Você está na página 1de 38

Sumário

coluna
Bianca Santana
Wilson Gomes

reportagem
Mudança de curso

entrevista Marcia Tiburi

dossiê O feminino de ninguém


Apresentação
Libido não tem gênero
A invenção da maternidade
Sexualidade: enigmática! Até mesmo traumática! Mas, abusiva não!
O feminino na travessia do Grande Sertão

estante cult
As mulheres devem chorar
A Cleópatra da África Central

colaboraram nesta edição


coluna

Um chamado aos brancos


BIANCA SANTANA

No supermercado Extra, um segurança estrangulou Pedro Gonzaga, de 19 anos, até a morte. Eu não
estava lá, as imagens em vídeo são muito limitadas, e não é possível compreender a cena toda. Ainda
assim, cabe perguntar: por que ninguém pulou sobre um dos seguranças que isolava a ação? Por que
ninguém jogou nada na cabeça do assassino, na tentativa de obrigá-lo a soltar o garoto? Jovens negros
que, em 2016, eram executados a cada 23 minutos, vão morrer em intervalo ainda menor se não
tomarmos para nós a tarefa de protegê-los. Assim como as empresas privadas de segurança, o Estado não
os defende. O Estado é quem mais mata.
Em 1966, nos Estados Unidos, um grupo cansado de lamentar assassinatos de negras e negros decidiu
patrulhar os guetos para proteger a população da violência policial. Armados legalmente, seguiam
viaturas policiais e desciam dos carros para acompanhar as abordagens. O objetivo não era atacar. Era
proteger, assim como as panteras negras que só atacam humanos em caso de ameaça. O Partido dos
Panteras Negras para Autodefesa, conhecido como o Partido dos Panteras Negras, chegou a ter 2 mil
membros.
Como podemos, no Brasil de 2019, nos inspirar nos Panteras Negras em defesa de nosso jovens?
Sem armas de fogo, com organização e compromisso, conseguimos coibir a violência policial e das
empresas privadas para que negras e negros possam viver? Corpos negros, mais vulneráveis, não
precisam estar à frente, em autodefesa. Talvez esta seja uma boa oportunidade para brancas e brancos na
luta antirracista: colocar a imagem de ser humano digno de respeito e de direitos a serviço de quem tem
sua humanidade negada. Colocar o próprio corpo na frente. Atender aos chamados do movimento negro,
não como protagonistas da luta dizendo o que precisa ser feito ou como, mas ouvindo, aprendendo,
assumindo tarefas e responsabilidades que possam ser coletivamente atribuídas.
Quando uma denúncia de racismo explode, é comum a comoção de pessoas brancas de esquerda,
demandando saber como combater o racismo em si e no entorno. Mas, quando outro dos nossos jovens é
assassinado e o movimento negro convoca um ato, raras vezes encontramos alguma dessas pessoas ao
nosso lado nas ruas. Encher-nos de perguntas, pedidos de referências e de revisão de textos quando
julgam pertinente, no seu tempo, pode nos colocar, mais uma vez, no lugar de servir a que todos estamos
acostumados. Que tal assumir uma postura antirracista desde este momento? Há muitos livros, artigos
acadêmicos e textos de jornais e revistas disponíveis, além de cursos, palestras e seminários divulgados
com frequência. Com um pouco de dedicação, é possível aprender muito sobre relações raciais no Brasil
e a luta antirracista sem importunar nenhuma pessoa negra com demandas indevidas.
Recomendo fortemente a leitura de autoras e autores negros. Sueli Carneiro. Lélia Gonzalez. Abdias
do Nascimento. bell hooks. Angela Davis. Fanon. Não me pergunte por qual texto começar, por favor. E,
para compreender que branco também pode ser visto a partir de uma perspectiva racial e aprender sobre
branquitude, recomendo o livro de Lia Vainer Schucman, Entre o encardido, o branco e o branquíssimo
– Branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo, adaptação de sua tese de doutorado,
publicado pela Annablume, em 2014.
Quem quiser dar um passo para dentro, ir além dos discursos teóricos e militantes para olhar para si
sem medo de se perceber racista, recomendo inspirar-se no texto “Quando me descobri racista”, de
Debora Pivotto, minha amiga desde a faculdade de jornalismo. Generosamente, ela cita o processo de me
descobrir negra como uma das motivações para que ela mesma se olhasse com coragem e verdade.
“Sempre tive muito orgulho de ver não só a Bianca, mas tantas mulheres que, nos últimos anos, se
assumiram negras. Soltaram seus cabelos e suas vozes. É realmente lindo de ver. Mas, de uns tempos pra
cá, tenho olhado mais para mim e entrado em contato com o meu próprio processo diante de toda essa
transformação. E tenho lidado com algo bem complexo e profundo que é deixar de ser racista.”
Crie referências! Além das leituras, veja cinema pensado por pessoas negras. Vá a médicas, dentistas,
terapeutas negras. Eduque seu olhar para que nem todas as pessoas com o mesmo tom de pele pareçam a
mesma pessoa. Perdi as contas da quantidade de fotos minhas que já me enviaram em que não apareço.
Concordo que não seja um problema grave. Mas é imensa a quantidade de mulheres e homens negros
presos, condenados injustamente, por crimes que não cometeram, porque foram reconhecidos por
testemunhas que achavam todos muito parecidos.
Para citar apenas um caso, a modelo Barbara Querino, de 20 anos, foi condenada a 5 anos e 4 meses
de prisão por um assalto realizado em São Paulo, capital, em uma noite em que trabalhava no Guarujá. O
irmão de Bárbara, acusado de outro roubo, foi levado para a delegacia. Mesmo sem qualquer
envolvimento com a denúncia, Bárbara também foi levada e fotografada pelos policiais segurando um
cartaz com seu nome completo, RG e data de nascimento. A imagem passou a circular ilegalmente pelo
Facebook e em grupos de WhatsApp. Um casal, cujo carro havia sido roubado, recebeu a imagem no
grupo do prédio onde são vizinhos de um delegado de polícia, e foi à delegacia declarar que haviam
reconhecido os ladrões por fotografias, e dentre eles estava Bárbara. Seus cabelos pretos crespos e
longos, sua pele parda não deixavam dúvidas, segundo as vítimas, de que ela havia participado do
assalto. Bárbara está presa desde 15 de janeiro de 2018.
Casos como o de Bárbara são, infelizmente, comuns no Brasil e em outras sociedades racistas. Em
1974, James Baldwin publicou o romance Se a rua Beale falasse, traduzido no Brasil pela Companhia
das Letras em 2019, quando foi lançado o filme de Barry Jenkins com o mesmo título. Na obra, Tish
narra sua história de amor com Fonny, preso depois de ser reconhecido, em uma fila de homens negros,
pela vítima de um crime hediondo que ele nunca cometeu.
Talvez dê para ligar os pontos e compreender por que importa tanto que pessoas negras sejam
retratadas pelo cinema, televisão, publicidade sem a reprodução de estereótipos racistas. Precisamos ser
vistas em nossa individualidade, com a nossa complexidade. Como seres humanos. Pessoas que não são
o tempo todo confundidas com quem ocupa posição subalterna ou com quem comete crime. Humanos
que não podem ser estrangulados até a morte em um supermercado.
coluna

A criminalização da homofobia
WILSON GOMES

O tema político de fevereiro, noves fora as histórias picantes do cabaré político nacional que não fecha
nunca, foi a “criminalização da homofobia”. Este, que à primeira vista é mais uma pauta do âmbito dos
costumes e não da política em sentido estrito, tem sido na verdade um tema-chave da política nacional.
Afinal, quem ganhou a última eleição não foi a direita convencional, antiestatista e pró-negócios, mas os
conservadores de direita, para os quais os temas morais no âmbito dos costumes são o principal
problema do país, quiçá da humanidade. Pelo modo como se comportam desde a implantação do
governo Bolsonaro, parece mesmo que essa gente entende o êxito eleitoral como a aquisição
inquestionável de uma prerrogativa civilizacional, o direito de converter para as suas crenças e
convicções toda a nação.
De fato, para um Vélez Rodrigues, uma Damares Alves, um Ernesto Araújo, um Ricardo Salles, um
general Heleno, não foi apenas uma vitória em uma eleição democrática que dá ao vencedor, no máximo,
o direito de governar, porém dentro dos limites constitucionais e de um sistema de pesos e contrapesos,
mas uma conquista, que concede ao vitorioso o direito de impor a sua fé e o seu modo de vida aos
conquistados. Ou a proceder expurgos de outras visões de mundo ou marginalização de outros estilos de
vida.
A questão homossexual está para a reinante direita conservadora brasileira como, dadas as devidas
proporções, a questão judaica esteve para a vencedora direita europeia da primeira metade do século
passado, ou como a questão dos migrantes está para a hegemonia da direita nos Estados Unidos, no
Reino Unido e na Itália, por exemplo. Trata-se do Grande Pretexto Moral, usado para exemplificar o que
há de errado com a sociedade que se pretende reedificar em outras bases morais e políticas. Um universo
sem o custo econômico e social da migração e sem o controle dos europeus sobre a vida britânica foi a
narrativa vitoriosa no Brexit. Uma Alemanha fora do domínio pervasivo dos judeus na economia e na
vida nacional foi a narrativa vitoriosa na ascensão nazista.
Já no Brasil tivemos a impressionante vitória de uma paradoxal narrativa em que maiorias reais se
vendem como minorias e minorias reais são vendidas como maiorias assustadoras que as sitiam. Assim,
as mulheres de família se viram, de repente, lutando por sua própria sobrevivência ante o cerco de uma
superpotência política e moral denominada “feminismo”, que impõe a ferro e a fogo a sua doutrina e
modo de vida conhecida como “ideologia de gênero”. Que não apenas quer embaralhar todo o
conhecimento da ordem natural das coisas na relação entre os gêneros e papéis sexuais, como também
quer induzir as crianças a se tornarem, imaginem só, feministas. Do mesmo modo, os poucos e
resilientes heterossexuais foram, durante as trevas infernais dos governos comunistas, acuados por
hordas poderosíssimas de homossexuais, praticamente forçados à conversão, e, horror dos horrores,
impedidos até mesmo de os ofender e humilhar publicamente. Assim se montou a paradoxal dramaturgia
em que gayzistas e feminazis – ou a ditadura gay e a ideologia de gênero – praticamente dizimaram os
heterossexuais, a família no modelo bíblico e as mulheres cristãs que depilam as pernas e só querem
cuidar das suas famílias.
Além disso, a fantasia do “avanço da homossexualidade” vem servindo, pelo menos desde 2011,
como agregador e mobilizador para a formação de uma militância contra os direitos dos homossexuais e
contra o reconhecimento social dos LGBTs. Um curioso ativismo, de ideias velhas, baseadas
principalmente no fundamentalismo evangélico, e práticas novas, uma vez que é basicamente digital.
Claro, a recente mobilização política dos conservadores depende também de outras quimeras
convenientes, tais como “a opressão do politicamente correto”, a “conspiração e cerco comunistas”, “a
intentona feminista”, “a doutrinação ideológica dos professores de esquerda”, “a pedofilia e erotização
das crianças” e outras que agitam o imaginário da direita. Lembremo-nos, contudo, que na cronologia
das forças que se aglutinaram no bolsonarismo, por volta de 2016, o ativismo anti-gay é um dos núcleos
militantes mais antigos e mais bem articulados. E que, portanto, a reação contra os homossexuais é parte
fundamental do DNA do bolsonarismo.
Nessa circunstância, é natural, portanto, que o tema da “criminalização da homofobia” funcione
como pedregulhos lançados no telhado de zinco do galinheiro dos conservadores de direita. A cada
rajada de pedras segue-se um alarido dos infernos, que cessa apenas quando as pedras deixam de
explodir no zinco acima das cabeças dos galináceos. No momento em que escrevo esta coluna, as pedras
ainda estrondam e a cacofonia, testemunhada sobretudo nos ambientes digitais, é extrema, enquanto no
STF o jogo que realmente conta ainda está sendo jogado. Os meus eventuais leitores é que terão o
privilégio de saber como terminou essa rodada, e por quanto tempo o histérico alarido se propagou. De
toda sorte, a enunciação da “criminalização” da homofobia, considerando os nervos expostos da
interminável campanha política brasileira, é ferro em brasa.
Paradoxalmente, mesmo da perspectiva da esquerda, que por suposto detesta a homofobia, a ideia de
“criminalização” em geral é desconfortável. A criminalização é um tema e um desejo da direita, que
acredita piamente ser este um fármaco universal, receitado para todo problema social, inclusive para os
problemas resultantes dos irresolúveis desacordos morais da sociedade brasileira. Querem criminalizar o
ensino de valores liberais, humanistas e iluministas nas escolas, querem criminalizar o aborto em
quaisquer circunstâncias, querem criminalizar tudo de que não gostam. A Constituição pode, em muitos
casos, ser um estorvo; bastava-lhes o Código de Direito Penal.
A ideia, portanto, não é fácil nem simples, e as divergências podem ser muitas. Ainda mais que o
mandado de injunção – MI 4733 – e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão – ADO 26 –, que
o STF está julgando, demandam explicitamente “a criminalização de todas as formas de homofobia e
transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas, das agressões e discriminações
motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima”.
Fiquemos, entretanto, com o que nos une, nós os liberais de esquerda. Se a discriminação, o insulto e
a ofensa raciais não fossem tão disseminados neste país, os negros e afrodescendentes não precisaríamos
da Afonso Arinos (1951), da Lei Caó (1985), da 7.716/89, do § 3º do art. 140 do Código Penal e,
principalmente, dos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição Federal. Notem a pilha de normas de
que precisamos, e que foram providenciadas ao longo do tempo, para fazer uma barricada contra o
racismo e ganhar um espaço de respiro para os não brancos neste país. Da mesma forma, se qualquer um
não se sentisse no direito de insultar e humilhar homossexuais, de discriminá-los e segregá-los, contando
com isso com grande complacência social, e se tantos não se sentissem autorizados a atacá-los e matá-
los, eles também não precisariam tão desesperadamente do amparo da lei.
Está certo, a criminalização da homofobia (por analogia ao inc. XLII do art. 5º da CF), per se, não
resolve o problema social da homofobia. Quem odeia, despreza ou tem repulsa por homossexuais, pela
homossexualidade ou por transgêneros não mudará de sentimento ou atitude simplesmente por força de
lei. Mas, pense um pouco. Você acha que transformar a segregação racial em contravenção (Afonso
Arinos) ou criminalizar a prática do racismo (Constituição de 88) são ou não importantes para evitar que
racistas saiam por aí ofendendo, humilhando e atacando explicitamente negros, como se isso nada fosse?
Quando dos debates sobre a Afonso Arinos, no início dos anos 1950, o deputado Plínio Barreto,
relator na CCJ, disse sobre os preconceitos de raça ou de cor: “Nunca haverá leis que os destruam.
Nunca houve lei alguma que pudesse desarraigar sentimentos profundos e trocar a mentalidade de um
povo. Mas não impede que, por meio de leis adequadas, se eliminem algumas das manifestações
públicas desse preconceito”. Pois é.
Portanto, que ninguém venha com “essas coisas não se mudam com lei”, “criminalizar a homofobia é
um passo além da necessidade”, “não é com direito penal que se resolvem as coisas”. O que motiva a
busca da proteção da Lei é o desespero ante uma humanidade que demora a se tornar melhor. Assim
como a pilha de leis citadas contra o segregacionismo e o racismo pelo menos civilizou as relações
raciais públicas e garantiu aos negros pelo menos uma esfera protegida da ofensa e do desrespeito –
imperfeita, sim, mas efetiva –, é justo que a sociedade brasileira dê às pessoas LGBTs uma lei que lhes
assegure o direito de não serem insultados, ofendidos, agredidos, discriminados e mortos apenas por
serem quem são. Independentemente de como o STF ou o Congresso resolvam a questão, o chocante não
é que se reivindique que os direitos fundamentais dos homossexuais sejam respeitados. Espantoso é que
em pleno século 21 ainda se precise, desesperadamente, reivindicar o amparo da lei para assegurar uma
vida digna e, mais que isso, uma vida segura, para uma parte importante da sociedade.
reportagem

Mudança de curso
AMANDA MASSUELA

“Hoje eu vou contar pra vocês a história do Museu Nacional.” No mês do incêndio que destruiu a mais
antiga instituição científica do Brasil, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz deu início ao seu
próprio espaço de “descoberta e democratização da história” no YouTube, o Canal da Líli. De lá pra cá,
tem usado a plataforma para oferecer dados, documentos, referências e contexto para assuntos que
brotam do noticiário e se multiplicam cheios de ruído por feeds e timelines.
“Estamos vivendo um momento em que as redes sociais têm um papel imenso na formação dos
brasileiros”, afirma. “Venho acreditando – e isso ficou mais claro depois das últimas eleições – que é
preciso que acadêmicos, pesquisadores, intelectuais e historiadores tomem um lugar na cena pública para
ajudar na formação desse grupo leitor que escolheu as redes sociais como uma forma de se posicionar no
debate.”
E eles são muitos: 140 milhões – 66% da população brasileira – é usuária de mídias sociais, segundo
o mais recente relatório da Data Reportal sobre o uso da internet no mundo. A pesquisa revela que o
brasileiro passa em média nove horas por dia conectado, cerca de três delas checando suas redes, outras
três assistindo a vídeos. O YouTube é o site que mais capta a atenção dos brasileiros (22m28s, em
média, por visita) e é a rede social mais citada pela população com acesso à internet (95%).
Não por acaso, acadêmicos e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento vêm se colocando
na plataforma, na tentativa de dialogar com essa parcela da população sobre aspectos da cultura e da vida
social e política do país. Ao fazê-lo, adotam a linguagem do YouTube – vídeos curtos com edição
ligeira, quadros temáticos, cenário, vinheta –, o que em nada lembra as gravações de congressos,
palestras e conferências que sempre circularam por ali. A ferramenta atrai 1,5 bilhão de par de olhos pelo
mundo a cada mês e seu algoritmo é capaz de carregar o conteúdo para mais longe do que os “textões”
de Facebook – o que também vale para teorias da conspiração, revisionismos, boatos e informações
falsas.
“O algoritmo tenta sempre procurar algo um pouco mais controverso em relação ao que você
pesquisou, de maneira que as sugestões que ele te mostra são invariavelmente mais radicalizadas com a
intenção de te prender na plataforma”, explica Marco Bastos, professor associado do departamento de
Sociologia da City, Universidade de Londres. De uma busca inicial por um discurso de Donald Trump,
por exemplo, em poucos cliques é possível cair em um vídeo de conteúdo neonazista.
Foi para disputar um espaço de esquerda nesse campo que o militante, professor de história e mestre
em Serviço Social Jones Manoel criou, em 2017, um canal sobre política. De orientação marxista, seus
vídeos retomam conceitos políticos básicos (“o que é socialismo”, “o que é capital financeiro”) e
procuram desmistificar episódios e personagens históricos.
“Durante muito tempo a gente só fazia ridicularizar figuras como Olavo de Carvalho e o próprio
Bolsonaro. Desprezamos esse mecanismo de comunicação e a direita foi ganhando. Com a eleição, a
gente acordou e vimos que precisamos estar nesse espaço. Só publicar artigos em revistas acadêmicas,
que são ótimas para engordar o Lattes, mas que ninguém lê, não está dando certo”, critica.
É o que o psicanalista Christian Dunker conceitua como “lógica do condomínio”, noção que
relaciona à experiência com escolas de psicanálise, mas que estende à academia e ao cotidiano de modo
geral. “É essa atitude mais burocrática, cada um na sua pequena comunidade e na sua pequena
linguagem”, diz. “Nesse momento mais agudo, a gente precisa sair dos condomínios e entrar na
conversa, na experiência do debate público.”
Mas existe um diálogo possível no YouTube? Para ele, sim. Em 2016, o psicanalista criou seu
próprio canal, o Falando Nisso, com a ideia de promover um “experimento discursivo” em que os vídeos
recriassem a estrutura de uma conversa falada, que se inicia a partir de perguntas deixadas por
espectadores na caixa de comentários e a partir das quais Dunker pinça temas sobre política, teoria
psicanalítica e até cinema. Também era do seu interesse descobrir “se a psicanálise e temas mais eruditos
poderiam assumir outra forma”. A resposta foi positiva.
“As pessoas dizem: ‘nunca pensei que a psicanálise podia ter relação com arte, política,
antropologia’. Essa capacidade de a cultura produzir unidade é muito inclusiva”, afirma. “Especialmente
em cidades sem nenhum recurso cultural, os canais de conteúdo são muito importantes, muito mais do
que eu imaginaria. Não só pelo que você está passando ali, mas pela ideia de que a pessoa entra no
universo da cultura, das interrelações e das conversas.”
A psicanalista Maria Homem, que mantém um canal de vídeos sobre cultura, literatura, comunicação
e psicanálise, hoje vê a plataforma como “uma grande roda de conversa”, ainda que sua relação com ela
já tenha sido “ambígua”: “Como virar uma figura pública sem publicizar o privado? É uma pergunta
importante para quem trabalha com reflexão sobre a subjetividade no espaço público. Hoje penso que a
gente pode, sim, ter esse espaço reflexivo. É uma arena pública como qualquer outra, como as escolas e
as praças”.
DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Mas a conversa nem sempre é proveitosa. “A forma como muita gente engaja no seu vídeo não é
respeitosa como num congresso em que o debate será polido, mesmo com ideias divergentes”, afirma a
socióloga Sabrina Fernandes, dona do canal de formação política Tese Onze. “Quem está fazendo esse
trabalho [no YouTube], seja com viés acadêmico ou militante, tem que se preparar mentalmente.”
Isso porque conteúdos políticos invariavelmente atraem mais discursos de ódio e radicalizações para
a caixa de comentários. “Qualquer vídeo que eu faça que tenha a cara do Marx ou o nome dele no título,
eu já vou ser execrado por uma série de pessoas que nem se preocupam com o que eu digo. A questão é
eliminar a oposição na internet custe o que custar”, diz o historiador Icles Rodrigues, que desde 2015
alimenta o Leitura ObrigaHistória, dedicado a vídeos sobre história e ciências humanas.
Ele lembra quando publicou uma explanação sobre o holocausto e recebeu uma enxurrada de
respostas negacionistas: “Gente falando que o holocausto era uma farsa ou dizendo que, tudo bem,
nazistas mataram judeus, mas seis milhões é um exagero”. Depois de tentativas frustradas de diálogo,
fechou a caixa de comentários.
O historiador evita evidenciar seus posicionamentos políticos nos vídeos – ao contrário de Jones
Manoel e Sabrina, assumidamente marxista, feminista e ecossocialista – por acreditar que, assim, não
restringirá seu público. “Eu não quero fazer um canal só para quem tem um viés à esquerda e respeita a
academia, quero chegar às pessoas que veem ambos com desconfiança e mostrar que existe uma
hierarquia do conhecimento.”
Independentemente de posicionamentos políticos explícitos ou não, André Azevedo, doutor em
História e professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL), desconfia que os canais acadêmicos
não conseguem dialogar com o público que “já está disposto a atacar a mando de seus ídolos”. Mas, com
46 mil seguidores em seu próprio canal no YouTube sobre educação, comunicação e ciências humanas,
ele não considera a “batalha perdida”.
“Não encaro a divulgação científica como uma espécie de sacerdócio messiânico. Os conteúdos do
meu canal estão disponíveis aos interessados. É possível aprender com eles, assim como é igualmente
possível ignorá-los. É comum que, ano a ano, novas gerações de estudantes passem a descobrir os vídeos
e a interagir com os comentários antigos.”
No YouTube desde maio de 2018 com o Canal do Cortella, o filósofo Mario Sergio Cortella enxerga
na sociedade um movimento de “desqualificação do trabalho intelectual”, o que considera perigoso para
a vida coletiva. “Até há uns 20 anos, quando a pessoa queria desqualificar uma ideia, dizia que aquilo era
‘coisa de filósofo’. Hoje, retorna essa coisa curiosa que é utilizar a palavra ‘intelectual’ como
xingamento. Há uma desqualificação da área da cultura letrada que oferece ao cientista, ao docente e ao
pesquisador a ideia de que o que ele apresenta é mera opinião vazia.”
Mas encontros fora da internet dão mostras de que o conteúdo de viés acadêmico no YouTube
também atinge quem não se encaixa nem na bolha acadêmica nem revisionista: “Dia desses, duas moças
que trabalhavam com coleta de lixo me abordaram pra dizer que aos sábados ficavam assistindo aos
vídeos do meu canal”, lembra Cortella. Histórias semelhantes se repetem entre os demais entrevistados
pela reportagem: “Fui pegar um voo e a moça do check-in me disse: ‘eu te conheço, você não é aquela
psicanalista que tem um canal? Adoro seus vídeos, me ajudam muito”, recorda Maria Homem.
Ainda assim, muitos consideram a divulgação científica no YouTube uma atividade pouco produtiva.
“Mais do que ocupar a plataforma, o trabalho acadêmico em relação ao YouTube seria entender qual é o
seu papel no ecossistema de desinformação, explicar para o público como adolescentes saem dali
acreditando que a terra é plana. Esse seria o nosso chamado”, pondera o professor Marco Bastos.
A própria plataforma tem pensado em maneiras para incentivar a produção de vídeos educativos e de
divulgação científica e, ao mesmo tempo, frear a disseminação de teorias conspiratórias e
obscurantismos. Umas delas foi a criação de espécies de selos de qualidade e agregadores de conteúdo
acadêmico, o Science Vlogs e o YouTube Edu. Além disso, o serviço vem trabalhando para tirar
publicidade de canais que propagam mentiras e discursos de ódio.
“O problema principal do YouTube é que qualquer um pode falar o que quiser, o que não seria um
problema se a audiência soubesse avaliar as fontes e distinguir entre informação e opinião. Mas para
muitos o critério de veracidade é a fama do youtuber”, afirma André Azevedo.
Recomendado pelo presidente Jair Bolsonaro como uma fonte confiável de informação, o músico e
produtor Nando Moura, por exemplo, defende que o nazismo foi um movimento de esquerda ligado ao
comunismo. Ele agrega em seu canal pouco mais de três milhões de seguidores e foi um dos afetados
pelas ações de desmonetização do YouTube.
“Nesse contexto, a crítica aos divulgadores científicos no YouTube é profundamente injusta.
Pesquisadores acadêmicos fariam um favor melhor se concentrassem as críticas à pseudociência, ao
sensacionalismo e aos charlatões”, afirma Azevedo.
PENSAMENTO E AÇÃO
“O uso das redes sociais pode ser feito como muitos fazem, de forma proselitista, catequética, mas
pode ser feito também para que a gente reflita”, considera Cortella. “A tarefa da filosofia e do mundo
acadêmico não é dizer para as pessoas pensarem ‘isso’, é dizer ‘pense nisso’. Nessa hora, essa forma de
uso do mundo do Youtube, das redes sociais, da tecnologia digital, é importante demais.”
Vem daí a resistência desse campo em aderir ao vocabulário próprio dos “youtubers”, muitas vezes
chamados de “influenciadores digitais”. “Não por existir algo errado com essa ideia, mas porque quando
a gente está fazendo conteúdo político, o objetivo não deve ser simplesmente se transformar em uma
referência para as pessoas, mas fazer com que elas se tornem sujeitos políticos pela sua própria ação”,
comenta Sabrina Fernandes.
O nome do canal da socióloga é inspirado pelas “Teses sobre de Feuerbach” de Marx,
especificamente a tese 11: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; agora é
preciso transformá-lo”. “Pensamento e ação”, como observa a psicanalista Maria Homem: “A única
opção possível para adultos é encarar a realidade, e para fazer isso é preciso pensar e atuar sobre ela. Se
a gente não consegue lidar com a realidade com pensamento e ação transformadora, regredimos a uma
posição infantil, mágica e/ou destrutiva.”
Para o professor Marco Bastos, o difícil é encontrar um meio termo entre o que é possível fazer em
uma plataforma como o YouTube – que favorece conteúdos curtos com uma edição mais agressiva – e a
própria natureza do trabalho acadêmico. “O usuário do YouTube quer ser simultaneamente entretido e
receber alguma informação. E a informação acadêmica, que é de alta densidade, sofre muito com esse
tipo de edição.”
Sabrina acredita que é possível publicar material acadêmico mais acessível, mas ainda assim
rigoroso, no YouTube. “Seria muito importante perder um pouco desse preconceito e investir em outras
plataformas – não só o YouTube –, para levar o conhecimento para fora da academia”, afirma.
Apenas em 2012 a divulgação científica foi incluída nos critérios de avaliação de produtividade de
pesquisadores pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que
concede bolsas de pesquisa. Antes disso, palestras e blogs, por exemplo, não podiam ser incorporados à
Plataforma Lattes como parte das atividades do acadêmico.
“Existe uma lógica de produção do conhecimento em que o acadêmico pode ter sucesso sem nunca
ter tentado dar nenhuma resposta a nenhum problema fundamental do povo brasileiro, que é quem
sustenta a universidade”, critica Jones Manoel. Para Lilia Schwarcz, é obrigação daqueles que se formam
na universidade pública, e que dela sobrevivem, “fazer com que a informação saia do porto seguro das
universidades”.
“Quando é que a gente precisa de um intelectual?”, questiona Christian Dunker. “É na hora da briga,
do conflito, de dizer coisas que vão ter um papel crítico e transformador. E a hora é agora.”
entrevista Marcia Tiburi
O sono da razão
DANIEL DE MESQUISTA BENEVIDES

As fake news não abalaram a verdade em Marcia Tiburi. Vítima de ataques nas redes por integrantes de
grupos da extrema direita, assim como por parte da esquerda que, nas últimas eleições, forçava sua
renúncia para que ela apoiasse outro candidato, a autora de mais de vinte livros de filosofia e ficção
manteve sua militância espontânea, sem discurso pronto, e agora fortalece seu papel de intelectual
pública ao lançar Delírio do poder. Na nova obra, ela trata justamente da loucura coletiva na era da
(des)informação e da necessidade de se valorizar a reflexão em meio aos descaminhos de um governo
que ameaça a democracia e induz ao narcisismo adquirido. Dedicado a Lula e Marielle Franco, o livro é
inspirado parcialmente por Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, e Totem e tabu, de Freud, entre
outros.
A avalanche por que passou, que incluiu ameaças de morte, necessidade de seguranças em eventos,
uma enorme força-tarefa para contra-atacar os bots mentirosos e ter a vida pessoal virada do avesso, foi
amenizada por uma mudança para o nordeste dos EUA, onde está vivendo desde dezembro, convidada
para uma residência literária (ela prefere não revelar o local por razões de segurança). Ao mesmo tempo
que escreve um novo romance e outro livro de filosofia, dessa vez sobre “sexologia política”, ela estuda
convites para universidades americanas e europeias.
Como está sua vida nos Estados Unidos?
Tenho recebido convites para instituições de pesquisa, universidades, e vou ficar uns tempos por aqui,
em residência literária, escrevendo meus livros. Terminei Delírio do poder e engatei um romance novo,
que também é marcado por aspectos autobiográficos, mas que envolve um diálogo com Gertrude Stein e
com a questão da autobiografia. Estava começando a escrever essa história relacioanda às fake news de
que fui vítima no Brasil e aos motivos pelos quais vim para cá, e é incrível como tem muito a ver com
questões colocadas pela Gertrude Stein em Autobiografia de Alice B. Toklas. Resolvi, então, criar uma
personagem que sou eu, uma professora de filosofia sofrendo fake news, sendo candidata do Rio de
Janeiro; mas que também não sou eu, casada por anos com uma artista chamada Marcia – que sou eu,
mas também não sou eu. Peguei essas duas linguagens nas quais transito e fiz uma relação entre essas
duas mulheres. A figura da mulher bipartida, da mulher dupla, é muito presente nos meus romances,
desde minhas primeiras aventuras selvagens com a literatura – estou sempre escrevendo sobre essa
mulher e sua outra.
Você pode comentar o caso do Jean Wyllys e as táticas de intimidação da extrema direita?
Acho que o Jean chamava tanta atenção que foi usado numa estratégia de realçar a figura de Bolsonaro.
E Bolsonaro vem com a mistificação, com o discurso de ódio, com as distorções, com o ridículo político,
que, na verdade, é uma tremenda capitalização do absurdo, a capitalização de uma falsa-graça, das coisas
bizarras e violentas. A mesma coisa que ele fez em cima da Maria do Rosário e eu vejo que, às vezes,
alguns desses fascistas querem fazer comigo. Desde aquele evento em janeiro do ano passado, quando
me levantei e fui embora de uma rádio, de uma entrevista-armadilha que fizeram, minha vida virou um
inferno. O MBL colocou uma foto minha no site e toda a extrema direita fascista começou a me atacar.
A gente teve que fazer um bloqueio em massa no Facebook. Usaram uma entrevista que dei para dizer
que eu era a favor de assalto. Foi no ano eleitoral e mesmo quem poderia ter me ajudado a desmontar
isso não ajudou. A imprensa estava muito mais preocupada com outras questões. Eu estava lançando um
livro chamado Feminismo em comum, e era o dia do julgamento do Lula. No dia seguinte, estava nos
trending topics do Twitter, e tinha essa fake news horrorosa do assalto, que circulou muito e fez com que
muitas pessoas começassem a funcionar na base do discurso de ódio contra mim. Tudo o que esses caras
fazem é justamente se alavancar sobre uma figura pública que possa levar a algo polêmico e, assim, criar
a massa ao redor do ponto da produção do enxame, como vemos no texto do Elias Canetti, Massa e
poder. Esses dias, uma amiga minha avisou que um desses sujeitos estava perguntando sobre mim nas
redes: “Onde está Marcia Tiburi?” As pessoas que me defendem disseram: “Se você tivesse lido algum
livro na vida, ou entrasse em livrarias, você saberia onde ela está.” Desde janeiro, meus lançamentos de
livros foram todos com seguranças. O último, em novembro, em Maringá, teve segurança armada. O
MBL criou uma página chamada “Ela Não” em Maringá. Eles diziam: “Aqui é a terra do Moro, aqui
ninguém paga esses petistas para vir falar”. Doei o pagamento para as bibliotecas locais. Mas o dia foi
chocante, havia 300 ou 400 pessoas para entrar no local e todo mundo teve suas bolsas e mochilas
revistadas, porque tinham medo que houvesse um tiroteio. Foi muito pesado.
Delírio do poder foi inspirado por sua experiência enquanto candidata ao governo do Rio pelo PT,
uma candidatura que você chamou de “gesto poético-político”. No livro, você diz que sofreu
ataques não só da direita, mas também da esquerda. Você pode contar um pouco mais dessa
experiência?
O PSOL tentou, por meio da sua militância, me transformar numa pessoa que não defendia a unidade das
esquerdas. No entanto, foram eles que nunca quiseram se unir com ninguém – acho que, se o PSOL não
fizer uma autocrítica, ele não tem futuro, assim como todos os partidos de esquerda. O PT já fez muitas
autocríticas, e tem que fazer sempre mais, porque a gente não espera que a direita e a extrema direita
sejam capazes de autocrítica. A grande fake news se deu num debate na UERJ, onde fui vaiada várias
vezes ao falar Lula, ao falar Haddad – vaiada pelos ciristas e pelos psolistas que estavam lá. Fiquei
bastante preocupada, e dei uma resposta dura: “Se vocês continuarem com isso, vão acabar elegendo
Bolsonaro.” Quando falei isso, recortaram essa frase, dizendo que eu estava incitando as pessoas a
votarem no Bolsonaro. Foi absurdo, porque eu estava fazendo campanha para mim, para Haddad,
defendendo Lula Livre a vida inteira. Nós sabemos quem é a pessoa do PSOL que criou essa maldade.
Além de tudo, fizeram a campanha do voto útil, e tentaram armar uma emboscada midiática contra mim,
avisando jornalistas que eu iria renunciar. Eles plantam notas na imprensa podre, eles fazem coisas
horrorosas. Se tem um partido que não tem moral é o PSOL, a não ser uma moral de cuecas; só que não
estamos na época de brigar entre as esquerdas, então eu continuarei apoiando o PSOL, mas espero que a
gente possa se aproximar com ética. A questão que ficou para mim é justamente que o moralismo da
esquerda não tem futuro.
Você chega a afirmar no livro que a política deveria ser feita por pessoas que não vivem de
política, como era seu caso. Queria que você comentasse isso e, aproveitando, se você ainda pensa
em se candidatar em outra oportunidade.
Não penso em me candidatar novamente, não tenho a menor vontade. E acho também que, nesse
momento em que o fascismo venceu, pessoas como eu podem contribuir muito mais tentando reconstruir
os patamares de reflexão que podem nos levar a uma redemocratização do país. Essa extrema direita
fascista tenta minar a educação com a Escola Sem Partido, tenta minar a pesquisa por meio de todo tipo
de demonização da ciência, dos estudos de gênero. Há uma criminalização da reflexão – acho que as
fake news que foram feitas contra mim têm muito a ver com isso. Uma pessoa que é uma intelectual
pública, uma professora de filosofia, deve ser destruída para que o projeto de imbecilização geral dê
certo. Figuras como eu, como Marilena Chaui, ou como qualquer outra pessoa que se põe a pensar deve
ser destruída. Debora Diniz também é um exemplo e há outros, dependendo de como essa pessoa está
incomodando, como essa pessoa está produzindo esclarecimento.
Faz pensar naquela frase do Goya, “o sono da razão produz monstros”.
Pois é, eu escrevia justamente sobre essa frase há acho que 20 anos, já vislumbrando, diante dos limites
da reflexão nacional, que nosso caminho pode ser muito mais obscuro e, se não puxarmos o freio de mão
agora, se não usarmos a luz da razão nesse momento, acredito que nós tendemos a cair ainda mais nessas
sombras e seremos devorados por esses monstros.
No livro, você afirma que o poder pode ser uma doença mortal.
Esse quase foi o título, “o poder é uma doença”, porque eu quis problematizar justamente essa dimensão
do poder que parece invisível, parece um vírus e, ao mesmo tempo, se vale de metodologias tais como a
produção do delírio, que é o que estamos vivendo agora. Eu quis chamar a atenção dos meus leitores e
das pessoas que me acompanham, e para quem mais quiser entender, que nós estamos vivendo uma
grande manipulação e que estamos aprisionados dentro de uma nuvem de cegueira. Em termos mais
populares, é isso que a gente chama de ideologia, é aquilo que nos torna cegos. Essa extrema direita
fascista diz que não está sendo ideológica, mas ela é a mais ideológica de todos. É ela que produz o
contexto de cegueira. Porque ideologia é não poder enxergar, é não poder ver nada diferente. Esse é o
problema, a ideologia se confundiu com a verdade. E aí o delírio. As pessoas não conseguem mais, no
nível familiar, cotidiano, nas redes sociais, produzir discernimento. Mas isso não é novo na história da
humanidade: na Alemanha dos anos 20, 30, o exemplo é muito parecido com o Brasil. Um Judiciário
apodrecido e uma mentalidade popular também apodrecida levaram ao nazismo e aos campos de
concentração que exterminaram milhões de pessoas, entre judeus, ciganos, negros, pessoas com
deficiências e todos aqueles que eram indesejáveis para o sistema. Eu confesso que tenho medo que nós
nos encaminhemos para opções tão terríveis como essa. Meu livro é um sinal vermelho para que as
pessoas parem, prestem atenção e percebam.
Existe cura para esse delírio?
É tão destrutivo que a gente precisa mesmo de uma solução. Passei a vida acreditando no
esclarecimento, na reflexão, no diálogo, no pensamento razoável, no equilíbrio ético, e acho que nós
estamos no nosso pior momento, sendo que pode ainda piorar, porque essa chacina das pessoas lá em
Santa Tereza, por exemplo, é a metonímia de uma chacina muito maior, que envolve os jovens mortos
nas periferias do Rio de Janeiro, o governo das milícias, a corrupção dos policiais. É da própria estrutura,
são as instituições que permitem que isso aconteça, por isso que se confundem os políticos e os
milicianos e os criminosos. Precisamos fazer uma reforma política muito consistente, para que as
pessoas passem a se envolver mais com política. Precisamos de conselhos de bairro, voltar a fazer
política comunitariamente. Não vou falar que quero defender o fim do Estado no sentido neoliberal, mas
talvez a gente possa defender uma modificação radical do papel do Estado na vida das pessoas, na
direção de menos Estado e mais comunidade. Mais direitos assegurados e mais consciência sobre o
caráter político da própria vida. Nesse momento, acredito que, assim que passar a depressão política que
as pessoas estão vivendo, elas se organizarão.
O que você quer dizer com “fascismo tropical”?
Hitler foi um publicitário que usava o cinema, os cartazes, todo um aparato gráfico para construir o judeu
como a grande figura a ser odiada. Aqui, o método continua sendo o mesmo, mudam os personagens.
Agora não é mais o judeu; é o petista, o negro, a feminista. Eu chamei de fascismo tropical porque ele se
dá nessas novas condições. O nosso fascismo, por exemplo, tem que ser lido à luz também da invasão da
ideologia neopentecostal, que é um tipo de capitalismo que se fez religião e produz todo um arcabouço
de ódio aos outros, de preconceitos, que vão se sedimentando. Precisa disso para se garantir no poder. Há
muita má-fé, muita exploração da ignorância. E acho que as redes sociais, por mais que possam ser
usadas para as melhores causas, vão ao mesmo tempo adestrando a forma de pensar das pessoas.
Em relação às redes, você chega a falar numa autoescravização voluntária.
Pois é, acho que as pessoas ficam ali trabalhando para os donos do Facebook, dessas redes todas que
estão podres de ricas, achando que estão ganhando alguma coisa. Estão sendo exploradas, pensando que
estão curtindo. Essa é a nova escravização. Mas aí vem a questão afetiva, a questão emocional,
psicológica, que precisa ser pensada. Foi por isso que eu quis também colocar a análise do psicopoder. O
poder não é só a força, não é só a violência, é também sedução, e a construção de um tipo de discurso –
seja na mídia, seja no púlpito da igreja, seja o do machista – é um discurso que dá às pessoas um
pensamento pronto para ser comprado. Por quê? Porque existem questões emocionais das pessoas que
não estão resolvidas. Tem um trecho no livro que é sobre essa mimetização, o motivo pelo qual alguém
que seria uma típica vítima do fascismo defende o fascismo.
É quando você escreve que “mesmo sem identidade, pode surgir a identificação”.
Sim, eu quis justamente colocar esse problema: o que faz as massas devotarem seu tempo e seu desejo a
um líder autoritário que não sabe que elas existem? O que faz alguém que é pobre, que é vítima de
racismo, vítima de gordofobia, vítima de homofobia, vítima de misoginia, usar o mesmo discurso de
ódio dos líderes que implantam o discurso de ódio? Minha tese é que nós, brasileiros, e as pessoas de um
modo geral, precisam elaborar a sua vergonha. Lacan dizia que é na vergonha que está a verdade. Esse
sujeito é um indesejável para a sociedade racista, capitalista, branca. Ele não é convidado para a festa,
ele não é o queridinho da cena. Então, ele finge ser algoz para não ser vítima. É uma estratégia de
sobrevivência. As pessoas têm medo, elas sabem quem são, porém precisam esconder quem são delas
mesmas. Mas faz parte da coragem de viver falar daquilo que te faz sofrer e assumir aquilo que é o seu
limite, que é a sua vergonha, que é a sua condição explorada, de vítima. O papel de quem permanece
lúcido é tentar puxar, lá de dentro do delírio, as pessoas que se encontram nesse estado.
E o sofrimento dos que lutam? É uma parte importante da sua narrativa.
Eu vi muito na campanha, fiquei muito comovida com esse sofrimento, muitas vezes me perguntei por
que será que as pessoas se dedicam tanto a causas que parecem tão perdidas. E foi um momento muito
bonito da campanha perceber isso, que as pessoas realmente se sentem indignadas e agem de maneira
generosa, na tentativa de salvar o outro. Salvar o outro se torna uma causa, salvar os pobres, salvar os
que têm fome, salvar os que sofrem de alguma maneira, salvar aqueles que são vítimas, seja do ódio de
raça, seja do ódio de classe. Eu fico pensando agora, por exemplo, nas pessoas que fazem a luta
antimanicomial e tentam salvar aqueles sujeitos que são absolutamente indesejáveis na sociedade.
É isso, em parte, que você chama de poesia ou poética no âmbito da política?
Venho usando essa expressão há muitos anos e quis colocá-la nesse livro. A poética, para mim, é a
construção de si no meio do processo, ao contrário da melancolia política. Todos esses sujeitos que
sofrem fazendo política sabem quão rica é a experiência da subjetividade. Acredito muito que se o
cidadão comum, que está lá abandonado, deprimido, ligar-se às causas comunitárias, cuidar de si dentro
desse processo e tentar entender o outro, que é quem mais nos ensina alguma coisa, aí sim, teremos a
política como a construção de um futuro.
Você poderia falar mais dessa ideia de psicopolítica, de usar a investigação dos afetos como meio
de entender os meandros do poder, da política e da manipulação de massas?
Essa questão do psicopoder me é muito clara. Fiz mestrado e doutorado sobre Theodor Adorno, e o nexo
entre sociedade, estrutura da sociedade, objetividade e subjetividade, a relação do marxismo com a
psicanálise sempre foi o meu ambiente mental. Sempre dei aula de estética na universidade e, então, foi
também meu campo entender o nexo entre imaginação e razão. Nietzsche dizia que “a razão é o mais
potente dos afetos”. Ou seja, pensar é algo que deriva, que se faz como um sentimento do mundo,
digamos assim, para lembrar de Drummond. Acho interessante levar em consideração que é na nossa
subjetividade que vamos resistir nesse momento. Fora de uma autocompreensão, fora daquilo que
Foucault chamava de “cuidado de si”, esse pensar no que você está fazendo no mundo, cai-se na
exploração e na robotização, na escravização que o sistema faz com você. Adorno defendia muito um
retorno ao sujeito, a esse sujeito que é autônomo, consciente de si, que não é simplesmente a figura do
estereótipo da identidade. Mas o que é a robotização, a escravização, que eu também coloquei ali no
livro? É justamente a produção de um esvaziamento do sujeito, a quebra do sujeito. Você não é nada
quando se torna robô – porque não pensa, não se dá conta, mas está aí para servir ao líder autoritário. E
vem toda a questão freudiana – Totem e tabu –, muitas vezes você projeta no líder autoritário todo o ódio
que sente do mundo, dele, por não poder existir nesse mundo de uma maneira melhor. É muito
importante, aqui, pensar justamente como deve ser horrível viver os maus afetos. Quer dizer, nós,
pessoas com uma mentalidade democrática, quando sentimos inveja, ódio, raiva, nos sentimos mal. Mas
imagine uma pessoa que está tomada pelo ódio. O ressentimento se sedimenta e produz monstros no
corpo também. É muito difícil, ao mesmo tempo, sustentar a leveza do espírito, uma perspectiva alegre,
para falar de um aspecto espinoziano, que é criativo e te faz se relacionar ao outro – contra um afeto
triste, destrutivo, e que é um afeto do adoecimento, que leva muitas vezes à objetividade da doença.
Acho que é o que está em jogo no nosso caso. Estamos vivendo um momento de cruzamento entre o
simbólico, o imaginário e o real, o que é assustador. Para nossa mentalidade iluminista, é um absurdo.
Uma afirmação que eu não entendi muito bem no livro: “As mulheres na política ocupam, mas não
atuam”.
Você sabe o tanto que eu sou feminista, mas ao mesmo tempo que acredito que o feminismo é nosso
caminho, também acho que precisamos sempre olhar para ele de maneira muito racional e muito crítica.
Uma das questões que me surgiram na campanha foi perceber que o feminismo cresce e aparece, no
sentido teórico, da autoafirmação também, porém é incrível como não mudamos nosso parlamento. Não
podemos considerar que a vitória das novas candidatas eleitas resolve o problema da morte de Marielle.
Acho que só vamos conseguir mudar a situação realmente quando uma massa de mulheres que não
fizeram política até agora entrarem nesse lugar. As mulheres são um sujeito que não fez política e que
precisa ocupar. Mas ocupar para agir. Para buscar uma democracia feminista, que seria o exato contrário
do fascismo que temos hoje.
Você está preparando um livro sobre “sexologia política”, poderia adiantar alguma coisa sobre
isso?
O grande interesse é tentar pensar como o sexo, enquanto mecanismo, é utilizado dentro dos jogos de
poder. Como Bolsonaro, por exemplo, capitalizou em cima da homofobia. Como a ministra Damares
fala de gênero mistificando. Como, no projeto das fake news que fizeram Bolsonaro vencer as eleições,
construiu-se o kit gay – é difícil demover o povo dessa ideia, até porque o povo tem medo justamente
porque o sexo é análogo de poder, e as pessoas têm medo do poder. Deviam ter medo é do nazismo e não
do sexo.
dossiê O feminino de ninguém
Apresentação
ANA LUCIA LUTTERBACH

Em suas fórmulas da sexuação, Lacan separa dois polos sexuais diferenciados. Em um deles, o gozo
fálico, que se refere ao gozo limitado pela fantasia perversa, dita masculina, é o gozo do Um sem o
outro, autista, masturbatório, que Lacan vai chamar de “todo”. No outro polo, o gozo feminino ou Outro
gozo, um gozo aberto que tende à infinitização, sem limite, chamado “nãotodo”. Os dois não são
complementares, o gozo feminino é suplementar ao gozo fálico, ou seja, um gozo a mais. Não há
correspondência entre um e Outro, por isso Lacan fez a enigmática afirmação: “Não há relação sexual.”
Rompendo com qualquer regularização ideal entre os sexos, não há dois fazendo Um, nem há, como diz
Lacan no seminário sobre ética, possessão de todas as mulheres para um homem, tampouco um homem
ideal para uma mulher. Por não haver a relação, é preciso inventar a cada vez. O amor seria uma das
maneiras de fazer essa invenção.
Além disso, a escolha de um polo ou outro é disjunto do sexo anatômico e, portanto, uma mulher
pode se orientar só pelo falo e não experimentar o dito gozo feminino, assim como um homem pode
experimentar o gozo feminino, e ter uma identificação viril. O feminino não é da mulher, trata-se de um
“feminino de ninguém”, expressão extraída da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, em seu livro
Lisboaleipezeig 2.
Para Lacan, o ser falante, independente do corpo biológico, deve encontrar seu jeito próprio e único
de se virar com o sexo de acordo com as marcas deixadas no corpo pela linguagem, criando ilhas de
erotismo. Seria impossível coletivizar essas marcas, não há uma identidade sexual real, não há um
significante que permita dizer “eu sou isto ou aquilo”, mas sim uma identificação absolutamente singular
ao modo de gozo, isto é, um “eu sou como eu gozo”.
Propomos enfatizar quatro aspectos do feminino e/ou das mulheres em psicanálise: a libido neutra em
Freud; o feminino, uma mulher e uma mãe; a sexualidade traumática mas não abusiva; e a presença do
feminino em Diadorim de Guimarães Rosa.
Em “A libido não tem gênero”, Gilson Iannini enfatiza e demonstra a separação entre a anatomia e a
identificação sexual, num cuidadoso percurso da sexualidade desde os primeiros balbucios da criança,
lembrando as inquietações que levaram Freud a situar o sexo longe de uma “harmonia natural de atração
heterossexual pré-estabelecida”, mas como “algo intrinsecamente errático e opaco”. Ressalto, nesse
texto, um aspecto que Gilson nos traz a partir de sua experiência de tradução da obra freudiana, ou seja,
depois de insistir três décadas acerca do caráter masculino da libido, em 1933 Freud fala em libido
neutra: “Só existe uma libido, que está a serviço tanto da função sexual masculina quanto da feminina. A
ela própria não podemos atribuir nenhum sexo.” Uma libido de ninguém?
Com a interrogação – “Instinto materno?” –, Maricia Ciscato toca em um delicado assunto,
eternamente evitado em diversos campos, isto é, a naturalidade do amor materno. Mas, para chegar aí,
ela aborda a não coincidência entre a mulher e a mãe, deixando a mulher sem o significante “mãe” para
dizer de seu ser, e, ao fazê-lo, coloca o feminino ao lado da mulher e não da mãe. Aqui ressalto outro
aspecto original: a mãe como objeto. Há uma tendência de enfatizar o que há de fálico na maternidade,
os cuidados e afagos, mas Maricia lembra que isso não é tudo. Uma mãe é também um objeto para seu
bebê e, nesse sentido, como “alçar o bebê ao lugar de objeto fálico” se, na sua relação com o filho, pode
se sentir engolfada e devastada por um gozo enigmático?
Márcia Rosa trata, em “Sexualidade: enigmática! Até mesmo traumática! Mas, abusiva não!”, de um
tema muito atual, controverso e difícil: o abuso sexual e sua relação com a prática sexual consentida por
ambos. Discorre sobre a importância política dos movimentos de repúdio contra o abuso e, “nas relações
sociais entre os sexos, o jogo de poder que um pode exercer sobre o outro”. Porém, ao acentuar o caráter
sempre traumático da sexualidade, ela adverte sobre os riscos de se generalizar a violência para toda
sexualidade e identificar a mulher sempre como vítima e o homem sempre como algoz. Além disso, o
risco de, ao expor os excessos do gozo masculino e a desordem do mundo, fazer surgir uma regulação
dos encontros sexuais. E, ainda, faz sua a pergunta do filosófo francês Milner: chegaremos a uma
proibição do ato sexual?
Antônio Teixeira, em “O feminino na travessia do Grande Sertão”, começa com uma escrita próxima
da acadêmica que, aos poucos, vai se tornando pura poesia, como se ele próprio estivesse atravessando
algo. Sua hipótese é que, para ir de um universo a outro, é preciso passar pelo fora-do-universo, expor-se
ao perigo de um espaço fora do limite: “Diadorim é quem rompe o limite do universo em que Riobaldo
se localiza, ao mesmo tempo que orienta sua travessia pelo fora do limite.” Diadorim seria a própria
incidência do feminino, cuja inumanidade tira Riobaldo da “ruminação cogitativa”, “rasga o semblante
do discurso e faz da justiça algo mais que uma abstração verbal”. O feminino rompe o sentido habitual, a
tradição, o bem-estar e o bom senso.
Com esses textos esperamos ampliar nosso debate em torno das questões políticas sobre as mulheres
e as incidências do gozo feminino na cama, no discurso, na luta e em todo movimento dos corpos. Boa
leitura!
Libido não tem gênero
GILSON IANNINI

“Menino nasce menino, menina nasce menina.” Para gosto de uns, desgosto de outros, a análise lógica
dessas sentenças – recém-re-lançadas como plataforma de governo – mostra-nos que elas são sempre
verdadeiras, porque são tautológicas. O que é uma tautologia? Tautologia é uma sentença que,
independentemente dos fatos, é sempre verdadeira. Mas que, por outro lado, não informa absolutamente
nada sobre o real, assim como “uma mesa é uma mesa” ou “A = A”. A vida, contudo, tem a mania
inconveniente de complicar a lógica.
Estamos agora nos confins do simbólico, ali onde as coisas ganham nomes. Mas as nomeações
precedem o nascimento dos corpos. Na sala de ultrassom, a partir da evidência da ausência ou presença
de um pedacinho de carne, o médico sentencia: “é menino!”, “é menina!” Nomeações encadeiam afetos,
que encadeiam novas nomeações: José ou Maria. Ou José Maria ou Maria José. Ou ainda Dilma,
Damares, Djalma, Dagmar etc. Uns mais ambíguos, outros menos. Sabemos o sexo do bebê, podemos
marcar “x” nas fichas e nos cadastros, trata-se de uma primeira inscrição social. Temos, portanto, até
agora, uma constatação da autoridade médica e a inscrição dessa constatação no dispositivo jurídico, que
a fixa no registro civil. Mas, além disso, temos afetos agitando as expectativas, os medos, os desejos, os
fantasmas dos pais, da família, da sociedade. Esses afetos também são registrados de alguma maneira,
mas em outro lugar, mais precisamente naquilo que Freud chamou de inconsciente.
Quando dizemos “é menino”, “é menina”, deveríamos nos interrogar não apenas sobre o significado
dos termos “menino” ou “menina”, já que o conteúdo semântico de uma palavra varia histórica e
geograficamente, mas também sobre a força performativa do verbo “ser”: o que quer dizer “é”? Esse é o
problema fundamental, pelo menos desde o debate Parmênides versus Heráclito. Quando dizemos que A
“é” B, estabelecemos uma identidade fixa, um destino imutável, ou descrevemos um momento de um
processo? É verdade que “uma mesa é uma mesa”, mas ela é também madeira, vidro, metal, plástico etc.,
e saímos da tautologia.
O que surpreende é que, no semipleno século 21, pelo menos na surreal, fictícia e longínqua
República de Pindorama, uma tautologia daquele tipo possa se elevar à política de governo. Porém, a
“comédia dell’arte” do núcleo patético-ideológico do governo central não se contenta com a tautologia, e
acrescenta: “menino veste azul”, “menina veste rosa”, para os aplausos da claque. O que não surpreende
aqui é o movimento de fundar a perspectiva heteronormativa (a prescrição dos costumes e dos papéis
sociais de gênero metaforizados no rosa e no azul) na tautologia (linguística) e na autoridade médico-
jurídica. Temos o conjunto homogêneo do que chamamos de matriz heteronormativa. O conjunto é
consistente e, num certo sentido, apaziguador. Tudo faz sentido, e tudo que “foge à regra” é mera
exceção, é patologia, numa palavra: não conta, não precisa contar, não pode contar. Não surpreende que
no segundo dia de governo, a menção à população LGBT tenha sido sumariamente excluída das políticas
e diretrizes destinadas à promoção dos direitos humanos, por meio da Medida Provisória 870/19.
E, então, a criança nasce. Já tem um nome, um registro civil, uma anatomia. Já sabemos seu sexo.
Mas o que sabemos quando “sabemos o sexo do bebê?” Até agora, tudo o que sabemos é uma
particularidade anatômica à qual damos um nome. Mas, como diz a sabedoria popular, o futuro a deus
pertence... o que quer dizer que nada sabemos sobre ele. Eis que aquele corpo ainda desamparado,
incapaz de garantir até mesmo a própria vida por suas próprias forças, já é capaz de experimentar
prazeres e desprazeres, de afetar e de ser afetado pelo Outro, de satisfazer-se sem se submeter a
finalidades ou a significados. A substância viva goza de uma maneira mais ou menos desordenada,
causando espanto e deleite nos adultos: o rostinho de satisfação quase mística quando mama, a
gargalhada deliciosa quando faz xixi no sofá logo depois de trocar a fralda, o alívio beatífico quando faz
um cocozinho, a cumplicidade erótica dos olhares e o gozo sem sentido dos barulhos inarticulados, que
fazem o adulto mais brutamontes emitir interjeições sem sentido naquela língua antes da língua que os
bebês falam, e que o psicanalista Jacques Lacan chamou de “lalangue”. Os corpos gozam, afetam,
experimentam, rejeitam, expelem, desejam. E querem mais. Repetem à exaustão. E ainda não falam, só
balbuciam. O bebê humano não se contenta com a satisfação das necessidades biológicas, quer mais.
Esse a mais, chamamos de pulsão. O que nos impulsiona em direção a um objeto qualquer não se reduz à
necessidade biológica, nem à norma social. Por um lado, nossa fome se curva ao horário do almoço,
nossas necessidades fisiológicas aos horários do recreio ou do intervalo, nossas energias psicossexuais se
ajustam aos calendários, às geografias e paisagens urbanas. Nossa “natureza”, nosso corpo biológico, já
não é tão natural assim. Por outro lado, nosso corpo pulsional “fura” as normas desde antes de podermos
dizer “helicóptero”: criamos nossas próprias geografias, paisagens e calendários, irredutíveis que somos
às injunções do Outro.
É aqui que a sexualidade começa a desestabilizar o arranjo médico-jurídico descrito acima. O
processo de subjetivação da sexualidade ou, numa palavra, a sexuação é um processo complexo que
combina, em arranjos radicalmente singulares e contingentes, elementos heterogêneos e frequentemente
discordantes: componentes biológicos (anatômicos, cromossômicos, hormonais etc.); nomeações,
prescrições e normas sociais (jurídicas, mítico-religiosas); conteúdos inconscientes vindos do Outro e
experiências subjetivas de gozo, prazer, desprazer etc. Isso sem falar nas crescentes possibilidades de
intervenção em nossos corpos que a ciência e a tecnologia médica oferecem. Talvez essa seja a variável
mais espetacular do século 20 no que tange à sexualidade: tratamentos hormonais, cirurgias de
redesignação, tudo isso não seria possível sem o avanço das tecnologias médicas que, diga-se de
passagem, não são nem de esquerda, nem de direita. O problema é que o real da ciência é radicalmente
sem sentido, não se submete a um telos normativo ou moral, o que incomoda muita gente e faz fremir
aqueles que suspiram pela unidade do sentido. O real da ciência é difícil de suportar. Não por acaso,
Jacques Lacan percebia, como um efeito colateral do avanço sem sentido da ciência, nada mais nada
menos que o triunfo da religião, guardiã do sentido. As religiões secretam sentido. A ciência extrai
sentido.
Então, a criança começa a crescer, e a ser outra coisa que aquilo que era. Mas ela não é uma mônada:
seu contato, seu atrito com o Outro recortam seu corpo. Para dar um exemplo simples, a criança tem
necessidades fisiológicas, certamente, de fome, de sede, de expelir excrementos, de amor etc. Mas o
Outro tem pressa, a mãe, ou o pai, ou alguém diz: “só mais uma colher!”, “está na hora de almoçar!”,
“tem que fazer xixi antes de sair!”, “respira fundo, força!”. E, então, a fonte pulsional se confunde com a
demanda do Outro: o ritmo endógeno do corpo se deixa recortar, de bom ou de mau grado, por uma
temporalidade exógena. No cerne do sujeito, um precipitado da demanda do Outro se confunde com
minhas próprias necessidades, ativando processos fisiológicos: a pulsão se situa na fronteira entre o
somático e o psíquico, o psíquico na fronteira da linguagem, a linguagem na fronteira do social,
formando redes sutis e complexas, em camadas e linhas de fuga.
A “evidência” de que o menino nasce menino e a menina nasce menina se complica ainda mais
quando percebemos que ambos, meninos e meninas, amam a mãe. O primeiro objeto de amor é quase
sempre a mãe (ou, mais precisamente, aquele que encarna a função materna). Uma distinção importante
começa a se estabelecer: uma coisa é o sexo designado no nascimento, outra coisa é o objeto de amor, ou
aquilo que desejamos possuir (“a mamãe é só minha!”). Uma primeira clivagem se estabelece: alguma
suposta harmonia natural de atração heterossexual rui imediatamente. Daqui em diante, diversas
clivagens e antagonismos se inscrevem para o ser falante. Desde que fala, tem que dizer seu nome, tem
que construir sua identidade. Estamos, portanto, diante de vários níveis e camadas diferentes de um
longo processo de constituição e de assunção da sexualidade.
O que continua sendo inquietante – e que tem implicações clínicas e ontológicas maiores – é a noção
de que o sexo é algo intrinsecamente errático e opaco, algo problemático e disruptivo para nossas
identidades, mais do que uma matéria lisa e macia pronta a ser esculpida sem resistência por nossa
imaginação e arbítrio (sonho da ciência), mais do que um espelho que reflita uma harmonia natural de
atração heterossexual pré-estabelecida (delírio da religião).
Na década de 1930, Freud escreveu que “a maioria dos homens também está muito aquém do ideal
masculino, e que todos os indivíduos humanos, em razão de sua constituição bissexual e da herança
cruzada, reúnem em si características masculinas e femininas, de maneira que a pura masculinidade e a
pura feminilidade são construções teóricas de conteúdo incerto”. Para a psicanálise, o processo de
assunção da sexualidade envolve a disposição bissexual constitutiva, a polimorfia pulsional, o caráter
neutro em termos de gênero da libido e a incidência singular da significação fálica para a organização
genital infantil. A combinação desses elementos heterogêneos culminaria na inexistência de gêneros
masculino ou feminino puros. Além disso, o “patriarcal” Freud representava o interesse mútuo entre
homens e mulheres como o resultado complexo de acontecimentos contingentes, de arranjos precários e
de transições difíceis.
Nesse sentido, para a psicanálise, no fundo de cada um de nós, antes de nos decidirmos e
construirmos nossas identidades e nossas escolhas objetais, a disposição bissexual constitutiva do ser
humano deixa suas marcas. Antes que cada um possa dizer algo acerca de seu lugar nas coordenadas de
que dispomos, antes que possamos dizer “eu sou”, todos experimentamos prazeres e sensações
estritamente gender-free, que marcam nossos corpos indelevelmente. Não é isso o que Freud quer dizer
quando diz que o inconsciente é sexual?
Freud insistiu teimosamente durante quase três décadas acerca do caráter masculino da libido. Mas,
ao fim e ao cabo, e muito provavelmente como efeito do trabalho das psicanalistas mulheres, cedeu
quanto a esse ponto, chegando a falar de uma libido neutra em termo de gênero. Com efeito, na
conferência de 1933, “A feminilidade”, lemos: “Só existe uma libido, que está a serviço tanto da função
sexual masculina quanto da feminina. A ela própria não podemos atribuir nenhum sexo”.
Aquela disposição bissexual originária dos seres falantes deixa resíduos inconscientes, na medida em
que uma das correntes é, com maior ou menor intensidade, recalcada em favor da corrente oposta. Até
certo ponto, em sociedades orientadas pelo falicismo, esse recalcado feminino de alguma forma se
encontra “assentado”, depositado numa superfície supostamente firme, mas que se quebra como a
superfície de um lago gelado. Avanços vertiginosos da ciência e da técnica, assim como conquistas
jurídicas, políticas e sociais de grupos não hegemônicos não raro culminam em trincas e rachaduras, que
alguns se apressam em querer soldar. O que havia sido recalcado retorna, de uma maneira ou de outra,
vestido de impulsos regressivos e obscurantistas. Ou, de outro modo, como explicar que homens héteros,
que ostentam todas as insígnias da virilidade e gozam de todos os privilégios, possam se sentir
“oprimidos” por minorias que lhes impõe uma “agenda gayzista” ou pela “tirania feminazi”? Mas não
apenas isso. O real insuportável que permanece desmentido também regressa, sob forma fetichizada, não
simbolizada, de mitos redentores, dando ensejo a refluxo de matiz conservador. A questão estrutural da
insuficiência de nosso saber para dar conta do gozo sem sentido do corpo (ninguém, por razões
estruturais, sabe o que fazer com o excedente pulsional) é, em calculada estultice, lida como
circunstância contingente, histórica, localizável e, portanto, remediável. A boa e velha política do
avestruz.
Se a modernidade começa com o desencanto e a liquidação de mitos, nossa era se desencanta do
desencanto e desmistifica a própria desmistificação. Mas o preço disso não é o declínio das crenças e das
ilusões. Ao contrário, o que caracteriza esse particular obscurantismo redivivo é a ausência de
metaforização, a literalidade de crenças. O filósofo esloveno Slavoj Žižek faz uma observação precisa a
esse respeito. Quando os talibãs destruíram monumentos milenares de Buda nas montanhas do
Afeganistão, o que choca não é o desrespeito ao patrimônio histórico mundial, mas a maneira pela qual a
religião é levada “tão a sério”, sem nenhum tipo de mediação simbólica mínima. Não por acaso, um
suposto kit gay e uma delirante mamadeira faliforme tenham sido determinantes no autoengano de uma
parcela da população que ainda acredita em fantasmas messiânicos orientados pelo falo. Aprisionados
por uma verdade que se sabe fake, fascinados por um mito que se sabe falácia, os desencantados pelo
desencanto acabam oprimidos por sua própria opressão.
A invenção da maternidade
MARICIA CISCATO

A chegada de um bebê é sempre acompanhada de algo que não se espera. Essa surpresa, por vezes, pode
se apresentar como um enorme susto, uma perda das bordas e do rumo. Não deveria comparecer, ali, a
mãe para receber em seus braços o bebê tão esperado? Não deveria lhe envolver um amor incondicional
e um saber se virar com colos, choros e afagos? Eis que nasce o bebê, mas – surpresa difícil – sua
chegada não coincide necessariamente com a da mãe.
No consultório dos analistas, na conversa entre amigas, nos relatos das redes sociais, cada vez mais
encontramos mulheres em busca de palavras que possam vir a significar a experiência da chegada de
uma criança em suas vidas. Para algumas, a chegada do bebê coincide com a de um abismo sob seus pés.
Não apenas se dão conta de que tudo se coloca diferente do que havia sido sonhado, como também
constatam que não encontram mais a mulher que sonhara isso tudo. Nem o sonho se apresenta, nem o
sujeito que o havia sonhado pode agora comparecer.
A essa experiência de falta de bordas junta-se um estranhamento sobre quem, afinal, é o objeto: o
bebê, aquele serzinho que precisa ser manuseado e cuidado? Ou elas, assim sugadas de tantas formas,
tomadas, usadas, sacadas de suas vidas, de seus afazeres e de seus lugares na partilha sexual?
Não é evidente – e muito menos natural – a operação que irá possibilitar que, onde os contornos se
desfizeram, se apresente alguém a ocupar o lugar materno. A construção da maternidade exige que uma
mulher se desloque, ela mesma, do lugar de “objeto devorado” para alçar o bebê ao lugar de “objeto
fálico” – expressão bastante conhecida entre leitores de Freud, que faz menção a um lugar muito especial
do bebê na cadeia simbólica materna, localizando, entre mãe e bebê, algo relativo ao que não se encaixa
e não se encerra nessa relação.
O GOZO NÃOTODO E A DEVASTAÇÃO MATERNA
À sensação de perda das bordas, de apagamento dos contornos, de abismo sob os pés, a psicanálise
lacaniana nomeia “gozo feminino” (ou “gozo nãotodo”). O “gozo”, conceito tão fundamental aos
lacanianos, é marcado pelo encontro da linguagem com o corpo. Refere-se aos excessos de prazer e
desprazer tão únicos a cada um, a algo que experimentamos singularmente como um profundo
estranhamento.
Em seu seminário de número 20, Lacan nos apresenta uma fórmula com dois tipos de gozo, o
“fálico” e o “feminino” (ou o gozo “todo” e o “nãotodo”).1 Para nossa abordagem, é suficiente situarmos
que o gozo feminino se refere a algo que não faz conjunto, não é compartilhável, não faz unidade, não
tem bordas, não se permite delimitar ou definir; é um gozo líquido e não sólido, um acontecimento de
corpo, impossível de ser todo capturado pelo universo das palavras, uma experiência nãotoda
significável, nãotoda contável, nãotoda passível de ser enlaçada pelo universo significante, por contos e
enredos. Está em oposição ao gozo fálico, que seria, por sua vez, um gozo enlaçado aos enredos da vida
e referido a uma “unidade corporal”, mesmo que este lhe seja estranho, que a atravesse ou que a
redefina. A esses dois tipos de gozo, somos todos suscetíveis.
Quando o gozo nãotodo vem se situar de modo avassalador, na experiência entre mãe e filho,
nomeamos essa vivência de devastação, “devastação materna”. Nessa experiência, nas palavras da
psicanalista Esthela Solano-Suárez (no capítulo “Maternidade blues” do livro Ser mãe – Mulheres
psicanalistas falam de maternidade, vários autores), uma mulher, “longe de encontrar uma satisfação
apaziguada em sua relação com o filho, objeto de seu desejo, pode, inversamente, passar pela
experiência da devastação, sendo engolfada, deportada dela mesma por um gozo louco, enigmático, fora
do sentido”.
ENTRE OS CUIDADOS E A DEVORAÇÃO
A clínica psicanalítica tem nos mostrado que a experiência de devastação materna não é uma rara
exceção destinada a algumas poucas mulheres não afeitas ao mundo materno. Não tem sido incomum
ouvir que, algumas, na tentativa de se extraírem dessa inundação, se colocam infinitas imposições,
tarefas e medidas protetivas para a criança, num esforço exaustivo de controle e de “tomar as rédeas” da
situação por meio de um cuidado metódico (excesso de higiene, de horários, de regras, de uma
alimentação “perfeita” etc.). A cadeia de cuidados não tem fim, o que pode fazer com que, dentro desse
contexto, torne-se uma metonímia infinita superegoica: mais e mais e mais...
Ao tentar responder à devastação materna com desmandos do superego, muitas mulheres relatam
uma profunda sensação de impotência, sentindo-se incapazes de estarem à altura das tantas tarefas
cotidianas com a criança, traduzidas por uma profunda sensação de exaustão e de fracasso.
Nesse movimento, o que vemos é que, no esforço de voltar a consistir e a dar contornos para ela e
para o filho, delimitando um e outro, uma mulher pode vir a tomar o bebê como objeto de cuidados, mas
isso não coincide necessariamente com poder tomá-lo como objeto exterior (e irrecuperável) a ela
própria.
No trabalho de escutar (e de ler) o que dizem (e escrevem) essas mulheres “devastadas” pela chegada
de um bebê, percebemos algo de grande valor clínico. O fino fio que permite a muitas delas realizar
alguns alinhavos iniciais, na tessitura de uma possibilidade para a maternidade, costuma envolver algo
de suas relações com as próprias mães. Anunciam lembranças, sustos e uma profunda falta de
compreensão. Atualiza-se, com a chegada do bebê, o lugar de objeto que ocuparam nos cuidados
maternos e, principalmente, o que ali lhes marcara com horror.
Ao caldeirão dos desejos em jogo na chegada de um filho misturam-se os pontos de inconsistência e
de ilimitação que marcaram a relação entre mãe e filha. Nessa atualização, pode surgir algo do horror já
antes experimentado que vem, agora (ou mais uma vez?), inundar a cena e liquidificar o corpo. Algo do
lugar que ocupara para sua mãe – como objeto – retorna de modo violento e sem aviso prévio. O ponto
de horror envolve o aspecto de devoração e de não separação que o Outro da figura materna carrega ao
se dedicar aos cuidados de uma criança. Conforme Romildo de Rêgo Barros, no livro Mães: “Se existir
uma função materna, ela estará em um espaço entre dois extremos dentro da tradição psicanalítica: de
um lado a devoração, e do outro os cuidados. Sempre que se falar em mãe, ela estará entre esses dois
extremos. Do lado da devoração, temos o Outro que quer recuperar seu objeto. E do lado dos cuidados,
temos o Outro que dá amor, ou seja, dá o que não tem.”
Mais do que a figura materna ser o que se apresenta entre dois extremos – o da devoração e o dos
cuidados –, esses dois extremos não estão em lados opostos, mas são, pelo contrário, um o avesso do
outro, revirando-se. “Não existiria, desde Freud, portanto, uma escolha entre devoração e cuidados, uma
vez que os cuidados seriam uma face da devoração e vice-versa. Seria inútil uma divisão em extremos
quando os dois elementos estão em movimento.” – afirma Barros.
POSITIVAÇÃOE NEGATIVAÇÃO
“Nesse sentido, podemos situar a castração da mãe como necessária a que ela faça das suas crianças
objeto ‘a’, ou seja, para que as crianças passem de objetos que faltam a objetos presentes fora da mãe, o
que representa uma “positivação”, conclui o mesmo autor. A “positivação” da criança como exterior à
mãe se dá por meio da operação da castração materna, que compreendemos como a “negativação” de um
ponto específico, aquele que permite à mulher reenlaçar-se, por um lado, ao feminino e, por outro, ao
desejo materno.
Dentro da perspectiva que tomamos, podemos afirmar que a operação possível na passagem da
devastação para o desejo materno é tributária, portanto, da inclusão de um limite na série infinita de
cuidados superegoicos que ali se colocaram inicialmente como uma tentativa de separação entre mãe e
filho.
Há uma especificidade muito delicada (e clinicamente valiosa) em relação a esse limite. Ele não se dá
exatamente pela inclusão de um ponto a mais, um ponto de basta, mas pela inclusão de um ponto a
menos, um furo.
A riqueza da operação materna a ser realizada nesse processo é a de fazer o ponto de horror, que
inunda a relação entre mãe e bebê, revirar-se em ponto de alívio. O alívio será decorrente de, justamente
onde consiste o ponto de horror, um furo vir a dar lugar à ilimitação do gozo feminino.
Eis o ponto de virada delicado e trabalhoso, pois exige da mulher um entrelaçamento da maternidade
ao gozo nãotodo, que inclui o ponto de impossível entre a mãe a criança (trabalho que não se faz sem a
retomada da menina que foi para mãe que teve). A localização desse furo é o que permite que o gozo
feminino não devaste (ao menos nãotoda) a relação mãe-filho. Trata-se de uma operação muito especial,
que permite a inclusão de um “zero” na cadeia infinita de cuidados – +1+1+1+1+1... +0+... –,
possibilitando que mãe e criança possam aí se inventar.
Sexualidade: enigmática! Até mesmo traumática! Mas, abusiva não!
MÁRCIA ROSA

A sexualidade é enigmática, comporta sempre algo de estrangeiro, de não sabido. Por isso mesmo,
muitas vezes, o encontro com ela é traumático, e necessita um tempo de assimilação. No entanto, ela não
é necessariamente abusiva; se chega a sê-lo, pode dar lugar a movimentos que expressam repúdio e
indignação. Presenciamos alguns deles recentemente no Brasil, nos casos envolvendo o médium João de
Deus e o médico Abdelmassih, bem como na Europa e nos EUA, com o produtor de cinema Weinstein.
Mantidas algumas particularidades, creio que esses movimentos guardam pontos em comum; por
isso, ao abordar as conquistas da hashtag #MeToo, espero trazer elementos que nos auxiliem na leitura
de manifestações semelhantes.
OS MOVIMENTOS #METOO E #BALANCETONPORC
O movimento MeToo (Eu Também) nasceu nos EUA, em 2006, com uma ativista americana negra
de 33 anos, Tarana Burke, que trabalhava com populações desfavorecidas. Depois de ter sobrevivido a
três agressões sexuais, decidiu agir. Reuniu-se com 30 meninas dispostas a mudar essa situação; dessas,
20 relataram casos de agressões como as que ela sofrera. Ou seja, 20 mulheres disseram, pela primeira
vez e em alto e bom som: Me Too. Foi uma surpresa: Burke esperava que apenas 5 ou 6 revelassem
histórias como aquelas. Em vista disso, criou um espaço para que essas meninas e mulheres, irmanadas
por terem sido sexualmente abusadas ou agredidas, jamais se sentissem sozinhas.
Em outubro de 2017, o movimento criado por Burke ganhou alcance estratosférico com a acusação
de assédio publicada no The New York Times contra Harvey Weinstein. O famoso produtor
cinematográfico teria adotado condutas sexualmente abusivas contra atrizes que haviam trabalhado com
ele. Uma delas, Alyssa Milano, serviu-se do Twitter para convidar as mulheres que tivessem sofrido
assédio sexual a se lançarem em uma luta global por reconhecimento. Tratava-se de libertar a palavra das
mulheres e quebrar o silêncio. Seu post dizia: “Se todas as mulheres que foram assediadas ou agredidas
sexualmente escreverem #MeToo, nós teremos como dar às pessoas a magnitude do problema #MeToo.”
Em questão de horas a hashtag #MeToo havia viralizado nas redes sociais, com milhões de pessoas
acessando e muitíssimas outras compartilhando suas histórias de abuso sexual. Em poucos dias, 40 mil
pessoas responderam ao tweet diretamente e mais de 12 milhões de pessoas usaram a hashtag nas redes
sociais.
Uma escritora canadense criou a declinação francesa do #MeToo, cunhando o #BalanceTonPorc
(#DenuncieSeuAssediador). Ao fazê-lo, visava principalmente à denúncia de situações de abuso sexual
no campo profissional. Uma jornalista de uma rede de televisão francesa foi a primeira a testemunhar,
com um relato breve, sobre o que lhe dissera seu chefe: “Você tem seios grandes, você é o meu tipo de
mulher, vou te fazer gozar todas as noites #MeToo.”
Pouco depois, na premiação do Globo de Ouro, em janeiro de 2018, a apresentadora americana
Oprah Winfrey fez um discurso destacando histórias de assédios sexuais em Hollywood e evocando o
caso de uma jovem mulher negra estuprada e violentada, ocorrido em 1944 no Alabama (EUA). Ela
morreu com quase 90 anos sem que esses homens brancos tivessem respondido judicialmente pelo fato,
apesar das muitas manifestações nesse sentido. Winfrey terminou sua fala dizendo esperar o tempo em
que ninguém tenha que dizer #MeToo novamente.
Em fevereiro de 2018, um número especial da Magazine Littéraire, revista bastante difundida na
França, trouxe como título de seu dossiê, “De Antígona a #MeToo”. O editorial propôs uma nova
hashtag, #WeToo, e trouxe a adesão dos homens ao movimento. Ao retomar a personagem clássica
Antígona, a Magazine se serviu da personagem para formular a pergunta: “e você, se lança contra o
quê?”
Uma “litania de testemunhos” foi o modo pelo qual a mídia se referiu ao caráter epidêmico ou viral
do movimento. Litania é um termo religioso referente à ladainha, uma oração cristã que permite uma
série de preces organizadas em curtas invocações que se alternam. Alguém diz algo e as pessoas
presentes respondem em assembleia, de modo breve e curto. Além de contagiosa, a litania tem uma
função encantatória.
Ao expor a dominação masculina, esses testemunhos cumprem uma função social e política
importante, ou seja, intervêm nas relações sociais entre os sexos e no jogo de poder que um pode exercer
sobre o outro, propondo aí novas configurações. Ao tomar a seu encargo denunciar, expor a verdade do
gozo masculino em seus excessos, propõe, com relação a isso, outras formas de regulação.
“PELA LIBERDADE DE IMPORTUNAR”
O movimento #MeToo gerou uma série de reações sobre o modo como ele se armou, a forma que
tomou, os efeitos que teve sobre muitos desses homens denunciados nominalmente etc. Mais ou menos
100 personalidades francesas assinaram o manifesto “Pela liberdade de importunar”, em contraposição
ao #MeToo. Elas apontaram que o #MeToo faz uma generalização e desconhece que há uma diferença
entre a cantada, o assédio, o abuso, a violência e a agressão.
Depois de afirmar que, quando assediada, uma mulher deveria saber lidar com isso, Catherine Millet,
autora do renomado A vida sexual de Catherine M., interpela o tratamento político dado pelo #MeToo às
questões da intimidade. Para ela, isso seria um rastro ruim deixado por maio de 68, e que gera uma
guerra sexual contra os homens, bem como uma vigilância constante de uns em relação aos outros. Já
Catherine Deneuve, uma das que estiveram à frente dos questionamentos, alega que, nesse caso, as redes
sociais são usadas como um instrumento de delação premiada e têm uma função jurídica. O prêmio é que
os porcos (assediadores) sejam enviados para o abate. Ela questiona, como muito grosseiros, os termos:
“denuncie seu porco (assediador)!” O que viria depois, indaga: “denuncie sua puta”?
Em agosto de 2018 ainda colhemos ressonâncias do movimento numa conferência apresentada pelo
filósofo Jean-Claude Milner. A partir do caráter epidêmico que o movimento tomou, ele demonstra
preocupação com o fato de que, ali, a exceção se torna a regra. Para ele, o #MeToo acaba generalizando
os atos de abuso, violência e assédio sexual, ou seja, eles passam a ser o instrumento de leitura sempre
presente quando se trata de pensar as relações entre os sexos. Ora, não temos dificuldades de constatar
que eles podem ocorrer, mas nem sempre ocorrem, ou não ocorrem necessariamente. Se estamos de
acordo quanto a isso, concordamos com Milner sobre o fato de que o padrão de análise que o movimento
#MeToo faz surgir justifica a indagação: aonde isso nos leva? Aonde a gente chega com isso?
Para tratá-lo, Milner se serviu do horizonte de discussão de um ensaio seu sobre o assunto, “D’une
sexualité a l’autre”, incluído no livro publicado recentemente por ele juntamente a Slavoj Žižek e Juan
Pablo Lucchelli, Sexualités em travaux (2018). Milner mostrou como, na tradição filosófica, a
representação do ato sexual pode ser equacionada com dois modelos: aquele da fusão dos corpos, no
qual dois se tornam um, e aquele do uso, no qual cada corpo se serve do outro para fins diversos, tais
como procriar, ter prazer etc.
Com Platão, o ato sexual se inscreve no regime da fusão, tal como no mito do andrógeno, no qual
dois seres se complementam um ao outro de tal modo que, descartadas as suas diferenças, eles se fundem
um no outro, tornando-se apenas um. Essa ideia não ocorre em Kant, que pensa o encontro sexual pela
via do uso que um faz do corpo do outro. No tocante a isso, Milner evidencia que, com Marx,
aprendemos que qualquer que seja o contrato, a relação entre aquele que usa e aquele que é usado nunca
é igual, pois o uso jamais é simétrico.
Em vista do incômodo que o termo “uso” pode gerar, é oportuno esclarecê-lo, evocando algo tão
elementar quanto o uso que um recém-nascido faz do corpo da mãe na amamentação. Desde aí, a relação
entre dois corpos é desigual e dissimétrica: reduzida ao seio, uma mulher/mãe não entra apenas como
sujeito, mas principalmente como objeto nutricional; o recém-nascido, sujeito por vir, apresenta-se, antes
de tudo, como uma boca que suga. Para que cada um desses dois corpos se sirva do outro, existe um
contrato o qual, no caso da amamentação, deve contemplar questões como o tempo de duração das
mamadas, o intervalo entre elas etc.
Posto isso, retomamos a proposta que Milner constrói: a de que o #MeToo não deveria esquecer que
a autonomia do corpo da mulher era a questão inicial gerada por situações de abuso, tal como aquela do
produtor americano! Não se pode tratar o corpo de uma mulher assim! É extremamente importante que
essa palavra seja dita! No entanto, parece excessivo concluir, a partir daí, que todo ato ou abordagem
sexual configure uma relação de dominação. Isso gera uma desconfiança em relação a tudo que concerne
ao corpo e ao outro, podendo levar até ao ideal de que uma mulher deve sempre tirar o corpo fora e de
que os homens são sempre abusivos e violentos.
Ao refazer o percurso pela filosofia, Milner mostra não encontrar, como pressuposto, universal e
estabelecido sempre e inevitavelmente, a formulação de que o homem é o dominador, o forte, e a mulher
o ser frágil, vitimado, a ser protegido. De qualquer modo, onde esse pressuposto se apresentar como base
da relação entre os sexos, é preciso indagar o que fazer com isso. Novas leis para proteger o mais fraco?
O risco, no entender do filosofo, é o de que movimentos como o #MeToo acabem gerando um ato sexual
liberado do contato com o outro e que esse contato se processe cada vez mais de modo virtual, pela via
da tecnologia ou, quem sabe, até pelo uso de brinquedos e aparelhos sexuais!
E A PSICANÁLISE, O QUE TEM A DIZER SOBRE ISSO?
Ao ler o movimento #MeToo com a psicanálise, torna-se inevitável uma pergunta sobre a posição de
quem denuncia. Caso contrário, teríamos um movimento sustentado em sujeitos que denunciam a
desordem do mundo sem estarem implicados naquilo que denunciam. Tal me parece ser o fundamento
da explicitação de alguns pressupostos claramente fantasmáticos atravessando a litania de testemunhos
do #MeToo, como a leitura invariante da relação entre os sexos sempre em termos de dominação.
É importante ultrapassarmos a leitura pela via dos ideais, entre os quais o ideal de relações sociais
esvaziadas de qualquer entrada do pulsional, seja ele proveniente do campo da sexualidade ou da pulsão
de morte. É importante irmos além do postulado de relações sociais reguladas pelos ideais do bem, da
civilidade etc., que desconhecem a dimensão do pulsional. De algum modo, a psicologia de grupo
freudiana dá lugar a isso! Nesse sentido, ela fracassa ao não levar em conta que os movimentos sociais
são atravessados pela circulação das pulsões.
Com Freud, as pulsões apresentam-se de dois modos: pulsão sexual, inserida num movimento de
vida, e pulsão de morte! Tragédias sociais, como a recente devastação da região de Brumadinho pelos
ideais neoliberais, mostram a força de irrupção das pulsões de morte. Outras situações, como a do
médium João de Deus e do médico Abdelmassih, mostram a irrupção desregulada do sexual no campo
da civilização. Se, com Lacan, uma das funções do belo é a de recobrir o horror do real, torna-se
oportuno, aqui, evocar os belos versos de um dos nossos poetas maiores: “O que será que será / Que dá
dentro da gente e que não devia / Que desacata a gente, que é revelia”.
Há atualmente um mal-estar profundo nas ideias e nos ideais que regem as relações entre os sexos.
De um lado há uma ilimitação do gozo pulsional e, de outro, uma regulação. É sob o fundo dessa
ilimitação do gozo que os movimentos sociais operam. Portanto, o gozo é o elemento que transborda o
campo dos ideais e perturba as discussões quando elas se fundam apenas em palavras de ordem que
desconhecem que não há como esvaziar o elemento pulsional das relações sociais e das relações entre os
sexos.
Constatamos que o lugar hegemônico antes ocupado pelas reivindicações de uma distribuição justa e
equitativa do capital – reinvindicações que continuam a existir! – é atravessado por uma discussão sobre
uma distribuição justa e equitativa do gozo entre os sexos. Seria ela possível?
Constatar que a entrada do gozo pulsional no campo da política perturba os ideais e introduzir
operadores que permitam a leitura das perturbações geradas por essa entrada parece ser uma das
possíveis contribuições da psicanálise.
As ideias aqui expostas são parte do capítulo 8, “Histeria, sua função social e política”, do livro de
minha autoria, Por onde andarão as histéricas de outrora?, no prelo.
O feminino na travessia do Grande Sertão
ANTÔNIO TEIXEIRA

É ponto pacífico que, tanto para Euclides da Cunha quanto para Guimarães Rosa, o sertão funciona
como metáfora de algo que se perdeu ou se encontra em vias de desaparecer. Mas, embora Grande
sertão: veredas possa ser considerado, segundo sugere W. Bolle, como uma reescrita do discurso
fúnebre de Os sertões, numa espécie de reabilitação póstuma da memória heroica do sertanejo, as duas
obras se diferenciam por motivos que cabe destacar. Ao passo que Euclides da Cunha fala de Os sertões
no sentido genérico do artigo plural, tentando manter a distância objetiva do observador externo,
Guimarães Rosa revoga essa objetividade e nos convoca a uma experiência de imersão: para se ouvir o
que tem a dizer o Grande Sertão, no adjetivo singular, é preciso se deixar envolver por ele e se haver
com a estranheza e o encanto tanto da prosódia quanto do vocabulário e da sintaxe do sertanejo.
Um fala dos sertões, o outro faz falar O Grande Sertão, e nisso reside uma grande diferença. É por
fazer falar o grande sertão, deixando-se por ele afetar, que em Guimarães Rosa, observa Antonio
Candido, a busca objetiva pelo nexo causal determinista, que orienta o ideal científico do relato de
Euclides, se desfaz, cedendo lugar às ambiguidades do desejo: o pacto com o diabo funciona, ao mesmo
tempo que se duvida de sua existência. É em tal contexto que Diadorim encarna a ambivalência da
posição, ao mesmo tempo santa e demoníaca do feminino, em contrapartida ao pacto masculino com o
diabo sobre o qual Riobaldo organiza sua meditação.
Conforme sugere Clara Rowland, Diadorim, de Rosa, assim como Bartleby, de Mellville,
aproximam-se na forma daquilo que Melville chama de “phenomenal men”. Eles não são narradores,
como Riobaldo ou o patrão de Bartleby, mas seres que incorporam a narrativa no seu agir, na medida em
que seu modo de ser se coloca como motivo de decifração para o narrador que os acompanha. Diadorim
é, nesse sentido, o guia do discurso de Riobaldo, mas um guia que não produz uma discursividade
própria. A escolha, por parte de Guimarães Rosa, do nome Reinaldo, com o qual Diadorim se apresenta
pela primeira vez a Riobaldo, tem nesse ponto uma função nitidamente alegórica: Reinaldo é, como diz o
nome, o rei que conduz. Nossa questão seria, então, a de saber aonde Diadorim o conduz, como também
a de explicar por que motivo cabe a essa incidência do feminino, marcadamente ausente no relato de
Euclides da Cunha, encarnar, para Guimarães Rosa, a ideia de direção.
É comum dizer que Diadorim reproduz a figura da donzela guerreira, topos literário clássico do
trovadorismo medieval, cujo valor se transmite na experiência do afrontamento do perigo. O narrador
Riobaldo, homem receoso, hesitante e reflexivo, encontra em Diadorim a forma feminina do desejo
decidido de quem avança como Antígona, sem temor e sem piedade, movida pela certeza antecipada do
rumo a tomar diante do que está por vir. Se o perigo ali é o fator determinante de um discurso
estruturado como relato de uma travessia, na qual o sujeito se lança para além dos limites que o
permitiam se orientar no interior de uma situação regrada, o afeto da coragem, enquanto subjetivação
corporal do risco, é aqui condição determinante da ação. Mas, para se falar de limite e travessia, é
preciso, antes de tudo, lembrar que não existe fronteira natural do limite. O limite somente existe como
efeito, sobre o real, do ajuste simbólico da linguagem no interior do universo do discurso. O sentimento
de crença que se tem da realidade como um mundo estável, determinado por regras, depende da
configuração gerada pela dimensão discursiva que orienta nossa percepção, no interior do campo de
significações socialmente compartilhadas, ao qual, em psicanálise, se dá o nome de semblante.
No universo discursivo do sertanejo, coube a Joca Ramiro, pai de Diadorim, ser aquele que sustenta
essa crença, na forma do chefe aristocrático destinado a representar o limite da lei capaz de conter a
selvageria dos guerreiros jagunços. A ele se opõe Zé Bebelo, homem de vocação política determinado a
destruir o universo dos jagunços para instaurar a ordem do universo republicano, com suas escolas,
fóruns e hospitais. Derrotado em batalha campal, seu julgamento, liderado por Joca Ramiro, encena, em
meio à violência do enfrentamento, a vitória da justiça e seus ideais. Em vez de sua execução sangrenta,
Joca Ramiro lhe prescreve a morte simbólica da condenação ao exílio, em decisão que finalmente
consagra, no universo do jagunço, a lei da civilização.
Mas, nesse momento de vitória da razão simbólica, ao olhar de Riobaldo não escapam, nota
Rosenfield, os indícios de um resto que ali não se deixa simbolizar: a raiva de Hermógenes que então se
retorce, reivindicando seu direito de esfolar a vítima a seu bel-prazer. Em meio à construção da justiça,
que pede a razão dos fatos, estampa-se uma violência sem razão, essencialmente desprovida de porquê,
que não se deixa captar no universo do discurso onde se regulam as relações simbólicas. Mas o que
Riobaldo entrevê, ao longo da cena do julgamento, é que uma coisa não vai sem a outra. Ele nota que a
desrazão está sempre à espreita da decisão racional, que o direito está sempre contaminado por algo que
o nega, que o poder da lei, enfim, concebido para pacificar a violência, traz consigo a violência que ele
revoga, como se fosse um termo antitético.
Pois é fato, já notara W. Benjamin, que a distinção entre poder legítimo e violência ilegítima não se
dá por ela mesma: a violência ilegítima que o direito tenta subtrair do indivíduo continua a despertar
subterraneamente sua simpatia, como se lhe fosse dado duvidar de sua legitimidade. O que acontece é
que, uma vez estabelecida crença nos mecanismos de regulação discursiva da violência, perdemos de
vista o fato de que a fundação do direito implica a imposição de uma violência que, em seu universo, não
se deixa explicitar. É legítimo protestar, por exemplo, contra a invasão da Índia pelo Império Britânico,
pois não há dúvida de que os ingleses atacaram brutalmente uma cultura multissecular. Mas, ao fazer
isso, terminamos por sacralizar, inadvertidamente, a cultura do Império Mongol e do Sultanato de Délhi
que, por serem mais antigos, não foram menos brutais do que o Império Britânico ao ali se instalarem.
Não existe uma cultura primeira, fundada no direito sem violência, sobre a qual se pode criminalizar as
demais.
Parece-nos, nesse sentido, que a irrupção dessa violência sem causa, que tanto afeta a meditação de
Riobaldo, se dá na transição de um universo ao outro. Ali está o perigo da travessia: ele se dá no
momento em que a dissolução da crença, que sustenta o universo mítico do Sertão, encarnada pela figura
heroica de Joca Ramiro, vem ceder lugar ao universo moderno desencantado, representado pelo cálculo
político de Zé Bebelo.
Mas o que ocorre, então, no interior do universo sertanejo, que antecede sua travessia e que explica
sua falência, dissolução e substituição? Ora, se a autoridade patriarcal, representada pelo personagem de
Joca Ramiro, vem materializar a crença que sustenta o universo do discurso sertanejo, a condição de
Riobaldo, como é o caso da maior parte dos jagunços, é a de ser o filho sem pai de nossa miscigenação.
Desprovido de reconhecimento simbólico, Riobaldo é o sujeito fugidio, cujo comportamento errante
traduz a carência do semblante que dá lugar ao filho na transmissão simbólica da paternidade. Se, por um
lado, tal carência explica o apego dos jagunços à figura do pai valoroso representado por Joca Ramiro, o
que se revela, com seu desaparecimento, não é a mediação simbólica do pai morto. A verdade dessa
condição de abandono é a anomia do acampamento de Hermógenes, onde todos se entregam às práticas
de violência gratuita.
O que motiva a travessia, assim, é a necessidade de remediar a falência do universo sertanejo,
instalando, no seu lugar, o universo da ordem republicana do interlocutor a que Riobaldo se dirige,
representante de uma situação que se estrutura na revogação do contexto social do sertão. A travessia
exige que o sertanejo se alie ao inimigo do sertanejo, que o bando heroico de Riobaldo e Diadorim se
una à tropa do ardiloso Zé Bebelo, de volta do degredo para fazer justiça a Joca Ramiro que, ao exilá-lo
em nome de uma lei simbólica, poupou-lhe das atrocidades de uma violência sem lei.
Mas onde situar, então, a incidência do feminino, referida ao lugar ocupado pelo personagem
Diadorim, na travessia de um universo ao outro? Nossa hipótese é que não se pode ir de um universo ao
outro, na travessia do Grande Sertão, sem passar pelo fora-do-universo que a posição feminina atualiza.
Pois o feminino, no dizer de Lacan, representa justamente essa dimensão que se opõe ao universal,
condição eminentemente masculina, na forma de uma objeção ao limite do universo, no sentido de que
quem ocupa essa posição visa ao resgate de algo que não cabe nesse limite. Para se ir de um universo a
outro, é preciso passar pelo fora do universo e expor-se ao perigo de um espaço no qual as leis de
mediação simbólica perdem sua eficácia. Diadorim é quem rompe o limite do universo em que Riobaldo
se localiza, ao mesmo tempo que orienta sua travessia pelo fora do limite.
Humano, demasiado humano, Riobaldo é um ser indeciso, entulhado pelas referências ao semblante,
a oscilar entre os valores do universo mítico do sertão, de onde provém, e os critérios do universo lógico
racional do interlocutor para o qual se dirige. Mas se o que o leva a essa hesitação constante é o
pensamento que oscila entre dois universos, o que o tira da ruminação cogitativa e lhe dá a determinação
necessária ao agir passa justamente pelo encontro com Diadorim, cuja inumanidade lhe permite
emancipar da vacilação demasiado humana do cálculo deliberativo. O que a coragem inumana de
Diadorim suscita em Riobaldo, em seu desejo de vingar Joca Ramiro, é a paixão por uma justiça que
possibilita o universo do discurso, mas cuja instauração depende de um gesto que não cabe no seu limite
regrado. O pacto demoníaco de Riobaldo, conduzido por Diadorim, resulta da ideia de que, para realizar
a justiça, é preciso ir além do plano das justificações discursivas entre as quais oscila, e realizar
finalmente um vínculo, fora do universo, com a selvageria destrutiva da pulsão.
Diadorim lhe indica que é preciso se haver com o mal para enfrentar o mal, que é necessário alcançar
o fora-do-universo para rasgar o semblante do discurso e fazer da justiça algo mais do que uma abstração
verbal, no sentido em que o universo do discurso encontra seu limite na instauração da justiça, que não é
legal nem ilegal no momento de sua fundação. Pois se a lei pode ser discursivamente justa, sem a
brutalidade dessa violência fundante, ela não passa de um devaneio impotente. A violência é um
predicado essencial da justiça, posto que não há justiça, como nos diz Derrida, se ela não tiver a
violência de se impor.
estante cult
As mulheres devem chorar
VIRGINIA WOOLF

Seria uma pena deixar sem resposta uma carta tão notável quanto a sua – uma carta talvez única na
história da correspondência humana, pois, quando teria, antes, um homem instruído perguntado a uma
mulher como, em sua opinião, se poderia evitar a guerra? Façamos, pois, a tentativa, ainda que esteja
condenada ao fracasso.
Façamos, em primeiro lugar, aquilo que todas as cartas instintivamente fazem, um esboço da pessoa a
quem a carta é endereçada. Sem alguém cálido e respirando do outro lado da página, as cartas são
inúteis. O senhor, pois, que faz a pergunta, é um pouco grisalho nas têmporas. Atingiu a meia-idade
exercendo, não sem algum esforço, a advocacia; mas, em geral, sua jornada tem sido próspera. Não há
nada de empedernido, mesquinho ou desgostoso em sua expressão. E sem querer lisonjeá-lo, sua
prosperidade – esposa, filhos, casa – é merecida. Quanto ao mais, iniciou sua educação em um dos
grandes internatos privados, concluindo-a na universidade.
É aqui que surge a primeira dificuldade de comunicação entre nós. Indiquemos rapidamente a razão.
Nós dois viemos do grupo que, nesta época de transição, na qual, embora a descendência seja mista, as
classes ainda permanecem fixas, é conveniente chamar de classe instruída. Quando nos encontramos
pessoalmente, falamos com o mesmo sotaque e conseguimos manter, sem muita dificuldade, uma
conversa sobre as pessoas e a política, a guerra e a paz, o barbarismo e a civilização – questões todas, na
verdade, sugeridas por sua carta. Além disso, ganhamos ambos a vida com nosso trabalho. Mas... esses
três pontos assinalam um precipício, um abismo tão profundamente cavado entre nós que tenho estado
aqui sentada, do meu lado, me perguntando se adianta alguma coisa tentar fazer minha fala chegar ao
outro lado.
Aqui estamos preocupados tão somente com o fato óbvio, quando se trata de considerar a importante
questão de como podemos ajudá-lo a evitar a guerra, de que a educação faz toda a diferença. Algum
conhecimento de política, de relações internacionais, de economia é obviamente necessário para
entender as causas que conduzem à guerra. A filosofia e até mesmo a teologia podem proveitosamente
dar sua contribuição. Ora, a pessoa sem instrução, como o senhor concordará, o homem com uma mente
pouco treinada provavelmente não poderia tratar dessas questões de maneira satisfatória. A guerra, como
resultado de forças impessoais, está, pois, além da compreensão da mente pouco instruída, pouco
treinada. Mas a guerra como resultado da natureza humana é outra coisa. Não acreditasse o senhor que a
natureza humana, as razões, as emoções do homem e da mulher comum conduzem à guerra, não teria
escrito pedindo nossa ajuda.
Felizmente há um ramo da educação que se inscreve sob a categoria de “educação sem custo” –
aquele entendimento dos seres humanos e suas motivações que, desde que a palavra seja expurgada de
suas associações científicas, se pode chamar de psicologia. Mas embora muitos instintos sejam tidos, em
maior ou menor grau, como comuns a ambos os sexos, guerrear tem sido, desde sempre, hábito do
homem, não da mulher. A educação e a prática desenvolveram aquilo que pode ser uma diferença
psicológica transformando-a em algo que pode ser uma diferença física – uma diferença de glândulas, de
hormônios. Seja como for, um fato é indiscutível – raramente, no curso da história, um ser humano foi
abatido pelo rifle de uma mulher; os pássaros e os animais foram e são, em sua grande maioria, mortos
por vocês, não por nós.
Como, pois, vamos compreender o seu problema, e, se não conseguirmos, como poderemos
responder a sua pergunta sobre como evitar a guerra? A resposta baseada em nossa experiência e nossa
psicologia – por que guerrear? – não é uma resposta que tenha a mínima utilidade para vocês.
Obviamente há, para vocês, alguma glória, alguma necessidade, alguma satisfação em guerrear, que nós
nunca sentimos ou de que nunca extraímos prazer. Uma completa compreensão só poderia ser alcançada
por transfusão de sangue e transfusão de memória – um milagre ainda fora do alcance da ciência. Mas
nós, que vivemos agora, temos um sucedâneo para a transfusão de sangue e a transfusão de memória que
deve servir, em caso de necessidade. Há aquele maravilhoso, perpetuamente renovado e até agora
amplamente inexplorado recurso para compreender as motivações humanas que é proporcionado em
nossa época pela biografia e pela autobiografia e pelos jornais diários. É à biografia, pois, que nos
voltaremos, em primeiro lugar, rápida e brevemente, para compreender o que a guerra significa para
vocês.
Em primeiro lugar, isto, da vida de um soldado:
Tive a mais feliz das vidas que se pode ter, e sempre trabalhei em prol da guerra, e agora entrei na
maior de todas, na flor da idade, para um soldado.... Graças a Deus, partimos dentro de uma hora. Que
regimento magnífico! Que homens, que cavalos! Dentro de dez dias, espero, Francis e eu estaremos
cavalgando lado a lado em direção aos alemães.
A isso acrescentemos estas palavras, da vida de um piloto de guerra:
Falamos da Liga das Nações e das perspectivas de paz e desarmamento. Sobre esse assunto, ele não
era propriamente militarista, mas marcial. A dificuldade para a qual não conseguia encontrar nenhuma
resposta era que, se a paz permanente fosse alguma vez alcançada, os exércitos e as marinhas deixariam
de existir, não haveria nenhum meio de vazão para as características viris que as batalhas
desenvolveram, e a constituição humana e o caráter humano acabariam por se deteriorar.
Aqui, pois, estão três motivos que levam o sexo que o senhor representa a lutar: a guerra é uma
profissão; uma fonte de felicidade e grandes emoções; e também um meio de vazão das características
viris, sem as quais os homens se deteriorariam. Mas esses sentimentos e opiniões não são, de modo
algum, universalmente partilhados pelo sexo que o senhor representa; isso é demonstrado pelo seguinte
extrato de outra biografia, a vida de um poeta que foi morto na guerra – Wilfred Owen:
Tive uma iluminação que nunca será absorvida pelo dogma de qualquer igreja nacional: a saber, que
um dos mandamentos essenciais de Cristo era: Passividade a qualquer preço! Padeça desonra e desgraça,
mas nunca recorra a armas. Seja maltratado, ultrajado, deixe-se matar; mas nunca mate.... Vê-se, assim,
que o puro cristianismo nunca combinará com o puro patriotismo.
E entre algumas notas para poemas que ele não viveu para escrever estão estas:
A artificialidade das armas... A desumanidade da guerra... A insuportabilidade da guerra... A horrível
bestialidade da guerra... A insensatez da guerra.
A julgar por essas citações, é óbvio que o mesmo sexo sustenta opiniões diferentes sobre a mesma
coisa. Mas é óbvio também, a julgar pelos jornais de hoje, que, não importa quantos dissidentes haja, os
de seu sexo são, hoje, em sua grande maioria, a favor da guerra. Eles são da opinião de que Wilfred
Owen estava equivocado; que é melhor matar do que se deixar matar. Entretanto, uma vez que a
biografia mostra que são muitas as diferenças de opinião, é evidente que deve haver alguma razão
preponderante na gênese dessa esmagadora unanimidade. Deveremos chamá-la, a bem da brevidade, de
“patriotismo”? Mas a irmã do homem instruído – o que o “patriotismo” significa para ela? Tem ela as
mesmas razões para se orgulhar da Inglaterra, para amar a Inglaterra, para defender a Inglaterra? Tem ela
sido “imensamente abençoada” na Inglaterra?
A história e a biografia, quando inquiridas sobre esses pontos, parecem demonstrar que o lugar dela
na morada da liberdade tem sido distintamente diferente do lugar de seu irmão; e a psicologia parece
sugerir que a história não deixa de ter seus efeitos sobre a mente e o corpo. Portanto, a interpretação que
ela faz da palavra “patriotismo” pode muito bem diferir da dele. E essa diferença pode fazer com que se
torne extremamente difícil para ela compreender a definição de patriotismo dada por ele e os deveres que
ele impõe. Parece óbvio que pensamos diferente por termos nascido diferentes; há um ponto de vista do
soldado e do piloto de guerra; um ponto de vista de um Wilfred Owen; o ponto de vista do patriota; e o
ponto de vista da filha de um homem instruído. O próprio clero, que faz da moralidade sua profissão, nos
dá conselhos divergentes – sob algumas circunstâncias é certo guerrear; sob nenhuma circunstância é
certo guerrear.
Mas além dessas imagens da vida e das opiniões de outras pessoas, dessas biografias e histórias, há
também outras imagens – imagens de fatos atuais, fotografias. Fotografias não são, obviamente,
argumentos dirigidos à razão; elas são simplesmente asserções factuais dirigidas aos olhos. Vejamos,
pois, se quando olhamos para as mesmas fotografias sentimos as mesmas coisas.
Aqui, na mesa à nossa frente, há algumas fotografias. O governo espanhol as envia com paciente
pertinácia mais ou menos duas vezes por semana! Não são fotografias agradáveis de se olhar. São
fotografias de cadáveres, na maior parte. A coleção desta manhã contém uma que pode ser o corpo de
um homem, ou de uma mulher; está tão mutilado que poderia ser, por outro lado, o corpo de um porco.
Mas essas são certamente de crianças mortas, e aquilo é, sem dúvida, parte de uma casa. Uma bomba pôs
a parede abaixo; ainda se vê uma gaiola de passarinho balançando onde ficava, supostamente, a sala de
visitas, mas o resto da casa mais parece uma caixa de fósforos suspensa no ar.
Essas fotografias não constituem um argumento; são simplesmente exposições de fatos dirigidas aos
olhos. Mas o olho está conectado com o cérebro, o cérebro com o sistema nervoso. Esse sistema envia
suas mensagens como um raio, que atravessa cada uma das lembranças do passado e cada uma das
sensações do presente. Quando olhamos para essas fotografias alguma fusão se dá dentro de nós; por
mais diferentes que possam ser a educação e as tradições que nos embasam, nossas sensações,
entretanto, são as mesmas. O senhor as chama de “horror e asco”. Nós também as chamamos de horror e
asco. E as mesmas palavras nos vêm aos lábios. A guerra, diz o senhor, é uma abominação, um
barbarismo; a guerra deve ser interrompida a qualquer preço. E nós ecoamos suas palavras. A guerra é
uma abominação, um barbarismo; a guerra deve ser interrompida. Pois agora estamos, ao menos,
olhando para a mesma imagem; estamos vendo com o senhor os mesmos cadáveres, as mesmas casas
destroçadas.
Essa emoção, essa fortíssima emoção, parece exigir algo mais forte que um nome escrito numa folha
de papel, uma hora desperdiçada ouvindo discursos, um cheque preenchido com uma quantia qualquer
que possamos nos permitir gastar – digamos, um guinéu. Algum método mais enérgico, algum método
mais ativo de expressar nossa crença de que a guerra é bárbara, de que a guerra é desumana, de que a
guerra, como disse Wilfred Owen, é insuportável, horrível e brutal, parece ser necessário. Mas, retórica à
parte, de que método ativo dispomos?
Vocês, naturalmente, poderiam, uma vez mais, pegar em armas – na Espanha, por exemplo – em
defesa da paz. Mas esse, supostamente, é um método que vocês rejeitaram. De qualquer maneira, esse
método não está disponível para nós; tanto o Exército quanto a Marinha estão vedados ao nosso sexo.
Tampouco nos é permitido fazer parte da Bolsa de Valores. Assim, não podemos usar nem a pressão da
força nem a pressão do dinheiro. Não podemos pregar sermões nem negociar tratados. E também,
embora seja verdade que podemos escrever artigos ou enviar cartas para a imprensa, o controle da
imprensa – a decisão sobre o que imprimir e o que não imprimir – está inteiramente nas mãos dos que
pertencem ao seu sexo. É verdade que há vinte anos passamos a ser aceitas no Serviço Público e na
Ordem dos Advogados; mas nossa posição ali é ainda muito precária e nossa autoridade, mínima.
Não apenas somos incomparavelmente mais fracas do que os homens de nossa própria classe; somos
mais fracas do que as mulheres da classe operária. Se as operárias do país dissessem: “Se forem à guerra,
nós nos recusaremos a fabricar munições ou ajudar na produção de bens”, a dificuldade de entrar em
guerra aumentaria consideravelmente. Mas mesmo que todas as filhas dos homens instruídos deixassem
de utilizar seus instrumentos de trabalho amanhã, nada de essencial, seja na vida da comunidade, seja no
esforço bélico, seria perturbado. Nossa classe é a mais fraca de todas as classes do Estado nacional. Não
temos nenhuma arma com a qual fazer valer nossa vontade – nenhuma arma a não ser uma influência
ilusoriamente “indireta”, o arduamente conquistado voto, e uma outra. Por alguma razão, nunca
satisfatoriamente explicada, o direito ao voto, em si de modo algum desprezível, estava misteriosamente
associado a outro direito, de um valor tão grande para as filhas dos homens instruídos, que praticamente
todas as palavras do dicionário foram por ele transformadas, inclusive a palavra “influência”. O senhor
não julgará que essa afirmação é exagerada se explicarmos que ela se refere ao direito de ganhar a
própria vida.
Inédito no Brasil, este texto integra a coletânea As mulheres devem chorar... ou se unir contra a
guerra, lançado neste mês pela editora Autêntica. O trecho foi originalmente publicado em 1938,
no livro Três guinéus, no qual Virginia Woolf desenvolve o argumento de que existe uma estreita
conexão entre masculinismo e militarismo, entre patriarcado e regimes ditatoriais. Também
inédito no Brasil, Três guinéus tem previsão de lançamento para o segundo semestre, pela
Autêntica.
estante cult
A Cleópatra da África Central
MARINA COSTIN FUSER

A plateia que assistiu ao filme angolano Njinga, rainha de Angola, lançado no Brasil em 2013, pode
explorar com profundidade a biografia da rainha angolana do século 17 que se tornou símbolo da
resistência contra o colonialismo no continente africano. O livro Jinga de Angola: A rainha guerreira da
África, publicado em 2017 pela Harvard University Press e agora traduzido pela Todavia, não é a
primeira biografia sobre a epopeia de Jinga, mas é uma obra inédita na medida em que a autora costura
sua narrativa sem cair na tentação de endeusar ou vilificar a persona histórica.
Na sua história de Jinga, a professora Linda M. Heywood não se esquiva nem simplifica as
controvérsias entre as diferentes fontes, que variam de documentos e arquivos coloniais portugueses,
relatos dos capuchinhos Gaeta e Cavazzi para o Vaticano às versões dos povos ambundos, imbangalas e
congoleses. Os portugueses a retratam como uma feiticeira selvagem e sexualmente perversa, ao passo
que os capuchinhos a descrevem à luz de uma relação delicada, marcada por desconfiança, receio, porém
certo fascínio em torno de sua figura como aposta do Vaticano em sua influência na cristianização do
reino. Por último, os povos da África Central a consideram uma personagem histórica tão importante
quanto Cleópatra, por seu papel fundamental na luta contra os colonizadores portugueses.
O assombro dos colonizadores e, de certa maneira, também dos capuchinhos, aqueles que registraram
os relatos canônicos sobre Jinga, produziu ecos no imaginário de autores ocidentais: Jean-Louis
Castilhon a retrata como cruel e vingadora; Marquês de Sade faz menção a Jinga, em A filosofia na
alcova (1795), como uma rainha exótica e lasciva, cujo ímpeto sexual a leva a cometer as mais sórdidas
atrocidades contra os homens; G. W. F. Hegel descreve-a, nos círculos religiosos e literários da
Universidade de Berlim, como uma rainha que massacra todos os homens. A construção ocidental de
uma Jinga selvagem e voraz acumula pistas sobre a visão torpe e desprezível que os europeus lançavam
sobre os povos das colônias e sua história. Mas uma grande estátua de Jinga no Largo do Kinaxixi, em
Luanda, escancara um hiato entre essas interpretações, algo que se explica pela discrepância entre os
lugares de poder e privilégio de onde vêm as diferentes narrativas. Não por acaso, é no Largo do
Kinaxixi que funcionavam os ignóbeis mercados negreiros da empresa escravista.
Heywood aceitou com afinco o desafio de lançar nova luz sobre Jinga, recuperando inclusive
memórias preservadas pela tradição oral de Ndongo. Ela já havia acumulado uma bagagem significativa
como professora e pesquisadora de Estudos Afro-Americanos na Universidade de Boston, com
publicações consideráveis sobre tópicos relacionados, tais como a história do poder em Angola a partir
dos anos 1840, questões da diáspora africana e sua relação com as Américas.
Assim, ela nos fornece um pano de fundo do que era a África Central e as relações de poder territorial
entre Ndongo, Angola e Congo. Ndongo era um reino independente que, em 1671, foi incorporado à
colônia portuguesa de Angola. O livro discorre em detalhes sobre a linhagem de Jinga, sua relação com
seu avô Kasenda, grande líder ambundo, que lhe serviu como mentor, orientando que a neta aprendesse
técnicas de liderança, ofícios de guerra e poder. Já seu irmão, Ngola Mbande, no intuito de garantir a
coroa, assassinou todos os irmãos do sexo masculino e seus descendentes, inclusive o filho de Jinga, e
ordenou a esterilização de Jinga e de suas irmãs para que não pudessem gerar herdeiros. Mas foi o
mesmo Mbande que a convidou para servir em missão diplomática, na qual ela conduziu com sucesso
uma comissão de paz dirigida a Luanda, então sob domínio português. Essa missão foi um marco na vida
política de Jinga por se mostrar hábil no jogo diplomático, dando as cartas sobre as condições políticas e
econômicas postas em pauta, com uma pose imponente, digna de rainha.
Isso significou uma postura de insubordinação não apenas de Jinga, mas de um reino africano
independente frente àqueles que pretendiam colonizá-lo e escravizar seu povo. Com efeito, ela conseguiu
firmar uma trégua, comprometendo-se a não atacar as tropas portuguesas e devolver escravos fugitivos,
com a condição de que Mbande não entregasse mais escravos como tributo aos portugueses.
O suicídio de seu irmão após um posterior fracasso diplomático (cerca de 1624) abriu caminho para
que Jinga se tornasse rainha de Ndongo. Seu reinado durou quase três décadas, resistindo com punho
firme a ofensivas de treze governadores portugueses baseados em Angola. Seu pensamento estratégico
marcial, arquitetando as defesas e prevendo ataques inimigos, com sua presença em combate até uma
idade avançada, fez dela uma guerreira extraordinária, que mobilizou exércitos e guerras de resistência
em condições indubitavelmente inferiores. Jinga chegou a se aliar à Companhia Holandesa das Índias
Orientais em princípios dos anos 1640. Malgrado os revezes de seu rival Ngola Hari, aliado dos
portugueses, em fuga, ela se uniu a Kasange, chefe imbangala, e se tornou também rainha dos povos
imbangalas em 1629. Mesmo após a súbita traição de Kasange em 1630, ela firmou seu reino em
Matamba, onde organizou tropas para um retorno triunfante ao reino de Ndongo. Disso decorre a fusão
entre esses dois reinos.
Mesmo que sua liderança enquanto mulher fosse contestada tanto dentro quanto fora de sua corte,
naquela época as mulheres africanas gozavam relativamente de mais liberdade do que suas
contemporâneas portuguesas, exercendo funções ritualísticas e frequentando eventos públicos. Na
introdução do livro, Heywood pondera que a poligamia, naquele contexto, permitia que as mulheres
ocupassem posições intercambiáveis, preservando sua independência: “Tanto a esposa principal, quanto
as concubinas podiam deixar o arranjo sempre que desejassem. A mulher que deixava o marido não era
condenada ao ostracismo, ou mesmo repreendida, mas era recebida de volta à linhagem de seu pai, na
qual era livre para permanecer até escolher outro marido ou parceiro”. Não obstante, foi por causa de seu
gênero que os portugueses pressionavam para que Ngola Hari fosse o legítimo herdeiro do trono de
Ndongo, o que encontrava eco entre alguns ambundos, causando cisões entre os sobas (chefes dos
povoados).
O livro também mostra como a questão da escravidão toca num ponto nevrálgico bastante pungente
na história da diáspora africana. Jinga era mais do que conivente com a empresa escravista. Ela era ativa
no comércio de escravos e os usava como moeda de barganha para firmar tratados diplomáticos com os
portugueses. A própria autora fala, por e-mail, sobre o envolvimento de Jinga com as mazelas do
Atlântico negro: “Alguns leitores permanecem reticentes em torno no papel de Jinga no comércio de
escravos. Temos que lembrar que ambos os portugueses e os africanos estavam envolvidos nesse
negócio. Os portugueses guerreavam contra o Ndongo não apenas para ganhar controle sobre o território,
mas para capturar escravos. Alguns leitores pensam que devido às guerras de Jinga contra os portugueses
serem defensivas, ela não participou deste comércio. Esta visão está equivocada, uma vez que Jinga
vendeu para os portugueses milhares de africanos capturados nas guerras contra países africanos
vizinhos. A maioria desses africanos escravizados acabou no Brasil e na América hispânica”, conclui a
autora.
É a partir desse comércio lancinante que as histórias do Brasil e de Angola se encontram. E, por isso,
a história de Jinga suscita reminiscências do nosso passado colonial.
A ponte entre essas duas culturas é bem desenvolvida no epílogo do livro. A autora conduziu
pesquisas no Brasil em 1998, onde editou o livro Diáspora negra no Brasil pela Editora Contexto,
contribuindo com o artigo “De português a africano: a origem centro-africana das culturas atlânticas
crioulas no século 17”. Em sua estada no Brasil, Heywood diz ter feito a lição de casa, foi conhecer as
congadas: “As raízes da ‘congada’ com o Rei do Congo e a Rainha Jinga, que figuram nas festividades,
surgiram no Nordeste do Brasil no fim do século 17. Essa festa é atribuída aos angolanos escravizados
que chegaram na região no tempo de Jinga. É importante que afro-brasileiros contemplem os profundos
laços culturais que se dão entre Brasil e Angola. Africanos centrais escravizados seguiram sendo
traficados para o Brasil até o século 19. As festividades da Congada também tiveram continuidade,
permitindo que novas gerações de afro-brasileiros viessem a conhecer a figura histórica desta famosa
rainha”.
Ela encerra a entrevista com uma mensagem dirigida aos brasileiros que descendem da diáspora,
procuram resgatar suas raízes africanas e continuam na luta: “Nunca desistam da resistência. Sejam
como Jinga, que passou sua longa vida defendendo a independência de seu país. Apesar de ter negociado
um tratado de paz com os portugueses, ela manteve seu status de rainha de um Ndongo independente.
Suas atitudes motivaram o povo de Jinga, os Gingas, a continuar a resistir à dominação portuguesa.
Tenham orgulho de suas raízes africanas e jamais abram mão de seus direitos como cidadãos
brasileiros”.
colaboraram nesta edição
Ana Lucia Lutterbach é psicanalista, doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, autora de Patu, uma
mulher abismada (Subversos)
Antônio Teixeira é psicanalista, doutor em Psicanálise pela Universidade Paris 8 e professor do
Departamento de Psicologia da UFMG. É autor de A soberania do inútil (Annablume)
Bianca Santana é escritora, jornalista, pesquisadora, doutoranda em Ciência da Informação pela USP,
autora de Quando me descobri negra (SESI-SP)
Gilson Iannini é doutor em Filosofia pela USP, professor do Departamento de Psicologia da UFMG,
editor da coleção Obras incompletas de Sigmund Freud (Autêntica)
Márcia Rosa é pós-doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ e professora adjunta do Departamento de
Psicologia da UFMG
Maricia Ciscato é psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de
Psicanálise

Marina Costin Fuser é socióloga, doutoranda em cinema e estudos de gênero em Sussex. Autora de
Palavras que dançam à beira de um abismo – Mulher na dramaturgia de Hilda Hilst (Educ)
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA, autor
de A democracia no mundo digital: História, problemas e temas (Edições Sesc SP)

Você também pode gostar