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INSÓLITO

O conheço há muitos anos e posso dar o melhor testemunho de seu caráter. Generoso,
manteve-se otimista debaixo de grandes privações, ascendeu sem soberba, caiu de pé. Foi
iludido por um conversador fiado, que lhe prometeu mundos e fundos, a ponto de arrastá-lo para
o interior paulista e forçar a demissão voluntária de sua esposa, empregada há muitos anos
numa instituição de ensino na qual gozava de grande prestígio.

O sonho derreteu em poucos meses. O cidadão que tudo prometera o cozinhou em água
fervente e o defenestrou sem nada nas mãos. A carga foi demasiada e seu casamento quase
naufragou. Só não afundou porque o casco matrimonial não tinha os furos do desrespeito, da
indiferença e das traições. Mas foi por pouco. Muito pouco. Sua esposa mergulhou em
depressão. Tentou retomar seu cargo, mas o mesmo já fora preenchido.

Lentamente reergueu-se, mantendo sua bonomia, segurando marolas, ondas e o tsunami que
devastou sua estabilidade. Refeito, teve os presentes que a vida sobeja aos bons: as portas que
abrira, por conta de sua transparência e diplomacia, não se fecharam totalmente e, de
oportunidade em oportunidade, bico em bico, construiu um novo patamar, abaixo daquele que
um dia tivera, mas igualmente digno para prover necessidades cotidianas e o barco familiar
voltou a navegar. A chegada de um neto ajudou a esposa a diminuir a dose de antidepressivos.

Soube que no final do ano reuniu seus filhos, neto, noras, sogro e um tio de sua esposa. Foi uma
celebração à vida e ao futuro, este horizonte enevoado que só o tempo revela. No primeiro do
ano, sábado, permaneceram unidos. No domingo, dois de janeiro, o dono da casa, protagonista
desta história, e o tio de sua esposa apresentaram sintomas da pandemia, que exames logo
confirmaram.

De pronto afastaram-se deles, como se fossem leprosos, e a decisão incontinenti foi tomada: os
dois cumpririam a quarentena juntos. A esposa foi para a casa de seu pai, o filho solteiro para a
casa da namorada. Acompanhei diariamente seu estado de saúde. Nos primeiros dias uma tosse
o incomodava, encurtando nossa conversa. Lá pelo décimo dia perguntei se o tio estava fazendo
gargarejo perto dele. Era o som que escutava. Não, é o meu cachorro rosnando. E o tio? Não
aguento mais!, respondeu sussurrando, entre dentes. Não mexe um dedo! Quer tudo na mão.

Cumprido o período de quarentena, a esposa voltou numa quarta-feira. Agora o problema do tio
é com ela. Saberá levar tudo a bom termo, afinal o tio é genioso. Deve retornar para sua casa no
sábado e então tudo voltará ao normal. As horas escoavam com a velocidade das lesmas, mas o
gran finale aproximava-se quando a dupla que permanecera isolada apresentou sintomas de
uma virose, com vômitos e outros incômodos. O tio ficou ...

Ontem falei com o azarão. Está recuperado da segunda encrenca. Foram dois dias em que ficou
inutilizado, sem forças ou ânimo para nada. E o tio? Ainda não foi ... Como assim? Estás
brincando? Não, é um processo. Ele é sensível, pode magoar-se ... Confesso que acabei rindo,
mal acreditando. O fato é que tudo parece cena de filme pastelão ou de comédia, como “ After
hours”, do Scorcese, quando parece que as coisas não podem piorar. Mas pioram sempre mais.
Fiquei a imaginar o ambiente carregado, entre gentilezas e muxoxos.

Não, não pense que o anfitrião é desalmado e está a maltratar um pobre velhinho de setenta e
dois anos ... Conheço poucos com sua capacidade de doação, o que aliás lhe trouxe dissabores
e ingratidões, compensados porém pela consciência em paz. Como o tio tem apurado talento
artístico e musical, seu anfitrião – apreciador da boa música, do piano ao bandoneon,- comprou
um teclado para que o hóspede pudesse ocupar-se no período de resguardo. Assim que o
instrumento chegou as coisas andaram bem. Nos dias seguintes o tio começou a reclamar: o
teclado era ruinzinho, comparado com o Fritz Dobbert de sua casa, e a banqueta, sem
regulagem de altura, provocara dores nas mãos ... No terceiro dia o teclado voltou para a caixa.

Estes episódios, que bem poderíamos batizar como “Desventuras de um azarão”, têm o dom de
lembrar como são aborrecidos os que se mostram melindrosos, autoindulgentes, exigentes
demais, sempre a demandar atenção 24 horas, de que se julgam merecedores.

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