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PRUDÊNCIA E ESTUDO

Morava numa casa modesta desde sempre e ali criou numerosa prole. Irreverente, cáustico até,
era um cético. Amainava sua inquietude poetando, cantando em versos sobretudo o sexo
oposto. Seu acervo não era pequeno, mas muito desorganizado. Algumas poesias
datilografadas, outras em folhas e várias em guardanapos ou coisa que o valha, como restos de
noites boemias. Lembro dele a mastigar palavras num café paulistano, fumando e tamborilando
na mesa, ajustando rimas e sentidos inspirados. Mereceria a publicação de um livro.

Certa feita escutei que, após a morte do poeta, um amigo da família, de talento discutível, teria
amealhado o acervo, prometendo organizá-lo. Se fez algo, ninguém sabe, ninguém viu. Houve
quem dissesse que declamava algumas poesias como se fossem de sua lavra, mas tudo pode
não ter passado de maledicência. O que sei é que a casa do poeta, décadas depois, decadente,
ostentava na vidraça de uma das janelas frontais um cartaz escrito à mão, anunciando, em
garranchos, jogo de búzios e leitura de mão.

Esta história me veio à lembrança quando li um ataque aos comunistas postado na rede social,
misturando ceticismo, num discurso desorganizado, tomando emprestadas ideias alheias e
dissipando o tempo em previsões dignas de búzios e cartas deitadas. Decidi então contrapor
uma reflexão sobre a inocuidade de indignações vomitadas.

Comecemos pelo truísmo de que a semente da pregação comunista sempre encontrará solo
fértil em sociedades muito injustas, com cinturões de miséria e desigualdade social que clama
aos céus. Verifique o que aconteceu com o partido comunista na Nova Zelândia: fechou, depois
de mais de sessenta anos de vida. Gritar que o comunismo não deu certo em lugar algum é
outra tática de pouco sucesso. Este fracasso, real, não tem a mesma repercussão para os tantos
que mourejam no capitalismo em troca da mera e dura sobrevivência, eivada de privações.

Num sábado à tarde, numa cidade litorânea, vi cena de confranger a alma: empurrando um
carrinho de bebês, com duas crianças com menos de dois anos, uma das quais berrava a plenos
pulmões, uma mulher catava garrafas plásticas e outras quinquilharias. Tinha o cariz da miséria,
mostrando em seu gestual quase descontrolado a tribulação em que vive, debaixo de enervantes
choros infantis, gerados provavelmente pelo cansaço e pela fome. Por ventura o mercado tem o
condão panglossiano de enxugar este pranto?

Os que gritam contra o comunismo com razão, mas sem razões e argumentos suficientes para o
embate, deveriam abster-se de uma crítica vazia, sem estudo, sem compreensão da realidade.
Precisam livrar-se do vício das soluções mágicas, rápidas, dos que querem suprimir os efeitos
sem atacar suas causas. Aliás, uma das práticas comuns entre os mais ricos no Brasil é
construir residências em condomínios fechados ou em bairros que consideram seletos. Assim,
distanciam-se dos olhares que incomodam e passam a viver numa espécie de outro país.

Quando escutamos manifestações iradas contra a esquerda, fica patente o despreparo de


pessoas e instituições das quais poderíamos esperar, no mínimo, mais entendimento, para
sequer utilizar a palavra sabedoria. Seria pedir demais.

Mesmo as instituições militares, preparadas para reagir à guerra revolucionária, não fizeram o
dever de casa: a luta armada foi transmudada em hegemonia cultural. Foi um filho da Sardenha
quem melhor percebeu a estratégia adequada para virar o jogo. Alinhado com Moscou, onde
residiu algum tempo, Gramsci lá deixou dois filhos e sacrificou sua vida pessoal por uma causa.
Combatê-lo por conta de sua fragilidade física e de sua instabilidade emocional seria como
tentar parar um bom centroavante com pontapés. Ademais, ainda que rejeitemos o comunismo
por sobejas razões, por seus frutos e fracassos, pela perda da liberdade, pelo atraso, pelos
genocídios históricos, não podemos esquecer que Gramsci combatia o fascismo de Mussolini.

Para combater os estragos já visíveis do gramscismo – pela “substituição capilar das instituições
estatais pelas estruturas do Partido”, segundo Laurana Lajolo, biógrafa,- o praguejar é inútil. É
preciso, antes de tudo, estudar e, condição indispensável, combater de frente a miséria e a
hipocrisia, que discursa de copo na mão e entrega o plasma do povo aos vampiros das finanças.

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