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ge Material Cy. i Prarie Drow, is Complen ica/Folhade yb piaties, 8 4s, 2000 1, Revit Pee 8 | a | | 6. CORE INCONSCIENTE bsildinba Baptista Nogueira A despeito de sua condicao econémica, social ¢ intelectual, o negro quase sempre vive um processo de destituigio do seu lugar ou de suas conquistas, porque o olhar do branco ¢ 0 ideal de brancura nao reconhecem como legitimas suas possibilidades ¢ conquistas. ‘Ao receber 0 convite do Departamento de Psicanilise do Insti- tuto Sedes Sapientiae para o debate “Cor e Inconsciente” — exatos quatorze anos depois da apresentacao de meu trabalho de douto- rado pela usp —, Significagoes do Corpo Negro, fiquei extremamente feliz. Finalmente, pensei, poderia fazer a relacao direta sugerida no titulo do debate, inclusive porque fui aconselhada, na época do doutorado, a desistir do titulo original da minha tese, A Cor do Inconsciente”. Talvez uma provocagao. Como o inconsciente no tem cor, argumentou-se, isso poderia causar polémica. Lee era na “cor” da instancia psiquica que eu trabalharia e ‘te ae mente trabalhei —, mas sim na ideia de como 0 Sign ee egra” est inserido, evidente, num arranjo semantic es aa econémico e histérico. Como um “apartheid psiquice rr pviment9 de tacismo, parafraseando o sistema politico de oo odo de nacional que se instaurou e tem funcionado ¢ S° COR E INCONSCIENTE 8 maneira tio eficiente na psique do negro por Separar oy segundo a cor € a raga. Party, Refiro-me ao apartheid psiquico, porque, felizmente sistema politico nao é 0 que nos separa socialmente entre i: 0359 e negros. Eo racismo é crime no Brasil. Nés, os negros, vi uma segrega¢ao silenciosa, o que durante muito tempo ‘Mos oe : a funciongy como se tivéssemos um sentimento persecutorio, uma vez a le preconceito era negado. Sentiamos uma perseguicio sem zig, Isso vem mudando, atualmente, ja que parece existir uma dispo. sigio maior da comunidade cientffica e da sociedade de expor a crueldade de um sistema que se diz “nao racista”, mas que aindg conserva e mantém atitudes racistas. O negro pode ser consciente de sua condigao, das implicagies histdrico-politicas do racismo, mas isso nao impede que ele seja afe- tado pelas marcas que a realidade sociocultural do racismo deixou inscritas em sua psique. Embora juridicamente capazes de ocupar um espaco na sociedade, os negros foram, na pratica, dela excluidos e impedidos de desfrutar de qualquer beneficio social. Foram mar- ginalizados, estigmatizados, marcados pela cor que os diferenciava e discriminados por tudo quanto essa marca pudesse representar. Libertados do cativeiro, mas jamais libertos da condigao de escravos. Por causa desse estigma, os negros tém sofrido toda sorte de discriminagao, que sempre tem como base a ideia de serem seres inferiores e, portanto, nado merecedores de possibilidades socials iguais. Sabemos que as condigdes socioecondmicas € a ideolog# moldam as estruturas psiquicas dos homens. Tal process? nao € imediatamente verificavel, porque as representacoes da estrutut psiquica dos homens nao sao puro reflexo das condig6es objetivs As estruturas psiquicas sfio contaminadas pelas condigdes obje que recebero, no plano inconsciente, elaboragio propria, i tir das quais sao assimiladas e incorporadas, tornando 0s ee cativos e mantenedores de tais condigées. Eo que analitictr ett se da no proceso de identificacdo, em que 0 sujeito os arcial OU totalmente, por meio da imita o objeto amado ou odiado, ou ambas as coisas ¢; reagindo, assim, 20 amor ou a0 ddio pela a simultaneamente riedades do objeto. OrPoracao das pro. Esse mecanismo € 0 que a psicanilise caracteriz i ficagio com a agressor. Dessa forma, 0 agressor € 7 de identi Assim, nao é necessaria a presenca fisica de um firemen: o negro passa a se autorrejeitar. O “ser negro” corres a Porque categoria incluida num eddigo social que se expressa ee le * uma campo etno-semantico em que 0 significante “cor negra’ enceer varios significados. O signo “negro” remete nao 86 a posigées sociai jnferiores, mas também a caracteristicas biolégicas oe aquém do valor das propriedades biol6gicas atribuidas aos brancos. Se 0 que constitui 0 sujeito é o olhar do outro, como fica 0 negro que se confronta com o olhar do outro, que mostra reco- nhecer nele o significado que a pele negra traz como significante? Para além de seus fantasmas inerentes ao ser humano, resta ao negro o desejo de recusar esse significante, que representa 0 sig- nificado que ele tenta negar, negando-se dessa forma a si mesmo pela negacao do proprio corpo. Negar ¢ anular o proprio corpo nos torna o sujeito “outro”, visto que sO existimos como sujeito em relacdo ao outro, a alteridade. Ser sujeito ¢, portanto, ser outro. Eser outro é nao ser 0 proprio sujeito, no caso do negro. oO que somos entio nds, 0S negros? 7 Ser branco, afinal, significa uma condigio generica: ser bane constitui o elemento nao marcado, o neutre da humanidade — em nés, portanto, o desejo de “prancura”. Vista da ae "do olhar do negro oprimido, abrancura transcende qui qu é jdeologia racial, branco, A brancura se contrapde a0 mre negro. A ide al oe Portanto, se funda e se estrutura na condigio Laie i 0 a oe das da brancura como tinica via possivel de ac ; eco ; Embora o negro saiba que sua condica ideal de prancur atitudes racistas e irracionais dos prancos, 0 * S40 ou da incorporacio, \sildinha Baptista Nogueira COR E INCONSCIENTE. 1B ud A | / permanece. A “brancura” passa a ser parametro de pureza a, | " titi ia cientt ca p nobreza estética, majestade moral, er cientifica ete, sing oe : i a manifestacaio io a. © branco encarna todas as eee rants as : a Tazio, ae espirito e das ideias: a cultura, a civilizagao, a propria bumanidg, ae E, evidentemente, confuso 0 proceso psicolégico da Ordem a do inconsciente pelo qual os negros passam. Ser sujeito no out, oP significa nao ser o real do proprio corpo, que deve ser Negady : para que se possa ser 0 outro. Mas essa imagem de si, forjadg ge? na relagao com o outro ~ € no ideal de brancura ~ nao 56 nig oe guarda nenhuma semelhanga com 0 real de seu corpo Pr6prio, erat mas é por este negada, estabelecendo-se ai uma confusio entre que o real ¢ 0 imaginario. Guardadas as devidas proporgées, essa confusao leva o negro eco! diante de um processo muito préximo do que se conhece por de despersonalizacao, que é vivenciado de uma forma crénica como bra consequéncia da discriminagao e que, estranhamente, nao o leva is tim ultimas consequéncias, ou seja, A loucura. Esse rocesso desperso- q a] Pp naliza e transforma o sujeito num autémato: o sujeito se aralisa se i) ) Pi € se coloca 4 mercé da vontade do outro. nar Assim fragilizado, envergonhado de si, ele se vé exposto a rac uma situagao em que nada separa o real do imaginario. As fan- ten tasias estao simultaneamente dentro e fora. E justamente porque cra ° racismo nao se formula explicitamente, antes sobrevive num lug devir interminavel como uma é p ma | Cis est E & g | Coy 2 § : ; &e z 8 Civis” — isso & mai . “acaba por sucumbir a todo uy: ‘provesta te ae ee ° he : § Asua vont, 'M processo inconsciente que, alheio & ad que, E €, Entrar4 em acao, m 124 ‘Ao colocar no papel essas reflexdes acerca di cor negra/corpo negro implicam no inconsciente ae da minha experiéncia clinica como analista, » faco. rocesso de uma relagao analitica Pacient esta sempre atentz as questées que atravess, se presentificam através do meu corpo, um COrpo ne, No limite, permanece o medo de romper a ao sensibilidade humana e me expor como personagem ma da drama pessoal, perdendo de vista a sensibilidade do crea trabalha com sintomas que falam do Paciente, mas t: que escuta. Dentro dessa petspectiva, © negro, a despeito de sua condicio econdmica, social e intelectual, quase sempre vive um processo de destitui¢éo do seu lugar ou de suas conquistas, pois o olhar do branco nunca o vé como merecedor e nao reconhece como legi- timas suas possibilidades e conquistas. Os negros sempre alforriados (dependendo do desejo do outro) seguem jamais libertos de sua condigio de escravos, vivendo eter- namente um terror interno face eficiéncia do terror da ideologia racista, que subsiste no Brasil. Nunca exposto claramente, esse terror permanece escondido covardemente atras do mito da demo- cracia racial que, de modo eficaz, tem assegurado as geragdes 0 lugar de conforto e dominio da populagao branca do pais. Nao € possivel sermos cordatos e cordiais com esse lugar socialmente marcado, no qual somos persistentemente identificados. E pre- ciso que tenhamos acesso a formas de fortalecimento de nossas €struturas psiquicas. Minha tentativa — nesta breve reflex: Complexas quanto as que envolvem 0 pre 0 racismo em relagfio aos negros € aos 20s ~ foi de contribuir, como psicanalista, © ™aneira como a realidade sociocultural do raclamos eda discriminacao se inscreve na psique do negro- idos quea : “0 a partir » analista Negra que, no © negro/analista negra, ‘am esse problema e que analista que ‘ambém dele, Jo acerca de questoes tio adiscriminagao direitos sociais € ah com a exploragae ¢ la do preconceito conceito, COR E INCONSCIENTE \sildinha Baptista Nogueira " & COR E INCONSCIENTE Como profissional (e, particularmente, como negra), minha i é « escuta sempre foi assim direcionada, até porque me “parece i ina¢ao nao sao alheias as psicanélj z oder e dominagao nao s seg as estruturas de p e dom praticadas nos consultérios”. Referéncias Bibliograficas NocuerRa, Isildinha Baptista. Significacaes do Corpo Negro. Tese de doutorado, Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, Sio Paulo, Ipusp, 988. Disponivel em: . Acesso em: 13 jan. 2016. : scHwarcz, Lilia Moritz. O Espetdculo das Ragas: Cientistas, Instituigoes e Questio Racial no Brasil, 1870-1930. Sio Paulo: Companhia das Letras, 2001. sopre, Muniz. Claros e Escuros: Identidade, Povo e Midia no Brasil, Petrépolis: Vozes, 2000. Venrunt Gustavo; TuRRA, Cleusa (orgs.). Racismo Cordial, a Mais Completa Anilise Sobre o Preconceito de Cor no Brasil. Sie Paulos Atica/Folha de S.Paulo/Datafolha, 1995,

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