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Marcílio França Castro

Breve cartografia
de lugares sem nenhum interesse
A divisa

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Quando Leon se deu conta, já havia quase uma hora que
cruzara o trevo para o Salto, mas a placa ainda não tinha apa-
recido. Naquela altura, a estrada se torna uma imensa reta, e, se
sua lembrança estivesse certa, continuaria assim por centenas
de quilômetros, uma sucessão monótona de aclives e declives
até a última passagem para o litoral. A temperatura ali, ao con-
trário do que as pessoas costumam supor, cai à medida que se
avança para o Norte; a faixa cinza estendida no horizonte podia
já anunciar o frio brumoso que, durante boa parte do ano, cobre
as terras do planalto. À direita, entrando por um acesso qual-
quer, o mar não estaria longe. Inúmeras vezes, ao cruzar aquele
trecho nos tempos de criança, imaginara um voo simples e puri-
ficador: bastava pisar mais forte e o veículo se elevaria da pista;
em poucos segundos, livre de todos os embaraços, o oceano se
descortinaria, chamando para o Leste.
Agora, devia ele próprio ficar atento às carretas antes de
ultrapassar. Sem curvas, a rodovia é enganosa: um veículo apa-
rentemente solitário poderia ocultar um comboio inteiro ali-
nhado na frente. Era essa uma das advertências que o pai, único
conhecedor daquele território, gostava de repetir para Leon e
o irmão caçula, Henrique, quando, sempre no mês de julho, os

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levava para uma temporada na terra dos avós. Durante a via-
gem, o pai inventava uma geografia própria e inusitada para o
percurso, à medida que as paisagens se sucediam na rodovia.
Certo muro de pedra fora erguido por escravos; uma casa aban-
donada datava do século 16. O trecho entre Lajedo e Alecrim
seria rico em minerais radioativos não explorados; na Lapinha
havia onças, jacarés e uma mata repleta de jacarandás. Quanto
aos meninos à beira da estrada, dominavam um vocabulário
raro, e eram mais inteligentes do que os da capital. Do alto de
sua veraneio marrom, com câmbio no volante, o pai apontava
as coisas do lado de fora, passava a marcha; ia marcando assim
o ritmo de sua exposição. Depois de um dia inteiro de estrada,
a passagem da placa era saudada com um silêncio inesperado;
do outro lado da fronteira, a necessidade de narrar desapare-
cia. Passados vinte anos, porém, os cenários que corriam pela
janela eram quase indiferentes a Leon, e não se rendiam à sua
memória.
Avançou mais alguns quilômetros. Sem saber exatamente o
ponto em que estava, decidiu parar no acostamento. Vinha diri-
gindo há mais de quatro horas, uma ligeira dormência começava
a paralisar-lhe a perna. Desligou a chave, deitou os braços sobre
o volante, ficou quieto. Na pista ao lado, passavam um a um os
mesmos caminhões de carvão que tinha levado horas para ultra-
passar. Queria entender por que, afinal, depois de todo aquele
tempo fora do Brasil (há cinco anos não deixava Barcelona),
e para surpresa de todos os que queriam reencontrá-lo, sim-
plesmente resolvera alugar um automóvel e meter-se outra vez
naquele interior oblíquo e distante. Desceu do carro e subiu no
barranco. Quem sabe esticando as pernas, pondo o sangue em
circulação, saberia que direção tomar. A brisa rala do cerrado
empurrava sobre o asfalto o mato ao longo da pista. Na planície
rebaixada, dominando a paisagem, despontava um monolito,

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em contraste com a vegetação de tons mornos que a luz do fim
de tarde viria acentuar.
Amarelo, cinza, marrom; creme, laranja, verde-manteiga.
Um mundo em estado perfeito de observação. A prática da foto-
grafia, é claro, o ajudava a perceber melhor aquelas cores. Aqui e
ali, manchas dispersas de rebanho, ranchos, uma ou duas casas
de fazenda. Para além do vale, um pomar ou uma grande pai-
neira, talvez, que nenhum mapa registraria. Na estrada, ao final
do declive, dava para ver uma pontezinha. Por um instante, todo
aquele equilíbrio pareceu-lhe absurdo e exasperante, uma simu-
lação da natureza. A placa não existiria mais? A fronteira teria
mudado de lugar?
Voltou ao carro, pegou o mapa no porta-luvas. Abriu-o
sobre o barranco, firmando com pedras cada uma das pontas.
Alinhou no rumo da rodovia a pista tracejada no papel, para
fazer coincidir as duas geografias, como se, de repente, o territó-
rio pudesse configurar uma extensão concreta do próprio mapa,
e este fosse uma ruga que o condensasse. Entre o Salto e a divisa,
o mapa indicava um rio, mas o que corria adiante era miúdo
demais para constar naquela escala. Também não apareciam os
roçados, as cercas, o redemoinho, os matutos. A fronteira entre
os estados, marcada na página com um traço forte, solicitava no
mundo real um acidente indubitável, um abismo ou uma cadeia
de montanhas. Não era essa a resposta que o relevo dava aos
olhos. Se o rio do mapa correspondesse ao que avistava dali, a
placa estaria bem próxima, a uns cinco quilômetros. Mas nesse
caso a distância entre o Salto e a divisa seria bem maior do que
a prevista no papel. Uma coisa não batia com a outra; mais uma
vez, Leon se via no limite entre dois territórios incompatíveis.
Mas era exatamente essa diferença que o fascinava. A terra
que um dia lhe fora familiar tornava-se agora, bem na sua frente,
a versão pedregosa e violenta do mapa impresso, sem a facilidade

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das legendas ou dos números. Todo fotógrafo deveria acreditar
nisso: é sempre o mundo que trai sua imagem no papel. E essa
lógica seria sem dúvida a mesma que orienta uma tradução sel-
vagem, aquela na qual as palavras, cobertas por uma camada de
incompreensão, tornam-se ásperas e atraentes ao mesmo tempo,
estranhas dentro da própria língua.
Leon mirou a estrada, enquadrou a paisagem com os dedos,
calculou o efeito da luz. O calor apertava ligeiramente o ar. Apa-
nhou a garrafinha de água no carro, bebeu de um só gole o resto
quente do líquido. Não, ali não daria uma boa fotografia.

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Já estava de volta ao volante quando notou um vulto que ia
pelo mato. Um homem a cavalo. Vinha margeando a estrada,
vagaroso, do outro lado da cerca. Devia ser vaqueiro de alguma
fazenda; conheceria bem a região. Enfiando a cabeça pela janela,
Leon o chamou com um grito.
O sujeito estacou. Era um velho esguio, com o rosto tran-
quilo. Virando habilmente o animal, aproximou-se da cerca, não
muito longe da pista. Leon cumprimentou-o com um bom-dia.
“Por favor, o senhor saberia me dizer onde fica a divisa?”
O homem permaneceu em silêncio, observando Leon de
cima do cavalo. Usava um gibão de couro que combinava com
o chapéu; a cintura e as pernas estavam paramentadas. Se Leon
tivesse a câmera em punho, seria um retrato de outro tempo
(seu pai, é certo, não veria naquilo nenhuma novidade).
“A porteira?”, finalmente retrucou, coçando o queixo, como
quem tenta decifrar uma charada.
“Não, senhor. Estou procurando a divisa, a divisa dos
estados...”
O velho tirou o chapéu e limpou a testa. Não tinha compreen-
dido a pergunta. Encarava Leon como quem vê um estranho

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personagem. Girou os olhos ao redor, mantendo erguida a
cabeça do cavalo. Indicou um ponto longínquo do cerrado, na
direção do monolito, disse umas frases emboladas. Leon tam-
bém não entendeu, o encontro parecia uma brincadeira sem
propósito. Ouvira talvez a palavra “lapa”, ou “taipa”, ou “farpa”,
ou “légua” (eram palavras do passado?), mas já se arrependera
de ter perguntado. O que não está nos mapas é uma invenção;
ali, duas histórias se cruzavam por engano.
Uma carreta passou pelo asfalto em alta velocidade, buzi-
nando. A lufada de vento fez tremer o carro e chamou a atenção
de Leon. O veículo tinha deslizado um pouco para o barranco.
Ele agradeceu o vaqueiro e retomou a pista.

*
Podia tentar ir um pouco mais adiante. Cruzou a ponte:
uma plaquinha anunciava o rio do Peixe, mas o que sobrevivia
embaixo era um brejo ressecado. Do outro lado, pés de feijão e
milho enfileiravam-se à margem da estrada e dali se estendiam
para o Oeste, fazendo desenhos no chão. Ele acelerou, enga-
tou a quarta. Se tivesse alugado uma veraneio, a paisagem seria
mais hospitaleira; a janela desses carros novos não favorecia o
enquadramento.
Mais à frente, avistou uma placa gigante, e nela o anúncio de
uma fazenda de inseminação artificial. Abaixo do nome do pro-
prietário, a silhueta de um touro branco tomava conta do painel.
Ao contrário do touro negro que se acostumara a ver nas estra-
das espanholas, e que se convertera em patrimônio imaginário
do país, aquele boi solitário surgia para ele, subitamente, como
o dejeto de um sonho, uma espécie de fantasma que, fugindo de
algum mundo em ruínas, vinha por acaso confundir a cabeça
de um fotógrafo no meio da estrada, um fotógrafo que partira
do Sul em busca de uma placa. Por um instante, arrastadas por

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um falso touro, as imagens de sua vida se misturavam, sem
dono, sem afeto, e já não faziam mais sentido (seria aquela placa
a entrada de um labirinto?). Sentiu um princípio de vertigem.
Mas o touro já tinha ficado para trás.
Um quilômetro depois surgiu um novo posto fiscal. De
perto, não passava de uma cabine semiabandonada: um mono-
bloco de concreto e vidro, um painel quebrado e um microfone.
No cascalho ao lado, a carcaça de um caminhão. Agora não
tinha mais dúvidas; cruzara a divisa e estava do lado de lá. Se
continuasse, avistaria Conquista no início da noite, a cidade que
no retiro mais vago de sua memória continuava a ser uma faixa
de luz empoeirada e oblonga, como a via láctea. Mas não tinha
motivos para prosseguir; estar de um lado ou de outro da divisa
não era o que importava. Reduziu a velocidade, procurando um
espaço para o retorno. Seria melhor voltar até o Salto e obter
uma informação segura. Ainda dava tempo de encontrar a placa
antes do anoitecer.

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A cidade do Salto nunca teve mais de quinze mil habitan-
tes, mas, sendo a última antes da fronteira, era uma referência
para os viajantes. Havia sempre alguém lembrando o seu nome,
mostrando-a no mapa, recomendando-a para dormir. Essa cita-
ção espontânea e intensa de algum modo mudava o tamanho do
lugar. No mapa imaginário dos que atravessam a divisa, o Salto
era um ponto de luz.
Há na entrada da cidade um longo trecho de quebra-molas.
Os carros diminuem a velocidade, uma nuvem de vendedores se
atira sobre os vidros. Pinha, manga, pimenta e melancia; laranja,
farinha, garrafas de mel. Nos tempos em que viajava com a famí-
lia, paravam ali no caminho de volta. A mãe e o Henrique, que

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era muito pequeno, só gostavam de biscoito, e queriam chegar
logo. Leon seguia o pai, apoiando-o na extravagância. Lúcia, a
tia mais nova, descia do carro para fumar, olhando os outros de
longe.
Sem tempo a perder, parou no posto de gasolina próximo
do trevo, do qual tinha uma vaga lembrança. A cidade se escon-
dia mais acima, entrando pela avenida de paralelepípedos (um
arco de tijolos desbotados dava as boas-vindas ao visitante). No
pátio, em frente às bombas, ficava o restaurante, ladeado por
uma pequena oficina e um comércio de variedades. Do outro
lado, no galpão, dormiam os caminhões de carga. A plataforma
para os ônibus estava praticamente vazia. Ele entrou, pediu um
café no balcão. Na janela dos fundos se via, depois da terra ver-
melha, a linha da estrada, a vida correndo entre o Norte e o
Sul. A limpeza do lugar chamava a atenção. O chão brilhante,
as paredes pintadas, a vitrine aquecida. Uma dezena de mesas
muito arrumadas, à espera. Em cada uma delas, uma flor de
plástico, pimenta e guardanapos. O serviço era de self-service,
mas as bandejas estavam empilhadas e não mostravam resquí-
cios do almoço.
“Os ônibus só param aqui de madrugada”, repetia a moça
do balcão, sem que Leon tivesse perguntado. “À noite, esse lugar
ferve.”
Em uma banca de doces e biscoitos, cuidadosamente enfilei-
rados na saída para o caixa, Leon reconheceu uma marca. Para
qualquer um, o pacote passaria despercebido. Mas, na sua famí-
lia, as pequenas rosquinhas, com um gosto indefinido, que não
puxava nem para o sal nem para o doce, tinham sido por vários
anos uma obsessão. Uma vez, o pai vasculhou vários supermer-
cados atrás delas; chegou à conclusão de que só eram distri-
buídas ali, nas proximidades do Salto. Então levava um tanto
de pacotes para casa; durante meses, serviam de lembrança da

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viagem. Nem mesmo Lúcia, com seu talento para o raciocínio
lógico, duvidava: a cidade de Peraus, que dava nome ao biscoito,
era uma invenção do fabricante e só existia na embalagem.
“Outro café e uma garrafa de água”, Leon pediu à moça, que
só tinha a ele para atender. Foi ao banheiro, pagou a comanda
e saiu. Passava das três, quase não havia movimento no pátio.
Perto das bombas, um dos frentistas, agachado e com a man-
gueira na mão, terminava de abastecer um fusca. Leon cumpri-
mentou-o com a cabeça.
“Amigo, você saberia me dizer... por favor, onde fica a
divisa?”, perguntou. “Mas preciso saber o lugar certo, o lugar
onde fica a placa.”
O frentista não virou o rosto, continuou colado à boca do
tanque.
“Olha”, respondeu com a voz mole, “para te dizer a verdade, ao
certo mesmo, esse ponto exato... ninguém sabe direito onde fica.
Para cada um que você perguntar, vai ter uma resposta diferente.
Mas a fronteira está aí, uns cinquenta quilômetros adiante.”
Leon abriu a garrafinha de água, bebeu um gole, olhou em
volta. O vapor da gasolina na borda do tanque deformava o
rosto do frentista e realçava a impressão de calor. Correram uns
segundos, soou o clique, a máquina travou. O tempo sempre
passa mais devagar nos postos de gasolina.
“Mas você sabe”, Leon insistiu, “se tem alguma indicação na
estrada? Uma estaca, um mourão que seja, uma pedra?”.
Sentado no degrau ao pé da bomba, outro frentista, que
palitava os dentes, entrou na conversa.
“Ei, Alex. A divisa não é perto da fazenda de inseminação?
Acho que tem uma placa lá.”
O Alex olhou com cara de deboche.
“Da fazenda? Claro que não, Tadeu. A fazenda fica do lado
de lá. Essa placa que você tem na cabeça é a do boi. A divisa está

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bem antes, uns trinta quilômetros antes”, disse com certa convic-
ção, devolvendo a mangueira à bomba. “Logo depois do rio dos
Mosquitos. Mas não tem placa nenhuma lá. Tinha antigamente,
mas não tem mais. Deve ter sido arrancada.”
Um caminhão carregado de cimento encostou, bufando e
soltando guinchos. O Tadeu cuspiu o palito no chão e foi fazer o
atendimento. Nenhum dos dois parecia saber direito o que estava
dizendo. Leon encostou-se na bomba de gasolina, na esperança
de que um terceiro resolvesse o problema. Uma roleta mecânica
dava o preço e a quantidade de combustível; as bombas do posto
não tinham entrado na era digital.
“Pode encher até vazar”, gritou para o Tadeu o motorista do
caminhão, antes de entrar no restaurante. O dono do fusca, que
tinha acertado a conta, acabava de arrancar.
O Alex avistou um colega no meio do nada.
“Ernani! Ô, Ernani!”, gritou-lhe, balançando a estopa no ar.
O homem, que caminhava na direção da rodovia, virou-se
e veio rápido, ajeitando a camisa para dentro das calças. Tinha
acabado de tomar banho, ia largar o serviço.
“Esse camarada aqui” – e apontou para Leon – “quer ir até a
divisa. Você podia mostrar pra ele onde fica. Você mora lá perto,
não é?”
O Ernani confirmou, agora ajeitando o cabelo.
“Se o senhor me der uma carona, lhe mostro onde é. Estou
mesmo indo pra casa.”
O Alex sorriu, com ar de dever cumprido.
“Que ótimo”, disse Leon, “mas eu preciso ver o lugar da
placa. Você garante que conhece?”
“A placa existe ainda, sim, senhor”, retrucou o Ernani,
enquanto o Alex fazia cara de incrédulo.
“O senhor é do Incra?”, o próprio Ernani emendou, curioso.
Leon não entendeu.

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“Incra? Por que Incra? Não, de jeito nenhum.”
“Semana passada teve outra invasão por aqui. Sempre vem
alguém do Ministério. Um fiscal. Às vezes também vem gente
da Funai.”
“Não, eu não tenho nada a ver com isso. Nem com o Incra,
nem com a Funai”, respondeu. “Só quero ver onde fica a divisa,
só isso.”
Os dois entraram no carro.
O Ernani era um sujeito jovem, muito franzino e sorridente.
Certamente seria mais novo que Leon, mas as marcas do traba-
lho compensavam a diferença. Sentou-se no banco, encolheu os
ombros e juntou as pernas, como quem pede licença para entrar
na casa dos outros.
Leon arrancou. Em silêncio, passou de novo pelo trevo
(agora só havia uns poucos meninos lá) e tomou outra vez o
caminho para o Norte, desta vez mais encorajado, por ter ali
do seu lado, em carne e osso e fora do mapa, um habitante da
divisa. Eram quase quatro da tarde.

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O sol ia mais baixo, e um comprido facho de luz alaranjada
modificava o tom do cerrado. A rodovia ficara mais rápida.
“Você é fotógrafo?”, Ernani perguntou ao motorista, ao ver
a máquina e um jogo de lentes escapando da mochila sob o
banco.
A indagação pegou Leon de surpresa, soou-lhe estranha.
Não porque um desconhecido evocava sem licença o mundo de
onde ele vinha, como se o tivesse descoberto e o tirasse do ano-
nimato. Não, a pergunta era estranha porque o tocou como se a
ouvisse pela primeira vez, como se por um instante tivesse vol-
tado no tempo e se tornado de novo o aspirante a fotógrafo que

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fora vinte anos atrás, quando não tinha nenhum trabalho reco-
nhecido e fazia bicos em jornal, quando ainda não tinha abando-
nado a faculdade de sociologia para ir com sua primeira mulher
para a Europa, e então achava pretensioso responder afirmativa-
mente a uma pergunta como aquela. Uma pergunta banal, para
a qual, quando o passado se cruza com o presente, não havia
resposta, ou toda resposta seria incompleta ou absurda.
“O que são aquelas manchas ali?”, foi o que disse Leon, apon-
tando para o alto de um campo.
Mesmo à distância, dava para divisar um punhado de barra-
cas cobertas com plástico preto e uma bandeira desbotada fin-
cada num pau. Era o acampamento dos sem-terra. Leon não o
notara ao passar antes por ali.
Cruzaram o rio dos Mosquitos. Repetia o trecho que fizera
há pouco, e pensava nisso como uma segunda chance. Um
cheiro de borracha queimada vinha do caminhão da frente, o
mesmo cheiro que o excitava quando criança e agora não lhe
dava ânimo nenhum. Assim também o odor das queimadas,
da fumaça preta dos ônibus, do enxofre das fábricas, da carniça
dos animais, das matulas de frango, do asfalto molhado, qual-
quer um desses odores, por mais que Leon se empenhasse em
dar a eles um sentido novo, seria agora apenas a duplicata de
uma experiência remota, inscrita em alguma viagem primitiva,
e dessa maneira condicionado a ela, e teria perdido a sua natural
brutalidade, que era uma injeção de vida e vontade inteiramente
sanguíneas.
Trinta quilômetros − uma plaquinha desbotada indicava o
Taboão. O Taboão, que não constava em mapa nenhum, que
ninguém sabia como era, onde não nascia ninguém. Talvez não
passasse de uma placa na beira da estrada. Se um dia tivesse
que se esconder da polícia, ou fugir de alguém, certamente viria
para cá.

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*
“Pode reduzir”, disse o Ernani. “É logo ali na frente.”
“Ali onde?”
“Ali, depois daquele cupinzeiro, no mourão mais alto. Bem
ao lado, tem uma estradinha que vai pelo mato. Viu?”
“Não estou vendo nenhuma placa ali.”
“Tem sim, você vai ver. Pode parar.”
Por um instante, duvidando da sanidade do outro, Leon
chegou a ficar apreensivo, sem entender direito o que significava
aquela situação. Encostou o carro, Ernani desatou o cinto, foi
logo saltando. Correu até o princípio da terra, apontou para o
flanco.
“Não disse que era aqui?”
Sem desligar o motor, Leon observava de dentro do carro.
“Desce, moço”, gritou o Ernani.
Leon por fim se aproximou. O cheiro de borracha queimada
subia mais forte, parecia vir do centro do chão. Em um pedaço
de barranco fechado pelo mato, distinguiu as formas de uma
placa velha e retorcida, coberta de ferrugem. O letreiro estava
apagado, mas dava para ter certeza das antigas palavras: “Divisa
de estados...”.
Ante o olhar curioso do Ernani, Leon debruçou-se sobre a
terra, tentando desamassar os restos da armação corroída pelo
tempo. Depois de algum esforço, levantou-se, olhou demo-
radamente à sua volta, esquadrinhando o horizonte. Foi até o
carro, voltou com o caderno que estava embaixo do banco. De
dentro do caderno sacou a fotografia, tirada décadas atrás. Um
retrato dos antigos viajantes postados na linha da divisa: o pai,
a mãe, Henrique e Leon. Este tinha um pé para a frente e outro
para trás, ocupando assim, simultaneamente, os dois territórios
divididos pela placa. Um sorriso comum atravessava os quatro

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rostos, como se a felicidade estivesse ali, inscrita naquele recanto
perdido e sem nenhum interesse. Lúcia, que não aparecia, tirava
o retrato.
Leon então ergueu a foto no ar, sobrepondo, no mesmo
espaço, a imagem antiga à do presente. As cercanias haviam
mudado de cor, mas o talhe das montanhas e a saliência do tre-
cho confirmavam o cenário de 1975, duplicado agora, trinta anos
depois.
“O senhor me dá licença, que já vai escurecer”, disse o Ernani,
interrompendo a observação.
“Onde é que você mora?”, perguntou Leon.
“No final dessa estradinha” − e ergueu o nariz apontando a
trilha.
Por alguns minutos, Leon ainda permaneceu ali, à beira da
rodovia, até que o mundo retomasse sua habitual indiferença.
A noite já subia quando entrou no carro e arrancou de volta,
rumo ao Sul.

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