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Revolução da Informação - Impactos Sociais

Trabalho apresentado em Junho de 1999 para avaliação na disciplina MAC-333


por David Machado Santos Filho

Um estudo do tema de "Brave New World", de Aldous


Huxley

VERSÃO FINAL

1. Preliminares

Será feito um estudo das possíveis mudanças sociais que podem ocorrer com a
aparente revolução da informação que se processa atualmente. Sabe-se que tentar
fazer uma extrapolação com a velocidade em que tudo muda hoje em dia é
difícil, e tal previsão está sujeita a erros grosseiros. O melhor que pode ser feito é
estudar várias possibilidades distintas, tentar avaliar as tendências atuais e
verificar o quanto essas tendências apontam para cada uma daquelas
possibilidades. Ainda neste caso cometemos um erro muito grave, que é supor
que tais tendências vão se manter inalteráveis. A previsão estaria influenciada
pelo que já se observa na época em que ela é feita.

Neste estudo, será feita uma avaliação das seguintes obras, todas elas prevendo
mudanças sociais bem diferentes:

"Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley, livro com o enfoque


principal nesta discussão, que prevê um tipo de controle totalitário não
fisicamente violento;

"1984" de George Orwell, que prevê um Estado totalitário no qual o poder


é mantido pela violência e vigilância constante dos cidadãos;
"Os Despossuídos" de Ursula K. Le Guin, que contrapõe uma sociedade
muito semelhante à atual a uma outra em que o "controle" é baseado na
total anarquia.

Ainda foi estudada uma quarta obra, que discute os elementos da obra de Huxley
mas que cita o "1984" várias vezes: é o "Regresso ao Admirável Mundo Novo",
um ensaio que o próprio Huxley escreveu cerca de 25 anos após o "Admirável
Mundo Novo".

Nas três obras, a existência de computadores não é citada explicitamente. Porém


a organização social que elas sugerem seria sem dúvida impraticável se não
existissem tais equipamentos controlando-a. Mas em todas elas o controle da
informação é evidente, sobretudo em "1984".

2. Resumo das Obras

Antes de iniciar qualquer discussão a respeito da possibilidade ou não de cada


uma destas extrapolações se confirmar, é interessante conhecer um resumo de
cada história.

2.1 "1984"

Em 1984, a sociedade é controlada por um Estado totalitário, com um


partido único, que tem o controle total de qualquer tipo de informação que
um indivíduo possa requisitar. George Orwell prevê tal sistema para o ano
de 1984, mas algo fundamental tem de ser mencionado: na história,
ninguém tem certeza de estar realmente no ano de 1984; o Partido havia
decidido que a sociedade estava vivendo em 1984, e era o que bastava para
todos acreditarem nisto.

Na obra, o mundo era governado por três grandes potências, todas elas
com a mesma característica totalitária e com controle total das
informações. Estas três potências eram conhecidas por Eurásia, Lestásia e
Oceania, na qual se passa toda a trama. Em Oceania, que compreendia as
Américas, Austrália, e a Inglaterra (o restante da Europa era parte da
Eurásia), um único Partido governava, e estava constante e alternadamente
em guerra com uma das outras duas potências. A guerra constante era um
fator primordial para que a estrutura social fosse mantida, pois apenas uma
guerra era capaz de absorver o excesso de recursos produzidos por um
sistema industrializado ao extremo. Sem guerras, a enorme quantidade de
recursos teria de ser distribuída igualmente para a "massa", e esta massa
acabaria adquirindo poderes demais (algo obviamente indesejável para um
Partido que queria se manter no poder). Com uma guerra constante contra
qualquer das duas outras superpotências era possível garantir apenas o
suficiente para a subsistência do povo, enquanto o excesso de produção
poderia ser gasto em materiais bélicos e improdutivos. Além disso havia
outra vantagem em se manter uma eterna guerra, que era deixar a
população sempre em estado de alerta, aguardando que o Big Brother
pudesse resolver o problema. Logicamente a guerra não era ameaça para
nenhuma das grandes potências. Ao contrário, ela era mantida exatamente
com as finalidades descritas. Pode-se imaginar até mesmo um acordo entre
as potências para que alguma guerra sempre ocorresse, não importando o
motivo.

O que mantinha o poder total do Estado era o controle de toda a


informação disponível. A história da humanidade estava constantemente
sendo reescrita, de acordo com as resoluções do Ministério da Verdade.
Era inclusive o emprego do protagonista desta história: reescrever
reportagens anteriores do Times para que o Partido parecesse sempre estar
certo nas suas decisões. Por exemplo, se a uma semana atrás o Ministério
da Fartura previsse um aumento de 30% de algum produto para a semana
seguinte e o aumento registrado fosse na verdade de 20%, Winston (o
protagonista) era encarregado de reescrever a reportagem anterior para que
o Ministério declarasse ter previsto 15%: assim ter-se-ia uma impressão
favorável de que o aumento foi maior que o previsto. O grande trabalho do
Ministério da Verdade era alterar estas informações e todas as outras
referências possíveis a ela que pudessem desmenti-la. Isto não era visto
por ninguém como falsificação da verdade, e sim como simples "correção
de enganos".

Para manter tal sistema de modificação de informações, os membros do


Partido (cerca de 15% da população) eram vigiados praticamente 24 horas
por dia. Pelo menos os membros do Partido Externo, pois uma minoria
pertencente ao Partido Interno tinha alguns privilégios. Para grande parte
deles, já perfeitamente adaptada ao sistema, isto era normal, necessário e
benéfico. Segundo eles, isto evitava a prática da crime-idéia (pensamentos
ilegais) que era eficientemente punida pela Polícia do Pensamento. Todos
aqueles que cometiam uma crime-idéia desapareciam misteriosamente, e
eram daí em diante consideradas impessoas: tais pessoas, para todos os
efeitos, nunca haviam chegado a existir. Como todo tipo de informação era
controlado pelo Estado, não haveria mais nenhum registro que pudesse
indicar que esta pessoa existiu algum dia.
A característica que mais lembra um sistema global de troca de
informações nesta história era a existência das
inúmeras teletelas espalhadas por toda parte. Diante de tais equipamentos,
a menor expressão facial deveria ser controlada, ou corria-se o risco de ser
condenado por crime-idéia e assim se tornar uma impessoa. Desligar
uma teletela já era considerado uma possibilidade de crime-idéia, e ainda
assim eram poucos os que tinham o privilégio de desligar completamente
tal equipamento (ao menos por poucos minutos). Onde não
haviam teletelas, provavelmente deveriam existir microfones
ocultos. Mesmo dormindo, as pessoas podiam cometer crime-
idéias falando durante o sono. Por exemplo, dizer "abaixo o Grande
Irmão" enquanto dormia era considerado uma crime-idéia gravíssima! Era
muito comum que crianças, precocemente treinando para serem futuros
espiões, denunciassem os pais à Polícia do Pensamento. Tal medo de ser
denunciado pelos filhos era um dos fatores que tornava cada vez mais
raros os casamentos nesta sociedade.

Seria a sociedade atual parecida com a de "1984"? "Obviamente não", é o


que diriam muitas pessoas de imediato. Mas pode ser que as formas atuais
de coerção não sejam tão explícitas como nesta história. Pode ser uma
coerção não fisicamente violenta, como a que é sugerida no "Admirável
Mundo Novo" de Huxley. Talvez Orwell estivesse impressionado demais
com os absurdos do nazismo e o estalinismo que estava ganhando forças
na Rússia. Aliás, seria coincidência que o Grande Irmão da história, figura
mítica criada pelo Estado, seja descrito como tendo feição muito
"semelhante" à de Stalin? Aldous Huxley sugere no "Retorno ao
Admirável Mundo Novo" que o mundo atual (ou melhor, o de 1957)
estaria caminhando mais em direção ao "Admirável Mundo Novo" do que
em direção ao "1984". Apesar do primeiro ser menos violento que o
segundo, não parece haver muitas vantagens de um em relação ao outro.

A trama de Winston, tentando se rebelar contra tal sistema, é bastante


interessante. Mas presentemente o importante não é discutir a história em
si, e sim a maneira em que estava organizada a sociedade nesta história.

2.2 "Admirável Mundo Novo"

O "Admirável Mundo Novo" também é um governo totalitário. Porém não


existe a paranóia declarada de "1984". No lugar da paranóia, temos um
verdadeiro terror científico, em que a sociedade está toda fundamentada na
prática da eugenia, na hipnopedia, no condicionamento subliminal e na
quota diária aos cidadãos de uma droga denominada Soma.

Neste Mundo Novo a reprodução humana está inteiramente baseada na


reprodução artificial. A reprodução vivípara não mais existe. Não que
fosse ilegal, mas a idéia já estava completamente implantada na mente de
todos os indivíduos através de condicionamento mental. Qualquer alusão a
tal tipo de reprodução era encarado com preconceito e, no mínimo,
mencionada como uma piada de mal gosto. A produção de seres humanos
ocorria em série, nos Centros de Incubação e Condicionamento. Inclusive
era a maneira mais eficaz encontrada pelo Estado para controlar a
superpopulação: não havendo mais a reprodução normal, havia um
perfeito controle de quantas pessoas poderiam nascer em determinado
período. Decidida a produção de uma certa "quota" de pessoas
(trabalhadores futuros), óvulos eram fecundados artificialmente e mantidos
sob controle durante o tempo de seu desenvolvimento, dentro de frascos
forrados com peritônio de porco.

Dependendo da classe genética a que determinado grupo pertencia (Alfa+,


Alfa, Beta+, Beta, Gama, Delta ou Épsilon), eram tratados com
substâncias diferentes durante a gestação. Por exemplo, indivíduos Alfas e
Betas recebiam um maior nível de oxigenação para que se desenvolvesse
mais o seu sistema nervoso. Em contrapartida, Deltas e Épsilons tinham
seus frascos preenchidos com certa concentração de álcool diluído no
líquido amniótico, pois nestes casos não era desejável um sistema nervoso
muito desenvolvido. Depois que estes seres nasciam, ou melhor,
decantavam de seus frascos, permaneciam durante a infância nos Centros
de Incubação e Condicionamento. Neste período eram condicionadas
psiquicamente para as funções que deveriam exercer na vida.
Desenvolvido o entendimento da linguagem, começavam a ser submetidas
à hipnopedia (ensino durante o sono) para que absorvessem as principais
regras morais da sociedade. Eram tais regras que elas acabariam seguindo
durante todo o resto de suas vidas. Dentre as várias regras, uma das mais
importantes era a que induzia ao consumo do Soma durante os períodos de
maior agitação ou depressão mental.

A existência de computadores parece inquestionável nesta história, embora


em parte alguma eles tenham sido citados. Ao ler a obra pode-se sem
esforço imaginar computadores decidindo quantos indivíduos precisavam
ser "produzidos" para um futuro campo de trabalho. Ou então se imagina
computadores controlando os enormes Centros de Incubação e
Condicionamento, controlando a dosagem de substâncias, temperaturas e
nível de oxigenação de cada um dos milhares de fetos produzidos em
série. Também podem ser imaginados computadores elaborando a
composição química da próxima remessa de Soma: mais calmantes ou
mais estimulantes, de acordo com as circunstâncias do momento. Quanto
ao controle e difusão de informações, em geral eram subliminais. Durante
a infância, as informações eram transmitidas às crianças por hipnopedia.
Verificou-se que o método de ensinar durante o sono não era muito
eficiente quando se precisava raciocinar sobre as informações, mas se as
mensagens pudessem ser elaboradas de uma forma que atingissem o
subconsciente sem nenhum tipo de raciocínio mais elevado o método seria
infalível. Após este período de aprendizado, toda a informação subliminal
transmitida na fase adulta freqüentemente evocava frases já incorporadas
ao subconsciente durante a hipnopedia. Tais "chavões" também eram
sempre repetidos entre os indivíduos em seus diálogos, e conhecê-los de
cor era uma forma de se sentir integrado na sociedade. Não é muito
diferente do que acontece hoje em dia com músicas e frases de
propagandas publicitárias. A diferença está no conteúdo das mensagens:
ao invés de usá-las para vender um produto, eram regras morais cujo
objetivo era, por exemplo, constantemente reafirmar a perfeição do Estado
vigente, ou uma receita em forma de versos sobre quantas doses de Soma
eram necessárias em cada tipo possível de esgotamento mental.

Como se vê, tratava-se de uma sociedade de autômatos, na qual não era


necessário recorrer à repressão violenta porque simplesmente não havia o
mínimo risco de ocorrer qualquer tipo de revolta. Uma sociedade em que
cada indivíduo se sentia feliz com a função exercida (pois desde o início
haviam sido condicionados a exercerem tal função). Pode-se questionar
que havia sido eliminada a criatividade humana, e que isto poderia gerar
revolta. Não é verdade: a criatividade reprimida era perfeitamente
compensada com a ingestão regular do Soma, droga totalmente inócua que
era produzida e distribuída pelo Estado, e que poderia aliviar qualquer tipo
de criatividade que o indivíduo sentisse estar reprimida sem que isto
pudesse afetar de alguma maneira a ordem que já estava mantida a muito
tempo.

É para tal sistema que Huxley vê a sociedade caminhando no "Retorno ao


Admirável Mundo Novo". Porém ele próprio se surpreende ao perceber
que se avançava muito mais rápido para esta direção do que ele supunha.
Ele havia previsto os acontecimentos para o século VII dF (depois de
Ford), mas no ritmo em que as coisas aconteciam em 1957, podiam se
tornar realidade muito antes.
2.3 "Os Despossuídos"

A escolha desta história de Ursula Le Guin se baseia no fato de que ela


lembra muito a questão do Caos e Emergência. Mostra uma sociedade em
que o governo é inteiramente baseado na total falta de governo, e os
problemas acabam sendo resolvidos espontaneamente (as
soluções emergem do caos).

Urrás-Anarres é um sistema planetário duplo. Dois corpos enormes, de


massas muito semelhantes, orbitando em torno de um centro comum, e
este centro orbitando uma estrela amarela de terceira grandeza. Porém,
para efeitos práticos, Anarres era considerado um satélite de Urrás. De fato
era de massa um pouco menor que este, e de atmosfera conseqüentemente
menos densa. Urrás era um planeta muito semelhante à Terra, com uma
sociedade humana parecida com a atual em vários aspectos: produção e
consumo em massa, grande parte do planeta com uma economia similar ao
capitalismo, devastação desenfreada de recursos naturais... Anarres era
quase um deserto. Possuía umas poucas espécies de plantas primitivas,
nada mais. E uma quantidade de água muito inferior à de Urrás.

Cerca de dois séculos antes do período no qual se passa a história, uma


população gigantesca de indivíduos contrários ao sistema foi exilada em
Anarres, considerada a Lua de Urrás. Neste novo planeta, praticamente um
deserto seco, tiveram que lutar muito pela sobrevivência. No decorrer
destes dois séculos, foi desenvolvida uma sociedade completamente
distinta daquela de Urrás, onde a lei maior era de que nenhum indivíduo da
sociedade poderia possuir o que quer que fosse (daí vem o título da obra):

o ninguém possuía os meios de produção: todas as máquinas eram de


uso coletivo, e após serem utilizadas eram deixadas onde estavam
para que outros a utilizassem no futuro;
o não possuíam residências: haviam alojamentos distribuídos em
todo o planeta, e quando era necessário se trabalhar em alguma
região se requisitava um quarto, quase sempre dividido com outros;
o ninguém possuía as próprias roupas: elas eram
simplesmente usadas e depois devolvidas, e quando entregues nas
várias lavanderias não havia nenhum motivo para que uma pessoas
recebesse exatamente as mesmas roupas que entregou para lavar;
o não era necessário adquirir alimentos para comer, qualquer um
podia livremente fazer suas refeições nos vários refeitórios
espalhados pelo planeta;
o não havia dinheiro ou qualquer forma de comércio, pois isto
implicaria em possuir alguma espécie de poder de troca;
o ninguém poderia se especializar em alguma função (emprego): as
pessoas trabalhavam no que era necessário trabalhar naquele
momento e naquela região em que estavam; tentar possuir um
emprego fixo significavaegoizar aquela função (egoizar era um
verbo de sentido pejorativo naquela sociedade);
o qualquer forma de hierarquia era evitada, porque isto acarretaria
em possuir de certa forma os indivíduos de hierarquia mais baixa;
o após nascerem, as crianças constantemente trocavam de pais: era
evidente que se os pais verdadeiros tomassem conta de seus filhos
durante um tempo muito longo, eles começariam a sentir
que possuíam estes filhos;
o nenhum casal permanecia junto muito tempo, pois neste caso eles
poderiam achar que possuíam um ao outro;
o ninguém possuía o próprio nome: um computador central (e o fato
de ser central era uma das vergonhas desta sociedade, problema
que ainda não haviam conseguido sanar) escolhia aleatoriamente
uma seqüência única de fonemas quando uma pessoa nascia, e este
seria seu nome durante o resto da vida.

Como se vê, a idéia de todos os indivíduos serem "despossuídos" era


levada ao extremo. Não existiam Leis nem algum Estado controlando isto,
pois não era permitido que alguém pudesse possuir poderes sobre outra
pessoa. Nem penalidades, pois prender alguém por um crime
seria possuir a liberdade de alguém. Muito menos possuir a vida era
permitido (pena de morte). O que regulava tal mecanismo era o consenso
geral entre todos os indivíduos da sociedade. Uma pessoa que apenas
sugerisse querer possuir alguma coisa era discriminada, acusada de
estar egoizando. Haviam crimes mais graves, mas muito raros. Nestes
casos as penas eram sempre decididas coletivamente, e nunca incluíam
retirar a vida ou a liberdade de alguém. Variavam desde um desprezo
social durante um certo período de tempo (algo insuportável a qualquer
membro desta sociedade) até uma boa surra, em crimes mais graves. Casos
raríssimos de assassinato costumavam ser punidos com a completa
exclusão social, e ainda assim sujeitos às circunstâncias em que o crime
teria ocorrido. Tentar se relacionar com uma pessoa excluída também era
considerado uma forma de egoizar (era uma iniciativa da própria pessoa,
que discordava da decisão coletiva), e poderia acarretar penas leves.

Aparentemente é um sistema perfeito: independente de alguém trabalhar


ou não, estava assegurada sua alimentação, moradia e vestuário. Não havia
a pressão de se precisar trabalhar para continuar sobrevivendo. O que
então obrigava alguém a trabalhar? A possibilidade da exclusão social é
que os obrigava, o medo de ser acusado de estar egoizando por não
trabalhar.

Mas Anarres tinha o grande problema de ser praticamente um enorme


deserto. Sem dúvida tudo era distribuído igualmente, só que neste caso era
a pobreza que se distribuía igualmente entre os habitantes do planeta.
Produzia-se o mínimo necessário para a sobrevivência, não haviam
excedentes. Além disso, Anarres ainda dependia de certos minerais que só
podiam ser importados de seu vizinho Urrás. Porém uma característica
marcante de tal sociedade era seu isolamento em relação ao resto do
universo. As naves cargueiras de Urrás eram sempre recebidas com sérias
reservas, pois o povo de Anarres temia que se aproximando demais de um
habitante de Urrás eles pudessem ser contaminados pelo seu egoísmo. A
trama toda (que repetirei: é muito interessante, mas não é relevante no
contexto deste estudo) ocorre quando um cientista de Anarres tenta
quebrar este isolamento do planeta, visitando Urrás depois de dois séculos
sem contatos diretos. É descrita a enorme confusão deste cientista na nova
sociedade: não entendia porque precisava pagar por roupa e comida,
porque precisava possuir uma residência fixa, casar-se por um tempo
indeterminado, fazer parte de uma hierarquia...

Talvez o pior defeito desta sociedade aparentemente perfeita seja supor


que o ser humano é um animal perfeitamente sociável. Isto não é
verdadeiro, a sociedade humana nunca poderá ser um super-organismo da
mesma forma que ocorre com uma sociedade de formigas ou de abelhas. O
ser humano é muito mais um animal gregário que um animal sociável, ou
seja, ele se sente bem vivendo em "bandos", mas não lhe agrada a idéia de
fazer parte de um "super-organismo". O todo pode ser maior que
as partes, mas no caso da sociedade humana o todo definitivamente não
é mais importante que as partes...

3. Extrapolação para a Sociedade Futura com a RdI


3.1 "Admirável Mundo Novo"

3.1.1 Breve Biografia de Aldous Huxley

Considerado um dos mais importantes escritores contemporâneos,


Aldous Huxley era conhecido por possuir uma cultura
enciclopédica. Um erudito com espírito rebelde e grande
inquietação intelectual, que o levou a produzir uma vasta obra como
romancista, ensaísta filosófico e literário, poeta, teatrólogo e
pesquisador de extensões inexploradas da mente humana.

Nasceu em 26 de julho de 1894 na cidade de Goldaming, na


Inglaterra, em meio a uma família tradicional que cultivava o gosto
pelo intelecto. Era neto do cientista Thomas Huxley, de sólida
reputação nos campos da zoologia e da medicina. Julian Huxley,
irmão de Aldous Huxley, tornou-se um biólogo de renome
internacional. Huxley abandonou o campo da pesquisa científica
quando foi atingido por uma doença que o deixou praticamente
cego durante cerca de oito meses. Recurerada a visão, descreveu a
experiência em "A Arte de Ver", publicada em 1943.

Formou-se em literatura pela Universidade de Oxford em 1915. Em


1916 já estreava literalmente com um livro de poemas : "Wheels".
Avesso ao ritmo das grandes cidades, Huxley retirou-se para a
Suíça com a esposa, Maria Nys. Num pequeno chalé, ajudado por
ela, venceu inibições e iniciou sua fecunda carreira como
romancista. Desta época são os livros "Limbo"(1920), "Amarelo-
cromo"(1921) e "Essas folhas murchas"(1921). Viajou para a Índia
em 1927, de onde voltou profundamente impressionado pelas
concepções budistas e pelo misticismo oriental.

Em 1928 publica "Contraponto", romance com técnica inovadora,


onde exprime a sua descrença na possibilidade do amor autêntico e
da comunicação numa sociedade dominada pelos valores materiais.
Tal obra causou profundos impactos. Em 1932 apresenta a obra
estudada aqui, "Admirável Mundo Novo", onde descreve uma
sociedade dominada pela tecnologia e pelo precondicionamento.

No ano de 1936 conclui "Sem olhos em Gaza", onde traça o retrato


de um intelectual atormentado pela situação política da Europa,
assaltada pelo fantasma do nazismo e às vésperas de uma nova
guerra. Transfere-se em 1937 para Los Angeles.
Pelas obras de Huxley, vê-se claramente que sua vida está dividida
em duas fases distintas. A primeira fase, na qual está o "Admirável
Mundo Novo", é uma fase extremamente "cínica", em que Huxley
se mostra inteiramente desconfiado das boas-intenções do ser-
humano. Na segunda fase se mostra mais preocupado com os
mistérios da mente humana. São desta fase obras como "Eminência
Parda"(1941), "O tempo precisa parar"(1944) e "A filosofia
perene"(1946). Quando morreu em 22 de novembro de 1963 havia
deixado trabalhos extraordinários, como "O macaco e a
essência"(1948), "O gênio e a deusa"(1956), "A ilha"(1962)...
Intelectual inquieto e curioso, descreve suas experiências com a
mescalina nos livros "As portas da percepção" e "Céu e inferno".
Infelizmente sua morte foi abafada por outro acontecimento que
ocorreu neste mesmo dia: o assassinato de John Kennedy. Apenas
em 1977 vieram à luz conferências apresentadas por ele em 1959,
na Universidade da Califórnia, sob o título de "A situação
humana".

3.1.2 "Regresso ao Admirável Mundo Novo"

Em 1957 Huxley publica um ensaio no qual discutia pontos


abordados no romance "Admirável Mundo Novo", que ele havia
escrito 25 anos antes. Escrita em 1932, a primeira obra se situa
numa época em que ainda não existia o estalinismo e Hitler ainda
não havia subido ao poder. Ao escrever "Regresso ao Admirável
Mundo Novo", Huxley já havia presenciado o nazismo, o
estalinismo e o desenvolvimento da bomba H. Apesar de conhecer
estes fatos, ele ainda não acreditava que a repressão violenta seria o
modelo para um sistema totalitário no futuro. Porém estava
convencido que a humanidade estava caminhando muito mais
rápido para o "Admirável Mundo Novo" do que ele havia previsto
25 anos atrás. Novamente a base usada para fazer esta extrapolação
era a situação observada na época (final dos anos 50).

Huxley se mostra bastante preocupado com o futuro da


humanidade, fato observado claramente pelo seguinte trecho do
prefácio do ensaio:

"Os capítulos que se seguem devem ser como um pano de fundo de


pensamentos acerca:
da revolta da Hungria e da sua opressão

das bombas H

da verba que cada nação reserva para sua 'defesa'

das intermináveis colunas de rapazes uniformizados,


brancos, negros, morenos, amarelos, que caminham
obedientes para a vala comum..."

3.1.3 RdI no "Admirável Mundo Novo"

Aldous Huxley acreditava, em 1932, que o sistema previsto por ele


ainda levaria muito tempo para se concretizar. Isto porque o
pesadelo da Europa em tal época era a excessiva falta de ordem,
enquanto no romance era a ordem em excesso. Mais tarde, ao
comentar esta obra, tudo indicava que o sistema estava em vias de
se concretizar em muito menos tempo.

O controle do Estado totalitário ocorria praticamente com a


recompensa de comportamentos desejados. O controle do
comportamento indesejável por castigo parecia a Huxley menos
eficiente que o reforço de comportamentos desejáveis (por quem?).
No "1984" o controle era exercido pelo castigo e pelo medo do
castigo, enquanto na obra de Huxley os castigos eram raros e
geralmente brandos. O fato é que as duas obras pareciam
extremamente convincentes dentro do contexto das épocas em que
foram publicadas.

De fato, tudo indica que estamos passando por uma transição do


sistema de Orwell para o sistema de Huxley. O sistema soviético de
1958 se mostrava claramente uma combinação de ambos: uma elite
de intelectuais e cientista eram recompensados com boa
remuneração e uma certa liberdade de expressão, desde que não
entrassem em campos políticos e ideológicos; já para o restante da
população o controle era exercido de forma violenta.

Muitos podem questionar a possibilidade de um sistema ditatorial


nos dias atuais, onde a democracia parece ser uma tendência ou
alguma "evolução lógica" dos sistemas de governo. Porém, Huxley
aponta alguns fatores quase incontroláveis que podem levar um país
a um regime ditatorial apesar do mundo parecer caminhar para a
democracia.

Superpopulação

No ano 1 d.C., estima-se que a população mundial era de cerca de


250 milhões de habitantes, aproximadamente metade da população
chinesa no ano de 1954. Em 1600, a população era de pouco mais
de 500 milhões. Na declaração da independência americana,
passavam de 700 milhões. Eram 2 bilhões em 1931 e 2,8 bilhões em
1958. Atualmente estima-se uma população de 6 bilhões de pessoas
espalhadas pelo planeta. Desde 1 d.C., a população mundial levou
16 séculos para se duplicar. Por volta de 1960, a previsão era de que
a população duplicaria em menos de meio século! Problemas sérios
são gerados com este superpovoamento: perdem-se áreas produtivas
por estarem densamente povoadas, e solo das áreas para produção
de alimentos são desgastados por maus agricultores para se
satisfazer a demanda crescente por comida. Quais as conseqüências
e os motivos desta explosão populacional, e como isto pode levar a
um sistema totalitário?

No final do século XVIII o economista Thomas Malthus publica o


livro "Ensaios sobre o princípio da população". A Teoria
Malthusiana afirmava que a população humana não poderia crescer
indefinidamente: como a população crescia em progressão
geométrica e a produção de alimentos em progressão aritmética,
fatalmente faltaria comida algum dia. Haveria então uma "luta pela
vida" em que sobreviveriam os mais fortes e mais aptos. O que
poderia baixar o número da população mundial seriam guerras,
inanição e doenças. Posteriormente Darwin generalizaria esta teoria
para todas as espécies vivas. Deve-se tomar muito cuidado com a
má interpretação desta teoria de Malthus, pois ela potencialmente
poderia "justificar" guerras e sistemas hediondos como o nazismo.
Uma questão muito importante é como resolver este problema.
Inicialmente será analisada a causa desta explosão. Paradoxalmente,
o motivo deste grande mal parece ser a tentativa aparentemente
humanitária de se reduzir a mortalidade, através dos grandes
avanços da medicina. O problema é se controlar a mortalidade e
praticamente nada ser feito a respeito da natalidade. Isto causa um
desequilíbrio numérico. Por exemplo, imaginemos uma ilha do
pacífico vítima da malária. O índice de mortalidade é enorme, mas
digamos que através do DDT (relativamente barato mesmo para um
governo pobre) a doença é erradicada. Aparentemente foi um
grande bem para a população local, e a curtíssimo prazo isto vai
evitar centenas de mortes. A tragédia ocorre alguns anos depois:
sem nenhum controle anticoncepcional (inacessíveis para uma
população pobre), o índice de natalidade mantém a mesma taxa
anterior, mas não é mais contrabalançado pela mortalidade. O
resultado é que a população cresce explosivamente. Se centenas de
vidas foram salvas com a erradicação da malária, dezenas de
milhares de novas vidas podem morrer nos anos seguintes de
inanição, ao mesmo tempo em que uma concentração maior de
pessoas é um ambiente propício para o surgimento de novas
doenças. Os bons fins não justificam os maus meios, mas o que
dizer quando os bons meios resultam em fins catastróficos?

Ao que parece, isto poderia ser evitado com um controle eficiente


da natalidade para que as taxas novamente atingissem algum
equilíbrio. Mas por diversos motivos isto é extremamente
complicado. O controle da taxa de mortalidade pode
ser fornecidaparatodo um povo por um pequeno grupo de técnicos
trabalhando para um governo. Já para se controlar a natalidade é
necessária a colaboração de todo o povo. Métodos
anticoncepcionais são inacessíveis para uma grande maioria, e ainda
assim tem-se o problema cultural de se aplicar tal controle: a maior
parte das tradições religiosas e sociais do planeta são contra a morte
ilimitada, mas a favor da reprodução ilimitada.

No Admirável Mundo Novo imaginado por Huxley, o controle da


natalidade foi solucionado abolindo-se completamente a reprodução
natural. Os novos seres humanos eram reproduzidos artificialmente,
onde também se fazia uma seleção genética dos novos indivíduos.
A maioria dos indivíduos gerados eram estéreis, e uma porcentagem
irrisória de homens e mulheres eram férteis apenas para possíveis
reposições nos bancos de óvulos e esperma. A população mundial
era assim mantida em torno de pouco menos de 2 bilhões, número
considerado ideal pelos dez Controladores Mundiais da história.

Não funcionando os métodos anticoncepcionais, a solução de


Huxley seria então a única possível? Isto é questionável. A hipótese
Malthusiana pressupõe que a produção de alimentos cresce
linearmente, não acompanhando a explosão exponencial da
população. Mas isso pode não ser verdade! Já se tem claros indícios
de que a tecnologia também pode apresentar um crescimento
exponencial. A produção de alimentos deveria ser capaz de
acompanhar o avanço tecnológico quando se aplicam novas técnicas
para cultivo, bem como sistemas quase que inteiramente
automáticos para cultivá-los e extraí-los. Um outro problema seria
controlar a qualidade desses alimentos, mas no que diz respeito à
sua quantidade parece não haver grandes complicações. O grande
problema de hoje parece não ser produzir, e sim distribuir os
alimentos produzidos. Outra questão interessante, que a tecnologia
deveria resolver: como produzir cada vez mais sem com isso
degradar o ambiente?

Vamos supor então que não há mais problemas com a produção de


alimentos. Ou seja, a população mundial poderia continuar
crescendo no mesmo ritmo por mais tempo que a produção seria
suficiente para cobri-la. É exatamente nesta grande concentração de
pessoas que Huxley vê o risco de surgir um sistema totalitário. Com
o problema da população excessiva, o governo central é forçado a
assumir responsabilidades adicionaispara garantir a distribuição de
produtos. Num país densamente povoado, as revoltas tendem a se
tornar mais freqüentes, e o governo é obrigado a proteger a própria
autoridade (para manter a distribuição). Caímos num beco sem
saída, em que a população em excesso lentamente faz com que um
governo democrático vá se tornando um governo ditatorial.
Aliando-se a isso o que Huxley denomina de "tentação do poder"
por parte dos governantes o totalitarismo parece inevitável.

Superorganização
Outro problema que pode levar ao totalitarismo é a aparente
tendência humana à uniformidade e à superorganização da
sociedade. A própria natureza mostra a ineficiência
da uniformidade, ao longo de bilhões de anos de seleção natural.
Por exemplo, o sucesso das espécies que desenvolveram a
reprodução sexuada se deve ao fato de que isto aumenta a
diversidade das células descendentes. Na reprodução unicelular,
exceto por raras mutações no DNA, as células filhas são exatamente
iguais à célula mãe. Ao longo da evolução esta uniformidade se
mostrou ineficiente para a adaptação das espécies a novas
condições, e estas espécies fora lentamente sumindo. Hoje existem
poucas espécies com tais características (não em número de
indivíduos, logicamente, mas em quantidade de espécies). Ao
buscar um mundo uniforme, o ser humano segue um
comportamento anti-natural que bilhões de anos de seleção natural
nos mostraram ser ineficiente.

A tecnologia é uma das responsáveis pela superorganização, pois


conduz a concentração de poder econômico e político como
conseqüência do aumento da capacidade de produção. A produção e
consumo em massa é uma clara indicação de que buscamos a
uniformidade. À medida em que a produção em massa se torna mais
eficiente, tende a se tornar mais complexa e dispendiosa, portanto
fora do alcance de pessoas que possuem recursos limitados. Além
disso, a produção em grande escala não poderia funcionar sem
uma distribuição em grande escala. Quando se tem produção e
distribuição em grande escala, os "pequenos", com pouco capital
operante, se encontram em grave desvantagem. Os "grandes" os
engolem, e quando desaparecem um maior poder econômico passa a
ser manejado por mãos cada vez menos numerosas. Daí vem a
superorganização.

Numa ditadura, o Alto Negócio, possível pela tecnologia e pela


ruína do Pequeno Negócio, é controlado pelo Estado. Numa
democracia capitalista, como nos Estados Unidos, o Alto Negócio é
controlado por uma Elite do Poder. Esta elite emprega milhões em
suas fábricas, escritórios e armazéns. Controla outros milhões
emprestando-lhes dinheiro para adquirirem seus produtos e, por ter
a posse dos meios de comunicação de massa, influenciam
pensamentos, sentimentos e ações de quase todos. Os meios pelos
quais isto é feito será discutido adiante, quando tratarei a respeito
dos mecanismos da propaganda. Em conclusão, a tecnologia leva a
uma concentração de poder implacável em estados totalitários, e
mais polida e imperceptível nas democracias. Nessas democracias,
parecemos caminhar para uma superorganização em que os
indivíduos têm a "ilusão da individualidade". Esta individualidade
artificial seria fornecida às pessoas através do incentivo ao
consumismo.

Segundo Huxley, enquanto a primeira metade do século XX foi dos


Engenheiros Técnicos (desenvolvimento da tecnologia), a Segunda
metade seria dos Engenheiros Sociais. Pessoas altamente instruídas
em campos como sociologia, psicologia e até mesmo neurologia
tratariam de manter estável esta superorganização, fornecendo
habilmente aos indivíduos a mencionada "ilusão da
individualidade". Willian White, em seu livro "The Organization
Man", verifica que uma nova ética social estaria substituindo a ética
tradicional. Neste sistema o indivíduo não estaria em primeiro
lugar, e as palavras chaves desta nova ética social
seriam ajustamento, adaptação, comportamento socialmente
orientado, integração, aquisição de técnicas sociais, trabalho em
equipe, vida em grupo, lealdade ao grupo, dinâmica de grupo,
pensamento de grupo, criatividade de grupo...

Pode-se afirmar que, com técnicas tão eficazes, estes Engenheiros


Sociais seriam todos pessoas bem intencionadas? Parece consenso
comum pensar que pessoas que levaram 4 ou 5 anos para se formar
em campos como sociologia e psicologia são todas altruístas,
interessadas apenas no bem estar da sociedade. De onde vem esta
certeza? Huxley se pergunta: "QVIS CVSTODIS CVSTODES ?"
Quem guardará nossos guardas? Quem seriam os Engenheiros
Sociais desses Engenheiros Sociais?

Propaganda
Basicamente existem hoje em dia dois tipos de propagandas,
as racionais e as não racionais. Uma propaganda racional é aquela
que apela para o raciocínio, descrevendo objetivamente as boas
propriedades de um produto a ser vendido ou as possibilidades reais
de um candidato político. Infelizmente este tipo de propaganda é
raro. O gênero mais difundido na atualidade são as propagandas não
racionais. Tais propagandas são ditadas por paixões, impulsos cegos
e medos irracionais. Geralmente vendem produtos apresentando
provas falsas, falsificadas ou incompletas. A argumentação lógica é
evitada. As características principais deste tipo de propaganda são:

o repetição de frases feitas (slogans), geralmente


cantados
o denúncias de bodes expiatórios, no caso das
propagandas políticas
o associação de baixas emoções com altos ideais

Nos campos científicos e técnicos é fácil criar uma propaganda


racional. Por exemplo, uma propaganda típica de uma revista
especializada em mecânica aponta as características de uma nova
máquina, como potência dos motores, resistência à corrosão, peso...
Mas nos campos da política, religião e ética é muito mais
complicado criar uma propaganda deste tipo.

Numa propaganda cujo objetivo é o consumo em massa de um


determinado produto a regra máxima é tentar confundir o símbolo
com aquilo que está sendo simbolizado. Também são bastante
explorados os medos irracionais presentes praticamente em todas
pessoas: medo de não ser reconhecido socialmente, medos de
natureza sexual,... A tabela abaixo ilustra este fato no caso de
alguns produtos de consumo, apontando o que realmente está sendo
vendido e o que a propaganda quer fazer o consumidor pensar que
está comprando (confundir o símbolo com o objeto simbolizado):

Produto O que é O que a propaganda tenta vender


Automóvel Veículo de autopropulsão, Liberdade e status social
baseado num motor de
combustão interna, capaz de
transportas indivíduos e objetos
para outros locais com
comodidade.

Apresenta a desvantagem de ser


poluente.
Creme dental Anti-séptico bucal aromatizado, Um produto que vai diminuir o medo
usado na escovação dos dentes, do indivíduo de ser sexualmente
que se apresenta eficaz na repulsivo para o sexo oposto, ao
prevenção da cárie quando se eliminar o mau hálito
adiciona flúor
Cosméticos Soluções a base de lanolina que Beleza feminina, um produto capaz
têm efeitos benéficos na de tornar as mulheres mais atraentes
reidratação da pele para os homens (novamente o medo
irracional de não ser aceito
sexualmente)
Best-selers Obra literária, nem sempre de A inveja por parte dos que ainda não
qualidade superior, que já foi leram a obra e o respeito dos
lida por uma quantidade intelectuais.
considerável de pessoas e rendeu
muitos lucros à editora
Bilhete de Loteria Conjunto de números com uma Um bilhete cuja probabilidade de ser
probabilidade quase nula de ser sorteado depende unicamente da fé
sorteado, mas que uma vez o do apostador, e cuja recompensa em
sendo promete razoável dinheiro vai resolver todos os
recompensa financeira ao problemas da sua vida
apostador
Coca-cola Líquido gaseificado composto de Liberdade, individualidade e
água, açúcar, caramelo, cafeína e aceitação social por parte dos
mais uma dezena de substâncias indivíduos jovens (medo de ser
não divulgadas socialmente excluído e diferente)
Vitamina C Geralmente uma pastilha Vitalidade, juventude e saúde;
industrializada contendo uma explora o medo que o indivíduo tem
substância orgânica benéfica ao de envelhecer ou adoecer.
organismo nas doses certas, mas
totalmente dispensável quando se
tem uma alimentação adequada
por estar naturalmente presente
em frutas, verduras e legumes.
Bebida Alcoólica Veneno protoplásmico que, em A amizade e a boa camaradagem de
pequenas doses, é capaz de uma roda de amigos consumindo a
deprimir o sistema nervoso mesma substância.
central de uma forma
psicologicamente agradável Em alguns casos também é
explorado o medo do indivíduo de
ser sexualmente tímido para o sexo
oposto
Microcomputador Equipamento micro-eletrônico, Produto para eliminar o medo que a
cujo componente principal é a pessoa tem de ficar
base de silício dopado com tecnologicamente atrasada em
impurezas. relação ao resto da sociedade

É capaz de calcular e fazer


tarefas interessantes desde que
programado da maneira
adequada
Tanto nas propagandas comerciais quanto nas políticas a
música desempenha um papel importantíssimo. A
humanidade sempre criou cantos como uma forma de
agregação social, seja nas cerimônias religiosas, um exército
em batalha, um grupo de lavradores trabalhando... Os cantos
patrióticos, por exemplo, acabam se tornando os hinos
nacionais dos países. As mensagens cantadas são absorvidas
e gravadas muito mais facilmente pela mente humana, fato
este já conhecido e utilizado a milênios. A propaganda usa
mensagens cantadas com muita freqüência. Alguns absurdos
que seriam vergonhosos de se dizer ou escrever tornam-se
atraentes quando alguém os transmite em forma cantada. No
caso da música, as crianças são as mais receptivas devido ao
fato de não estar ainda desenvolvida sua faculdade crítica:
elas acabam se tornando gravadores ambulantes, repetindo o
tempo todo mensagens comerciais ou políticas ouvidas do
rádio ou da TV.

Outra característica aproveitada pela publicidade em geral é o


fato da fadiga favorecer a sugestibilidade das pessoas. No
caso de governos totalitários, isto era usado ao extremo
contra prisioneiros políticos, mais ainda que a tortura física: o
prisioneiro era privado do sono normal e submetido a
interrogatórios longos e repetitivos, estando em certo estágio
do processo apto a aceitar sugestões e confessar qualquer
coisa que os interrogadores desejassem. Outro exemplo: nas
grandes manifestações nazistas, o objetivo de se fazer o povo
marchar inutilmente de um lado para outro era deixaá-los
cansados, e assim mais receptivos às sugestões do orador.
Voltemos ao caso das propagandas atuais: não seria este o
motivo da preferência de transmissões de TV no período
noturno, o conhecido "horário nobre"? Em tal horário a
fadiga mental e física das pessoas as tornam mais
sugestionáveis, com a capacidade crítica enfraquecida.

Induzir emoções negativas fortes também aumenta em muito


a sugestibilidade do ser-humano. Um claro exemplo disto é a
técnica usada por John Wesler em suas pregações. Abria-se o
sermão com uma descrição longa e minuciosa, cheia de
detalhes, dos tormentos eternos a que os fiéis estariam
submetidos caso não se convertessem. Tais descrições eram
completadas com expressões faciais de medo, raiva e ameaça
do pregador. Sabe-se que emoções fortes são contagiosas
quando presenciadas noutra pessoa, e um bom ator pode ser
extremamente convincente quando deseja. Todo este
conjunto acabava influenciando grande parte dos ouvintes. A
maioria ficava num estado de tensão semi-cataléptico.
Pessoas mais sensíveis podiam até mesmo ficar histéricas
diante da descrição dos tormentos eternos. Isto acontecia com
certa freqüência, e estes casos contribuíam para aumentar
ainda mais o estado de tensão dos participantes. Após
perceber que a multidão já se encontrava em estado profundo
de depressão mental, o pregador mudava de tom e prometia a
salvação para aqueles que se convertessem. Variações sobre
este método de persuasão são praticamente infalíveis, e de
forma alguma isto se limita ao campo da propaganda
religiosa!

As apresentações de Hitler eram cercadas de um cenário


pomposo, quase similar a uma cerimônia religiosa. Uma
combinação dos métodos descritos acima era usada com
eficiência. Primeiro se induzia a fadiga através das marchas,
como já foi mencionado. As manifestações ocorriam ao
anoitecer, e os discursos eram iniciados com uma descrição
dos tormentos aos quais a população alemã estava submetido,
sempre completadas com emoções e expressões faciais fortes
do orador. Com a sugestibilidade da massa profundamente
acentuada, oferecia-se o nazismo e a eliminação de bodes
expiatórios como a solução definitiva para a vida das
pessoas. Muitos foram "convertidos" ao nazismo pela
aplicação desta técnica. Isto não tem relação nenhuma com a
verdade ou falsidade das idéias que se está tentando passar,
ainda que sejam absurdas ou hediondas. Infelizmente a
verdade é que, com o método de persuasão adequado,
qualquer pessoa pode ser convertida a praticamente qualquer
coisa.

Propagandas a serviço de uma ditadura

Num regime ditatorial, os meios tecnológicos de divulgação


de informações(rádios, TV's, cinemas, alto-falantes...) são
amplamente utilizados para se espalhar a ideologia do
Estado. O pesadelo de uma nação dominada por meios
técnicos foi quase concretizada no nazismo, só não ocorrendo
de fato porque os "Engenheiros Sociais" não tinham uma
noção muito clara de como controlar as idéias dos
indivíduos: suas ações eram quase que totalmente decididas
por observações empíricas do comportamento social.
Atualmente nós temos, além da tecnologia mais avançada,
conhecimentos suficientes na área da psicologia e da
neurologia que podem ser aplicadas em propagandas. No
"Regresso ao Admirável Mundo Novo", Huxley admite
assustado que a "arte de se 'controlar mentes' está em vias de
se tornar uma ciência". Ele prevê que, sob uma ditadura, o
Estado não hesitaria em utilizar essas técnicas, já usadas nas
propagandas comerciais, em propagandas de caráter
ideológico. No livro "1984" este tipo de propaganda era
evidente.

Um governo ditatorial utilizaria também num fato


comprovado a muito temo: a perda da capacidade crítica
individual quando se está em meio a uma grande multidão.
Huxley denomina este fato de "veneno gregário". De fato, um
pequeno grupo de pessoas é tão moral e inteligente quanto os
indivíduos que o constitui. Já uma multidão é completamente
caótica, capaz de realizar qualquer coisa exceto ações
inteligentes e comportamento realista.

Os métodos de persuasão utilizados hoje em dia na


propaganda consumista parecem ser perfeitamente descritos
na seguinte frase: "Toda propaganda eficaz deve confinar-
se ao estritamente indispensável, e deve portanto exprimir-
se em meia dúzia de fórmulas estereotipadas". Hoje em dia
esta frase poderia sair, sem grandes escândalos, da boca de
qualquer publicitário. Mas não foi de um publicitário que ela
saiu: esta é uma frase dita pelo próprio Adolf Hitler! Se já se
considera desonesto a aplicação de tais métodos para induzir
ao consumismo atual, que se poderia dizer desses métodos
sendo utilizados para difundir ideologias absurdas?

A propaganda de massa é de fato perigosíssima, quando mal


usada. Mas o que significa dizer que algo é mal usado? Do
ponto de vista de um Estado totalitário, ela é extremamente
preciosa para se manter o controle do comportamento da
população. Tal tipo de propaganda aliada a meios não
violentos de repressão nos leva a um cenário
assustadoramente parecido com o descrito na obra de
Huxley. Neste ponto pode-se ver a estreita relação entre isto
e a superpopulação: com mais gente concentrada em espaços
cada vez menores, temos um ambiente propício para a
disseminação deste tipo de propaganda.

Hipnopedia e Mensagens Subliminais

Nas propagandas descritas anteriormente, havia-se a


necessidade de que, de alguma forma, as pessoas se
tornassem mais sugestionáveis. Seja pela fadiga, emoções
fortes, exploração de medos irracionais ou formação de
multidões. Existem outras técnicas em que não se precisa
conscientemente diminuir sua capacidade crítica para
absorver as mensagens. Isto porque ou as mensagens chegam
de forma tão sutil que não é conscientemente percebida ou
então elas atingem o indivíduo em períodos nos quais ele não
está consciente, como no sono.

No Mundo Novo de Huxley as crianças eram submetidas,


enquanto dormiam, a uma técnica denominada hipnopedia.
Tratavam-se de regras morais e consumistas que eram
transmitidas por pequenos alto-falantes próximos das camas
em que dormiam. Essas mensagens eram curtas, geralmente
em versos, e não exigiam grande raciocínio para serem
absorvidas e memorizadas. Eram repetidas todas as noites,
centenas ou milhares de vezes. Já adultos, tais frases
acabavam sendo lembradas naturalmente em muitas ocasiões.
Inclusive repetir e reconhecer tais frases era uma forma de
reconhecimento social, reforçava a idéia de que "todos eram
da mesma família". A pouco tempo atrás pareceu começar a
se tornar moda ser conscientemente submetido a um método
parecido com este. Muita gente se submetia sem receios a
esta verdadeira lavagem cerebral, buscando desta forma
aprender algum novo idioma pela repetição de frases de um
aparelho enquanto dormiam. O fato do método não ser tão
eficiente quanto Huxley previu se deve ao conteúdo das
mensagens: aprender idiomas exige raciocínio, algo muito
enfraquecido quando se está no estado de sono. Não acredito
que a técnica tenha dado resultados significativos. Porém, se
forem mensagens adequadamente elaboradas e que não
exijam raciocínio, a repetição irá enraizá-las profundamente
na mente da pessoa submetida a isto.

Além da hipnopedia, mensagens podem ser gravadas na


mente mesmo que a pessoa esteja desperta e perfeitamente
consciente. São as mensagens subliminais, transmitidas tão
próximas dos limites da percepção humana que a maioria das
pessoas não têm consciência de as estar recebendo. A idéia
da mensagem pode aparecer muito clara na mente da pessoa,
mas por não poder associá-la a um causador externos
acredita-se que a idéia partiu dela própria. Muita confusão foi
lançada intencionalmente a respeito da eficácia destas
técnicas. Por razões óbvias, a principal razão destas contra-
informações é fazer com que a técnica fique desacreditada,
que se duvide da sua eficácia e que a técnica seja
simplesmente considerada uma lenda. Uma boa história para
a ficção científica, mas sem nenhum valor no mundo real.
Isto não é verdade, a técnica é extremamente eficiente e,
desde que Huxley escreveu sua obra, deve ter se
desenvolvido consideravelmente. Provavelmente já deve ter
abandonado o campo das observações empíricas para se
tornar uma ciência solidamente fundamentada.

Existem vários métodos conhecidos para se transmitir


mensagens subliminais. Um dos mais conhecidos, e
provavelmente o mais desacreditado, é o de inserir quadros
publicitários em meio aos quadros de um filme normal de
cinema. Sua eficiência depende muito das características da
retina de cada pessoa. Muitos têm consciência dos quadros
adicionais, e conseguem associar a idéia que surge em sua
mente aos quadros vistos. Em outras pessoas o tempo de
persistência das imagens na retina é tão longo que ela
realmente não percebe os quadros adicionais, e o método
também não é eficiente neste caso. Mas numa pequena
porcentagem das pessoas o método funciona bem, e isto tem
gerado algum lucro adicional para as vendas feitas dentro dos
cinemas...

Porém este não é o único método envolvendo imagens.


Existem outros bem mais eficientes. Outro bastante
conhecido é o de inserir mensagens em imagens
aparentemente caóticas (folhas, água, gotículas condensadas
de vapor...). Se baseiam em uma fraca mudança de
tonalidade ou em uma disposição espacial particular dos
objetos. O primeiro é menos eficiente no caso de
transmissões de TV, pois só se perceberia a fraca mudança de
tonalidade em aparelhos perfeitamente calibrados. No caso
de fotos em revistas já se torna bem mais efetivo, caso a
impressão seja de boa qualidade. Sabe-se também de
experiência envolvendo cores cujas freqüências estariam nos
limites da percepção de um ser-humano normal: pouco
inferiores à freqüência do vermelho ou superiores à do
violeta.
Mensagens em freqüências limites também podem ser
utilizadas no caso de sons, bem como mensagens aparecendo
em músicas como uma fraca modulação numa freqüência
predominante. Note que isto nada tem a ver com as famosas
"mensagens ao contrário" que afirmava-se estar presentes em
gravações de bandas de rock das décadas de 60 e 70, e que
muita gente associava ao satanismo. Não se sabe a origem
desta lenda. De fato alguns discos saiam com tais gravações,
com o único objetivo de despertar a curiosidade e aumentar o
consumo. Comprava-se mais discos para procurar estas
"mensagens ao contrário". Porém, a base da idéia das
mensagens subliminais é de que as mensagens
sejam compreendidas, apesar de não percebidas
conscientemente. Acredito que raros sejam os indivíduos que
tenham esta curiosíssima (e inútil) habilidade de
compreender mensagens gravadas do lado contrário ao
sentido de rotação dos discos.

Atualmente as mensagens subliminais são usadas, nem com


tanta freqüência, apenas para incentivar o consumo de
produtos. Mas poderiam perfeitamente ser usadas na difusão
de ideologias, ou como uma forma de se reforçar o controle
exercido pelo Estado. Poder-se-ia perfeitamente viver num
regime totalitário e, através de mensagens deste tipo,
acreditar que se vive num paraíso democrático. Foi
exatamente isto que Huxley quis dizer com "repressão não
fisicamente violenta". Tentando-se reduzir a possibilidade de
revolta, a repressão se torna desnecessária.

A tecnologia dos computadores pode facilitar muito a difusão


de tais mensagens. Tendo-se um preciso controle digital
sobre os sons e as imagens, técnicas ainda impensadas
poderiam ser elaboradas para se transmitir mensagens
situadas nos limites na percepção humana. Assim como
existem hoje software antivírus, seria também possível se
instalar software anti-mensagens-subliminais nos
computadores? Alguém que desenvolvesse algo assim faria
um bem enorme para a humanidade (lógico, dependendo do
ponto de vista) Porém algumas mensagens são tão sutis que
um software talvez não tivesse "inteligência" suficiente para
identificá-las...
O Soma

Uma superorganização pode sufocar um indivíduo, fazê-lo


sentir-se perdendo a individualidade. Realmente não somos
como formigas ou abelhas, e um super-organismo humano
provavelmente não funcionaria. Seriam excluídas tanto a
individualidade quanto a capacidade criativa, e tal
sufocamento seria fatal para a queda deste tipo de sistema.
Huxley prevê que tais problemas poderiam ser sanados se o
Estado distribuísse regularmente aos cidadãos uma droga
inócua, denominada Soma, capaz de satisfazer a criatividade
reprimida dos mesmos. Quando ocorriam revoltas isoladas na
história, a polícia costumava utilizar vapores de Soma ao
invés dos cacetetes e bombas de gás lacrimogêneo atuais. O
efeito tranquilizador restaurava a ordem.

O Soma verdadeiro, de onde Huxley retirou o nome, era uma


droga usada pelos antigos arianos, invasores da Índia, em
seus ritos religiosos. Provavelmente um sumo intoxicante
retirado do caule da Asclepias Acida. Os bebedores do Soma
sentiam seus corpos se fortalecerem, seus corações se
encherem de coragem, suas mentes se encherem de lucidez e
da certeza da sua imortalidade. Mas ao contrário do Soma da
história, o Soma real de forma alguma era inócuo. Lendas
hindus afirmam que o próprio deus Indra adoecia às vezes
por tê-la bebido. Os simples mortais poderiam até mesmo
morrer se bebessem uma dosagem forte. O Soma danificava
profundamente o organismo, mas para os bebedores ele
gerava uma felicidade tão transcendente que este preço no
fundo não era considerado exorbitante.

O Soma do Admirável Mundo Novo não tinha estes efeitos


inconvenientes. Em pequenas doses proporcionava uma
sensação de felicidade. Doses mais altas geravam visões, e
com três pílulas de Soma se caía, depois de alguns minutos,
num sono relaxante. Isto sem qualquer desgaste sério para o
organismo ou para a mente. Os habitantes deste mundo novo
libertavam-se assim de seu mau humor, conflitos cotidianos
ou criatividade reprimida pelo sistema. No "1984" a droga
mais utilizada era o Gim Vitória, mas não era agradável
como o soma: era descrita como tendo gosto horrível, da pior
qualidade, e geralmente era usada para disfarçar a qualidade
ainda pior das refeições oferecidas pelo Partido.

O Soma era visto como um direito dos cidadãos. Aprendia-se


sobre as dosagens nas sessões de hipnopedia, e para o Estado
era uma garantia contra a desadaptação pessoal e a
divulgação de idéias subversivas. "A religião, declara Karl
Marx, é o ópio do povo. No Admirável Mundo Novo, a
situação invertera-se. O Ópio, ou antes o Soma, era a religião
do povo."

O Estado hoje em dia tolera a presença de drogas em meio à


sociedade? Antes de se responder um veemente "não",
devemos lembrar que existem hoje dois tipos de drogas: as
drogas ilegais e as drogas legalizadas. O tabaco e o álcool são
os exemplos mais gritantes de drogas toleradas por quase
todos os Estados do mundo. Na Ásia, algumas regiões ainda
toleram o consumo do ópio. Outras substâncias já são de uso
tão difundido que atualmente ninguém mais levaria a sério se
alguém as classificasse como drogas, como acontece com a
cafeína e com o açúcar refinado. Mas o fato é que, quanto a
dependência causada, estas duas substâncias poderiam
seguramente ser consideradas desta forma.

No segundo tipo estão as drogas ilegais. Evidentemente o que


alimenta o tráfico de tais substâncias é a obtenção de lucro:
com a proibição, o preço se torna excessivamente elevado
devido aos riscos envolvidos no seu transporte. É sempre
vista como uma atividade marginal, mas poucos atentam para
o motivo destas atividades. O fato é que as propagandas
incentivam o consumismo desenfreado em todas as classes
sociais. Ou seja, não faz sentido imaginar uma transmissão
de TV incentivando o consumismo apenas em pessoas que
têm capacidade de consumir. A propaganda afeta todos,
inclusive aqueles que não têm a mínima condição de
satisfazer o impulso consumista induzido pela comunicação
de massa. Sem capital para consumir produtos, acabam
aderindo à marginalidade e percebem rápido que o tráfico de
drogas ilegais é o melhor meio de se conseguir o capital tão
desejado para ter poder de consumo. Temos um exemplo
neste século que indica como a proibição de substâncias está
profundamente ligada ao crime: com a Lei Seca, na década
de 20, formou-se um crime organizado para traficar bebidas
alcoólicas que era praticamente idêntico aos grupos
organizados atuais que traficam drogas ilegais. Estes chefões
do crime atraiam uma grade massa de pessoas sem poder
aquisitivo, que viam no tráfico de bebidas uma fonte rentável
de capitais. Um dado muito curioso: durante a Lei Seca, o
alcoolismo aumentos nos Estados Unidos.

Tentemos avaliar o real motivo da proibição de drogas pelo


Estado. Será que o Estado proíbe o consumo de drogas por
estar preocupado com a saúde dos cidadão? Muito
improvável, já que permite a utilização de drogas de efeitos
tão devastadores como o tabaco e o álcool. Incoerentemente a
grande indústria do tabaco parece muito empenhada em
apoiar financeiramente o combate ao narcotráfico. Seria
inocência demais acreditar que o motivo disto é a sua
preocupação com a saúde da população... A verdade é muito
mais dura que isso: ela quer simplesmente evitar um forte
adversário para concorrer economicamente com ela.

A maioria das drogas ilegais não são de forma alguma


inócuas ao organismo como o Soma imaginado por Huxley.
Com a cocaína, por exemplo, os usuários são obrigados a
pagar seu êxtase e sentido de poder ilimitado, físico ou
mental, com dolorosas fases posteriores de depressão e
alucinações paranóicas, que podem conduzir a crimes
violentos. A anfetamina se parece muito com o Soma que
Huxley imaginou, mas o abuso custa muito caro ao usuário
em termos físicos e mentais. Em fins dos anos 50 calculava-
se cerca de um milhão de viciados em anfetaminas no Japão.

Mas existem drogas que, embora não totalmente sem efeitos


colaterais, produzem muito menos danos que o álcool. É o
caso do peyote, cuja substância ativa é a mescalina. Trata-se
de um alucinógeno usado a muito tempo por índios do
México e do sudoeste dos Estados Unidos. Ao que tudo
indica, o peyote sempre foi muito menos prejudicial aos
indígenas do que o gim e o whisky trazidos pelo homem
branco. Os piores efeitos colaterais desta variedade de cacto
não passavam da provação de ter de mascar uma substância
de gosto repugnante e experimentar náuseas durante uma ou
duas horas.

A química orgânica atual abre um enorme campo para a


produção de drogas sintéticas. Tenta-se desta forma chegar a
uma droga o mais próxima possível do Soma. Não se pode
afirmar se haverá sucesso nesta busca, provavelmente não.
Porém o conhecimento pormenorizado da química cerebral
permite que sejam sintetizadas substâncias de efeitos muito
mais localizados. Com tais substâncias os efeitos se fariam
sentir exclusivamente em células do sistema nervoso, sem
maiores danos a outras partes do organismo. Algumas delas
são tranqüilizantes, como a reserpina, a cloropromazina e o
meprobamato. As duas primeiras são usadas no tratamento de
doenças mentais como a esquizofrenia. Embora não
conseguindo curá-la, diminui consideravelmente os piores
sintomas da doença. O meprobamato é usado para controlar
diversas formas de neuroses. Nenhuma das três é totalmente
inofensiva, mas o custo em termos de saúde física e
eficiência mental é bastante baixo. Com os tranqüilizantes
temos apenas a diminuição da eficiência física e mental
enquanto a droga atua. Este seria um dos aspectos
conseguidos em direção ao Soma.

Outro aspecto do Soma é como intensificador das sensações


e produtor de visões. O LSD-25 é uma droga sintetizável,
inicialmente extraída e purificada de um fungo do centeio,
que cobre este segundo aspecto do Soma. É eficaz em doses
ínfimas, e fisiologicamente o custo ao organismo é muito
baixo. O grande problema é a perda de controle do usuário,
que pode levá-lo a comportamentos perigosos para si próprio
e para os que estão à sua volta. Na maioria dos casos o efeito
é de uma deformação agradável da realidade. Mas a forte
sugestibilidade que induz também pode, dependendo de
estímulos do ambiente, levar a crises paranóicas
perigosíssimas.
Além de tranqüilizante e produtor de alucinações, o Soma do
"Admirável Mundo Novo" também apresentava
características estimulantes. Existem estimulantes clássicos,
basicamente compostos de cafeína: o café, o mate... Todavia
são estimulantes muito fracos, capazes até de causar
dependência mas definitivamente sem o mesmo efeito de
estimulantes ilegais mais fortes. Dentre estes estimulantes, a
anfetamina está muito longe de se equiparar ao soma devido
aos gravíssimos efeitos sobre o organismo. A Iproniazida
estava sendo usada em 1957 para tratar doentes de depressão,
e apesar de ainda muito perigosa apresentava efeitos menos
devastadores que os das anfetaminas. Um candidato forte a se
tornar o Soma é um amino-álcool chamado Deaner. A droga
aumenta a produção da acetilcolina, aumentando a atividade
do sistema nervoso quase sem prejuízo para o organismo,
pelo menos a curto prazo. Estava em fase de testes quando
Huxley escrevia o "Retorno ao Admirável Mundo Novo".

Como se vê, existem atualmente numerosos substitutos de


vários aspectos do Soma. Já existem tranqüilizantes,
alucinógenos e estimulantes relativamente baratos em termos
de danos ao organismo. Um ditador no futuro poderia com
toda certeza utilizá-las com fins políticos. Como o ditador
faria para obrigar os cidadão a consumirem tais drogas? Para
Huxley, ele não precisaria obrigá-los: bastaria colocá-las ao
alcance de suas mãos. Hoje, apesar do tabaco e do álcool
serem tão ineficientes quanto a seus efeitos respectivamente
pseudo-estimulantes e sedativos, muitos estão dispostos a
gastar grande parte do que possuem consumindo-os. Existem
também barbitúricos e tranqüilizantes que só podem ser
obtidas mediante receita médica. Mas tratam-se de drogas tão
procuradas que os médicos as receitam aos milhões nos
Estados Unidos. Atualmente são drogas muito caras, mas não
há dúvida de que, se pudessem ser compradas a preços
menores, seriam consumidas às dezenas de bilhões.

Os químicos numa ditadura seriam instruídos a sintetizarem


drogas mais estimulantes ou mais tranqüilizantes, de acordo
com as circunstâncias do momento. Durante crises nacionais,
produziriam e distribuiriam drogas estimulantes. Entre as
crises, um povo consumidor de estimulantes poderia causar
embaraço à autoridade do tirano, e nesses períodos seria
incentivado o consumo de drogas tranqüilizantes e
alucinógenas. Com tal método, não sobraria muita
possibilidade de se rebelarem contra uma ditadura.

Um quarto aspecto do Soma era sua capacidade de aumentar


a sugestibilidade e reforçar os efeitos das propagandas do
Estado. Novamente temos drogas similares no mundo real,
como o pentonal e o amital-sódio. Conhecido como o "soro
da verdade", o pentonal foi usado pelas polícias de diversos
países para extrair (o seria sugerir ?) confissões de
criminosos mais relutantes.

As descobertas da neuroquímica do sistema nervoso e a


síntese de drogas pode, como acontece com quase tudo, ser
mal ou bem utilizada. As novas drogas podem tanto serem
usadas no tratamento de doenças mentais como usadas para
um Estado totalitário controlar a população. "Dado que a
ciência é divinamente imparcial, é mais provável que tais
descobertas escravizem e libertem, curem e destruam, ao
mesmo tempo."

O Soma Eletrônico

O aumento na qualidade das sensações oferecidas por


equipamentos eletrônicos também pode levar a uma
característica inusitada do soma. Em sua obra, Huxley já
descrevia cinemas em que a platéia percebia as cenas em três
dimensões e, com o auxílio de equipamentos eletrônicos nas
poltronas, eram capazes de sentir cheiro e tato associados às
cenas do filme. Vejamos quais desses aspectos estão se
desenvolvendo com os computadores...

A qualidade de áudio cresce constantemente. Hoje em dia,


um CD pode reproduzir quase que fielmente as ondas
sonoras captadas no momento da gravação, sem adicionar
ruídos. Também é possível fazer com que os sons envolvam
completamente alguém, com a correta distribuição de vários
canais de áudio pelo ambiente. Com isto os sons ganham
também uma dimensão espacial. Já se conhece a muito tempo
o poder de escalas musicais na alteração do estado de
consciência de uma pessoa. Com a possibilidade de se
processar todos os sons digitalmente antes de emiti-lo pelas
caixas acústicas, temos um excelente meio de criar uma
droga eletrônica.

Luzes e imagens também têm um papel muito importante na


alteração dos padrões cerebrais. É inevitável que o sistema
nervoso tente sincronizar o ritmo de seus pulsos a efeitos
acústicos e luminosos ritmados do ambiente externo. A
capacidade de processamento dos computadores aliada a
possibilidade de monitorar eletronicamente os pulsos
cerebrais pode levar a uma "droga eletrônica" com uma
característica inexistente em todas as drogas conhecidas: a
possibilidade de reagir aos estímulos causados no sistema
nervoso. Informações recebidas por eletrodos ligados à
cabeça poderiam ser processados pelo computador, que
poderia assim decidir por alterar os padrões rítmicos dos sons
e das luzes. Não existem atualmente equipamentos que
tratam seriamente esta possibilidade, mas tentativas
grosseiras e primitivas que hoje existem de fazer um
computador alterar o estado de consciência do cérebro
mostram que muita gente estaria disposta a experimentar o
método caso ele surgisse.

Muito se tem pesquisado na tentativa de criar jogos de


computadores mais realistas. Pesquisa-se formas eficientes
de se criar efeitos 3D, e controladores de jogos já conseguem
transmitir sensações táteis em resposta às ações do jogo.
Lógico que de forma ainda muito primitiva... Já os odores
ainda não sabemos reproduzir eletronicamente, mas ao que
tudo indica também são digitalizáveis. Pesquisas em
realidade virtual tentam cada vez mais fazer o mundo virtual
mais parecido com a realidade. Mas poderiam perfeitamente
ser usada para criar uma versão distorcida da realidade, ou
algo ainda completamente diferente dela. As pessoas seriam
capazes de mergulhar num mundo artificial como este da
mesma forma que atualmente mergulham nas drogas? Não se
tem bases para afirmar isto, mas acredito que pode acontecer
caso este mundo virtual se torne suficientemente convincente
para enganar os sentidos.

3.2 "1984"

As características marcantes do "1984"são a repressão violenta e o


controle das informações. A repressão violenta indiscutivelmente existe no
mundo atual, a não ser que se possa pagar para não sofrê-la. As
arbitrariedades sofridas pela denominada massa por parte de policiais que
abusam de sua autoridade nada deixam a desejar àquelas que Orwell
previa em sua obra. Parece ter se consolidado o sistema soviético pós-
estalinista: na base da pirâmide social temos a repressão violenta, e no
topo a recompensa dos comportamentos desejáveis.

Outro fato evidente é o controle de informações. A História da


humanidade, ensinada nas escolas, sempre foi contada do ponto de vista
dos vencedores. Também as notícias jornalísticas são claramente
manipuladas. No sistema democrático temos uma Elite do Poder
controlando os meios de comunicação em massa. Teoricamente a censura
estaria abolida, mas isto não corresponde a realidade. Na prática, no lugar
da censura política temos a censura econômica: para se ter a posse de
grandes meios de difusão de informação é necessário um grande capital,
inacessível à maioria. A Internet, se difundida para camadas de poder
aquisitivo cada vez menor, poderia ser muito bem empregada para evitar
tal manipulação de informações.

A imagem dos atuais governantes também apresenta características muito


similares às da obra "1984". Assim como o Big Brother, o governante
pode não existir. Claro que não uma inexistência física: um candidato
eleito é realmente uma pessoa de verdade! Mas a imagem que a
propaganda política vende dele pode ser completamente artificial. Provas
da história política de um candidato costumam ser apagadas da mesma
forma que acontecia na obra de Orwell, isto em favor de uma nova
imagem do candidato. Para efeito de propaganda política, todos os
candidatos são honestos, democráticos, incorruptíveis e apresentam uma
história política impecável. Todos os candidatos tentam vender a idéia de
que serão capazes de consertar o país e melhorar a vida da população. Mas
uma vez eleitos aparentemente não têm o poder para governar como
prometiam. Existem simplesmente para efeitos diplomáticos, e como uma
imagem e uma voz a serem recebidas pela população. No regime
democrático o poder é exercido de fato pela Elite do Poder.

À semelhança das grandes potências do "1984", as nações atuais parecem


viver em uma constante e interminável crise. Fato muito parecido com a
idéia de guerras constantes da obra. Existem mesmo estas crises? Todos os
meios de comunicação confirmam que sim. Mas no caso das informações
serem controladas por uma Elite do Poder, esta confirmação perde
validade. Aparentemente cria-se uma crise para manter-se o controle nas
mãos do Estado: sempre estaríamos elegendo candidatos para nos tirar das
crises, mas na verdade a crise nunca poderia acabar, pois se isto
acontecesse a existência destes representantes do poder se tornaria
desnecessária.

Felizmente parece ainda não haver uma espécie de Polícia do Pensamento


no mundo atual. Mas a rede mundial de computadores, se mal utilizada,
abre uma possibilidade excelente de se desenvolver algo deste tipo.
Passando por vários roteadores antes de chegar ao seu destino final,
teoricamente qualquer pessoa pode interceptar uma informação
transmitida pela Internet. Logicamente existem métodos para se proteger
as mensagens, como a criptografia. É nesse ponto que uma Polícia do
Pensamento moderna parece estar começando a se esboçar. Nos Estados
Unidos, existem leis limitando o comprimento das chaves de criptografia
de softwares exportados para outros países. O interesse disto é claro:
super-computadores de instituições importantes, como o pentágono, sã
capazes de quebrar mensagens criptografadas que usem chaves de menor
comprimento que o limite estabelecido. Com chaves maiores, eles teriam
tanta dificuldade de quebrá-las quanto uma pessoa usando um micro
comum. A razão é que, na maioria dos algoritmos de criptografia, a
dificuldade em quebrar mensagem cresce até mais rápido que uma
exponencial com o aumento do comprimento das chaves.

Recentemente ocorreu um caso importante de quebra de sigilo da rede


envolvendo o próprio FBI. A questão envolvida era a disponibilização, em
alguns sites, de arquivos no formato MIDI considerados protegidos pela
lei de direitos autorais. Até aí nada haveria de anormal, se não fosse o fato
do FBI ter, durante certo tempo, monitorado vários emails com o objetivo
de identificar os responsáveis por estes sites. Isto é uma violação
inquestionável no sigilo da troca de informações entre duas pessoas,
injustificável em qualquer circunstância.
Para Huxley, estamos passando por uma fase de transição do "1984" para
o "Brave New World", o que justificaria a presença de características das
duas obras na sociedade atual.

3.3 "Os Despossuídos"

Mas a ficção científica não prevê apenas futuros ruins para a humanidade.
Esta obra de Ursula Le Guin é um bom exemplo de previsão com
possibilidades mais otimistas. O sistema anárquico que a escritora prevê é
em grande parte influenciado pelas idéias de Proudhon. O sistema político
totalmente descentralizado parece mostrar que, assim como softwares e
sistemas operacionais, o governo de um povo também pode ser exercido
segundo a idéia de bazar.

Ursula extrapola a idéia de produção no estilo bazar também para os


objetos do mundo dos átomos. Todo o trabalho é coletivamente produzido
e distribuído. Tal tipo de bem não pode ter um dono, desaparecendo a
idéia de posse dos produtos. Atualmente isto parece ocorrer apenas no
mundo dos bits. Por exemplo, não seria vista com bons olhos uma pessoa
que queira patentear um software livre, apesar de não existir formalmente
nenhuma lei proibindo isto: na obra "Os Despossuídos", diriam que esta
pessoa estaria egoizando.

Com a difusão da rede e produção cada vez maior de bens no


estilo bazar, os indivíduos poderiam a médio prazo questionar a idéia de
posse tão comum no mundo dos átomos. Até que ponto eles seriam
capazes de conciliar dois mundos tão diferentes, ainda mais quando a
importância da rede aumentar?

A idéia de Leis sendo elaboradas neste estilo também não é tão absurda
quanto possa parecer à primeira vista. Muitos são os exemplos de leis
atuais que precisam ser reformuladas por pressão dos usuários da rede, a
maioria envolvendo o problema dos direitos autorais.

A pirataria de software é tão antiga quanto o computador. Já na década de


70 foi roubada e difundida cópias de uma fita perfurada com um
interpretador BASIC, desenvolvido para um computador pessoal muito
primitivo denominado Altair. Depois do roubo da fita, a única restrição
feita para que um usuário recebesse uma cópia era de que se
responsabilizasse de criar outras duas e passá-las a mais um usuário. É o
primeiro caso conhecido de roubo e cópia de um software comercial.
Desde esta época muito já se discutiu a respeito da legalidade ou não da
cópia de software e a proteção dos direitos autorais. Isto se deve
principalmente à facilidade de se copiar programas, algo que não ocorre
com objetos materiais. A resposta a isto parece ser a aparente tendência
atual em se implementar software livre e coletivamente.

Algo muito semelhante começa a ocorrer com as músicas comerciais.


Muitos artistas amadores de qualidade, mas sem chances de serem
contratados por gravadoras, começam a difundir a idéia de criação coletiva
de músicas. Tais músicas seriam completamente livres dos direitos
autorais. O que deu maior impulso a isto foi a resolução de outra questão,
também causadora de muita polêmica, a respeito da legalidade ou não de
se utilizar o algoritmo para compactar sons no formato MPEG. Tal
algoritmo havia sido patenteado pela Fraunhofer. Mas apenas
o algoritmo era proibido! Legalmente nenhum problema haveria em se
escrever um compactador MPEG que usasse outro algoritmo. A discussão
maior ocorreu quando a empresa tentou patentear o formato MPEG.
Resolvido o impasse, a compressão do som permitiu uma maior
comodidade na troca de trecos de músicas, e conseqüentemente a criação
coletiva. O maior receio da indústria de discos na verdade não é a violação
dos direitos autorais de suas gravações, como seria natural supor. O medo
maior é que esta prática se torne comum e acabe criando com a música
livre um forte concorrente à industria de discos. No campo de software,
tudo indica que se está caminhando nesta direção.

A idéia de uma legislação baseada nesta mesma forma de criação parece


bastante atraente, mas com sérias dificuldades para se concretizar. Os
cidadãos conectados à Internet poderiam tranqüilamente sugerir e votar
leis segundo este estilo, em câmaras e senados virtuais. Listas de discussão
seriam usadas para criar e depurar estas leis, sendo depois analisadas, por
exemplo, por advogados dispostos a voluntariamente analisar o teor e as
implicações legais das novas leis. Isto acontece no desenvolvimento de
software: programadores conectados à rede voluntariamente testam e
depuram programas criados coletivamente. Estou neste caso considerando
que um conjunto de leis, como uma constituição, é bem similar a um
software complicado, como um sistema operacional.

Sendo a rede de alcance mundial, não parece impossível que a longo prazo
o método se estendesse para todo o planeta, pela criação de uma legislação
mundial. Esta seria a realização de um grande sonho de Albert Einstein,
que não era brilhante apenas no campo da física.
"Que podemos nós fazer para incitar as nações a viverem em comum
pacificamente e tão bem quanto for possível? A eliminação do medo e da
defesa recíproca, eis o primeiro problema. A solene recusa de empregar a
força uns contra os outros (e não somente a renúncia à utilização dos
meios de destruição maciça), impõe-se absolutamente. Tal recusa somente
será eficaz se se referir à criação de uma autoridade internacional
judiciária e executiva, à qual se delegaria a resolução de qualquer
problema concernente à segurança das nações. A declaração por parte
das nações de participar lealmente da instalação de um governo mundial
restrito já diminuiria singularmente o risco da guerra." Obviamente
Einstein não estava pensando em nada parecido com a OTAN quando fez
estas afirmações...

Se além de uma legislação, também o poder executivo e judiciário fossem


mundiais, a idéia de nação também desapareceria. Isto seria bom ou ruim?
De certa forma voltamos ao problema já discutido da uniformidade contra
a diversidade? Acredito que não, pois o maior problema do sistema
descrito era a superorganização. Um sistema com o próprio executivo
distribuído pela rede tornaria desnecessária a eleição de representantes
para criar, votar, julgar e executar nossas leis. Isto não seria uma
superorganização no sentido do controle estar centralizado na mão de
poucos. Ao contrário, parece que um sistema mais democrático que o
descrito é impossível. Com a facilidade da troca de informações pela rede,
pela primeira vez em toda a história da humanidade o povo teria a
possibilidade de se autogovernar. Lógico que isto estaria condicionado a
um maior acesso à rede, sobretudo pelas camadas sociais para as quais um
computador, uma linha telefônica e uma conexão a um provedor são ainda
objetos de consumo impensáveis, comparado às necessidades de
sobrevivência ainda não completamente satisfeitas... Neste caso seria
interessante a idéia de terminais públicos conectados à rede mundial, da
mesma forma que existem telefones públicos para quem não pode pagar
uma linha telefônica. Ou quem sabe a incorporação de um computador a
eletrodomésticos como a TV, uma vez que até famílias muito pobres
geralmente economizam para compram uma. Existem muitas
possibilidades sim, basta que sejamos mais criativos.

4. Conclusões

Foi consenso geral que a obra de George Orwell estava profundamente


influenciada pela situação mundial do final dos anos 40. O "1984" não é
propriamente uma previsão, mas apenas uma constatação do que acontecia e
continua acontecendo em maior ou menor grau. A violência
política infelizmente parece fazer parte da maioria das formas de governo que
conhecemos na história, desde o feudalismo, as monarquias, regimes totalitários
como nazismo, facismo e estalinismo e, se bem que de uma forma mais amena e
bastante dissimulada, também ocorre atualmente nas democracias... Mas o fato
de não ser uma previsão não tira o brilhantismo de Orwell em tratar deste assunto
de uma forma tão marcante.

Já o "Admirável Mundo Novo" é uma previsão legítima de Huxley, já que trata


de fatos que nunca ocorreram na história. Bom, pelo menos não na parte da
história que nós conhecemos, que atinge até mais ou menos uns dez mil anos.
Sistemas de castas rigidamente estabelecida existiam na Índia, sem dúvida.
Porém ainda não temos conhecimento de nenhuma sociedade totalmente
controlada pela tecnologia, desde a reprodução dos indivíduos até o posterior
condicionamento para suas atividades na sociedade. Excluindo-se a parte da
tecnologia, tal sociedade se assemelha apenas ao sistema social de insetos como
formigas e abelhas.

Gerou controvérsias a afirmação feita na apresentação de que estaríamos


caminhando em direção a este "Mundo Novo". Alguns participantes
concordaram, mas para outros as evidências pareceram alarmistas demais. Mas o
pensamento comum foi que "felizmente não estaremos vivos quando tudo isto
acontecer"... Bom, talvez ainda estejamos vivos sim, se deixarmos que estes
processos acelerem.

Infelizmente não foi possível discutir a obra de Ursula Le Guin na apresentação,


pois não haveria tempo disponível para isto. Tal obra poderia mostrar uma
previsão muito menos sombria que as duas primeiras. Portanto, neste último caso
só posso lançar uma opnião pessoal: gostaria muito que um sistema social do tipo
descrito se concretizasse, mas temo que seja muito difícil. Isto porque ele exigiria
cooperação de todos para funcionar, e não é o que se observa atualmente. Grande
maioria da população hoje em dia está disposta a trocar sua liberdade por
uma vida estável: não se importam em viver numa verdadeira cela de prisão,
desde que continuem com seus empregos, seus salários, sua TV e seu acesso à
Internet :-D .

5. Bibliografia

Obras principais
TÍTULO AUTOR ANO DA
1ªPUBLICAÇÃO
Admirável Mundo Novo Aldous Huxley 1932
Regresso ao Admirável Mundo Novo Aldous Huxley 1957
1984 George Orwell 1949
Os Despossuídos Ursula K. Le Guin 1975

Obras complementares
TÍTULO AUTOR ANO DA 1ª
PUBLICAÇÃO
As Portas da Percepção/Céu e Inferno Aldous Huxley 1954/1956
A Filosofia Perene Aldous Huxley 1946
Europe Of The Dictators (1919-1945) Elizabeth Wiskemann 1966
O Socialismo Utópico Jacqueline Russ 1977
Como Vejo o Mundo Albert Einstein (coletânea 1953
de cartas e ensaios
científicos)
Música e Psique (As formas musicais e R. J. Stewart 1987
os estados alterados da consciência)

6. Webgrafia

Comparação das obras 1984 e Brave New World


http://www.spaceports.com/~esquina/trabalho/08index.html
Comunidade virtual da disciplina MAC-333
http://panda.ime.usp.br/HyperNews/get/mac333.html
Dark Matters (1984)
http://home.sprintmail.com/~astronomer/documents/darkm.ht
m
Proibição de MIDI's
http://shouthouse.com/midi_conspiracy.cfm
Lycaeum Drug Archives
http://www.lycaeum.org/drugs/
Biografia de Aldous Huxley
http://www.primenet.com/~matthew/huxley/huxbio.html
Texto completo de "As Portas da Percepção" de Huxley
http://www.fortunecity.com/tinpan/morrissey/37/percep.htm
Soma Web - Lista de Discussão
http://www.deja.com/~huxley/
Contagem da População Mundial
http://www.popin.org/pop1998/
Clonagem Humana
http://www.globalchange.com/clone_index.htm
Hipnopedia e Mensagens Subliminais
CIA testa mensagens subliminais
http://www.parascope.com/ds/articles/ciasublim
inal.htm
Anotações da CIA
http://www.parascope.com/ds/articles/subprojec
t83.htm
Mensagens Subliminais em JAVA
http://www.santarosa.edu/~dmontgom/lopez.ht
m
Software para criar Mensagens Subliminais
http://www.infinn.com/subliminal.html
Mensagens Subliminais no Windows
http://www.tcp.ca/gsb/PC/Win95-
subliminals.html
Hall of Illusion - Ilusões de Ótica
http://illusionworks.com/html/hall_of_illusions.html
Músicas com Mensagens Invertidas
http://whiplash.simplenet.com/back.html
Realidade Virtual
http://os.sri.com/
A Catedral e o Bazar
http://www.tuxedo.org/~esr/writings/cathedral-bazaar/
Proudhon
http://www.hogeye.com/anarchism/FAQquotes/
Bits e Átomos
http://www.media.mit.edu/~nicholas/Wired/WIRED3-
01.html
Microcomputador Altair e o 1º Caso de Pirataria de
Software
Emulador do Altair
http://www.nwlink.com/~tigger/altair.html
Primeiro Caso de Pirataria de um Software do Bill
Gates :-)
http://ethics.cwru.edu/CONTEST/Altair/main.ht
ml

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