos (difusores da central – a de que a antropologia perma-
disciplina) e tem se revelado em diversos nece tão associada ao exotismo que até
contextos, por meio dos seus praticantes, mesmo o mercado intelectual não conse-
devedores das variadas áreas do conhe- gue chegar a uma perspectiva moderna
cimento: Filosofia, Sociologia, folclore, comum. Suplantada a ideia da alteridade
História, crítica literária e até nos atuais radical (além-mar) e voltando-se para o
estudos culturais. Resiste-se, segundo “nós” (alteridade próxima) para os antro-
autora, à sua decretada autodissolução e pólogos norte-americanos o estudo pode
é preciso, cientes da relativa continuidade vir a ser “tudo”, variadas categorias, menos
das ideologias pluralistas, diante da discus- Antropologia. Vejamos as consequências
são sobre o fim da Antropologia, se indagar: desse procedimento.
“onde está antropologia? Onde será que ela
emerge?” (PEIRANO, 1997, p. 71). O resultado é inevitável: se a antropo-
logia foi o estudo do “outro exótico”, é
Nas livrarias americanas, Peirano por que, em termos de valores, ainda
observa que, quando um leitor (a) procura o é. Nesse processo, revela-se a força
livros de Antropologia nas prateleiras da visão essencialista – e, portanto,
da área específica, ele (a) irá se limitar à a-histórica – no mundo intelectual
norte-americano de hoje: ou uma

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ONDE ESTEVE A “CULTURA”? ONDE ESTÁ A ANTROPOLOGIA?

disciplina é ‘disciplina’, isto é, sempre


a mesma, ou desaparece. (PEIRANO, Ao comparar esses focos, assimétri-
1997, p. 86). cos ou não, de disseminação do “pensar
antropologicamente”. Algumas indaga-
ções são inevitáveis: se de fato há “centros”
No entanto, Peirano se propõe ir e “periferias” na produção antropológica,
além dessa visão simplista, de um mundo onde ela tem provido abordagens positi-
acadêmico que dita categorias para o vas, críticas e construtivas? Para aprofun-
restante do mundo acatar ou se adequar. dar algumas reflexões, Peirano retoma
Chama atenção para o fato de que, o Louis Dumont e problematiza tais dicoto-
próprio meio acadêmico norte-americano mias, que para ela são sempre empobre-
vem incorporando, maciçamente, auto- cedoras, pode-se encontrar em outro texto
res não-ocidentais. Embora, esses auto- de sua autoria, pensamento convergente
res étnicos são encontrados com menos ao drama atual das relações observadas.
frequência nas livrarias, sua absorção
pelo mercado revela caminhos caracterís- Sabemos que as dicotomias são
sempre empobrecedoras como siste-
ticos. A reclassificação das obras citadas mas de conhecimento, embora efica-
anteriormente para análise contrastante, zes em discursos políticos. Centros e
opera por “deslizamentos de significado” periferias, teoria e prática, metrópo-
(PEIRANO, 1997, p. 87) diferentemente no les e províncias, excelência e compro-
misso, política da academia e política
caso da Índia e do Brasil, que operam, já da teoria, imperialismos e subimpe-
há algum tempo, sua alteridade em casa rialismos etc., são alguns exemplos.
sem constrangimentos, por exemplo. [...], é hora de trazer de volta o domí-
nio do que é vivido, da ação, da histó-
Critical Events não pôde ser aceito ria, dos acasos e dos imponderáveis.
como antropologia nos Estados [...], os próprios centros e periferias
Unidos; um antropólogo (nativo) que são concepções em constante muta-
estuda sua própria sociedade não é ção, as periferias de hoje podem se
um antropólogo, mas sociólogo. Por tornar centros de outras periferias
uma alteridade dupla (no caso, Índia amanhã, assim como essas mesmas
& antropologia), o livro desliza para a periferias podem se ver transforma-
sociologia - um destino pouco favo- das em centros de outras periferias.
rável, aliás, nesse momento em que [...] O mundo contemporâneo, então,
as disciplinas são questionadas. Já só pode ser compreendido por meio
no Brasil, assim, como na Índia, os do drama complexo que consiste na
livros After the Fact, Pathways, Critical interação das culturas e das ideologias.
Events e Making PCR são identifi- Assim, a configuração moderno-in-
cados como estudos antropológi- dividualista foi, durante sua história,
cos, tanto quanto são reconhecidos combinada com noções, valores ou
como antropólogos Geertz, Madan, instituições mais ou menos contrá-
Das e Rabinow. Não ocorre, nesses, rias a ela. Este fato, diz Dumont, não
contextos, a pulverização discipli- resulta de um legado do passado, mas
nar que hoje marca a área das ciên- é permanente, constante e definitivo.
cias humanas nos Estados Unidos. (PEIRANO, 2012, p. 2-3, grifo nosso).
(PEIRANO, 1997, p. 87).

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Não obstante, “não será esta a razão origens e orientações, por meio do diálogo
pela qual as universidades norte-ameri- e da comparação, é condição fundamen-
canas, hoje o centro da “cultura mundial tal para o avanço de nossa disciplina.
dos tempos”, precisam inserir, em seus Gonçalves alude Habermas (1987) para
quadros, especialistas de origem indiana, dizer que uma ação comunicativa eman-
paquistanesa, africana?” (PEIRANO, 2012, cipadora é necessária e que ela “pressu-
p. 2). Contudo, nos Estados Unidos o põe o abandono das tradições culturais
exótico tem se definido em outros termos, encerradas em si mesmas e a constru-
pelo exotismo dos autores, diversos são ção de valores universais” (GONÇALVES,
os trabalhos reunidos com o rótulo de 2010, p. 72). Retoma Kuper para enfatizar
cultural studies, sob o manto mágico da a busca pela semelhança e não na dife-
pós-modernidade apagando-se as parti- rença, o estímulo para nos comunicarmos
cularidades que são históricas e nacionais. e aventurarmos, para além das fronteiras
Nas prateleiras das livrarias norte-ame- étnicas, religiosas e nacionais. Por fim, o
ricanas a alteridade está, ironicamente pressuposto de uma suposta unidade do
“estranha”8 à Antropologia, assim como gênero humano validada pela teoria e a
esteve à Antropologia no trabalho de diversidade cultural empiricamente cons-
campo, em tempos não muito remotos. tatada, identidade e diferença, em sua
dialética, parece configurar os velhos dile-
mas que deram origem à disciplina, nos
seus primórdios. No mundo contemporâ-
AGENDAS E CONSIDERAÇÕES neo, segundo essa autora, vale ressaltar a
preocupação em torno de como e quando
diferenças se transformam em assime-
No final de seu ensaio, Peirano propõe trias, podendo se manifestar em atos
uma agenda de reflexões para o exame de terrorismo subjacentes ao acumulo
dos fenômenos híbridos da produção histórico dessas acepções.
social e intelectual do final dos anos 90
da disciplina. Para essa autora, retomar as
histórias teóricas, suas interseções e reco-
nhecer os clássicos, tornam-se igualmente
essenciais na produção dos saberes acadê-
micos que considera, relativamente, autô-
nomos e para o estabelecimento social da
Antropologia, com áreas de conhecimento
vizinhas, na sua prática contemporânea.
Alcançar níveis desejáveis de comunica-
ção entre os antropólogos de diferentes

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No sentido negativo da palavra; esquivo, não afeito, esquisito. Do latim extraneum, 'o que é de fora'; que não pertence à família..

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