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ESTUDOS POLÍTICOS E

ECONÔMICOS
AULA 2

Profa Regina Paulista Fernandes Reinert


CONVERSA INICIAL

Olá! O objetivo desta aula é compreender as transformações dos


processos econômicos e políticos a partir do conceito de modo de produção.
Esse conceito pode ser aplicado a qualquer contexto histórico, e o nosso objetivo
é demonstrar que desde a pré-história – quando predominou o comunismo
primitivo de produção e distribuição igualitária e cooperada – até as formas mais
complexas de solidariedade individual na produção foram, em última instância,
determinados pelos modos de produção.

CONTEXTUALIZANDO

O conceito de modo de produção nos permite entender as sociedades de


cada época no conjunto de suas relações em suas demandas econômicas,
sociais, políticas e ideológicas, precisamente porque são os modos de produção
que entrelaçam essas forças sociais que se encontram na economia, na religião
e na política. Por meio do conceito de modo de produção podemos analisar as
circunstâncias pelas quais a sociedade produz seus bens e serviços, como os
utiliza e os distribui, além de nos possibilitar entender como se coordenam todos
os aspectos da sociedade a partir da economia.
O modo de produção de uma sociedade é formado por suas forças
produtivas, que podem ser humanos ou máquinas, e pelas relações de produção,
isto é, a forma como as pessoas interagem na produção da vida. O modo como
os seres humanos produzem e garantem sua sobrevivência muda a cada época,
mas são eles que determinam todas as outras características da sociedade.

TEMA 1 – A ECONOMIA NA PRÉ-HISTÓRIA

1.1 Do comunismo primitivo à divisão da sociedade em classes

A etnologia1 classifica as sociedades primitivas de acordo com as matérias-


primas que empregam para fabricar suas ferramentas de trabalho. O etnólogo,

1 É o estudo das culturas – povo ou grupo social – e da investigação dos problemas teóricos que
surgem da análise dos costumes. A etnologia é segundo estágio da pesquisa, vindo depois da
etnografia (Assis, 2011, p. 19).
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ao estudar os dados levantados pela etnografia2, na esfera da antropologia
cultural e social, compara-os com outros dados e documentos a fim de dar um
lugar na história para a civilização que estuda.
De acordo com alguns economicistas e antropólogos, o primeiro sistema
econômico da história da humanidade foi o comunismo primitivo, e foi também o
que teve maior duração. Durante vários milênios essa fase existiu na vida de
todos os povos. Naquela época, também chamada de selvageria, não tínhamos
uma economia no sentido de ser algo racionalizado, pensado em relação ao
futuro. Não fazíamos nem estoques de alimentos. Vivíamos em uma economia
natural, coletando tudo o que pudesse servir de alimento. Não intervínhamos na
natureza, a não ser para dela retirarmos nosso sustento.
A atividade econômica visava apenas aos bens de uso imediatos e era
desempenhada e dividida por todos, sem distinção. A força produtiva dessa
época era, portanto, muito rudimentar. Éramos em um número bastante
reduzido, dada a escassez de alimentos, e nossas relações sociais eram
igualitárias, isto é, desconhecíamos a propriedade privada dos meios de
produção (Engels, p. 21-25).
A técnica mais importante da pré-história foi a descoberta e a preservação
do fogo. Com essa descoberta houve uma inovação fenomenal na forma de
elaborar os alimentos. Uma invenção estimula novas outras e, assim, foram
desenvolvidos os primeiros instrumentos – machados, lanças, arco e flecha –,
todos com vista à obtenção da sobrevivência. Esse momento marca também a
passagem de uma dieta vegetariana para o consumo de carne, com isso
contribuindo para uma evolução física extraordinária, principalmente do cérebro,
que teve seu tamanho aumentado devido à proteína animal.

Mas onde mais se manifestou a influência da dieta com carne foi no


cérebro que recebeu, assim, em quantidade muito maior do que antes
as substâncias necessárias à sua alimentação e desenvolvimento, com
o que se foi tornando maior e mais rápido o seu aperfeiçoamento de
geração em geração. (Engels, 1999, p.17)

Figura 1 – Pintura rupestre

2 Etnografia é o trabalho de campo, o primeiro estágio da pesquisa antropológica. Consiste na


observação, descrição e análise de grupos humanos considerados em suas particularidades.
Antes da atividade etnológica o antropólogo se utiliza da etnografia (Assis, 2011, p. 19).
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Fonte: <http://www.aluzdaluz.com.br/existe_inicio_cronologico.htm>.

Essa pintura rupestre de cerca de 18.000 anos mostra cena de animal


sendo caçado, sinalizando a introdução da carne na dieta humana.
Embora nessa época já desempenhássemos atividades artísticas e
religiosas, não existia a política no sentido de se pensar em espaços de decisão,
mas já havia o poder de um líder, originado na sabedoria dos ancestrais, na
coragem, firmeza e capacidade de solucionar os infortúnios e dificuldades que a
comunidade demandava.
Esses acontecimentos se desenrolaram no Paleolítico, período que se
estendeu por cerca de dois milhões de anos até o início do Neolítico, por volta
de 12 mil anos a.C. Só mais tarde, quando começam a produzir um excedente,
é que os seres humanos se proliferaram, formando tribos compostas por clãs –
as primeiras linhas de parentesco – e, a partir desses clãs, a família, mais ou
menos da forma como a conhecemos hoje (Engels, 1978, p. 28-31).
Engels, utilizando-se das pesquisas de Morgan, relata que o comunismo
primitivo foi fundamental na luta pela sobrevivência da espécie humana naquela
fase de desenvolvimento. Sozinhos não teríamos conseguido aperfeiçoar
continuamente os instrumentos de produção como o fizemos na vida coletiva.
Não exploravam uns aos outros; ajudavam-se mutuamente. Quando acontecia
o enfrentamento com outros povos, os prisioneiros eram mortos e comidos.
Essas atitudes não eram frutos de um planejamento prévio, consciente: ocorriam
naturalmente. Para Engels, o comunismo primitivo é a fase inicial do

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desenvolvimento de todos os povos da humanidade, o que não pode ser posto
em dúvida (Engels, 1978, p. 32-36).
Por força da própria evolução e para driblar a escassez de bens materiais
de sobrevivência, a consciência individual começa a se constituir diferenciando-
se da consciência coletiva (Durkheim citado por Quintaneiro, 1995, p. 28-30). O
comunismo primitivo começa a desaparecer aos poucos, dando início à
sociedade de classes. A gradual substituição da caça pela criação e
domesticação de animais é um dos fatores de aumento na produção de comida,
além da obtenção de peles e lã. O rebanho assinala a primeira divisão do
trabalho social e o sistema de trocas com outras tribos. As forças produtivas
experimentam outro extraordinário avanço com o desenvolvimento da
agricultura, sendo que o cultivo de cereais criou um permanente manancial de
alimentos. É também o momento em que aprendemos a confeccionar tecidos e
roupas devido à produção de lã e a fundir metais como o cobre, o zinco e o
estanho. O ferro e o bronze vieram mais tarde na fabricação de armas (Nunes,
1997, p. 30-34).

1.2 Da divisão da sociedade em classes

Dessa etapa em diante, a produção entrou numa escala mais acelerada,


marcando também o início do domínio sobre a natureza e a possibilidade de um
futuro mais seguro pelo armazenamento de comida. A força do trabalho se
tornou mais complexa e impulsionou o desenvolvimento de todas as áreas da
produção – rebanho, agricultura, artesanato e serviços –, inovando cada vez
mais os produtos, inclusive mais do que o necessário à sobrevivência. A
possibilidade de um excedente social vai gerar uma mudança na nossa
mentalidade, um sentimento que muitos acham necessário para se chegar à
acumulação de bens: a ambição. Pela ambição conquistaríamos bens e
chegaríamos à felicidade, e felicidade é a segurança com relação ao futuro, ou
seja, não ter temor do futuro, da falta, do sofrimento, da privação.
Se antes não havia sentido falar da propriedade dos meios de produção
por não haver diferenças sociais nem divisão em classe, agora, fixados à terra
pela própria propriedade do rebanho e da agricultura, sedentarizamo-nos. As
condições para a produção além do que precisávamos fizeram-nos aumentar as
reservas, reduzindo o risco de um eventual período de fome. As forças

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produtivas aumentam e, com elas, a especialização. O aumento da população é
uma sequência natural dessa circunstância.
As diferenciações se deram a partir da divisão do trabalho entre as tribos
que se dedicaram ao rebanho e as que se dedicaram à agricultura. Com o
aumento de excedente há um fortalecimento do trabalho artesanal. Começa a
circulação de mercadorias e, com isso, a exploração do homem pelo homem.
Nas guerras, passa a ser mais vantajoso não o extermínio do inimigo, mas a
transformação deste em escravo. As primeiras relações de trabalho da nossa
história são de senhor e escravo, condição social que atravessará milênios,
marcando o fim da comunidade primitiva e iniciando uma outra organização
social – a sociedade de classes (Nunes, 1997, p. 35-36).
Essa nova sociedade favorece, por outro lado, o surgimento dos primeiros
filósofos. A mão de obra escrava garante o tempo ocioso de que necessitam
para as reflexões que se fizeram fundamentais para o conhecimento e o
autoconhecimento humano. A mais primitiva sensação de felicidade é a de posse
– não a posse pelo coletivo, mas pelo indivíduo. Essa necessidade só vai nascer
quando as divisões sociais, provindas dos interesses privados, prevalecerem.
A consciência individual, salienta Durkheim, sempre ferirá os interesses
do grupo, o bem comum fortemente protegido pela consciência coletiva até que
se firme como um novo costume. A ambição – individual – desencadeou a busca
de novas forças de trabalho e estimulou a competição, o que resultou em
inovações técnicas e novas formas de produção. As grandes invenções e as
manifestações artísticas, possíveis apenas a partir das consciências individuais,
redundaram, sem dúvida, em extraordinários feitos humanos (Durkheim citado
por Quintaneiro, 1995, p. 21).
A diferença entre ricos e pobres surge paralelamente à diferença entre
pessoas livres e escravas. A desproporção de riquezas entre os chefes de
famílias terminou por destruir em todos os lugares o trabalho em grupo, a
solidariedade coletiva. Os lotes de terra próprios para o cultivo foram tornando-
se propriedade privada, a princípio em caráter temporário e, mais tarde, de forma
irrevogável.
Devido às grandes desigualdades sociais e ao crescimento do trabalho
escravo, os proprietários, sempre temendo uma rebelião por parte dos
dominados, engendram uma forma de dominação aparentemente impessoal,
isso é, um lugar que legitimasse e salvaguardasse as leis sobre a propriedade,

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os direitos sobre os escravos, bem como a administração pública da cidade.
Essa forma de poder chamado Estado não era mais que um mecanismo de
manutenção dos poderes privados sobre os pobres e explorados.

1.3 Do matriarcado ao patriarcado

Segundo Engels (1978), nas sociedades primitivas a mulher é a figura


central, pois dela provém a prole. A maternidade é a única relação de
parentesco, visto que não existe a figura paterna e não existem relações
permanentes do tipo familiar. Todos os homens são pais e maridos, excluindo,
assim, a possibilidade de determinar a paternidade. Isso, segundo Bachofen
(citado por Engels, 1978), ocorreu em todas as sociedades primitivas. Em
decorrência disso, as mulheres desfrutavam de grande prestígio e ocupavam
lugar de destaque na hierarquia do grupo, não no sentido de ter poder, mas como
referência por serem as donas da prole. Ao mesmo tempo, a monogamia era
considerada transgressão. É a partir do Neolítico, segundo Engels (1978), que
essa relação vai se inverter. O nascimento da propriedade privada gera a
herança, cujo legado deve ser deixado aos filhos legítimos (gerados de uma
mulher monogâmica). É o desmoronamento do direito materno. Doravante, a
mulher submeter-se-á ao direito paterno, à economia da casa, à administração
do espaço privado, sem qualquer autonomia ou poder político, sem nenhuma
liberdade cívica (Engels; Bachofen, citado por Queiroz, p. 64,65).
Criam-se padrões de gênero que fazem do homem o mais forte, o mais
inteligente, apto e capaz, destinado às funções ditas “superiores” e legitimadas
pelo espaço público, do qual também é senhor. À mulher, cabem as funções
“inferiores” do espaço privado. A naturalização do papel do homem como ente
de poder e o da mulher como ente submisso foi uma herança da sociedade
patriarcal, em que ao homem é destinada a ocupação de todos os lugares de
mando. A passagem do direito materno para o direito paterno só foi possível,
pois, a partir da propriedade privada e da privatização da mulher (Santos, 2009,
p. 2).
A Escola Histórica Materialista afirma que existência do comunismo
primitivo, enquanto fase inicial do desenvolvimento de todos os povos da
humanidade, não pode ser posta em dúvida. É a tese mais comumente aceita.
Por outro lado, a historiografia econômica e política apresenta outros teóricos a
partir da Escola Clássica, como Adam Smith, e contemporâneos, como Ludwig
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Von Mises – que vamos estudar mais à frente –, que afirmam que o comunismo
primitivo nunca existiu e que a propriedade privada e a divisão da sociedade em
classe existe desde os primórdios da humanidade, sendo inerente à natureza
humana.

Saiba mais
Neste link, a professora Ana Maria Bianchi, da Universidade de São Paulo
(USP), discorre sobre o importante debate metodológico que se deu no final do
século XIX entre os que apoiavam a Escola Clássica de Economia e os da Escola
Histórica Alemã. Acesse: <http://univesptv.cmais.com.br/metodologia-da-
economia/o-debate-de-metodos-escola-historica-versus-escola-classica>.

TEMA 2 – ECONOMIA E POLÍTICA NA IDADE MÉDIA

2.1 O modo de produção feudal

No mundo medieval vamos encontrar um outro modo de produção, que é


bem característico desse período. O feudalismo teve início com as invasões
germânicas que puseram fim ao Império Romano do Ocidente em 476. A
sociedade que então se iniciava tinha a sua economia assentada numa estrutura
feudal, isto é, agrária e centrada numa economia de subsistência. É
caracterizada, também, pela pouca especialização e pela utilização do trabalho
dos servos.
A economia medieval, na verdade, regrediu para uma economia de
subsistência autossuficiente, de produção fechada – isto é, nada circula em
função de consumirem tudo o que produzem. A produção feita para o comércio,
um pequeno excedente de produção era vendido para uns poucos mercados e
comércios com pouca movimentação de pessoas. A doutrina católica era contra
o lucro e usura e, mais tarde, vai se tornar um ponto de conflito entre a Igreja e
a nova classe que vai surgir: a burguesia comercial. A condenação do lucro e o
fato de a produção não ser voltada para o comércio era o grande entrave para o
desenvolvimento dos interesses burgueses (Le Goff, 2013, p. 58).
As pessoas na Idade Média viviam com muita penúria pela baixa
produtividade e pela estagnação de técnicas, sempre muito rudimentares.
Inovações nas técnicas de produção definitivamente estavam banidas nessa
época. A sociedade reflete essa estrutura econômica, quase sem classes

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intermediárias. Os senhores feudais, os nobres guerreiros e a Igreja Católica são
os grandes proprietários de terra; o baixo clero (monge e párocos), a baixa
nobreza (com pequenas extensões de terras), alguns artesãos e a maioria
camponesa, presa à terra em regime de servidão, constituem a parte inferior
nesse sistema de estamento.
As relações de suserania – aristocracia – e vassalagem formam uma
hierarquia, em cujo topo está o rei. O poder não está concentrado nas mãos do
monarca, visto que cada senhor tem o domínio exclusivo em suas terras. Não
havia a menor possibilidade de mobilidade social: a pessoa está presa a seu
status, a sua condição social determinada pelo nascimento. O filho do senhor
será um senhor, e o filho do camponês será um camponês. Nessa sociedade
estamental, as camadas não se misturam. Alguns até poderiam receber títulos
ou ter melhoras econômicas, mas apenas dentro do próprio estamento, não de
um estamento para o outro (Le Goff, 2013, p.137; p. 441).
O feudalismo é um sistema político-jurídico baseado em obrigações de
serviços, de obediência e de dependência. O vassalo faz parte da classe dos
guerreiros, cujo dever é proteger o suserano (senhor feudal), que, por sua vez,
mantém o vassalo.
Nesse período, a religião e a política começam a se mesclar, de modo
que os líderes católicos começam a espalhar seu poder para além da esfera da
Igreja. Antes, segundo Johnson (2001, p. 153), a Igreja se firma como poder
espiritual, mas não ainda temporal, “pois o processo de integração entre Igreja e
Estado, iniciado com Constantino, ainda se prolongaria, até que ambos se
tornassem inseparáveis”. A Igreja só assumiria o poder temporal quando da
criação, em 756, do Estado Pontifício, em Roma. É nesse período que surge a
Cristandade, em que o mundo europeu gravitava apenas ao redor dos princípios
cristãos impostos pela Igreja (Johnson, 2001, p. 155).
A hegemonia católica só foi conseguida no pontificado de Inocêncio III, no
século XIII, quando a Igreja conseguiu imenso prestígio, e quando de fato o Papa
e a nobreza feudal foram colaboradores entre si. Esse é o período áureo em que
a Igreja funda não só importantes universidades – como a de Bolonha (século
XII), Oxford (século XII), Sorbonne (século XIII) e La Sapienza (século XIV) –
como também as grandes catedrais de arte românica e gótica (Johnson, 2001,
p. 276). Assim, além de doutrinar os cristãos, a Igreja cuida da transmissão do
conhecimento nas escolas contíguas aos mosteiros. A palavra catedral significa

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“assentar-se sobre algo” e mostra a sua evolução partindo das reuniões
religiosas e políticas para as cátedras de ensino. Com a ascensão da burguesia,
novas escolas surgem, agora administradas por intermédio da classe religiosa,
inovando o ensino com a introdução de novas disciplinas, além do conhecimento
religioso.
A Igreja Católica foi o grande e fundamental alicerce na formação e
conservação do feudalismo. Graças à sua hegemonia, a sociedade feudal
manteve-se estática e hierarquizada. Dado o poder que detinha, nada acontecia
em termos políticos sem a sua prévia aprovação. Assim, conseguia, via
dominação ideológica, proibir qualquer liberdade de pensamento que soasse
destoante do ponto de vista teocêntrico. Mantinha-se, economicamente, como a
maior detentora de terra e, embora arrecadasse o dízimo, era, ainda assim, uma
instituição isenta de impostos. Sua influência totalitária sobre o modo de pensar
e sobre os comportamentos durou séculos. A nobreza feudal (senhores feudais,
cavaleiros, condes, duques, viscondes) era sustentada pelo trabalho dos servos
e também arrecadava impostos destes.
Os servos, por sua vez, constituíam a base econômica da sociedade
feudal. Trabalhavam a terra do senhor primeiramente, para só depois cultivarem
as terras destinadas a prover suas necessidades. Esse sistema, denominado
corveia, refere-se à utilização do trabalho não pago e obrigatório, além da
cobrança de tributos em forma de serviços caso os servos utilizassem o moinho
e o forno (Nunes, 1997, p. 39- 40).
A ideologia pré-determinista difundida pela Igreja, na qual as coisas do
mundo estavam dispostas tal qual a vontade de Deus, havia criado um firme
ponto de referência para a estabilidade política. Somente o trabalho na terra era
valorizado; os trabalhos no comércio eram fortemente rejeitados, visto que a
força que os movia era a ganância, considerada um pecado capital (Johnson,
2001, p. 97). Transformações só vão surgir na Baixa Idade Média, com a
retomada das rotas comerciais em virtude das Cruzadas e o aparecimento de
técnicas e instrumentos mais elaborados que vão incrementar a produção.

2.2 O fim do feudalismo

O feudalismo entra em processo de desagregação com o advento do


comércio. A economia artesanal começa a se desenvolver nas cidades
estimulando, da mesma forma, o crescimento destas. Esse período, conhecido
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como pré-capitalismo, nasce, portanto, ainda no período feudal com pequenas
rotas comerciais, o que virá a ser a formação histórica do modo de produção
capitalista. Desde a época das Cruzadas a Europa vai rompendo com o
isolamento dos tempos medievais e restabelecendo contato com as regiões do
Oriente. O comércio ganha força no Mar Mediterrâneo. As cidades italianas são
as primeiras a lucrar com esse comércio de especiarias e produtos de luxo com
o Oriente. É nesse contexto do renascimento comercial e urbano que vai emergir
uma nova classe social, a burguesia.
A burguesia vai ter um papel fundamental no processo de transformação
da sociedade feudal e na construção do mundo moderno. Essa classe,
essencialmente progressista e revolucionária, vai questionar os privilégios de
algumas pessoas e dignificar o trabalho como fonte de riqueza. A burguesia
surge como grande defensora da liberdade de escolha, de iniciativa, de
expressão e de pensamento. Vai produzir uma gradativa dissolução das
características de domínio dos senhores feudais, da influência da Igreja e das
relações que caracterizavam o modo de produzir. As relações sociais de
produção vão ser substituídas pelas relações baseadas em ganhar dinheiro. Nos
campos, a onda de revolta faz os senhores temerem pelo seu futuro. As fugas
em massa para as cidades assinalam que o fim do sistema feudal servil é uma
questão de tempo. Nas cidades, a produção artesanal vai se especializando num
processo contínuo. Com as primeiras manufaturas e fábricas, vai surgindo o
trabalho assalariado. As relações de trabalho não serão mais entre servos e
senhores de terra, mas entre operários e capitalistas. Esse é o estágio inicial da
nova ordem econômica que vai se instalar na Idade Moderna a partir do
Renascimento: a ordem capitalista.
Esse breve relato não dá conta, evidentemente, de uma época que teve
quase mil anos de duração, mas os elementos narrados são essenciais para
entendermos o tempo presente que se levantou após sua ruína.

Saiba mais
Assista ao filme O nome da rosa (de 1986, dirigido por Jean-Jacques
Annaud), ambientado no interior da Itália, num mosteiro medieval do século XIV,
que traz uma crítica à tendência religiosa de tudo mistificar, tornar suspeita
qualquer conduta racional e impedir o acesso aos livros da filosofia clássica. Há
também um questionamento sobre a necessidade de se distribuir a riqueza da
Igreja.
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TEMA 3 – O MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA

3.1 Os teóricos

O filósofo e economista escocês Adam Smith é considerado o pai da teoria


econômica do sistema capitalista. Seu pensamento foi fundamental para o
desenvolvimento do capitalismo. Ele escreveu que “a riqueza de uma nação se
mede pela riqueza do povo e não pela riqueza dos príncipes” para atacar tanto
o sistema de privilégios dos senhores feudais quanto a política econômica de
intervenção promovida pelos reis absolutos. Sua teoria prega o liberalismo
econômico, em que os indivíduos devem ter liberdade econômica, isto é, a livre
iniciativa e a liberdade para concorrer no mercado sem a intervenção do Estado.
A acumulação de capital advinda do trabalho e da livre concorrência econômica
é a fonte para o desenvolvimento econômico.
Em seu livro A riqueza das nações, escrito em 1776, ele diz que a livre
concorrência entre os empresários regularia o mercado e que a demanda
provocaria a queda de preços, bem como que as constantes inovações
tecnológicas são indispensáveis para a saúde do mercado, para o
aprimoramento da qualidade dos produtos e aumento do ritmo de produção.
Smith afirma que o desenvolvimento e o bem-estar de uma nação estão adstritos
ao crescimento econômico e à divisão do trabalho (Comparato, 2006, p. 281).
No século XIX surge nos Estados Unidos e na Europa a expressão laissez
faire, laissez passer, para assinalar que o mercado deve funcionar sem qualquer
intervenção do Estado, a não ser em suas diminutas atribuições, a saber, realizar
serviços públicos como segurança, urbanização e saneamento, e tutelar os
direitos de propriedade. Os economistas da Escola Clássica sustentam que o
indivíduo possui o direito natural de liberdade, e que todo o resultado do seu
trabalho a ele lhe pertence. Assim, é a ordem natural para um sistema de
mercado se manter harmonioso e autorregulado.
Hunt (2005, p. 294) coloca que sob a perspectiva da propriedade privada
as benesses da “mão invisível do mercado” justificavam-se pela crença de que
eram leis naturais e que sua distribuição era justa e correta. Clark acreditava no
comportamento instintivo à propriedade privada: “O instinto de posse da terra é
o motivo mais eficaz para atrair os trabalhadores para a classe possuidora de
riqueza”.

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David Ricardo foi outro autor de grande influência, tanto para os
economistas da Escola Clássica quanto para os economistas da Escola
Histórica/Crítica e Marxista. Ele aborda temas monetários, como o valor do
trabalho e a distribuição dos valores gerados pelo trabalho, no caso as relações
entre o lucro e os salários, e o comércio internacional. Para Ricardo (citado por
Hunt, 2005, p. 93), “possuindo utilidade, as mercadorias recebem seu valor de
troca de duas fontes: de sua escassez e da quantidade de trabalho necessária
para a sua obtenção”.
A riqueza de uma nação, para Ricardo e Smith, está na produção
abundante de mercadorias que possam proporcionar o bem-estar da população,
porque as pessoas estão sempre em busca daquilo que as faz felizes. Ambos
Smith e Ricardo acreditam que a felicidade de um povo está na prosperidade
econômica.
Também na defesa da liberdade econômica está John Locke, com a sua
filosofia política fundamentada na noção de que os governos devem ser
consentidos pelos governados e devem ter como premissa que o trabalho é o
fundamento originário da propriedade. Foram as ideias de Locke que ajudaram
a derrubar o Absolutismo na Inglaterra, favorecendo as revoltas liberais da
Revolução Inglesa, da Revolução Americana e da Revolução Francesa.
No cerne da Escola Clássica está a crença de que as pessoas vivem livres
e em paz no estado de natureza, ou seja, o direito à vida, à liberdade e à
propriedade são direitos naturais que devem ser respeitados e garantidos pelos
governos, caso contrário o povo tem o direito de se revoltar contra eles. Assim,
deve se criar um contrato social a fim de impedir que haja invasão às
propriedades. O contrato social promoveria a transição dos seres humanos de
um estado de natureza para uma sociedade política. Nessa sociedade, as
pessoas podem contestar um governo injusto, porque não são forçadas a aceitar
seus arbítrios. Qualquer governo que transgrida ou deixe de proteger o direito
natural, visando apenas a seus interesses e não ao bem público, é tirano e, como
tal, deve ser derrubado pelo povo (Comparato, 2006, p. 205-209).
É de Locke a ideia de dividir os poderes na organização do Estado, sendo
o Legislativo, escolhido pelo povo, em primeiro lugar, sobrepondo-se ao
Executivo e ao Federativo. Isso limitaria o poder do rei, que passaria a executar
as leis deliberadas pelo Parlamento, a Casa Legislativa. O povo transferiria o

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poder para o Parlamento, que, em troca, criaria um conjunto de instituições para
garantir os direitos e punir quem violasse a obediência às instituições.
Locke se distingue, portanto, do pensamento de Hobbes, para quem o
homem é mau por natureza, justificando um Estado Leviatã. Enquanto para
Hobbes é a violência de todos contra todos a fonte de organização do Estado,
para Locke é a defesa da propriedade como principal fonte de formação do
Estado, pois para ele a propriedade já existia anteriormente à formação do
Estado.
O liberalismo econômico de Locke prenuncia a democracia liberal da
liberdade da tolerância religiosa. Decisão religiosa nenhuma deveria influenciar
as questões públicas do Estado, posto que é da escolha individual a forma como
cada indivíduo exercerá sua crença. A coerção do Estado por uma única forma
de religião traria mais distúrbios sociais do que a permissão da diversidade. O
indivíduo deve ter não apenas a liberdade econômica de política, mas a religiosa
também.

3.2 A burguesia e o modo de produção capitalista

O sistema capitalista surge, inicialmente, pelas atividades comerciais da


classe burguesa. A história econômica identifica nesta classe os ideais que, ao
mesmo tempo que desintegram o feudalismo, compõem a estrutura do
capitalismo: a busca incessante pelo lucro, a concentração de riquezas, a
propriedade dos meios de produção, a inovação tecnológica contínua e a
ampliação dos negócios a níveis globais.
A expansão do comércio se deve em parte às Cruzadas e às relações
mercantis com árabes e com vikings do norte, que restabeleceram as relações
entre Ocidente e Oriente. Como conceito histórico, a burguesia está associada
ao termo cidadania, cujas origens estão na Antiguidade clássica. Tanto a Grécia
como Roma organizaram seus espaços urbanos de maneira a formar um corpo
de "cidadãos" que viviam em um espaço físico definido, integrando-os a um
sistema de direitos políticos regidos por leis específicas que não eram
concedidas às demais classes. Com o crescimento das cidades no fim da Idade
Média, houve uma retomada da formulação clássica de cidadania. Os que não
faziam parte do conjunto dos cidadãos, os pertencentes às classes inferiores,
trabalhadores ou servos, passaram a ser definidos como vilãos, isto é, os
habitantes da vila.
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Na Idade Moderna, essa classe, já fortalecida pelos resultados
econômicos, vai formando para si uma cultura econômica e estética muito
particular, em que o trabalho, visando à busca do bem-estar e da felicidade, vai
ser moralmente valorizado, em detrimento da ideia que se tinha antes, quando
era concebido como castigo. Há uma valorização também da individualidade e
da racionalidade humana. Por deter os meios de produção de riqueza, essa
classe consegue acumular o capital que vai lhe garantir o poder político,
ideológico e cultural, assim, vê na riqueza um bem a ser conquistado. Com isso,
legitima o domínio sobre a classe copartícipe do sistema que criara: a classe dos
trabalhadores.
Na Idade Contemporânea, a burguesia ganha outros significados,
originados de contextos diferentes e com ideologias políticas muito diversas.
Iniciada no século XIX, vai se constituir como ideologia política e econômica
burguesa, e vai transformar o capitalismo em sistema hegemônico, fortalecido
pelo sistema bancário, pelas poderosas corporações financeiras e pela
globalização dos mercados.
Graças à economia de mercado e aos mercados globalizados, as
grandes corporações se espalharam pelo planeta, visando sempre à redução
dos custos de produção e de mão de obra, bem como a colocação de seus
produtos no maior número possível de países.
A burguesia comercial nasceu acompanhando o crescimento de grandes
centros urbanos, como Veneza, Florença e Gênova, tendo o mercador como
personagem central. Como integrantes do cenário urbano, a burguesia dispunha
de certa liberdade, uma vez que não pertencia ao sistema de obrigações
vigentes na estrutura feudal, como os vassalos e os servos, nem se sentia presa
à sua origem social. O comércio se amplia rapidamente à medida que a demanda
aumenta e isso leva “a um crescente controle do processo produtivo pelo
capitalista comerciante” (Hunt, 2005, p. 11).
A figura multifuncional do comerciante do fim da Idade Média está na base
da construção do mundo moderno burguês, bem como do Novo Mundo. O
protagonismo da burguesia a partir da prática mercantil vai construir um mundo
profundamente diferente, calcado em valores individuais e materiais. Aos
poucos, a burguesia vai afastando os nobres das suas atividades e tomando o
seu lugar em todas as funções públicas, constituindo-se numa nova classe de
mando político, econômico, administrativo e cultural.

15
A história da burguesa não está dissociada da figura do artesão. As
corporações de ofício (sapateiros, alfaiates, pintores, chapeleiros, marceneiros
etc.) e associações independentes estão ligadas ao processo do
desenvolvimento mercantil nas cidades. Comerciantes e artesãos se articulam,
de forma a garantir seus interesses e privilégios. No topo da hierarquia das
corporações estava o artesão-mestre, conhecedor de todos os segredos do seu
ofício. Era proprietário da oficina e das matérias-primas, e tinha total domínio de
todas as etapas da produção, desde a escolha dos materiais até a venda. Na
outra ponta está o comerciante. Com o alargamento das zonas de comércio,
aumenta a dificuldade do artesão em chegar até a sua clientela. O comerciante
se incumbe cada vez mais da tarefa de levar o produto até os mais distantes
mercados. Com o aumento da demanda, o comerciante se ocupa, agora, de
fornecer a matéria-prima, obrigando o artesão e ocupar-se apenas da produção.
A exigência cada vez maior de se produzir mais rapidamente desencadeará um
dos fenômenos centrais da Idade Moderna: a Revolução Industrial e o
surgimento da burguesia industrial.
A Revolução Industrial ocorreu entre 1760 até meados do século XIX. É
considerado o fenômeno mais importante desde a Revolução Neolítica. A
transição da produção artesanal para a produção por máquinas transformou a
perspectiva que se tinha da vida até então. A qualidade de vida começa a atingir
patamares sustentáveis nunca vistos, proporcionados pelo crescimento
econômico das economias de mercado.
Contudo, a Revolução Industrial mudou drasticamente a economia artesã.
Com o advento da indústria, o artesão perde inexoravelmente sua força
econômica, dada a impossibilidade de competir com a máquina. Passam a ser,
então, trabalhadores assalariados sob o controle de um patrão. Perdem o
controle do processo produtivo, uma vez que a produção passa a ser
fragmentada e especializada, e perdem também a posse das ferramentas e da
matéria-prima, passando, doravante, a operar as máquinas pertencentes ao
proprietário dos meios de produção e do lucro (Nunes, 1997, p. 89-97). Países
que romperam com o Vaticano, aderindo à Reforma Protestante, tiveram papel
de protagonismo neste processo.
A Revolução Industrial foi a pá de cal no processo de desintegração da
sociedade feudal. A mão de obra cada vez mais solicitada pela fábrica esvaziava
irreversivelmente o campo. Foi também a grande força desarticuladora das

16
corporações de ofícios. A Inglaterra foi o país hegemônico nesse período,
estabelecendo relações internacionais com vários países via tratados
econômicos muito vantajosos para o seu mercado interno. A política econômica
liberal implementada pela Inglaterra permitiu a entrada de novos competidores
no mercado, e a indústria entrou num processo de inovação tecnológica sem
precedentes (Nunes, 1997, p. 47-52).
Neste primeiro momento do funcionamento da economia de mercado, o
pensamento liberal de Smith se comprova. O lucro do capitalista só virá com
produtos bons e baratos – logo, competitivos –, o que, no fim, acabaria
contribuindo com a coletividade. Para isso, junto com a Revolução Industrial,
começam a vigorar conceitos tais como liberdades individuais, liberdade
religiosa e civil e o direito de livre iniciativa. No caso francês, a estratégia
ideológica nasce com a razão iluminista de liberdade, igualdade e fraternidade,
princípios postos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, contra a
política de privilégios da nobreza.
O capitalismo foi, assim, afirmando-se como um sistema econômico que
se diferenciou dos anteriores por concentrar a propriedade privada dos meios de
produção, por toda e qualquer atividade econômica visar exclusivamente o lucro
e por introduzir o trabalho assalariado. O capitalismo é baseado em uma
economia de mercado em que a tomada de decisão e o investimento são
determinados pelos proprietários empresários, enquanto os preços e a
distribuição de bens são determinados pela livre concorrência no mercado. No
entanto, para a sua consolidação como sistema econômico dominante, houve,
desde o início, a necessidade da criação e manutenção de um quadro jurídico e
instituições políticas e econômicas que propiciassem o seu desenvolvimento.
A Revolução Inglesa e a Revolução Francesa, bem como outras
revoluções liberais, foram bem-sucedidas ao desestruturar o sistema feudal,
religioso e absolutista. Graças a isso trouxeram relativos progressos para o
campo econômico, político e dos Direitos Humanos. O modo de produção
capitalista conferiu poder econômico e político para a burguesia graças a um
sistema jurídico estatal criado à sua imagem e semelhança. O crescimento
econômico se deu pela concentração nas mãos de uma classe, a burguesa, o
que acabou provocando a sua antítese, a outra face da riqueza apropriada: a
classe proletária, explorada e miserável, e a organização dos trabalhadores em
sindicatos, unidos em tornos das doutrinas socialista.

17
Saiba mais
Neste link, o prof. Julio Pires explica as teorias econômicas do valor e do valor
de trabalho em Adam Smith e Karl Marx:
<https://www.youtube.com/watch?v=M4WcIHvtWPY>.

TEMA 4 – O MODO DE PRODUÇÃO SOCIALISTA

4.1 As doutrinas socialistas

De acordo com os historiadores e teóricos do socialismo, as doutrinas


socialistas surgiram porque, mesmo com o vertiginoso crescimento da economia
capitalista, não houve uma justa distribuição de renda, isto é, o trabalho era
extremamente explorado e muito mal remunerado. O acúmulo do capital não
tinha limites, e a tendência inexorável do capital de se acumular e de se
concentrar nas mãos de uma parcela cada vez mais restrita da população faz,
em nossos dias, confirmar a sombria profecia de Karl Marx (Piketti, 2013, p. 17).
O grande questionamento era muito simples:

De que serve o desenvolvimento industrial, de que servem todas essas


inovações tecnológicas, todo esse esforço, todos esses
deslocamentos populacionais se ao cabo de meio século de
crescimento da indústria, a situação das massas continua tão
miserável quanto antes? (Piketti, 2013, p. 16)

Estava clara a incapacidade do sistema econômico e político capitalista


de dar conta de equilibrar a desigualdade econômica e social. Pelo menos para
a classe dos trabalhadores, no século XIX, essas questões estão muito
evidentes, dado o seu estado de penúria. Comparato (2006, p. 343) observa que
Marx

anteviu que a apropriação do saber tecnológico pelo empresário


capitalista é o grande fator de concentração de poder em suas mãos,
poder que, ao criar um mercado mundial, transforma o conjunto das
relações e instituições sociais nos quatro cantos da Terra. A tecnologia
criou a era da incerteza e da instabilidade universal, com a rápida
dissipação de tudo o que é estável e permanente.

Esse é o momento em que o capitalista toma consciência da dimensão


econômica da ciência aplicada em benefício das vantagens competitivas. O
saber tecnológico alheio é incorporado ao capital da mesma forma que o trabalho
alheio. A opinião pública não se levantará contra essa condição desigual e
opressora por ser, ela mesma, manipulada pela tecnologia da comunicação de
massa, esta também controlada pelo empresário capitalista. Ou seja, o
18
capitalismo, ao se concentrar, “desumaniza o homem, na sua dupla condição de
animal racional, pela exploração do trabalho físico e intelectual” (Comparato,
2006, p. 343-344).
Ao contrário dos teóricos do capitalismo, do liberalismo econômico e do
Estado mínimo, os autores socialistas não defendem a propriedade privada dos
meios de produção como coisa sagrada, na qual só as pessoas virtuosas e com
capacidade de iniciativa acumulariam capital, e os esbanjadores irracionais nada
teriam no curso de suas vidas. Tampouco defendem que a desigualdade
econômica é da natureza, em que só os mais aptos chegariam ao topo da
pirâmide social. Também não reconhecem o mérito como justificativa para ser
bem-sucedido financeiramente. Antes, colocavam questões sociais para a
divisão entre capital e trabalho, e defendiam que o desenvolvimento da indústria
moderna enfraquece e desumaniza a classe que trabalha, apropriando-se do
lucro produzido pelos trabalhadores.
Ao pregar a satisfação completa das necessidades materiais e culturais
da sociedade – emprego, habitação, educação, saúde –, o socialismo se
apresenta como humanista. Para que isso seja possível, deve-se implantar a
propriedade social dos meios de produção, isto é, os meios de produção deverão
ser públicos ou coletivos, não existindo empresas privadas – não havendo,
portanto, separação entre proprietário do capital (patrão) e proprietários da força
do trabalho (empregados). Isso não significa a erradicação das diferenças
sociais entre as pessoas. Salários diferenciados sempre existirão, em função de
o trabalho ser manual ou intelectual.
Para Rousseau, o grande mal da modernidade era a civilização burguesa,
com sua moral do lucro, da acumulação de bens, dos hábitos luxuosos e da
invenção de necessidades artificiais. No Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens, ele critica as instituições
burguesas e ataca o privilégio de uns poucos em detrimento da maioria pobre,
como se o fato de serem ricos os fizesse mais honrados, mais poderosos que os
outros. Rousseau foi o primeiro pensador moderno a denunciar a riqueza como
privilégio e não como algo inerente à natureza humana. A propriedade privada
era, nesse sentido, a raiz de todos os problemas sociais:

O primeiro que, havendo cercado um terreno, teve a ideia de dizer isto


me pertence, e encontrou gente bastante simples para acreditar nele,
foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras,
homicídios; quantas misérias e quantos horrores não teria poupado ao

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Gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou aterrando os
valados, tivesse gritado aos seus semelhantes: não ouçam esse
impostor; vocês estarão perdidos, se se esqueceram de que os frutos
pertencem a todos e de que a Terra não pertence a ninguém.
(Rousseau, 1997, p. 87)

Esse pensamento foi considerado pela academia de Dijon excessivo e


insuportável, totalmente ao contrário da obra política de John Locke, que
afirmava ser a propriedade privada um direito natural do indivíduo e um dos
fundamentos da sociedade civil. Rousseau concordava com Locke, desde que a
propriedade privada fosse considerada um direito humano e não um direito
natural. Como um direito humano, a propriedade privada era sagrada, como
direito natural, ela era um fator de opressão.
N’O contrato social, no capítulo sobre a democracia, Rousseau escreve
que “nada há de mais perigoso do que as influências dos interesses privados
nos negócios públicos; e o abuso das leis pelo Governo é um mal menor do que
a corrupção do Legislador, consequência da preponderância dos interesses
particulares” (Rousseau, 1983, p. 48).
Uma crítica à concentração de renda nas mãos da burguesia à custa da
exploração do trabalho operário foi escrita por John Stuart Mill, no século XIX
(citado por Hunt, 2005, p. 185):

Os ordenamentos sociais da Europa moderna começaram com uma


distribuição da propriedade não só pela iniciativa privada, mas também
da conquista e da violência; não obstante o que a capacidade pessoal
tem feito para modificar a ação pela força, o sistema ainda retém
muitos traços significativos de sua origem. As leis da propriedade ainda
não estão de acordo com os princípios em que se assenta a justificativa
da propriedade privada.

Mill, segundo Hunt (2005, p. 186), condenava moralmente os efeitos da


concentração da propriedade dos meios de produção nas mãos de uma pequena
classe capitalista. Observou que isso criava uma classe aproveitadora, que vivia
luxuosamente e cuja renda não tinha qualquer ligação necessária com a
atividade produtiva. Assim, a estrutura de classe não era assentada sobre
relações sociais justas, uma vez que a concentração de riqueza nas mãos de
uma diminuta classe se dava pela privação da maioria. Assim, para Mill o
socialismo era moralmente preferível ao capitalismo, mas apenas quando o
caráter das pessoas tivesse melhorado, pois uma sociedade socialista só é
possível quando a civilização tiver alcançado seu ponto máximo de humanidade.
O que Mill queria dizer é que enquanto a luta competitiva por riqueza
ocupasse as cabeças de ricos e pobres, o socialismo não poderia ser
20
implantado. Com os interesses capitalistas ocupando o Estado mínimo, a
economia se livra de qualquer limitação ao lucro. Na relação capital/trabalho está
a extração da mais-valia que, segundo Marx, é a brutal diferença entre o salário
pago e o valor do trabalho produzido. Para que esse sistema se viabilizasse, os
burgueses não hesitaram em controlar territórios, colonizar regiões e provocar
grandes guerras. Como dona dos meios de produção, a burguesia está em
menor número, contudo, possui muito mais poder sobre um proletariado muito
mais numeroso, que vende a única coisa que possui – a sua força de trabalho –
ao patrão, e resta sem poder algum.
A burguesia revolucionou o modo de produção. A partir daí, o proletariado,
como classe consciente de seu papel histórico, quer fazer a sua revolução
também. A burguesia conquistou a soberania política exclusiva no Estado
representativo moderno, pedra fundamental para as monarquias virarem Estado
Nacional. A burguesia lança o tema da meritocracia, e isso é revolucionário para
a época, pois ultrapassa a velha concepção de que nascer pobre significa morrer
pobre. A pauta burguesa de ascensão social pelo esforço, pela liberdade de
escolha e livre iniciativa é a nova crença. Para isso, era necessário um
movimento tendente à uniformização universal de costumes, valores e
expressões culturais. À vertiginosa transformação das técnicas de produção e
distribuição o capitalismo acrescentou uma profunda alteração na vida ética dos
povos e, nesse sentido, a burguesia exerceu uma função iminentemente
revolucionária (Comparato, 2006, p. 416).
A burguesia, que passou séculos combatendo o Estado e a política,
chega, contudo, a um determinado momento em que ela se apropria de ambos
para fazer valer seus interesses. A consciência dos problemas de sua classe une
os trabalhadores em defesa dos seus direitos. A luta de classe é política. Nasce
a luta por salários dignos, por jornadas humanizantes, por condições de vida
socialmente justas. É pelas mãos do socialismo que se verificam os primeiros
registros de conquista em prol da justiça social, da política como ação de
inclusão social de populações inteiras. As lutas sociais denunciam bairros
operários, lúgubres e infectos. Denunciam a massa de trabalhadores que a
indústria não pode absorver e que formam agora um grupo perigoso, cuja
violência é movida pela fome. Nunes (1973, p. 133-134) transcreve uma dessas
denúncias que constam nos inquéritos escritos pelo médico sanitarista Villermé:

21
Em Mulhouse – escreve Villermé – as oficinas abriam às cinco horas,
com uma hora e meia para o almoço [...]. Em Ruão, a jornada normal é
de 15 horas e meia, mas os operários da tecelagem de algodão chegam
a trabalhar 17 horas. Na fiação de algodão, cerca de 30% dos operários
eram crianças, metade das quais com idades compreendidas entre 6 e
10 anos. Nem por isso a sua situação era mais favorecida: permanecem
16 a 17 horas em pé por dia, quase sem mudança de lugar ou de
posição. Esta tortura é infligida a crianças de 6 a 8 anos, mal
alimentadas, malvestidas, obrigadas a percorrer, desde as cinco horas
da manhã, a distância enorme que as separa das oficinas. Junto à
multidão de mulheres pálidas, magras, caminhando descalças no meio
da lama, há um número maior de crianças sujas, cobertas de andrajos
engordurados pelo óleo que das máquinas cai sobre eles enquanto
trabalham. Trazem nas mãos sob a roupa, como podem, o pedaço de
pão que os alimenta até à hora do regresso a casa. Algumas famílias
preferem albergar-se de qualquer modo nas cidades, em bairros
sombrios e superlotados, insalubre e em condições de promiscuidade. A
degradação moral, o alcoolismo e a prostituição começam a fazer parte
da nova classe que a indústria criou, a classe operária.

A miséria, o desemprego, as altas taxas de mortalidade e as doenças


profissionais crescem à margem do desenvolvimento capitalista. Cresce também
a consciência de que a acumulação de riquezas provoca a acumulação das
aflições e das misérias. A dilapidação do capital humano com o trabalho infantil
escancarava uma sociedade ameaçada por uma população desamparada e sem
princípios.
Esses fatos incitaram o Estado a abandonar sua política de não
intervenção e anunciar algumas leis sociais, dentre elas a que regulamentava o
trabalho infantil nas fábricas: 8 anos para admissão e a proibição do trabalho
noturno ou perigoso. Mas a partir dos 12 anos as crianças poderiam trabalhar 72
horas por semana. Todavia, tais leis nunca foram aplicadas, por estarem em
desacordo com a ordem do liberalismo econômico (Nunes, 1997, p. 135).
Revoltas espontâneas começaram a explodir como resposta ao
desespero dos proletários na década de 1840. Isolados do Estado, sozinhos em
suas necessidades, “começam a agitar-se para sair desta solidão desesperada
e, como os bárbaros, aos quais já foram comparados, meditam, talvez, uma
invasão” (Nunes, 1997, p. 137). Um Ministério do Trabalho que proteja
legalmente as conquistas da classe operária – jornada, salário e sufrágio
universal – é o objeto da luta. Jornais operários se multiplicam como estratégia
de fortalecer o movimento, na crença de que apenas no socialismo haveria uma
meritocracia autêntica, segundo a capacidade de cada um.
A burguesia sempre reagiu violentamente no sentido de identificar e
perseguir os ideais socialistas no meio operário, abolindo por completo qualquer
esperança de justiça social. O Partido da Ordem, burguês, conclamava

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diariamente pela imprensa burguesa que o povo tomasse o seu partido,
dominando ideologicamente e mascarando a violência da luta de classe.
Como um conjunto de relações sociais, o socialismo é definido pelo grau
em que a atividade econômica na sociedade é planejada pelos produtores
associados, de modo que o produto excedente produzido por ativos socializados
é controlado por uma maioria da população por meio de processos democráticos.
A venda da força de trabalho deixa de existir para que todos participem dos
processos de decisão sua cooperativa como membros. Ninguém exercerá o
poder na divisão social horizontal do trabalho. A responsabilidade pela produção
seria de cada operário, e o incentivo pela autonomia o faria cada vez mais
criativo e com espírito de grupo, uma vez que é parte interessada na sua
instituição.

Saiba mais
Confira os vídeos a seguir.
<https://www.youtube.com/watch?v=m93ihi0DIgE>
<https://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-quem-e-socialista-pode-ter-
iphone/>

TROCANDO IDEIAS

A ideia de enriquecimento humano por meio do progresso é algo muito


recente na história da humanidade, própria do progresso tecnológico, industrial
e político. A vontade humana de se livrar do opressor é sempre justa e legítima.
Foi assim com a burguesia. A liberdade, a vida digna, a felicidade devem ser um
ideal de todos, porque se só alguns conseguem, significa apenas que a opressão
mudou de mãos. A reflexão que fica desta aula é que o progresso não deve vir
a qualquer preço, favorecendo classes e não a sociedade de forma geral, sob o
risco de nunca nos livrarmos do grande mal da atualidade: a pobreza. Assim, o
progresso deve vir acompanhado de políticas públicas e humanistas, em que o
crescimento econômico não exacerbe os egoísmos individuais e em que as
relações de classe sejam marcadas pela solidariedade moral como fonte de
integração social. Quando o crescimento econômico não vem acompanhado de
justiça social, a sociedade começa a apresentar indicadores de um mal-estar. A
divisão do trabalho dentro de um sistema econômico não deve significar
desigualdade entre as partes, mas solidariedade e sentimento de

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interdependência. Se os conflitos entre capital e trabalho não buscarem o
equilíbrio, o resultado será a crise econômica, social e moral, em que uma das
partes lutará para superar a outra.

NA PRÁTICA

Adam Smith e Karl Marx partem da premissa de que o trabalho é o


verdadeiro gerador de riquezas. No entanto, os dois autores divergem quanto ao
posicionamento que o Estado deve ter quanto às relações de trabalho. Compare
as afirmações dos dois pensadores à luz da Escola da Economia Clássica e da
Escola Histórica, assistindo à aula da professora Ana Bianchi, no link a seguir:
<http://univesptv.cmais.com.br/metodologia-da-economia/o-debate-de-
metodos-escola-historica-versus-escola-classica>.

FINALIZANDO

Esta aula teve por objetivo mostrar os principais fatos que nos auxiliam na
compreensão da história econômica e política ocidental. Esperamos que você,
aluno, tenha desenvolvido um olhar crítico para o entendimento da nossa
sociedade, para além de suas aparências e superficialidades. Aprender a pensar
sobre nós mesmos, enquanto sujeitos sociais, constitui a verdadeira chave da
mudança.

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REFERÊNCIA

COMPARATO, F. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio


de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1978.

______. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. [S.l.]:


e.BooksBrasil.com, 1999. Disponível em:
<http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/macaco.pdf>. Acesso em: 15 jun.
2018.

EXISTE um início cronológico? A luz da luz. Disponível em:


<http://www.aluzdaluz.com.br/existe_inicio_cronologico.htm>. Acesso em: 15
jun. 2018.

HUNT, E. K. História do pensamento econômico: uma perspectiva crítica. Rio


de Janeiro: Elsevier, 2005.

MARX, K. O manifesto do partido comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.

NUNES, A. J.A. Os sistemas econômicos. Coimbra: Editora Universidade de


Coimbra, 1997.

PIKETTY, T. O capital no século XXI. São Paulo: Círculo de Leitores, 2013.

QUINTANEIRO, T. Um toque de clássicos. Belo Horizonte: Editora UFMG,


1995.

ROUSSEAU, J. J. Ensaio acerca do entendimento humano. In: Os Pensadores.


São Paulo: Nova Cultural, 1997.

SANTOS, S. C. M. dos. A herança patriarcal de dominação masculina. In:


CONGRESO DE LA ASOCIACIÓN LATINOAMERICANA DE SOCIOLOGÍA, 27.;
VIII JORNADAS DE SOCIOLOGÍA DE LA UNIVERSIDAD DE BUENOS AIRES,
8., 2009, Buenos Aires. Anais..., Buenos Aires: Asociación Latinoamericana de
Sociología, 2009. Disponível em: <http://cdsa.aacademica.org/000-
062/864.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2018.

SMITH, A. A riqueza das nações. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultura,
1996.

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