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Herel) ! Introdugdo Desde as tltimas décadas do século passado, o significado da lingua- gem para a constituigio do mundo e da autorreferéncia humana foi redescoberto e vinculado nas décadas seguintes as viradas icOnicae performativa* Durante esse processo, 0s significados de imagem e imaginacao, bem como 0s corpos ¢ sua encenacio e performance, ocuparam o centro dasatengées. Sobre esse pano de fundo, o presente livro examina o significado da imaginagao, dos processos miméticos e especialmente do caréter da natureza humana (Parte 1), 0 caréter performative dos rituais, gestos ¢ jogos (Parte 11), 0 corpo como fundamento do patriménio cultural intangivel (Parte III), bem como osprocessos transculturais de educacao paraa sustentabilidade (Parte 1). ‘Na primeira parte do livro, é analisado o significado da imagi- nagio para a criagéo do homem moderno. Com referéncia & homi- nizagdo, mostra-se como a imaginagao contribuiu para a produgdo da cultura e como esse imaginério individual e coletivo produziu ‘0 set humano. Trés tipos de imagens séo diferenciadas, segundo ‘uma tipologia das imagens mentais. Assim é elaborado o signifi- cado da imaginado para a representacio de uma auséncia ¢ para 7 Ferformiativo significa um momento estético de representacoes culturals que feito com expressbes do corpo dos atores. O autor combina a realizagio de rituals, didrios com este momento. 8 4 HOMO PICTOR © aparecimento do novo. Em seguida, como uma contribuicéo para a teoria dos processos miméticos, esclarece-se em que medida processos miméticos esto fundamentados na imaginacdo, Processos miméticos so formas produtivas de imitacdo, nos quais se alcanca a assimilagao de um oposto, do qual o homem quer ser semelhante, © impulso mimético conduz para algo semelhante, como uma ‘im- pressio” que retém mimeticamente as pessoas com as quais se quer parecer, Na infancia esses processos sdo particularmente importantes. Oaprendizado cultural é em grande parte um aprendizado mimético. Em processos miméticos as criangas aprendem a sentir, expressat ¢ modificar seus sentimentos. Da mesma forma, a fala e a postura ereta so habilidades adquiridas mimeticamente. Ademais, como mostrou Walter Benjamim em “Infincia em Berlim por volta de 1900", as criangas também exploram seu entorno em processos miméticos, nos 4quais elas assemelham-se a esse ambiente e 0 incorporam ao seu ima- gindrio. Com a ajuda da imaginacdo também sio incorporadas em processos miméticos as imagens de outras pessoas, outros mundos ¢ ‘outras vidas. A educagio pode ser compreendida como um processo ‘mimético no qual a critice aos modelos também desempenha um papel importante, No terceiro capftulo mostra-se que a imaginagio € 0s processos miméticos por ela possibilitados sio condigdes im- portantes da natureza humana. Nos seres humanos, chega-se a um entrelagamento indissohivel da natureza fisica e cultural. 1550 cria nos seres humanos uma artificalidade natural ea dependéncia do homem da sua prépria producdo material. Assim diferencia-se a natureza humana de todas as outras formas de vida. Também é tratado na segunda parte do livro © conhecimento gestual ¢ ritual, que ¢ um conhecimento pritico e técito, adquirido em processos miméticos, em cujas imagens atos rituais egestos sociais so incorporados. Rituais e gestos criam comunidades, Sem rituais, ino haveria o social. A este respeito seres humanos sio seres sociais, ‘que necessitam da comunidade e engendram-se nesses rituais, Por isso, rituais desempenham um papel central para a formagdo social e ayTRoDUGiO 5 cultural do ser humeno, O seu poder social desdobra-se do seu cardter performativo. Rituais sio encenagdes ¢ representagdes de relagdes sociais. Seu caréter performativo emerge. Eles tornam algo visivel, {que sem cles nao existiria. Rituais projetam passagens de um status social para outro e desdobram assim uma forga magica. Ela advém do {ato de que todos os participantes acreditam na adaptagao que ocorre no ritual, no qual uma transicdo de um status para outro é alcangada, Na primeira fase do ritual os participantes ainda estdo associados & situagdo inicial. Na segunda, a fase intermediéria ou liminar, eles completam a transicao. Na terceira fase ocorre a ligagdo com a nova situagio. Usando o exemplo de um ritual de matriménio pode-se ilustrar esse processo, No decorrer desse ritual a transicZo da situagao de “solteiro” para o status social de casado é encenada e executada Os rituais no sio estiticos. Se eles fossem, se degenerariam em esteredtipos e perderiam sua fungao social. Eles so dinamicos, ou seja, eles mudam ao longo do tempo e séo marcados por diferentes situagdes histéricas e culturais. Sua dinamica e performatividade formam sua eficécia social, Rituais criam sentimentos; eles sto ‘expressivos e demonstrativos e produzem ordenagées; essas contém ierarquias ¢ estruturas de poder que muitas vezes esto implicitas Rituais podem lidar com conflitos e diferencas. ‘Nos rituais os gestos desempenham um papel central. Para a comunicagéo humana eles tém um significado muito maior do que geralmente se Ihes atribui. Os gestos no podem ser reduzidos ao seu significado semantico, como aconteceu por muito tempo na Linguistica, Eles tém uma relacao préxima com a linguagem oral; mas nio esto a ela subordinados. Os gestos diferenciam-se em gestos de “bater”, que produzem significados linguisticos, gestos icdnicos metaféricos. Gestos iconicos sio definidos por suas caracteristicas ‘visuais; podem servir por exemplo para indicar 0 tamanho de um objeto. Gestos metaforicos sio acessiveis somente quando se esta familiarizado com seu contexto cultural. Um exemplo disso sio os gestos na danca indiana, que néo so compreensiveis sem 0 conheci- 6 HOMO PICTOR mento do seu significado simbélico. Apés extensa pesquisa etnogré- fica, reconhecemos a importancia dos gestos na educacao, formacio « socializagdo em familias, escolas, nas culturas de pares e nos meios de comunicagio. A importancia dos gestos também é parcialmente explicada pelo fato de que eles sto evolutivamente muito anteriores @ linguagem verbal. Implicitamente os gestos transmitem valores sociais e culturais em formas corporais elementares. Isso acontece ruitas vezes de forma inconsciente, Nos gestos muitas vezes estéo condensados os significados dos rituais. O significado do gesto ¢ claro, se as criangas em um ritual de matrfcula, por exemplo, sio recebidas com um girassol com as seguintes palavras: sua vida na escola pode ser tdo ensolarada como esta flor. Devido ao seu caréter performativo e ichnico, os significados dos gestos muitas vezes nao sio evidentes ¢ podem ser compreendidos somente em seu contexto, Nos rituais ¢ gestos, os elementos Itidicos desempenham um papel central. Eles serio investigados na parte final deste capitulo, Eles contribuem significativamente para o caréter dinémico e para a diversidade da performatividade dos rituaise gestos. Nés demonstramos entio queo jogo éuma condigao e possibilidade do homem, que esta intimamente ligado com a imaginacdo ¢ a mimesis. No cardter de faz de conta dos jogos ¢ projetada a possibilidade da acao do homem, na qual se realiza sua liberdade. Na terceira parte do livro torna-se claro que rituais ¢ gestos, corpos ¢ performatividede, imaginagdo e processos miméticos de- sempenham um papel central na producdo, transformacio e trans- missio do patriménio cultural intangivel. Seu medium € 0 corpo ‘humano com sua temporalidade e transitoriedade. Entre as formas importantes de patriménio cultural intangivel estéo os rituais, as dancas, as festas e as formas tradicionais de vida e trabalho. Como resultado da convengdo da uNEsco, adotada em 2003, estéo reunidos exemplos para a salvaguarda do patriménio cultural intangivel em todo o mundo. Na Franga é o “repas familial’, no Brasil as diversas formas de “cultura vive’, que desempenham um papel central na INTRODUGAO 9 formacio de uma identidade cultural brasileira. Para a conservagao, ‘transformagdo e transmisséo do patriménio cultural intangtvel e sua contribuigdo para o desenvolvimento da identidade cultural, os pro- ccessos miméticos desempenham um papel central. Eles contribuem para a encenagio e performance, para a performatividade dessas, formas culturais e para que importantes conhecimentos préticos sejam adquiridos e transmitidos de uma geracao para a prdxima. Isso pode ser mostrado usando 0 exemplo da danca. Aprende-se a dancar apenas em processos miméticos, durante o qual hd uma assimilagao das respectivas dancas pelos bailarinos. Isso é 0 que torna possivel encenar e apresentar dancas e assim produzir um conhecimento pré- tico baseado no corpo, que nos coloca em posigdo de repetir dangas, modificé-las ¢ transmiti-las para as prdximas geragées contribuindo assim para a identidade cultural. ‘A mediacao ritual, a competéncia gestual e o conhecimento cultu- ralimaterial referem-se & necessidade de uma compreenséo complexa da educagio, como formulada na recomendacio da UNESCO (1997) “Learning — The Treasure within’, na qual trata-se de aprender a saber, aprender a fazer, aprender a viver junto e aprender a ser learning to know, learning to do, learning to live together, learning to be"), Isso também significa que a educacdo nao ¢ apenas entendida como uma educacao nacional, orientago muito importante para diversos paises em seus esforcos para desenvolver uma identidade nacional. A educagao hoje deve ser entendida como uma missio transcultural; quando se trata de compreender ¢ tragar relagdes entre 6 desenvolvimento do mundo globalizado ¢ circunstincias culturais particulares. £ importante compreender a natureza “glocal” de muitos fendmenos, resultado de um entrelacamento entre o global ¢ 0 local. ‘No mundo globalizado, duas tendéncias relacionam-se entre si, ‘uma tendéncia de homogeneizagio do mundo e outra tendéncia de diversidade cultural. A educacdo deve fazer jus a esta situagio. Nela desempenha um papel importante a competéncia de lidar com 0 outro, com a alteridade e com o estrangeiro. No ambito da educagao uD HOMO PICTOR intercultural € importante pensar nos outros, ou seja, desenvolver ‘um pensamento heterolégico, que resiste as tentativas de reducio do estrangeiro ao ambito do conhecido. Entre as principais estratégias de reducéo do outro para o “préprio” estéo 0 logocentrismo, egocen- trismo e etnocentrismo europeus. Desde o colonialismo esses estraté- gias desempenham um papel importante no nao reconhecimento da alteridade. Além de lidar com a diversidade cultural, que é uma tarefa cada ‘vez mais importante no mundo globalizado, a educacio paraa pazea educagao paraa sustentabilidade sio tarefas centrais de uma educagio sustentivel. Como 0 relatério de monitoramento da uxEsco de 2011 aponta, a formagao e a educagao néo sio possiveis nos termos da violéncia declarada. A paz € um pré-requisito para o sucesso de qualquer forma de educacéo. Contribuir para a reduglo da violencia estrutural e simbélica também é um papel central da educacio para a sustentabilidade. Isso também requer um uso cuidadoso dos recursos Go mundo, para garantir as geracdes futuras a sua oportunidade de viver. Criar 0 entendimento e a disposigdo para isso € 0 trabalho de ‘uma educagao que atenda aos desafios do futuro. 1. Imaginagao e mimesis A criag4o do ser humano através da imagina¢ao INTRODUGAO ‘No contexto da cultura visual moderna, as imagens assumiram um novo significado. Através dos meios de comunicagéo de massa, ‘elas penetraram todos os campos e facetas da vida humana e passaram fa exercer sua influéncia em todos os lugares. Com @ difusio da cultura visual, a_percepgio de que as imagens desempenham um papel central para qualquer compreensio da modernidade tornou-se inevitivel. Assim, um novo tipo de atengao tem sido dedicada as imagens na esteira da “virada pictérica’ dos estudos culturais. A {questo central — O que é uma imagem? — devem ser somadas outras nio menos importantes. Como as imagens sio usadas?_ O que fazemos com as imagens? O que as imagens fazem com a gente? Faz até mesmo sentido falar da imagem? (Boehm 1994; Schafer € Wulf 1999; GroSklaus 2004; Maar e Burda 2004; Sachs-Hombach 2005; Wulf e Zirfas 2005; Hlippauf e Wulf 2006). Nao seria mais sensato diferenciar entre tipos distintos de imagens? Surge a questo, por exemplo, se as imagens digitais ainda so imagens nas quais a justaposigao da presenga e da representacao desempenha qualquer papel. Imagens digitais ndo esto, em nenhuma medida, baseadas, em impressdes fisicas: digitale Bilder sind keine Abbilder (imagens 2 1 IMAGINAGAO E MIMESIS digitais nao sao imagens). Elas sio produzidas matematicamente, sua aparéncia de serem re-produgdes baseadas em impressdes é 0 resultado de simulagoes geradas matematicamente. Encontramos uma situagdo especialmente complexa quando nos voltamos para os métodos de produgdo de imagens das ciéncias naturais, nos quais as imagens como resultado de cflculos complexos € © processamento iconoldgico sio, com frequéncia, mutuamente incompativeis, Em todas as disciplinas académicas, as imagens tém emergido para tomar o seu lugar ao lado da linguagem verbal, expli tando, por assim dizer, que esto transmitindo informacées icénicas ‘que ndo podem ser reduzidas a palavras. Em outras palavras, as imagens tém um valor em si mesmas, um valor para 0 qual no hé substituto. No campo da cultura e da ciéncia, esse valor foi trazido 8 tona na esteira da “virada pict6rica’ Qual significado, ~P antropolégico reside na capacidade duzir imagens? Como podemos conceitualizar essa habilidade de fazer imagens, de lembré -las ¢ reconstitui-las? Qual é 0 seu significado para a humanizagio filogendtica e ontogenética? imaginagio é parte integrante da conditio humana, a condicéo hu- mane, na auséncia da qual o homem nao se torna homem no sentido | flogenético ou ontogenético (cf. Wulf 2001, 2004). Em uma primeira aproximagio, podemos descrever a imaginacio como uma poténcia «que faz.o mundo aparecer ao homem, no sentido do grego phainestai Duss facetas dessa conceitualizacao precisam ser distinguidas. Por um lado, “fazer aparecer” implica que o mundo aparece ao homem é percebido de maneira circunscrita pelas condigdes do ser humano. Por outro lado, “fazer aparecer” significa conceber o mundo através de imagens mentais e crié-lo em conformidade formal, Imaginagao, portanto, é a energia que liga o homem ao mundo e vice-versa, Ela [ ‘Meu ponto de partida para essas deliberagées é que o poder da +0 termo “fantasia” esta relacionado a0 grego phainestai, no qual a énfase principal recai sobre algo aparecendo ou sendo feito para aparecer. Em contraste, a {nfase no tetmo latino imaginatio ests no processo de incorporar imagens, também acentuado no termo alemao Einbldangskraf. “A.CRIAGKO DO SER HUMANO ATRAVES DA IMAGINAGAO, 3 ‘age como uma ponte entre exterior e interior, é de cardter quidstico e desdobra seu significado exercitando sua funcéo, Foi no pensamento ‘omano que a fantasia transformou-se em imaginacéo. A linguagem expressa a caracteristica da imaginagio que tornou o mundo exterior ‘em imagens e transferiu-as a um mundo interior de imagens. Em lingua alema, a imaginaco torna-se “poténcia de imaginagao” nos escritos de Paracelso; um poder que projeta o mundo no homem e, assim, faz seu mundo interior conter o exterior, Na auséncia dessa possibilidade, nfo haveria o mundo humano da cultura, o imaginério (ck Iser 1991; Zizek 1997) ow a linguagem. HOMINIZAGAO E IMAGINAGAO Sabemos pouco sobre as origens da fantasia. Seus primeiros vvestigios datam de muito tempo atrés. Sem diivida, ela esté intima- mente relacionada ao grande aumento do volume do cérebro, que comecou com o Homo erectus, ou seja, 800 mil a 50 mil anos atrés. Desenvolvimentos significativamente decisivos ocorreram nessa fase. © Homo erectus fica em pé, libertando as maos. A interagao entre 0 ‘cgescimento do cérebro, aliberdade das maos, o desenvolvimento do cranio anterior e da linguagem provoca uma complexidade crescente ¢ caracteristicamente humana na qual a fantasia vem desempenhar ‘um papel central, Nao é apenas o simples aumento no tamanho (um aumento de um fator de 3 em relagéo a0 peso corporal, no caso do Australopithecus, para 4,5 no Homo erectus e para 72 no Homo sapiens), mas, sobretudo, a qualidade da interconexdo neural que impulsiona o crescente poder da fantasia. O desenvolvimento do cérebro é parte de uma série de outras alteragdes. A postura vertical, a mudanca de habito ¢ a crescente importancia de uma dieta de ‘carne como consequéncia da caca, 0 uso do fogo eo desenvolvimento gradual da inguagem e da cultura sao de fundamental importancia. A humanizacao pode ser concebida como uma génese morfol6gica mul- tidimensional dirigida a interago de fatores ecoldgicos, genéticos, cerebrais, sociais e culturais, em um contexto no qual também surge oa 1, IMAGINAGAO E MIMESIS a imaginacdo; uma faculdade que assume um papel fundamental para o desenvolvimento do homem. Podemos ver a imaginacio € sua capacidade de conceber imagens em acio no proceso pelo qual um pedago da natureza ¢ transformado em um instrumento esteticamente concebido. Nesse processo, uma pedra éselecionada deacordo com uma ima- ‘gem mentale talhada de modo que toma a forma de um instrumento, ‘que deve cumprir certas fungdes e, a0 mesmo tempo, responder a exigéncias estéticas, Outro nivel de formacao estética é alcangado quando os seres humanos comecam a traduzir sua realidade interna em desenhos, como nas gravuras de osso de Bilzingsleben na Turingia cerca de 300 mil anos atrés, Alguns intérpretes descobriram a forma de figuras nesses desenhos, enquanto outros se limitaram a ver so- mente sinais indecifraveis. As estatuetas de animais e homens feitas cerca de 35 mil anos atrés nos vales do Reno e do Danibio anunciam uma nova fase na producéo e confeccao de imagens. Elas marcam a emergéncia do Homo pictor, 0 homem das imagens. (© mesmo vale para as pinturas rupesires dessa época, encontra- das quase que exclusivemente na Europa e maravilhosamente elabora- das no sul da Franga, Se aceitamos a interpretacdo de Leroi-Gourhan, essa arte “parece se destacar de uma escrita real e seguir uma trajetéria que parte do abstrato, levando aos modos de representacao da forma e do movimento, a fim de se fundir com o realismo em sua trajet6- tia final, e finalmente desaparecer completamente” (Leroi-Gourhan 1964: 268). O que podemos afirmar com certeza, contudo, € que os criadores e seus contemporaneos percebiam de modo muito diferente do modo como percebemos hoje. Ao colocar em perspectiva nossa capacidade de entendimento dessas imagens rupestres, nossas deliberagées se referem metodolo- gicamente & nossa conceitualizagao de antropologia historica (Wulf 1997, 2002), que clama por relacionar a historicidade e a imersio cultural das obras & historicidade e imerséo cultural de seus obser- de casualidade) Essa sok ‘A CRIAGAO DO SER HUMANO ATRAVES DA IMAGINAGAO 25 adores € vice-versa, Somente desse modo podem ser definidos (08 fundamentos desses trabalhos que abarcam a propria historici- dade como elemento constitutivo de seu entendimento. Como essas imagens foram percebidas? Elas foram percebidas como criaturas vivas? Sera que a presenca de animais na imagem torna possivel criar mentalmente a presenga de animais ausentes? Nos nao sabemos. Para o observador de hoje, essas imagens tornam algo presente. las apresentam animais e formas ausentes ¢ intensificam 0 ato de representacao através do ato de apontar, de exibir, através de um gesto déitico que entendemos apenas de forma muito insatisfatéria. ‘As imagens rupestres permitem, pela repeticéo, a reanimagdo ¢, as- ‘sim, intensificam a percepgao. Vemos imagens como imagens ¢ as coisas representadas nelas como objetos de representacio icénica. "Ao mesmo tempo, vemos @ referéncia que elas fazem a um mundo fora das imagens. O que vernos como uma imagem se refere a um exterior que esta relacionado com o que ¢ representado,y Algumas FS Ca TENGHO € magica, algumas veres € de semelhanca, outras iS de diferentes imagens em nossa percepgio é a consequéncia do poder da imaginacéo. Somente o poder da imaginacio torna o nosso olhar sobre as imagens possivel e permite que as imagens retornem para esse olhar. IMAGENS DOS MORTOS £ IMAGINAGAO Presentes funeritios encontrados em sepulturas do Vale de Nean- der séo tragos mais nitidos do desenvolvimento da faculdade imagi- znativa: pinturas, provisOes e ferramentas nos permitem concluir que ‘os neandertais acreditavam na vida apés a morte. Em Ferrasie, na Franga, um homem, uma mulher e uma crianga foram escavados, esta tendo sido aspergida com octe, Na caverna de Shanidar, no Curdistio, pélen de rosas, jacintos € cravos foram descobertos embaixo de esqueletos, sugerindo que os mortos foram alojados sobre flores. Essas descobertas permitem deduzir que os vivos se preocupavam com 0s mortos e os consideravam ainda pertencentes a eles. Eles 26 1 IMAGINAGAO E MIMESIS| conheciam a dor ¢ 0 luto e tinham uma ideia da finitude da vida humana, que procuravam compensar com 0 auxilio de uma crenca em uma vida no além. O homem de neandertal nao elaborou somente ideias de passado ¢ futuro, mas também ideias de um imaginario ¢ da capacidade dos mortos continuarem a viver em um mundo transcendente. A morte é uma fronteira que provoca a produgio de imagens imaginérias. Isso foi tio verdadeiro nesses estgios iniciais do desenvolvimento humano como ainda é hoje, Grande parte do imaginério religioso ¢ resposta a transitoriedade do homem e nossa erradicagio através da morte. A experiéncia da morte e a produgdo de imagens baseadas em artefatos estdo intimamente relacionadas. Isso é ilustrado pelo arte- fato visual de um cranio da ilha melanésia de Nova Irlanda, La, 0 culto aos mortos se manifesta em uma estétua esculpida em madeira pertencente a pessoa cuja meméria foi evocada no rito de morte. © cranio foi moldado com pasta de cera e giz e pintado com cre. Duas conchas de moluscos foram colocadas no lugar dos olhos. E tipico messe caso que “o significado atua simultaneamente com © significante e irrita nossa expectativa normal, que pressupée a distancia entre uma obra e seu sujeito” (Boehm 2001). E importante notar, entretanto, que o crénio é feito de modo a néo representar uma simples mumia, mas é antes transportado para um contexto imaginério diferente, um contexto no qual transmuta-se em portador de poderes diferentes que nao podem ser experimentados sem imagi- nacio. Cranios ¢ imagens de mortos somente podem entrar no ambito do possivel na presenca de uma ideia coletiva sobre uma transcendén- cia, Hé evidéncias de artefatos primitivos como os crinios de Jericé de cerca de 7 mil anos atrés. Com a ajuda de tais artefatos a comunidade produzia imagens dos mortos, por meio das quais a auséncia do falecido tornava-se presente mais uma vez na comunidade, muito embora como imagem. ‘Na imagem, a auséncia do falecido se sobrepée e coincide com sia [ACRIAGAO DO SER HUMANO ATRAVES DA IMAGINAGAO 2 presenca na imagem. A imagem se refere a uma auséncia e a torna visivel como imagem, Uma imagem obtém 0 seu significado ao retratar algo ausente, algo que qua absentia s6 pode estar presente como uma imagem e na imagem, ‘A imagem de uma pessoa morta no & de modo algum uma anomalia, mas pelo contrério: ela €o significado original do que ‘uma imagem é anal. O morto sempre estaré ausente, morte é ‘uma auséncia insuportével que se pretende preencher com uma imagem para torné-la suportavel. Por essa raz3o, os humanos baniram os seus mortos, que estdo distantes, para um lugar escolhido (a sepultura) enquanto ao mesmo tempo thes dio, na imagem, um corpo imortal: um corpo simbilico, pelo qual eles s4o ressocializados enquanto seu corpo mortal se dissolve no nada. (Belting 2001: 144) ‘A imagem faz algo apatecer que nao est na imagem, mas que pode aparecer somente como imagem. A palavra grega phantasia expressa exatamente isso, A fantasia € 0 poder da imaginacdo de fazer algo aparecer na imagem que ndo esté, e 20 fazé-lo cria a esfera da estética avant Ia lettre (Gebauer e Wulf 1998a, especialmente 41ss.) ‘Aquilo que vemos em uma imagem nao sao apenas formas, cores € ‘composicao, ou seja, seus elementos icdnicos; o que vemos em uma imagem é aquilo que vemos como uma imagem. Ver em e ver como & possivel pela fantasia, pelo poder criativo da imaginacdo que faz o mundo aparecer ¢ que, portanto, é fundamental para a rela¢ao do homem com o mundo, ‘Sem imaginagao, nao haveria memérias ow projesdes de futuro. De acordo com a definicio de Immanuel Kant, a imaginagio é a capactdade “de apresentar um objeto 8 contemplagdo mesmo sem sua presenga real” (cf. Kant 1983, § 24). Na opiniao de Kant, a imaginagao esté ligada a percepsao dos sentidos. Para que os conceitos se relacionem com a realidade, eles devem ser acompanhados pela percepcio visual. Embora isso nio seja problemitico no caso de conceitos empiricos, conceitos mentais e racionais requerem esque- mas e simbolos para tornar-se palpaveis para os sentidos. Nao hé 1. IMAGINAGAO E MIMESIS| experincias subjacentes a conceitos como estado, amor e morte na visio de Kant. Nao obstante, a imaginaso pode mediar conceito © percep¢do ao trazer & mente objetos compardveis & percepcdo sensorial Discutir o papel da imaginacio na estética deixou claro que a imaginacdo é mais do que a capacidade de trazer os ausentes para @ . © presente ¢ imaginar o mundo. (A criagéo e reestruturagio dos pi sistemas de ordem é uma caracterfstica importante da imaginacdohA imaginacdo nos permite inventar coisas ¢ desenvolver a criatividade, Ela permanece uma questo aberta no que se refere & dependéncia da produtividade da imaginagio as precondigdes da natureza e da cultura, Mesmo se assumissemos que 0 artista age como natura ‘naturans, no mesmo modo do poder criativo da natureza, essa me- tafora nao esclarece como a originalidade, criatividade ¢ novidade se desenvolvem. Criatividade imaginativa esta baseada no ato da inventio que oscila entre actio e passio e que é transportado por uma forga originada em outro lugar, na “liberdade da subjetividade” A imaginagdo nao tem nem deixa de ter origem, mas deve sua existéncia paradoxos mediais € produtividade desses paradoxos. PRESENGA — REPRESENTAGAO — SIMULAGAO Como vimos, a habilidade para criar imagens usando a fantasia ré uma caracteristica distintiva do homem. As imagens oscilam {entre aquelas com caracteristcashieritico-mégicas (onde imagem & } idéntica 20 que ela mostra) e aquelas que nada representam e apenas 4 simulam, Entre esses dois tipos de imagens esto aquelas baseadas em uma relagio de representacio ea relacio na qual, para o mundo e para outras imagens, ¢ mimética. Podemos, portanto, distinguir trés 15 tipos de imagens: + aimagem como presenga migica; + aimagem como representacio mimétic: |ACRIAGAO DO SER HUMANO ATRAVES DA IMAGINAGAO 9 + a imagem como simulagio técnica Existem sobreposicdes multiplas e intersecgdes entre os tipos. Se tal tipologia parece, no entanto, justificada, é porque ela nos permite {dentificar caracteristicas icOnicas muito diferentes e algumas vezes contraditérias, ‘A imagem como presenga magica foo Entre as imagens criadas no tempo em que elas ndo haviam se tornado ainda trabalhos de arte, esto estétuas, miscaras, imagens de culto e sagradas; imagens de culto (ou seja, imagens de deuses e {dolos) exercem um papel central, Antigas representagdes das deusas da fertilidade de culturas arcaicas, feitas de barto e pedra, sao bons / exemplos. Muitos idolos, estétuas € mascaras de tempos remotos asseguram, ao longo de sua existéncia, a presenca do divino. A adoracio do Bezerro de Ouro relatada no Antigo Testamento também é uma imagem de culto na qual imagem e Deus coincidem e na qual a presenca da divindade é encarnada e simbolizada no bezerro. Enquanto Moisés recebia os mandamentos de Deus no Monte Sinai, {que proibiam explicitamente a criagdo ¢ adoragdo de imagens de Deus, 0 povo, liderado pelo irmao mais velhos de Moisés, Aaron, se ocupava indulgentemente na mais arcaica forma de adoragio de {dolos, Enquanto Aaron representa a imagem de culto, Moisés ocupa ‘a posicéo oposta de combate & imagem e iconoclastia. Até 0s dias de hoje permanecem essas posicdes fundamentais em relagdo as imagens. Blas compartilham a conviegdo sobre o poder das imagens. [Esse] poder decorre da capacidade de processamento da presenga de um ser distante e efémero, para emprestar a sua presenca bem como para tomar inteiramente 0 espago da percepedo e atengio humanas. A imagem tira a sua forga da assimilacdo e cria uma semelhanca com o representado, © bezerro de ouro é — quando visto da perspectiva do ritual Deus, A imagem ¢ seu contetido fundem-se a ponto de serem indistinguiveis. (Boehm 1994: 330) 2». suas reliquias a 1 IMAGINACAO & seneesis No culto medieval a reliquia, uma pequena parte de um corpo atribuida a um santo era suficiente para fazé-lo presente. “Aqui reside _ © corpo de muitos santos’, como a colegao de reliquia de Conques eclaral OS SANTOS ERED PTERENTES, les nig estd0 representados pelas > local onde esto depositadas parte de seus restos mortais. As reliquias santificam tanto o local quanto os participantes do ritual. Por meio da prética ritual, a relacdo entre a reliquia como a encarnacdo idolatrada do sagrado ¢ os resultados salutares esperados na esteira das préticas rituais € estabelecida naquilo que podemos chamar como magico em outros contextos culturais, z ‘Muitos trabalhos de arte moderna nao representam algo externo obra em si, eles meramente produzem uma presenca — e 20 fazé-lo, tornam-se perfeitos remanescentes dos primeiros artefatos (de culto) anteriores a idade da arte. a experiéncias ima- géticas do sagrado e do divino sao deliberadamente e explicitamente iniciadas, como por exemplo na capela de Rothko em Houston, na _ qual as cores das imagens deixam o espectador suspenso em um estado difuso de leveza onde “presenga difusio” encontram um equilibrio arcano. As pinturas de Newman, também, confrontam 0 contemplador com seus préprios limites e mediam uma experiéncia de impoténcia, De acordo com a leitura do proprio Newman, isso torna a experiéncia o mais sublime possivel: Ela marca a sobrecarga da capacidade cognitiva com algo desmedido. A quebra da autoconscigncia e 0 fracasso diante disso torna-se um enriquecimento inesperado. [..] Nesse sentido, a pintura de Newman néo quer mostrar algo, nem a0 menos camadas de tinta ela quer afetar, disparar algo no observador. Como imagem, ela se desfaz no momento em que consegue fazé-lo. (Ibid. 343) 2 ACRIAGRO DO SER HUMANO ATRAVES DA IMAGINAGAO ‘A imagem como representagao mimética (nde I Nos escritos de Platao, as imagens transformam-se em representa~ (Goes daquilo que elas proprias nao sdo. Elas retratam algo, expressam Jago, apontam para algo De acordo com Platio, pintores e poetas “hdo produzem do mesmo modo que Deus ctia ideias ¢ artesios ‘constroem ferramentas, Bles criam aparigdes de coisas, sem a pintura | ea poesia ser limitada a interpretacdo artistica das coisas, mas antes & representagao das aparigBes como elas aparecem! O objetivo nao é@ fapresentacio das ideias ou da verdade, mas o processamento artistico: de fantasia) Por essa razto, pinturae poesia miméticas poder, em principio, fazer aparecer o visivel (Platon 1971, 598a: 801ss.). Isto & sobre a mimesis que cria imagens ¢ ilusGes, a mimesis para a qual a diferenca entre o modelo io nio é i Gue a arte e a esiética constituem um dominio sui generis no qual 0 artista e 0 poeta sfo mestres, O artista, de acordo com Plato, nao tem ¢apacidade para produzr algo vivo est livre das reivindicagbes da vyerdade que filosofia deve conhecer e que é fundamental para a pélis. [A arte ea estética conquistam assim a independéncia das demandas e preocupacées da filosofia, de sua busca pela verdade e discernimento, de sua luta pelo Bem e 0 Belo. O prego que elas devem pagar é a exclusio da pélis, que ndo pode aceitar o carter imprevisivel da arte e da ficcao (cf. Gebauer e Wulf 19982, especialmente parte icf. também Bodel 1995) (0 processo artistico objetiva, portanto, a elaborago de uma ima- gem interior, uma imagem formada pelo olho interior do artista ou do poeta(A forma orientadora de sua elaboracio é progressivament issolvida na imagem que vem a ser um meio diferente da projecio 10 6 marcado por modificacdes, omissbes, rages e adaptagées, assimn aquela semelhanca é apenas parcialmente realizada, Em muitos casos, os modelos das pinturas e dos projetos do artista sio desconhecidos, como se nunca tivessem existido ou sobrevivido. Central para o processo artistico € a imagem, que TL IMAGINAGAO E MIMESIS | contém referéneias a seu modelo, seu precursos, veo) ce que é 0 resultado de uma transformacao. i “ae [ox A produgio (mimética) da representagdo é uma das capacidades | ante A ‘opoldgicas mais fundamentais. Um dos seus temas centrais © corpo humano. Retratos renascentistas ¢ fotografias contempo- réneas retratam corpos humanos que representam seres humanos. Fotografias retratam seres humanos em situagGes significativas de | suas vidas por meio de imagens do corpo. Essas ¢ outras formas de representago tocam em questées de autoconcepcao humana, Sem imagens de nés mesmos, o que quer dizer sem representagdes de nds mesmos, somos ininteligiveis para nés mesmos. Para sondar os _ limites da autopercepcdo humana precisamos compreender 0 carter imagético de tais representacdes. —___ | Desde tempos remotos, 0 homem tem feito imagens do corpo) humano. Como retratos de seres humanos so sempre representacdes | do corpo, essas imagens também encarnam a visio do homem. Ao longo do tempo que compreendemos como histéria, as imagens tem. retratado 0 corpo diferentemente embora este tenha softide poucas mudangas do ponto de vista biolégico. A histéria de tais imagens é |. »» representativa da histéria do corpo humano. Ao mesmo tempo, ela € a historia da representacao do homem e da concepcio do homem. Disso podemos concluir que © homem € como ele aparece no corpo. © corpo em si é uuma imagem, mesmo antes de ser imitado em imagens. A representacio ndo é 0 que ela pretende ser, ou sea, a reprodugao do corpo. Na verdade, € a produgio de uma imagem do corpo que jé esta prefigurada no autorretrato do corpo, O tridngulo homem-corpo-imagemt nao pode ser dissolvido sem | uma Variacdo que afete todos os trés termos, (Belting 2001: 85) ‘A imagem como simulagdo técnica Suntae™ Hoje, tudo se transforma em imagem, Mesmo corpos opacos so transformados, perdendo sua opacidade e espacialidade, tornando-se, portanto, transparentes e fugazes. Processos de abstracdo culminam “A CRIAGAO DO SER HUMANO ATRAVES DA IMAGINAGAO x» em imagens e simbolos. Podemos encontré-los em qualquer lugar € ‘em todos 0s lugares, nada mais ¢ estranho e avassalador. Imagens fa- em coisas ¢ “realidades” desaparecer. Paralelamente & preservacdo € conservacio de textos, pela primeira vez na historia humana, imagens também sto armazenadas e transmitidas em uma escala significativa, Fotos, filmes ¢ videos sio transformados em auxiliadores da meméria, como memérias imagéticas tornando-se vivas. Até este ponto, os textos tém exigido 0 suplemento de imagens imaginadas, agora a imaginacdo € reprimida e contida pela produgao e disseminagio de *imagens-textos” Cada vex. menos pessoas so produtoras; cada vez ‘mais estdo entre os consumidares de imagens pré-fabricadas, que nao colocam desafio relevante & imaginacio (cf. Baudrillard 1987). Imagens sao formas de abstracdo especificas; sua bidimensio- nnalidade transforma o espaco. A natureza eletronica das imagens televisivas promove ubiquidades e aceleragdo. Tais imagens podem ser disseminadas, virtualmente e simultaneamente, através de todo © globo (cf. Virilio 1990, 1993, 1996). Elas miniaturizam o mundo tornam possivel uma experiéncia do “mundo como imagem’: Elas ‘constituem um novo tipo de commodity e esto sujeitas as leis econd- ‘micas do mercado, Imagens séo produzidas e comercializadas mesmo nnaqueles casos em que 0s objetos aos quais se referem ainda nio se transformaram em commodities, Imagens so criadas na troca com ‘9 outto ¢ sdo feitas para se relacionar com outros, Fragmentos de jmagens so incorporados e reunidos novamente de uma maneira distinta, imagens fragmentadas so geradas para se constituir como algo inteiramente novo. Elas esto em movimento, referenciando-se ‘umas as outras. Sua propria aceleragao j4 & 0 primeiro passo para sua assimilagio: a mimesis da velocidade. Devido & sua bidimen- sionalidade e natureza eletrOnica e miniaturizada, as imagens esto se tornando cada vez mais parecidas, embora diferentes em seu contexto. Elas varrem os espectadores para longe, os intrigam e intimidam. Elas dissolvem as relagdes entre pessoas ¢ coisas que j@ evoluiram ao longo do tempo e os transportam para um mundo “ 1. IMAGINAGAO B MIMESIS | de aparéncias. Desse modo, 0 mundo, o politico e 0 social sio | estetizados. Seguindo a légica mimética, as imagens buscam por _ imagens precursoras com o objetivo de assimilé-las e transformé-las | em algo novo, fragmentando imagens fora de todos os campos de referencia, A promiscuidade das imagens ganha vida. O resultado _ sio jogos intoxicados com simulacros e simulagées: a diferenciacdo maxima das imagens acompanhadas pela implosao de sua diferenga. | ‘As imagens como imagens sio a mensagem (McLuhan). f Imagens sao disseminadas na velocidade da luz. Um mundo de © aparénciase fascinagio passa a existir, dissolvendo seus vinculos com a “realidade’, O mundo de aparéncias se espalha e tende a esvaziar os outros “mundos” de seu contetido real. Cada vez mais imagens sio produzidas tendo somente a si préprias como ponto de referéncia, | sem correspondéncia com a realidade. Levado a extremos, tudo se torna um jogo de imagens, um jogo no qual tudo é possivel, com a consequéncia de que questdes éticas (entre outras) perdem o seu significado. Se tudo se transforma em um jogo de aparéncias, a arbitrariedade ea falta de comprometimento nao podem ser evitados. © mundo de imagens que é gerado, por sua vez, afeta a propria _ vida. Torna-se cada vez mais dificil fazer distingdes entre vida e arte, fantasia e realidade. Os campos confundem-se. A vida torna-se © modelo, a protoimagem do mundo de aparéncias € vice-versa. © visual esté em uma trajetéria hipertréfica. O mundo torna-se transparente, 0 tempo é comprimido, como se tudo o que sempre cexistu foi a presenca de imagens aceleradas. Tais imagens despertam desejo, elas o fascinam e prendem, reduzindo limites e diferencas. Ao _ mesmo tempo, elas escapam ao desejo; ainda que presentes elas se referem e apontam ao ausente, As coisas e o homem em si mesmo ‘demandam a transgressio nas imagens. Imagens transformam-se em simulacra (cf. Baudrillard 1981, 1987, 1990, 1991, 1992, 1995). Elas se relacionam a algo, adaptam-se a isso sio produtos de um processo de mimetismo, Debates politicos néo sto conduzidos para 0 seu proprio bem, mas para transformé-los [A CRIAGAO DO SER HUMANO ATRAVES DA IMAGINAGAO % ‘em imagens ¢ distribui-los na televiséo. Desde a sua criagio, 2 controvérsia politica é vista em termos das imagens nas quais elas se transformam. As imagens televisivas transformam-se no meio {do debate politico. Os espectadores observam uma simulagio da controvérsia politica onde tudo é encenado de modo que eles so induzidos a acreditar que 0 debate politico é auténtico. Tudo é orientado na direcdo de sua transformagio no mundo das aparéncias. ‘Onde isso pode ser alcancado, a controvérsia € bem sucedida. A simulacio da politica cria 0 impacto politico. Simulagées tem um {impacto maior do que o debate politico “real”. ‘Simulacra estio em busca de arquétipos ou modelos pré- -existentes de imagens, “Vor-Bilder” que elas préprias estao criando. ‘Simulagdes tornam-se {cones que tm repercussio no cariter da controvérsia politica. Torna-se dificil definir fronteiras entre realidade e simulacra e 0 cruzamento de barreiras tem resultado em imagens que se sobrepGe e permeiam umas as outras de ‘um novo modo, Processos miméticos permitem que as imagens pré-existentes, as prOprias imagens e as copias das imagens interajam entre si, O objetivo das imagens nao é mais corresponder ao modelo pré-existente, O mesmo acontece com as pessoas. O objetivo é atingir uma semelhanga excepcional dos individuos com eles mesmos, atingivel como 0 resultado da mimesis produtiva contra o pano de fundo de uma ampla gama de diferenciagdo do mesmo sujeito. IMAGENS INTERIORES — IMAGINAGOES ‘Até esse ponto, idamos com as imagens produzidas pelo homem como Homo pictor e sediadas fora do seu corpo por varios meios. Nos voltaremos agora as imagens que constituem a consciéncia do homem. ‘A imaginagao humana ocasiona transformagSes do mundo exte- rior no mundo das imagens e as transporta & consciéncia humana. Esse processo inicia com a percepgdo: percebendo, nés nao poderia- ‘mos ver qualquer imagem, se nfo fosse a capacidade de geragéo de 36 1 IMAGINAGAO E MIMESIS| imagens da imaginagio dentro de nés. E o seu poder que nos insere em uma ordem histérica e cultural, por meio da qual nossa relacéo com 0s objetos materiais e com outros seres humanos é determinada Em uma assimilacdo ao mundo, suas imagens passam a existir dentro de nés, Esse processo, em sua orientagio 20 mundo, é dirigido pelo _ desejo de abrir-se ao mundo e ao mesmo tempo de aproprié-lo na forma de imagens perceptivas e mneménicas. Na maioria dos casos, imagens interiores envolvem sobreposicées entre imagens individuais ¢ coletivas do imaginario interior do mundo exterior (Bodei 2004, 1999). © mundo das imagens interiores de um sujeito social é deter- minado pelo imaginério coletivo de sua prépria cultura, pelas qua- lidades tnicas e inequivocas das imagens derivadas de sua biografia individual ¢ finalmente pela sobreposicao e interpenetragdo miitua destes mundos imagéticos. Nos ttimos anos, a pesquisa biogréfica ‘em educacio fez avancos importantes no que diz respeito ao papel e fangao desses mundos interiores das imagens. A seguis, distinguire- -mios sete tipos de imagens interiores: 1. imagens como moduladores do comportamento; 2. imagens de orientagao; 3. imagens de desejo; 4, imagens de intengao; 5. imagens mnemdnicas; 6. imagens miméticas 7. imagens arquetipicas (cf. Fligge 1963). IMAGENS: MODULADORES DE COMPORTAMENTO. A guestéo aqui é se, ou em que medida, os seres humanos séo dotados de estruturas hereditarias de comportamento. E indiscutivel que © hiato entre estimulo e reacdo é peculiar aos seres humanos. Este fato, entretanto, nao determina a influéncia de imagens mentais sobre 0 comportamento humano. Nos tiltimos anos, a etnografia teve insights importantes sobre como 0 “disparo de imagens” afeta padrdes bésicos de comportamento humano, tais como comer e beber, procriagio e criago de filhos. A CRIAGAO DO SER HUMANO ATRAVES DA IMAGINAGAO ” Imagens de orientagio Socializagdo © educagéo transmitem milhares de imagens de -orientacdo que permitem aos jovens encontrar o seu rumo no mundo ¢ direcionar suas vidas. Muitas dessas imagens sio extremamente simples ¢ acessiveis, féceis de produzir e por essas razdes muito poderosas socialmente, Essas imagens sio pubblicas, elas sto compartilhadas por muitas pessoas que estio, portanto, “vinculadas” através delas; pertencimento, comunalidade e coletividade sio ‘produzidos pelo compartilhamento em tais redes de imagens. Sob ‘ecsas condicdes de globalizagao, essas redes de imagens globais ‘ultrapassam fronteiras entre culturas nacionais e geram novas formas de consciéncia transnacional. t t i i Imagens de desejo Estruturalmente, imagens associadas a impulsos e fantasias de realizacdo de descjos so similares, mesmo quando elas frequente- mente se diferenciam em suas manifestagées concretas. Elas sio de considerével importancia para a orientacio da atividade humana e dos sonhos. Em muitos casos, buscam preencher desejos & medida ‘que contém o conhecimento sobre a impossibilidade de sua realizagio (Bodei 2000, 2002). Imagens de intengao Enquanto as imagens de realizacao de desejos s4o orientadas para ‘a posse e o usufruto, as imagens de intengao sao projegdes de energia | para a acio, Desejos modulados pela vontade sio manifestacdes de um excesso de diregdes do trabalho humano e o cerne da nossa cultura esté na habilidade de manter tais desejos (Bodei 2002) Imagens mneménicas Imagens mneménicas, ou seja, imagens de memoria, determinam, ovcardter especifico da pessoa. Em parte, sio acessiveis e maledveis ao 8 1. IMAGINAGAO E MIMESIS 4 CRIAGAO DO SER HUMANO ATRAVES DA IMAGINAGAO 20 desejo; em parte escapam & compreensio e a0 controle da consciéncia. Muitas sao geradas pela percepgao, algumas podem ser atribuidas a | : ara o indivi +o que cle experimenta,e nao s6 Siuasesimagingrias, Imagens mneménicas se sobrepdem eentrela-|___ Para indiduo entender o gue le experiments «nto 6 para fam com novas percepgSes eajudam. formats. asso o produto ee ee a et de um procesio de selegio, no qual a supressio e 0 esquecimento aparecer internamente, uma aparigdo que se torna consciente rna medida em que o poder autoconsciente e perceptivo existe conscientemente motivados (no sentido do perdéo) desempenham uum papel importante, Imagens mnemOnicas disfargam a historia de uma pessoa. Elas esto presas aos espacos e tempos de suas vidas ¢ se relacionam a tristeza e & felicidade, estéo ligadas ao fracasso | € ao sucesso, Elas se lancam ao primeiro plano da meméria, de ‘modo que o passado se torna presente e fornece um remédio contra | ‘ ' ‘Nao é preciso sublinhar as explicagdes ligeiramente dibias sobre a | geraco do “inconsciente coletivo” e dos arquétipos para reconhecer que cada cultura tem gerado imagens orientadoras fortes, imagens fatidicas que sio capazes de influenciar agdes individuais através de seuss sonhos e do seu imaginario cultural ai ibilidade ae ade do tempo. O OLHAR SOBRE AS IMAGENS — O OLHAR Imagens miméticas DAS IMAGENS Platdo foi um dos primeiro a apontar para as imagens como mo. delos pré-existentes (Vor-Bilder), colocando um desafio para nossa | ‘ habilidade mimética, Tals imagens pré-existentes podem ser pes- | 64 as configuragdes nas quais estdo baseadas sio contempladas, Mas soas vivas, bem como imagens imaginétias, Platéo sustenta que a {que significa contemplar? Hé tipos muito diferentes de olhares. Eles compulséo para imitar ¢ to forte que ndo podemos resist a ela — adem ser modests, benevolentes, impacientes, maldosos, raivosos especialmente enquanto somos criangas e adolescentes. A conclusio | Ley Olhares estd0 ligados intimamente a histéria do sujeito e da ds Pltdo 6 portanto, que conscientementefezemos uso de todas 88 | pygpria sbetividade, bem como a istéra do conhecimento. Poder, imagens que servem de imitacdo para a educacéo, e devemos excluit | Controle e autocontrole encontram expressio meles. Sao evidéncias todas as imagens perniciosas para a educagdo, Aristételes discorda: | Je nossa relaga0 com 0 mundo, com outras pessoas e conosco. O Para ele, oponto £2 confrontagio dos jovens com o desegradivel, de | Gjhar de outras pessoas constitu a esfera social, e nesta categoria, nés ‘um modo controlado, com o intento de permitir-Ihes resistir. Ambas podemos distinguir olhares intimos ¢ piblicos. Os varios olhares 3 posigGes ecoam nos debates de hoje sobre os efeitos da violencia {stag ligados ao imaginario coletivo e & concepcao do ser humano, nas novas midias (Gebauer e Wulf 996a, 1998bs Wulf 200). ( olhar nao pode ser descrito adequadamente nem como um feixe de luz. que é indispensavel para tornar o mundo visivel ou como tum espelho que apenss reflete o mundo. O olhar € ative bem como CG. Jung define sua importancia para a vida dos individuos da __passivo, ele se dirige ao mundo e o recebe a0 mesmo tempo. O que seguinte forma: determina essa relacio entre atividade e passividade tem sido assunto | de controversia na histéria do olhar. Merleau-Ponty indicou que nés | devemos assumir que o mundo esta olhando para nés, bem como as. [As imagens de presenca, de representacdo e de simulagao bem ‘como muitas imagens mentais passam a existir somente quando elas Imagens arquetipicas Todos os grandes eventos da vida, todas as grandes tenses Portanto recorrem aos tesouiros dessas imagens, que fazem 4 1 IMAGINAGAO E MIMESIS imagens que fazemos de nés mesmos. No olhar, 0 mundo e 0 ser hhumano se interseccionam, em um quiasmo. Com um olhar, a pessoa pode expressar muitas coisas e negé-las, pois o olhar é espontaneo ¢ no dura, Ele torna coisas visiveis e ao mesmo tempo € uma forma de expresso humana Muitas observacdes tém sido feitas com respeito ao olhar em relagio as imagens ou gravuras como obras de arte, Como Hans hares jé estdo nas imagens mesmo antes de cairem sobre elas, Sozinhos permitem o uso da histéria da imagem no aux da histéria do olhar” (Belting 2006: 121) Uma iconologia do olhar pode portanto fornecer percepgdes sobre a diversidade histérica ¢ cultural das praticas imageticas. O olhar oscila entre imagem, corpoe Belting colocou, “ meio; ele néo mora no corpo nem na imagem e desdobra-se entre eles; | dle na pode se prender a qualquer coisa ou ser rapidamente detido, ele tem a escolha de como se relacionar aos meios. Imagens capturam oolhare “em nosso desejo pelas imagens transformam o préprio olhar em ol 10”. Na obra de arte, a prética imagética priméria do corpo smuta na prética imagética secundéria. Ao olhar imagens desprovidas de vida prépria, a imaginagao se desdobra. Olhando para um espelho ou através de uma cortina podemos perceber o proprio olhar. “O olhar através do vidro ¢ ecoado pela tela do computador, 0 olhar no espelho pelo video" (ibid: 123) Ao lidar com imagens, o olhar mimético desempenha um papel importante. Nesse olhar, como observadores, nés nos abrimos 20 mundo, Ao tornar-se um com ele, nés ampliamos nossa experiéncia, Nés tomamos uma imagem de um modelo do mundo ¢ a incorpo- ramos em nossa imagem mental do mundo, Como nés refazemos visualmente formas e cores, texturas e estruturas sdo transformadas em um mundo interior & tal processo, a tornam-se parte de nosso imaginério. Em singularidade do mundo em sua especificidade his- térica ¢ cultural & apreendida. Aqui, a questéo € como preservar © mundo € a imagem de interpretagdes apressadas pelas quais o “mundo” é transfor linguagem e significado, mas ao mesmo A.CRIAGKO DO SER HUMANO ATRAVES DA IMAGINAGAO a tempo aniquilado pela “imagem” Antes, 0 objetivo deve ser reter ‘ inseguranca, complexidade e multiplicidade de significados para ‘9 mundo e aceitar sua ambivaléncia. Ao refazer mimeticamente 0 ‘mundo, nés nos expomos & sua ambivaléncia e Aquela das imagens. ‘esse processo, 0 ponto é “decorar” a se¢do do mundo em vista, ou a {imagem em vista. Isso significa que nés devemos fechar nossos olhos ¢ recriar as imagens que vimos diante de nosso olho interior usando a imaginacéo, Devemos focar nossa atengao sobre elas, protegé-las de futras imagens abduzidas pelo fluxo de imagens interiores e “agarrar” ‘a imagem por forca de nossa concentra¢do e poder de pensamento. Recriar uma imagem em contemplagdo € 0 primeiro passo para 0 engajamento mimético com as imagens. Os passos seguintes séo agarré-las, trabalhé-las e fazé-las desdobrar-se em nossa imaginacéo. Reproduzir uma imagem em contemplagao interior, permanecer aten- ‘tamente em sua presenga, ndo é uma realizado menor do que se empenhar em sua interpretago. Aprender — nés participamos do proceso de Bildung — a entrelacar esses dois modos de se relacionar ‘com imagens € 0 nosso objetivo. PERSPECTIVA ‘A capacidade humana de transformar 0 mundo em imagens na percepedo € incorporé-las é parte da condicio humana. O que é 4 conditio humana? Ela € uma pré-condicéo para a meméria bem ‘como projecées para o futuro ¢, portanto, também para a histéria e a tradigao, para a mudanca hist6rica e cultural, Imaginagao € mais do que a capacidade de trazer 0 ausente para o presente, ela também permite adaptacbes e reformulagbes, a geragio de difezencas, inven- ao e inovacdo. Através do olhar, os seres humanos transformam 9 mundo exterior em mundo interior ¢ expressam sua relagao com cle, Estruturado como um quiasma, 0 olhar ocasiona a emergéncia ‘do mundo interior das imagens no qual o individuo, o imaginario e 0 coletivo se sobrepdem. A imaginagao néo est confinada ao visual. Em esséncia, cla é um poder sin-estético ¢ dificilmente menos

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