Você está na página 1de 2

O Ciclo Natalino

* Por Rúbia Losso

Publicado em 24/12/2004 - 02:00

Meu São José dai-me licença


Para o Pastoril dançar,
Viemos para adorar
Jesus nasceu para nos salvar.

O ciclo natalino inicia-se na véspera do Natal, 24 de dezembro, e vai até o dia de Reis, 6
de janeiro. Para acompanhar esse período, é preciso manter a ingenuidade de uma
criancinha, a esperança de um amanhecer ensolarado, a ternura de um botão de rosas e a
leveza de uma linda borboleta no ar. A emoção do povo é revelada nos folguedos
natalinos através de sua ação dramática. Temos vários folguedos natalinos, como o
pastoril, o bumba-meu-boi, a cavalhada, a chegança, que fazem referências à Noite de
Festas e ao grande dia em que Jesus nasceu. Desses folguedos, o mais tipicamente
natalino é o pastoril religioso, que tem em sua essência a temática da visitação dos
pastores ao estábulo de Belém onde Jesus nasceu.

Há registros sobre o pastoril desde da Idade Média. Em Portugal são conhecidas as


peças de Juan de Encina e Gil Vicente, baseadas em temas populares anteriores,
segundo o professor Roberto Benjamin. Como denominação popular do pastoril, temos
a Lapinha, que desaparecera quase completamente, cedendo lugar aos pastoris. Câmara
Cascudo descreve que a Lapinha "era representada na série dos pequeninos autos, diante
do presépio, sem intercorrência de cenas alheias ao devocionário. Os presépios foram
armados em Portugal desde 1391, quando as freiras do Salvador fizeram o primeiro." O
presépio designa o estábulo ou o curral, lugar onde se recolhe o gado, e representa as
cenas do nascimento de Jesus em Belém. Há também uma diferença terminológica
decorrente de sua grandiosidade. Ou seja, se o era grande, rico e bonito, era chamado de
Presépio; se era pobre, pequeno e despojado, era uma Lapinha.

Mas, o que ficou na tradição foi a queima da Lapinha, no dia 6 de janeiro, pois só por
volta do século XVI, três centúrias após a criação da simbologia do presépio, teve início
a dramatização da cena da Natividade, com contos populares, danças e produção
literária anônimas, como registra Geninha da Rosa Borges. Pereira da Costa relata que
"o pastoril era, a princípio, a representação do drama hierático, o nascimento de Jesus
Cristo, o presépio dos bailados e cantos próprios. Conta a lenda que São Francisco de
Assis, querendo comemorar de maneira condigna o nascimento de Jesus, no ano de
1223, entendeu de fazer uma representação do maior acontecimento da Cristandade.
Obteve licença do Papa e fez transportar para uma gruta um boi, um jumento e uma
manjedoura, colocando o menino Jesus sobre a palha, ladeado pelas imagens de Nossa
senhora e São José.

Dentro dessa gruta, celebrou uma missa, assistida por um grande número de frades e
camponesas das redondezas. Durante o sermão, pronunciou as palavras do Evangelho:
"colocou-o num presépio, apareceu-lhe nos braços um menino todo iluminado", e a
partir daí, a representação dos presépios tornou-se comum e espalhou-se por todo o
mundo. O aparecimento do présepio em Pernambuco vem, talvez, do século VI, no
Convento Franciscano em Olinda. Mário Souto Maior comenta que, "com o passar dos
anos, o presépio, que era representação estática do nascimento de Jesus Cristo, até os
fins do século VIII, começou a ter a sua forma animada pelas pastorinhas cantando loas,
com a participação do velho, do pedegueba". Câmara Cascudo define o pastoril como
"cantos, louvações, loas, entoadas diante do presépio na noite do Natal, aguardando-se a
missa da meia-noite. Representavam a visita dos pastores ao estábulo de Belém, ofertas,
louvores, pedidos de bênção. Os grupos que cantavam vestiam-se de pastores, e ocorria
a presença de elementos para uma nota de comicidade, o velho, o vilão, o saloio, o
soldado, o marujo, etc. Os pastoris foram evoluindo para os autos, pequeninas peças de
sentido apologético, com enredo próprio divididos em episódios que tomavam a
denominação quinhentista de "jornadas" e ainda a mantêm no nordeste do Brasil..." Nas
jornadas, que eram um grande atrativo do pastoril, realçava-se o estilo dramático,
fazendo com que os partidários atirassem flores, lenços de seda e até chapéus.

O Pastoril tem como corpo principal o grupo de pastoras, subdividido em dois cordões
(azul e encarnado). A Mestra dirige o cordão encarnado, e a Contramestra, o cordão
azul. Há também o Anjo, o Pastor, o Velho - personagem cômico, originário
provavelmente do pastor -; a Diana, que é a intermediária entre os dois cordões; a
Borboleta, personagem faceira; a Jardineira, que canta e dança uma jornada em solo,
referente às atividades da jardinagem; a Libertina, que é, em algumas variantes, a
pastora tentada pelo Demônio; o Demônio ou Diabo, que vem tentar as pastoras; a
Cigana, que representa o povo cigano que vem dizer o destino, a sorte de Jesus e que "às
vezes, lê a sorte das pastoras e das pessoas da platéia, lendo a mão na tradição da buena
dicha para recolher o dinheiro.

Trajando saias curtas e rodadas, e corpetes ou blusas brancas, e usando um diadema


enfeitado com fitas, as pastoras, com toda a graciosidade, trazem na mão pandeirinhos
ou maracás, adornados da mesma forma. O Anjo apresenta-se como um anjo de
procissão, com asas de papel; a Cigana veste saia comprida e usa brincos, lenços,
colares de moedas douradas; a Borboleta usa asas transparentes e antenas de papel
colorido; e o Pastor utiliza um cajado.

Assistir a uma encenação do pastoril, que seduz e encanta, revelando de maneira


maravilhosa a estonteante beleza do Ciclo Natalino, traduzida nos rostos das pastoras, é
deslumbrar-se com um espetáculo único do povo brasileiro.

* Rúbia Lóssio é pesquisadora do Centro de Estudos Folclóricos Mário Souto Maior e


mestre em Administração e Comunicação Rural da UFRPE

Você também pode gostar