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costa porto o sistema.

sesm.a.riai no brasil
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Brasil

EDITORA
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
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COLEÇÃO TEMAS BRASILEIROS

V. 1. — O Sistema Sesmarial no Brasil, Costa Porto

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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA 'y
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Conselho Diretor: <?


Abílio Machado Filho, Amadeu Cury, Aristides Azevedo Pacheco Leão, Isaac Kers-
tenetzky, José Carlos de Almeida Azevedo, José Carlos Vieira de Figueiredo. José
Vieira de Vasconcelos, José Ephin Mindlin. 7
Reitor: José Carlos de Almeida Azevedo.

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EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA <h

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Conselho Editorial:
Afonso Arinos de Mello Franco, Cândido Mendes de Almeida, Carlos Henrique
Cardim, Charles Sebastião Mayer, Geraldo Severo de Souza Ávila, João Ferreira,
José Maria Gonçalves de Almeida Jr., Octaciano Nogueira, Orlando Luiz de Souza
Fragoso Costa, Vamireh Chacon de Albuquerque Nascimento, Walter Costa Porto. &

Presidente: Carlos Henrique Cardim. ã

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UNIVERSIDADE DE FORTALEZA
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ÍNDICE

Introdução 3
1 Preliminares 11
— O mercantilismo 12
— A «Meia Lua» 13
— A epopéia do cxpansionismo lusitano 14
— Portugal «versus» Castela 15
2 O Brasil Esquecido 18
— O Perigo francês 19
—t As donatárias 19
3 O Regime Sesmarial 21
4 O Brasil «Redescoberto» 23
5 — A Repartição da Conquista 24
6 — Em Tempos de El-Rei D. Fernando 26
7 A Primeira Lei de Sesmarias 27
8 Que Eram «Sesmarias» 30
9 — Enigma «Linguístico» 30
10 Transplantação Fatal 33
11 O Brasil e a Ordem de Cristo 35
12 O Padroado 38
13 O Erro do Sesmarismo Colonial 42
14 Desfecho Fatal 45
15 Latifúndio e Pequena Propriedade 48
16 Sístoles e Diástoles 52
17 Canavial e Latifúndio 53
18 O Pastoreio 57
19 Pecuária, Solução Fatal ..................... 65
20—0 Problema das Áreas, nas Sesmarias 66
21 — As Primeiras Limitações 67
22 — Os Dramas do Reino, no Século XVII .......... 69
23 — Política de Limitação das Sesmarias ............ 70
24 — Legislação Geral ..................... s.-. 74
25 Oscilando Entre Excessos 76
26 O Funcionamento do Sistema Sesmarial na Colónia
27 O Dízimo 78
28 — Luta pela «Imunidade» ...................... 80
29 — O Dízimo e as Ordens Religiosas 85
30 — Carta Régia Enigmática 91
31 Peculiaridades do Sesmarismo Colonial 93
— Aproveitamento 94
— Aproveitamento em prazo determinado 95
— Registro da Carta de Data 97
— Confirmação 98
— Imposição do foro 06
— Medição e demarcação -• 10
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UNIVíHSIOADE. 0E FORTALEZA
biblioteca CENTRAL
2 Costa porto

52 Os Direitos de Terceiros 113


55 O Ciso dos Palmares 116
54 — Audiência das Câmaras 119
55 — Limites à Apropriação Privada 121
56 — As Terras das Vilas 125
37 Terras do Interesse da Coroa 129
— Terras de marinha 129
— Terras do «interesse» da Coroa . . . . 133
58 — Legislação Desordenada 134
59 — 0 Alvará de 5 de outubro de 1 795 . . . . 136
40 — A Lei 601, de 18 de agosto de 1850 . . . 139
41 — 0 Quadro Fundiário Brasileiro de 1850
42 — A Situação do Posseiro da Lei 601 . . . . 146
|45 — A Processualística Sesmarial 149
44 — Demarcação e Posse 156

r
I
INTRODUÇÃO

Na análise da formação nacional tem-se, em regra, enfa­


tizado apenas os problemas históricos, económicos, políticos e
sociais, e aí estão, além da contribuição de historiadores como
Varnhagen, Rocha Pombo, João Ribeiro, Capistrano de
Abreu, Rodolfo Garcia, Taunay, Rio Branco, os estudos de
Lisboa e de Joaquim Nabuco (talvez os dois maiores pensadores
políticos do século passado) ou a obra opulenta de Tavares
Bastos, Alberto Torres, Oliveira Viana. Gilberto Freyre, Caio
Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré e José Antônio Gonçalves
de Melo, para lembrar alguns poucos, entre muitos.
Um aspecto de nossa evolução, entretanto, quase não me­
receu, até aqui, estudo sério: o da posse e ocupação da terra.
O problema fundiário.
Quando, em 1534, D. João III resolve atacar a coloniza­
ção em moldes definitivos — em grande parte sob a ameaça
do filibusteiro francês, que teimava em marinhar pelas costas
luso-americanas, no tráfico do «pau-brasil» o que lhe aco­
de, levando em conta as sugestões do Dr. Diogo de Gouveia, é
dividir a conquista em largos tratos territoriais, quinhoados a
vassalos que os dirigissem e defendessem, defendendo o pró­
prio domínio da Coroa: o sistema «donatarial».
As capitanias são distribuídas aos donatários, de «juro e
herdade», para eles e sucessores, mas, na verdade, trata-se de
poderes «políticos», de jurisdição, de «imperium», porque o
solo — tirante aqueles nastros de dez léguas dados a cada ca­
pitão como coisa sua, individual, exclusiva — mandam as car­
tas e os forais seja repartido entre os moradores, «livre, sem
foro, nem tributo algum», salvo o «dízimo de Deus», pago ao
Grão-Mestrado da ordem de Cristo, ao tempo exercido pelo
Monarca. O velho sistema das sesmarias, imaginado para o
Reino, em 1375, em tempos de D. Fernando.
4 Costa Porto

Sabe-se, pelas Ordenações do Reino — as codificações


Afonsinas, Manuelinas e Filipinas em que consistia, em
suas linhas gerais, o sistema sesmarial.
Como, porém, funcionou na colónia? Que normas, que
disciplinamento jurídico, que «comportamento», lhe marcam
a evolução no mundo americano? Que frutos, mediatos ou
imediatos, próximos ou remotos, diretos ou indiretos, tiveram
as sesmarias, no regime fundiário brasileiro?
l! Muito pouco se sabe, a não serem noções vagas, bebidas
de oitiva e seu tanto confusamente, em torno do nosso sesma-
rialismo, porque, neste ponto, fragílima é a contribuição dos
pesquisadores, no passado e no presente.
Em ordem cronológica — e também de valor — , talvez o
melhor estudo sobre o assunto seja a «Memória sobre as Ses­
marias da Bahia» — de que se conhecem uns fragmentos, pu­
blicados na Revista do Instituto Histórico Brasileiro — vol. 12,
dezembro de 1841 — sem indicação do autor, apenas dizendo-
se ter sido encontrado o manuscrito na Biblioteca de D. Fer­

í li nando José de Portugal, Marquês de Aguiar e penúltimo Vice-


Rei do Brasil, a quem Varnhagen e Rodolfo Garcia atribuem,
expressamente, a paternidade do pequenino ensaio (Hist. Ge­
ral III, secção XXXVII, pág. 328, nota 92).
D. Fernando José de Portugal e Castro, depois Conde e
Marquês de Aguiar, foi Governador Geral do Brasil, de 18 de
abril de 1788, até 23 de setembro de 1801, quando assumiu o
Vice-Reinado, no Rio de Janeiro. Incumbido de distribuir ter­
ras de sesmaria e em face do tumulto em que mergulhara o
disciplinamento do sistema, teria procurado, à base de investi­
gações nos arquivos do governo, ordenar ou metodizar as nor­
mas então vigentes, analisando a profusa legislação, balbur-
diada e caótica.
Que a «Memória sobre as Sesmarias da Bahia» haja sido
redigida por um governador é indiscutível, pois o autor fala
em «dois manuscritos... Que mandei copiar, governando
aquela capitania». E que este governante haja sido D. Fernan­
do também parece lícito inferl-lo de episódio lateral relevante.
Quando, em 1677, nomeia Roque da Costa Barreto para Go­
vernador Geral do Brasil, el-Rei D. Pedro II traça-lhe, no
capítulo 24 do Regimento, normas especiais para a distribui­
ção de terras de sesmarias, dado que não bastavam os escassos
O Sistema Sesmarial no Brasil 5

princípios das Ordenações do Reino e o tumultuário


disciplinamento marginal subsequente. Mas nos fins do século
17 — a partir, sobretudo, de 1695 — outras leis foram baixa­
das, inovando o processo de distribuição de terras, de sorte
que as instruções de 1677 findaram superadas e, daí, «em
cumprimento da Provisão do Conselho Ultramarino, de 30 de
julho de 1796», haver D. Fernando elaborado «Várias Obser­
vações» ao Regimento, alinhando as «diversas ordens» que «se
expediram depois, principalmente no governo de D. João de
Alencastro, a respeito do comprimento, largura, foro que de­
viam pagar, confirmação e outros artigos tocantes a essa maté­
ria» (Documentos Históricos, vol. 6 págs. 366/372 )
O autor das «Várias Observações» é, fora de qualquer
contestação, o Marquês de Aguiar, pois expressamente se diz
foram «feitas por D. Fernando José de Portugal, Vice-Rei e
Capitão General de Mar e Terra do Brasil». Ora, cotejando-as
com a «Memória», deduz-se, sem custo, que o autor de ambas
é o mesmo: idêntico o estilo, o mesmo método na exposi­
ção, quase as mesmas palavras, os mesmos erros e equívocos:
porque, embora redigidas à base de elementos constantes dos
arquivos — frequentes as afirmações «li», «vi», «achei nos ar­
quivos desta secretaria» — , ambos os trabalhos incidem em
enganos, que a documentação moderna permite corrigir.
Como documentário, alicerçado em dados oficiais, a «Me-
niória» e as «Várias Observações» constituem o melhor roteiro
que, no passado, se escreveu sobre as sesmarias brasileiras.
Alguns elementos esparsos pode o analista encontrar nas
«Memórias Históricas do Rio de Janeiro», do Mons. José de
Souza de Azevedo Pizarro.
O plano inicial de Pizarro fora escrever a «História do
Bispado do Rio de Janeiro»; mas, aproveitando os ócios de vi­
da repousada e tranqiiila de alto dignitário da Igreja, depois
de recolher, ao longo de 40 anos, material riquíssimo, nos
«tombos» do Rio, de outras dioceses e mesmo do Reino, de tal
modo se assenhoreou de elementos, que resolveu ampliar a
obra, acabando por nos deixar «dez tomos maçudos, repletos jflKi
de informações heterogéneas», nas quais, pondera Rubem de '
Morais, «há de tudo, até erros». \
ff

6 Costa Porto

Os antigos se mostraram muito severos com Pizarro, a co-


meçar de Varnhagen, que acentua registrar-lhe a obra «para
não parecer omisso», acoimando-a de «<confusa, difusa e até
obtusa». Pelo menos, «confusa e difusa » é sua contribuição
quase «vultosa»: faltando-lhe o «faro» do historiador, a visão,
a intuição, o espírito de síntese, e o segredo de fazer história,

I relacionando causas e efeitos.


Seu estilo, um horror: derramado, cansativo, empolado,
tumultuado, exposição balburdiada e sem método, misturando
fatos sem nenhuma interligação, de sorte que, sem índice re­
missivo, se torna impossível descobrir onde trata de cada as­
sunto.
Modernamente, entretanto, desaparecidos os antigos ar­
quivos de que se ãbebeirou, os pesquisadores se voltam para as
«Memórias», onde, aqui e ali, repontam informações preciosas,
inclusive sobre sesmarias, embora em exposição caótica, de
cambulhada, desordenadamente.
i ■ Felisbelo Freire, nos começos do século, idealizou uma
«História Territorial do Brasil», em cinco volumes, e cujo «as­
sunto principal» seria «a génesis e evolução do povoamento pe­
lo território nacional e todos os fatos que se prendem direta
ou indiretamente a ele».
«O primeiro a querer penetrar nesta mata escura e espes­
sa», segundo confessa — pois «os esforços dos nossos historia­
dores nunca convergiram para esse lado de nossa história, de
maneira que não existe, em nossa literatura, um trabalho so­
bre o assunto» —, depois de «um estudo de quase vinte anos
nas fontes puras de ensinamento histórico», finda, modesta­
mente, proclamando que o seu trabalho «está longe de ser
obra completa e perfeita»: de resto, tanto quanto sabemos, a
obra não foi além do l.° volume — o estudo das sesmarias da
Bahia, Espírito Santo e Sergipe — e, trabalho de mérito, na
realidade se ocupa mais em apontar a série de cartas de datas,
acompanhando progressivamente a ocupação do solo, sem, en­
tretanto — a não ser de raspão e não raro com equívocos —,
tratar da legislação, das normas, da prática no funcionamento
do sistema.
De 1909 é o primeiro volume dos «Apontamentos para a
História Territorial da Paraíba», de João de Lira Tavares,
que, sob certos aspectos, lembra a «História» de Felisbelo: na
O Sistema Sesmarial no Brasil 7

verdade, o que nos conta, à luz de pesquisas em velhos arqui­


vos locais, é a marcha povoadora da Paraíba, embora precedi­
da de introdução calcada, visivelmente, na «Memória» do
Marquês de Aguiar, mas. sem favor, uma das melhores sínte­
ses sobre o assunto.
Contemporâneo de Lira Tavares, Irineu Jóffily nos dei­
xou, nas «Notas sobre a Paraíba», dados sugestivos sobre as
sesmarias regionais.
Estudos ligeiros conhecemos, ainda, alguns: o excelente
ensaio de José Honório Rodrigues, nas «Notícias de Vária His­
tória»; informes interessantes no «Roteiro do Piauí», de Carlos
Eugênio Porto; em «O Devassamento do Piauí, de Barbosa Li­
ma Sobrinho; análises sugestivas de José Eduardo da Fonseca,
in «Revista Forense», vol. 38, págs. 267 e segs.; de Odilon
Navarro, ib. vol. 84; do Desembargador Vieira Ferreira, ib.
vol. 113; de Messias Junqueira, in Direito, vol. IX, pág. 153; de
Edmundo Zenha, in «Revista do Direito Administrativo», vol.
28; de M. Linhares de Lacerda, in «Tratado das Terras do
Brasil», vol. 1.
Talvez a contribuição mais completa seja a monografia do
Prof. Cirne Lima — «Pequena História Territorial do Brasil,
Sesmarias e Terras Devolutas» — análise jurídico-histórica do
instituto e, de modo geral, de toda a nossa formação fundiária.
Salvo a «Pequena História», de Cirne Lima, a maioria dos
estudos se constitm de esboços sumários, apenas aflorando o te­
ma complexo, passando-se ao largo sobre ângulos específicos da
mais alta relevância.
A história das sesmarias, essa ainda não foi escrita.
E ocioso realçar que estas notas descosidas não visam a
«preencher» a lacuna. Ao lado das nossas limitações pessoais,
há levar em conta a dificuldade de consultar fontes, na carên­
cia franciscana dos nossos arquivos e bibliotecas da Província,
bastando atentar em que, em esforço penoso de vários anos,
nunca pudemos ir além das consultas de segunda mão... E es­
tas, ainda assim, vasqueiras e pobres.
De fato, tudo, na Província, emperra a pesquisa histórica:
não há fontes, não há elementos, não há dados. E a história se
funda em documentos, dentro da lição.de Seignobos: «pas des
documents, pas d’histoire». Depois de 1695, derrama-se, profu-

8 Costa Porto

sa, a legislação reinol, esparsa, tumultuâria, não raro conflitan­


te, e quase não nos foi possível manusear as coleções de leis do
Reino, que, de resto, nunca foram codificadas oficialmente,
raras algumas coleções privadas, e na Província, via de regra
incompletas.
O objetivo destas «notas» é, assim, muito singelo.
Como ponto de partida, apanhamos o sistema sesmarial tal
qual o idealizou el-Rei D. Fernando, em 1375; seguimo-lo, na
Colónia, com a aplicação de acordo com os princípios das Or­
denações Manuelinas então vigentes, acentuando as inovações
) que, desde 1549, com o Regimento dos Provedores, foram sen­
i do introduzidas.
E, única originalidade de que se reveste este trabalho,
procuramos acompanhar-lhe o funcionamento na prática, à luz
da parca documentação que nos foi dada manusear.
Na probreza de tais fontes, alguns elementos nos foram de
grande valia:
a) fragmentos da «Crónica do Mosteiro de São Bento de
Olinda», publicados na «Revista do Instituto Arqueológico de
Pernambuco», vol. XXXV, págs. 37 e segs.;
b) alguns «Manuscritos» do mesmo Mosteiro, publicados
no vol. XXXVI, págs. 117 e segs., e vol. XXXVII, págs. 155 e
segs. da referida revista;
c) o «Tombro do Mosteiro de São Bento», que forma o
vol. XLI da R do Instituto;
d) a «Documentação Histórica Pernambucana», volumes
I, II e IV, coleção de cartas de datas, desde junho de 1689, ex­
celente publicação da Biblioteca Pública do Estado de Pernam­
buco, sob a direção de Olímpio Costa Júnior;
e) o «Tombo do Mosteiro de São Bento da Paraíba», pu­
blicado na «Revista do Arquivo Público de Pernambuco», sob a
direção de Jordão Emerenciano;
f) material espalhado, tumultuariamente, nos «Doeu-
mentos Históricos», do Ministério da Educação.
Principalmente a documentação que reúne as cartas de
sesmaria oferece material rico no tocante à prática do sistema,
esclarecedoras muitas informações de procuradores, de prove­
dores, de escrivães; freqtientes alusões a normas régias, permi-
O Sistema Sesmarial no Brasil 9

tindo, não raro, concertar lições da doutrina, como sucede com


a carta de junho de 1711, sobre sucessões de Ordens religiosas
nas sesmarias.
A legislação e a doutrina dizem como, na teoria, se disci­
plinava o sistema: as cartas mostram como se executava, na
prática, a concessão de datas.
Através da «Documentação Histórica Pernambucana», por
exemplo, muita coisa se aclara e completa: problemas relativos
ao «foro», a que lei posterior submeteu as sesmarias; exigências
de confirmações régias; de medição e demarcação; de limitação
das áreas das datas; a evolução do instituto das terras de mari­
nha que, «regalia real», não se podiam distribuir senão me­
diante autorização do Monarca; o respeito a «direitos de tercei­
ros»; e outros muitos detalhes significativos.
Tropeçando, a cada passo, com aqueles «ariscos, falta d’á-
gua, caatingas e outros óbiços», de que fala um documento da
época (Doc. Hist. I, pág. 136), procuramos, apenas, esboçar
uma «tentativa de roteiro», fixando as linhas mestras gerais da
marcha do sistema sesmarial na Colónia, traçando o esqueleto
vago que, retocado pelos mestres, poderá servir de vereda para
a futura história do sesmarialismo colonial.
C. P.
• A História territorial do nosso pais começa com um para­
doxo: antes de descoberto o Brasil, suas terras já pertenciam
a Portugal*. (Messias Junqueira, «Terras Devolutas», in Di­
reito. vol. IV, pâg. 153).

1 PRELIMINARES

«E asy segujmos nosso caminho por este mar de lomgo, ataa terça fei­
ra doitavas de pascoa, que foram 21 dias dabril, que topamos alguús
synaes de terra... os quaes herã muyta camtidade dervas compridas, a que
os mareantes chamâ botelho e asy outras a que tam bem chamã rabo das-
no. E a quarta feira segujmte pola manhã topamos aves que chamã fura-
buchos e neste dia... ouvemos vista de terra, premeiramente dhum grande
monte muy alto e redondo e doutras serras mais baixas... e de terra chãa
com grandes arvoredos, ao qual monte o capitam pos o nome o Monte
Pascoal. E a terra — a Terra da Vera Cruz».
É assim, nesta narração singela, que Pero Vaz de Caminha, integrante
da frota de Pedrálvares Cabral, ou Gouveia, (1) dá conta a el-Rei D. Ma­
nuel do descobrimento do Brasil.
Descobertas em abril de 1500, as terras do Brasil, entretanto, já per­
tenciam a Portugal por força do Tratado de Tordesilhas, donde aquele
«paradoxo», bem apanhado por Messias Junqueira, fenômeno, de resto, de
fácil explicação, quando se analisa o expansionismo europeu, dos fins do
medievalismo.
Com a morte de Alexandre Severo, em 235 da era cristã, implantam-
se as raízes da «anarquia militar», cujo desfecho seria a ruína do Império
romano, talado pelas hordas bárbaras que, de toda parte, investiram con­
tra o frágil e decadente arcabouço alicerçado pelas «águias» invencíveis; e,
sobre os escombros do vacilante poderio dos visigodos, godos, ostrogodos,
suevos, francos, alamanos, germanos, vândalos, etc., vão-se estruturando
os perfis dos chamados «Estados modernos», emergindo do magma incon-
solidado, os futuros reinos de França, Espanha, Portugal, as «repúblicas»
italianas — nem mais a velha tradição greco-romana da «polis» e da
«urbs», nem a «basiléia», do decadente império romano do Oriente.
Irrelevante, porém, o poder dos reis — meros «primi inter pares» —, o
que marca e evolução do organismo estatal é a força dos «barões feudais»,
muita vez mais poderosos do que os próprios monarcas.
(1) Pedrálvares. sentencia Assis Sintra: («Serdes Históricos», págs. 67-68), filho segundo
do ramo dos Cabrais, não tinha, quando descobriu o Brasil, direito ao apelido, exclusivo do
irmão morgado, cabendo-lhe, desta sorte, o cognome de Gouveia. E somente depois da morte
do herdeiro, em 1508, teria passado a usar o de Cabral. No comum, é verdade, encontramo-
lo, nos documentos da época, apelidado, apenas, Pedrálvares, ou Pedrálvares de Gouveia;
mas já na carta de 28 de agosto de 1501, comunicando aos reis Católicos o «adiamento» de
Vera Cruz, diz D. Manuel náo lhes haver escrito antes, porque «ainda não era vindo Pedro
Alvares Cabral, capitáo da frota que lá tinha enviado» (His. da Col. III, pág. 165). Quando,
portanto, descobriu o Brasil, Pedrálvares já usava o apelido de Cabral.
I ,H I

12 Costa Porto

Ora, uma das notas marcantes do feudalismo medieval é a


inexistência do comércio organizado, vivendo-se aquela «economia fecha­
da», do conceito do belga Henri Pyrenne.um regime de autarquia desapo-
derado, em que cada castelo terá de bastar-se a si mesmo, exercendo seve­
ra hipertrofia sobre os mofinos aglomerados urbanos, constituídos de «bur­
gueses» — moradores dos burgos — contra os quais se abate a manopla de
ferro dos castelos ou das sedes episcopais, dos mosteiros e abadias opulen­
l tas e ricas.

O mercantilismo

A Idade Média sempre se mostrou hostil ao mercantilismo: o comércio


é atividade vista com maus-olhos, profissão de judeu, de «cristão novo», de
gente sem classificação, mentalidade, de resto, que vinha do mundo
pagão, quando Mercúrio, deus do comércio, era, igualmente, o «deus dos
ladrões».

II Vivamente impregnado do sentido cristão da vida, o medievalismo


tinha horror ao juro, à onzena; fiel, neste ponto, à velha mentalidade do
antigo direito romano, quando o «mutuum» era, de sua natureza, negócio
|i entre amigos, entre parentes, entre membros da mesma «gens» ou da mes­
ma família, não dando lugar à usura, repugnando admitir-se a frutificação
do dinheiro, donde a cobrança de ágios somente se tornar legítima se
1L. mediasse pacto lateral, dizendo Africano, jurista do segundo século de
Cristo, que «pecuniae creditae usuras, nisi in stipulationem deductas, non
deberi» (D. 19, 5, 24).
E, admitido no campo do direito civil, o juro encontrava a repulsa do
Direito Canónico, no princípio do «mutuum date, nil inde sperantes», a
má vontade contra a mercancia traduzida na regra das Decretais do «nul-
lus christianus potest esse mercator», orientação de que a velha linguagem
portuguesa ainda conserva os traços, derivando, do étimo latino «lucrun»,
a palavra «lucro» — fruto honesto do negócio — mas, também,, «logro»,
resultado da trapaça, do engano, da fraude.
E, até certo ponto, o português moderno, no qual «tratante» —
outrora aquele que se dedicava ao comércio, ao «trato» - passou a ter
sentido pejorativo, nenhum comerciante tolerando, de boa face, se lhe
chame «tratante»...
Os fins da Idade Média, porém, assinalam o começo da modificação
desta mentalidade. Aquela «economia fechada», «autárquica», auto-
suficiente dos antigos castelos, sofre duro impacto com o ascender das mo­
narquias, unindo-se reis e «burgueses» contra a prepotência dos barões feu­
dais, e, à medida que se firma a força do trono, vão-se alargando as nego­
ciações e as trocas, os próprios Soberanos pondo-se à frente da atividade
comercial, visando ao enriquecimento, entontecidos pela sede do ouro, do
dinheiro, das riquezas materiais.
Um dos fatores da grandeza de Roma fora o comércio.
O Sistema Sesmarial no Brasil 13

Aglomerado modesto de agricultores e pastores, reunidos em tomo do


«Septimontium», a Roma da Realeza e dos começos da República não
passa de mísera expressão geográfica, findando seus limites nas margens do
Tibre. Em seguida vem o espraiamento ao longo do «solo itálico», no
terreno, miúdo, da Península, até que as lutas contra Pirro despertam as
ambições dos velhos moradores da Urbs, cujos horizontes se alargam com
as Guerras púnicas, o aniquilamento de Cartago assegurando-lhe o
domínio do Mediterrâneo e o extravasamento através do mundo oriental.
Aproveitando os horizontes que, ao comércio, rasgara o imperialismo
de Alexandre da Macedônia, abrindo-lhe duas importantes portas maríti­
mas — «a do golfo pérsico, Eufrates e Síria, o futuro império de Seleuco, e
a do golfo arábico, Nilo e Egito, o reino de Ptolomeu» —, Roma, domi­
nando o mundo conhecido, estabeleceu relações estreitas entre Europa,
Ásia e África, afinal quase de todo suspensas com o cataclisma Bárbaro
que esbarrondou o Império romano.
Quando a nova Europa começa a consolidar-se, o intercurso comercial
com o Oriente sofre, de início, os entraves da hegemonia islâmica, mas,
mesmo na fase áurea do califado, a diferença de crenças não atrofia o in­
tercâmbio que reponta triunfante, intensificando-se, paradoxalmente, com
as Cruzadas, quando a Europa cristã luta por reconquistar os Lugares San­
tos da Palestina, a pretexto de defender a fé, mas, na verdade, não raro,
para granjear riquezas, resultantes do comércio entre os dois mundos.
Ora, enquanto, no resto da Europa, se travava a luta entre o feudalis­
mo e o trono, e entre a Igreja e os Monarcas absolutistas, várias cidades
organizavam «ligas» de defesa contra as Coroas e de incremento dos negó­
cios com o Oriente, salientando-se as «repúblicas» italianas, Veneza, Géno­
va, Florença, Milão — ou alemãs, como Hamburgo, Bremen, etc.,
cujos navios percorriam o Mediterrâneo, de todo desvendado pelos marujos
do tempo, avezados a visitar-lhes as costas africanas — Marrocos, Argélia,
Tunísia, Trípoli, Egito indo até a Palestina e à Ásia Menor, guiados por
mapas rudimentares — os «portulanos» —, em que se traçavam os roteiros
aos navegantes do tempo.
O islamismo, embora inimigo da fé cristã, não entravou as relações da
Europa com a Ásia, antes as desenvolveu e estimulou: caravanas de merca­
dores traziam do Levante as preciosidades locais — sedas, damascos, tape­
tes, porcelanas, perfumes, especiarias, canela, cravo, pimenta, gengibre,
pérolas, marfim, ébano, madeiras, tecidos, etc., concentrando-as nos em­
pórios costeiros, onde as apanhavam as frotas européias — no Mar Negro,
na Síria, no Egito, conduzindo-as para o Continente, processando-lhes a dis­
tribuição pela «grande rota comercial terrestre», que ligava o Mediterrâneo
ao Mar do Norte, partindo do Adriático, através dos Alpes, os cantões
suíços, os grandes empórios do Reno, até o Reno e o Mar do Norte.
5*
A «Meia Lua»
4
Vindos, porém, dos planaltos asiáticos, os turcos estabeleceram-se na
Ásia Menor, no século 12, e cada dia mais fortalecidos, com um exército
aguerrido de cavaleiros — «spahis» — e lanças, e de uma infantaria de fa-

] fU&àvtà WtlSíj_
1 UMIVCiXSí&ADÊ BE FORTALEZA
BIBLIOTECA CENTRAL I
14 Costa Porto

náticos — os «janízaros» —, começam a ameaçar o Oriente, tomando


Galípoli em 1356 e depois Andrinopla. Derrotando, em Ancira, a Bajazet,
que, em Nicópolis, batera os exércitos cristãos, Tamerlão detivera o avan­
ço turco, mas por pouco tempo: em 1453, Mohammed II consegue vencer
a resistência de Constantino XII, Dracosés, e toma Constantinopla, pondo
fim ao Império romano do Oriente.
Já então se processara ao menos o esboço de funda mutação nas rotas
comerciais europeias. Com o avanço da arte de navegar, o continental não
mais se limitava à velha «rota terrestre» interna — do Mediterrâneo e
Adriático, rumo ao Mar do Norte —, mas contornava o continente pelo
estreito de Gibraltar, com o que se desloca a «primazia comercial» até en­
tão exercida pelós territórios centrais e que, de agora em diante, passará
para aqueles países costeiros — a Holanda, a Normandia, a Inglaterra, a
Bretanha, Portugal e Espanha. Mas o rumo dos navios continuará substan­
cialmente o mesmo: as frotas, bordejando o Atlântico, a oeste do continen­
te, mergulham em Gibraltar, correndo o Mediterrâneo, única via aberta
ao intercurso com o Oriente — o «mare nostrum» —, sem mistérios, sem
■ I : perigos, acessível e acolhedor. O que então se ousava era investir contra o
Atlântico, o «mare clausum», o «mar tenebroso», assombrado o europeu
com seus segredos e traições, temendo-se, sobretudo, o ponto extremo do
sul da África — o «Cabo das Tormentas», vulgarmente chamado «Cabo
Não», ou porque ameaça aos navegantes — «quem passar o Cabo Não tor­
nará, sim ou Não», seria o brocardo do tempo — ou porque o fim do
mundo habitado — «depois deste Cabo não há gente nem povoação algu­
ma», conforme se sentenciava, de acordo com as doutrinas de Ptolomeu,
J então dominantes.

A epopéia do expansionismo lusitano

Retalho misérrimo de terra, citado, ao poente, pelo Atlântico, e a


leste e sul pela Espanha, Portugal sente, desde muito cedo, a atração do
mar, surgindo a modos de uma Fenícia européia. Originariamente pobre
nesga de solo, condado de Portus Callis — doado, em 1094/ao Conde D.
) Henrique de Borgonha, casado com a princesa espanhola, D. Teresa —
consegue tomar-se independente, quando D. Afonso Henriques alcança,
sobre a mãe e os aliados de Castela, a vitória do Campo de Ourique, sendo
aclamado Rei em 1140.
Com maiores ou menores vicissitudes, a dinastia de Borgonha prosse­

I gue até D. Fernando, o Formoso, após cujo falecimento o povo se levanta,


aclamando rei ao Mestre de Avis, sob o nome de João I, que, vencendo os
espanhóis em Aljubarrota, em 1485, irá iniciar, depois de feitas as pazes
com os vizinhos, a «jornada africana», gloriosamente coroada com a
conquista de Ceuta, em 1415.
Filho de João I, o Infante D. Henrique, integrante da «ínclita
geração», dinamiza os estudos de náutica, reunindo em Sagres navegado-
I res, cosmógrafos, geógrafos, mestres nas artes de marear; e do promontório

ks
O Sistema Sesmarial no Brasil 15

famoso é que irá surgir a legião dos bravos, cujo destemor permitiu a Portu­
gal o lugar de pioneirismo, no esforço do «novos mundos ao mundo irão
mostrando».
O sonho do Infante e da gente de Sagres é revolucionário: em vez de
continuar percorrendo a velha rota do Mediterrâneo, sofrendo a concor­
rência de italianos e de mouros, na busca das índias, investir contra o
«Mar Tenebroso», atingindo o Oriente, contornando a África — o «périplo
do sul» —, mercê do qual procura «empresas em que não encontrasse con­
correntes mais antigos e já instalados»: a tentativa de buscar o Levante,
trilhando os «mares nunca dantes navegados» e em que, entre 1418 e 1433,
marujos lusitanos descobrem Porto Santo, a Madeira, os Açores e o Boja­
dor, detendo-se, porém, diante do «nec plus ultra» — o Cabo Tormentório
—, em marcha lenta, calma, sem açodamentos, porque o Mediterrâneo
continuava permitindo largo intercurso com o Oriente.
Quando, entretanto, os turcos tomam Constantinopla, em 1453,
agrava-se a situação.
Também o «mar interior» se transforma em «mare clausum», a
Europa sofre a ameaça de asfixia, pela perda do comércio levantino, e
urge encontrar, sem mais tardanças, novo caminho para as índias,
reacendendo-se o antigo sonho do Infante e dos homens de Sagres — o do
«périplo africano».
E tão forte pec»'” a pressão do mercantilismo sustado que, em 1486,
Bartolomeu Dias dobra o Cabo das Tormentas — que D. João II ordena se
chame, a partir de então, «Cabo da Boa Esperança», porque, dizia, «agora
hei boa esperança de encontrar o caminho das índias».
E não se enganava: em 1497, Vasco da Gama, retomando-lhe a mar­
cha, dobra, ainda uma vez, o Cabo Não, atinge Moçambique, Mombaça e
Melinde, e chega a Calecute em 1498, encontrando, assim, nova rota para
as índias, assegurando o êxito do «périplo africano», ou «do sul» — a idéia
de chegar ao Oriente, costeando o sul da África.

Portugal «versus» Castela

Enquanto isso, rumando para o Ocidente em busca do Oriente,


Cristóvão Colombo, genovês a serviço de Castela, em viagem pontilhada de
dramas e perigos, finda descobrindo a América, em 1492.
De regresso à Espanha, Colombo, a 9 de março de 1493, toca em Lis­
boa, e, visitando D. João II, para lhe comunicar o descobrimento de novas
terras ao Poente, ouviu do monarca lusitano a afirmação seca e categórica:
«todas me pertencem».
E havia fundamento para tal assertiva.
Na concepção do medievalismo, o domínio territorial do mundo
encarava-se dádiva de Deus, senhor do Universo, representado na terra
pelos Papas, vigários de Cristo e chefes da cristandade. «Naqueles tempos,
observa João Francisco Lisboa, nada se tinha por acabado e perfeito se a
religião não o consagrava; e, como além disso, vogava a idéia de que todos
16 Costa Porto

os reinos eram sujeitos ao Papa... os reis e conquistadores procuravam


sempre assegurar, nas concessões e proteção da Santa Sé, a legitimidade
dos seus descobrimentos e domínios», donde se haverem os romanos
pontífices arrogado o direito de distribuir terras, como se lhes fossem donos
absolutos.
De certo, havia quem divergisse desta orientação, mesmo teólogos ca­
tólicos, como Francisco de Vitória, quando escrevia: «Papa non est
dominus civilis aut temporalis totius orbis, proprie loquendo de potcstate
civili. Et quod dixit Dominus Petro — Pasce oves meas — satis ostendit es­
se potestatem in spiritualibus, non in temporalibus». Tratava-se, porém,
H de vozes isoladas, que não influíam na mentalidade, velha de séculos, por­
que vinha de épocas recuadas a praxe de os Soberanos Pontífices
distribuírem terras, como se foram património seu: já em 1092, na verda­
de, Urbano II doara a Córsega ao Bispo de Pisa/Adriano IV, pela bula
«Laudabiliter», dera a Irlanda ao Rei da Inglaterra, como Xisto IX cede­
rá, mais tarde, as Canárias aos Reis de Espanha.
Depois que, no Reinado de D. João I, iniciou o espraiamento
marítimo, Portugal terá sido das Nações mais favorecidas pela generosida­
de dos Pontífices romanos: Martinho V — Pontífice de 1417 a 1431 —
concedera-lhe «todas as terras que se descobrissem pelo mar Oceano, desde
o Cabo Bojador, até as índias, inclusive». (Anais Pernambucanos, I, 22);
seu sucessor, Eugênio IV, pela bula «Rex Regum», de 8 de setembro de
1436 — depois de conceder «comprida perdoança de todos os pecados» aos
que ajudassem na campanha da África — «declara ficariam sujeitas a D.
Duarte e sucessores as terras por eles conquistadas aos infiéis»; Nicolau V,
pela bula «Cuncta mundi», de 8 de janeiro de 1454, atribui a Portugal
• todas as ilhas, mares e terras firmes da África, desde os Cabos Bojador e
Não, até a Guiné», o que foi confirmado pela bula «Inter coetera», de Ca-
lixto V, de 13 de março de 1454.
E após lutas ligadas a questões de dinastia, Portugal e Espanha
firmaram o Tratado de Alcaçovas, de 4 de setembro de 1479, aprovado
pela bula Aeterni Regis, de 21 de junho de 1481, de Xisto IV, na qual se
confirmam todas as concessões feitas pelos papas anteriores.

Ora, acentua Capistrano de Abreu, «na opinião do tempo, era idênti­


co o mar que banhava a Europa e a África por Oeste, ao que banhava a
Ásia, a Este: assim, a Ásia Oriental e meridional, com seus milhares de
ilhas, toda a África Oriental, desde Abissínia até o Cabo da Boa
Esperança, julgavam-se índia» (Estudos e Ensaios, III, 57).

Razão, pois, havia para D. Joâo II afirmar que as terras descobertas


pelo genovês, «todas», lhe pertenciam: e nesta convicção, continua Capis-
trano, apenas «terminadas as festividades da Páscoa», reuniu o Conselho,
ficando resolvido mandar-se uma esquadra às regiões descobertas por Co­
lombo, o que levou o Soberano espanhol a enviar a Lisboa Lopes de Haro,
pedindo ao Monarca lusitano suspendesse a expedição e «nomeasse embai­
xadores conhecedores do caso, para discuti-lo calmamente e levá-lo a deci­
são honrosa».
O Sistema Sesmarial no Brasil 17

Não parece, entretanto, estivessem Fernando e Isabel agindo de boa


fé, pois, enquanto tratavam de resolver o caso diplomaticamente, acolhen­
do os embaixadores de D. João II — Pero Dias e o cronista Rui de Pina,
chegados a Madrid em agosto de 1943, —, atuavam, na surdina, junto a
Alexandre VI (2) que, pela bula «Eximiae devotionis», de 3 de maio de
1493, «concedia aos Reis de Castela e Aragão as terras firmes, ilhas
remotas, descobertas e por descobrir», e, pela bula «Inter coetera», repu­
blicada no dia 4 de maio, voltava à carga, dizendo categoricamente «dar,
conceder e entregar à Espanha todas as ilhas e terras firmes e ilhas acha­
das e por achar, descobertas e por descobrir, para o Ocidente e Meio Dia,
fazendo e elaborando uma linha desde o Pólo Ártico... até o Pólo Antárti­
co... a qual linha diste de qualquer das ilhas vulgarmente chamadas dos
Açores e Cabo Verde, cem léguas para o Ocidente e Meio Dia».
Sentindo-se prejudicado. D. João II teria pensado em resolver o caso
pelas armas, anunciando a organização de uma esquadra, cujo comando
caberia ao famoso D. Francisco de Almeida, e deixando claro que, incum­
bida de examinar, in loco, a situação, a frota estaria disposta, até «a pro­
var a sorte pela guerra».
Tudo, porém, se resolveu diplomaticamente, concordando as duas
Cortes em decidir a questão mediante entendimentos.
A primeira embaixada castelhana — constituída de Garcia de Carbo-
jal e Pero d’Ayala — fracassou, recebendo-a D. João friamente, dizendo.
com ironia, «não tem pé nem cabeça», aludindo, registra Capistrano, a
«um dos embaixadores que era coxo e outro, pobre de espírito»; segunda
missão, entretanto, foi coroada de êxito, firmando-se, afinal, em 7 de ju­
nho de 1494, o Tratado de Tordesilhas — intitulado, oficialmente, «Capi-
tulacion de la Repartifion del Mar Oceano» —, aprovado pela bula «Pro
bono pacis», de 24 de janeiro de 1504, de Júlio II.
O ponto central do Tratado de Tordesilhas — «o primeiro capítulo da
história diplomática da América», do conceito de Harisse — é aquele em
que os embaixadores, em nome dos respectivos Soberanos, declaram
«consentirem se trace e assinale pelo dito mar oceano uma raia ou linha
direta de pólo a pólo... a qual raia ou linha e sinal se tenha de dar e dê
direito... a trezentas e setenta léguas das Ilhas de Cabo Verde... e... tudo
o que até aqui se tenha achado e descoberto e daqui em diante se achar

(2) Exatamerue pela influência exercida no mundo cristão, o Papado despertava as am­
bições das Coroas curopéias do tempo, usual e muito forte a cabala dos Monarcas junto ao
Sacro Colégio, então pouco numeroso, raro o conclave, escreve Philip Hughes, que reunisse
«mais de vinte eleitores» — no sentido de eleger papas amigos, com quem pudessem contar em
vantagem própria.
A Espanha, até ali potência ainda frágil, pesaria pouco nestas disputas da Sé Romana,
mas. alcançada a etapa derradeira da unificação de Castela c Aragão e para evitar em
Pontífice hostil, como haviam sido Xisto IV (delia Rovere) e Inocêncio VIII, teria Fernando
de Aragão influído eficientemente junto ao conclave de 1499. conseguindo, inclusive pelo su­
borno, eleger o Cardeal aragonês Rodrigo Borgia, Papa sob o nome de Alexandre VI, de
quem alcançaria — servindo-lhe de advogado e intermediário nas manobras, o Cardeal Car-
vajal — a série de bulas que, despojando Portugal dos privilégios de outros tempos, dava ao
Império de Castela o domínio do «mundo a descobrir».
I

í
18 Costa Porto

pelo dito senhor Rei de Portugal... indo pela parte do levante dentro da
dita raia para a parte do levante ou do norte ou do sul dele... e... tudo o
mais... que estão ou forem encontrados pelos ditos senhores Reis e Rainha
de Castela e Aragão... desde a dita raia... pela parte do poente... ou ao
norte sul dela... seja e fique e pertença aos ditos Reis e Rainha de Castela
e Aragão» (Ap. M. Linhares de Lacerda, Tratado das Terras do Brasil, I,
pág. 73).
A demarcação, efetiva e prática, dos domínios espanhóis e lusitanos,
resultante do «arreglo» de 1492, nunca foi levada a cabo, entravando-a vá­
rias dificuldades, uma das quais o fato de se não haver estabelecido o pon­
to donde começaria a contagem das 370 léguas, falando-se, genericamente,
nas «Ilhas do Cabo Verde», na verdade um arquipélago formado dc 14
ilhas, variando o termo final conforme se contasse de um ponto mais oci­
dental ou mais oriental.
Interessados, de começo, no Oriente, região tida como mais rica e de
maiores perspectivas, os cosmógrafos portugueses calculavam a contagem
partindo das ilhas mais orientais, com o que prevaleceria a doutrina de
■ que «a raia ou linha direta», baixada após as 370 léguas, deveria traçar-se
mais ou menos de Marajó a Laguna e daí porque a divisão do Brasil em
1 capitanias, com o donatarialismo de 1534, incluía, como extremos, a «abra
de Diogo Leite», ao norte e a Ilha do Mel, nas alturas de Laguna, ao sul.
Mais tarde é que Portugal se vai interessar pelo Oeste, tentando
alargar os meridianos para, no mínimo, a foz do Prata, fonte de constan­
tes dissídios de fronteiras com a Espanha, até que, afinal sem sentido a se­
paração, na fase de 1580 a 1640, quando ocorreu a união de Portugal-
Castela, e tendo o bandeirismo extrapolado os limites vagos de Tordesi-
Ihas, os acordos de Madrid e de Santo Ildefonso resolveram, em definitivo,
o problema das fronteiras, triplicando o território brasileiro, na sua exten­
são atual, diria fundadamente João Ribeiro, «uma dádiva» da diplomacia
lusitana.

2-0 BRASIL ESQUECIDO

Olhos, porém, voltados para o Oriente, a Metrópole pouca atenção


dispensou à conquista americana, fenômeno, de resto, perfeitamente com­
preensível, à luz da mentalidade da época.
I Pouco importa seja comum, então, falar-se em «dilatar a fé», «emxal-
çar a nossa samta fee catholyqua», da linguagem de D. João III, aparecen­
do os reis lusitanos como «certíssima esperança do aumento da pequena
cristandade», como se diz nos Lusíadas.
O que, na verdade, se buscava eram riquezas, comércio, gêneros de
escambo e, sob este aspecto, a Colónia descoroçoava: «Terra e homem,
pontilha Gilberto Freyre, estavam em estado bruto. Suas condições de cul­
tura não permitiam aos portugueses intercurso comercial que reforçasse ou
prolongasse o mantido por eles com o Oriente. Nem reis de Cananor, nem
sobas de Sofala, encontraram os descobridores do Brasil com quem tratar
ou negociar. Apenas morubixabas. Bugres. Gente quase nua e à toa,

t
O Sistema Sesmarial no Brasil 19

dormindo em rede ou no chão, alimentando-se de farinha de mandioca,


de fruta do mato, de caça ou peixe comido cru, ou depois de assado no
borralho» — (Casa Grande & Senzala. I, 155) —, donde a conclusão de
que «o Brasil foi como uma carta de paus, puxada num jogo de trunfos
em ouro. Um desapontamento» (il. 359).
A mentalidade europeia, em geral, e a portuguesa, em particular, vi­
viam obcecadas pela índia; raros os que não se deixavam fascinar pelo
Oriente, como o Conde de Vimoso, o qual, «perguntando a Vasco da Ga­
ma o que trouxera da índia e o que a índia queria de Portugal, e
respondendo-lhe o Almirante que de lá trouxera pimenta, canela,
gengibre, âmbar e almíscar e que, de lá, queriam ouro, prata, veludo e
escarlates, lhe observara: deste modo, eles é que nos descobriram a nós»
(Hist. da Col. Port. no Brasil, III, IX). Pobre, o Brasil permanecerá, mui­
to tempo, como simples «pousada para estas navegações de Calecute», da
carta de Caminha, as «terras Santa Cruz pouco sabidas», dos versos de Ca­
mões, na introdução à História de Gandavo.

O perigo francês
O que, afinal, fez a Metrópole voltar as vistas para a Colónia foi a
ameaça gaulesa.
Francisco I, da França, ficara irritado pela parcialidade pontifícia,
que, doando o mundo a Portugal e à Espanha, deixara seu país fora da
herança, demonstrando o agastamento quando atalhava a interferência do
Embaixador de Carlos V, no sentido de impedir traficassem os navios fran­
ceses cm águas americanas: «Est-ce déclarer la guerre et contrevenir à mon
amitié avec Sa Magesté, d’envoyer lá-bas mes navires? Le soleil luit pour
moi comme pour les autres; je voudrais bien voir la clause du testament
d'Adam qui m'exclut du partage du monde» (ib. 63).
E porque lhe não dessem ouvidos aos justos melindres, estimulava os
flibusteiros do Mar do Norte, outorgando-lhes cartas de corso e marca, em
tal desadoro que os mares americanos viviam coalhados de piratas france­
ses, cuja presença, no Brasil, chegou a pôr em perigo o domínio lusitano.
Tendo-se agravado, depois de 1521, a insolência dos corsários de Hon-
fleur, Ruão e Dieppe, D. João III, enquanto ensaia utilizar remédios diplo­
máticos, trata de enviar esquadras de defesa da costa — a primeira, em
1526, sob o comando de Cristovão Jaques, e a segunda, em 1530, capita­
neada por Martim Afonso de Souza —, medidas, entretanto, precárias,
pois, apenas os navios regressavam ao Reino, o mar voltava a encher-se de
piratas, repetindo-se os encontros bélicos nos mares e litorais, acentuando
Fr. Luis de Souza que «asy crecião os odios e sendo os reis muyto amigos,
eram os vassalos enemicíssimos».

As donatárias
Muda, então, a Metrópole a orientação primitiva, conforme esclarece
el-Rei, na carta de 28 de setembro de 1530, a Martim Afonso: «Despois de
vossa partida, se praticou se seria de meu serviso povoar-se toda essa costa
I'

20 Costa Porto

do Brasil, e algumas pesoas me requerião capitanias em terra delia. Eu


quisera antes de nyso fazer allgua cousa esperar vossa vinda, pera com vosa
emformação fazer o que bem me parecer... e porem fui cmformado que
dallguas partes fazião fundamento de povoar a terra do dito brasyll. e con­
siderando eu com quamto trabalho se lançaria fora a gente que as
povoasse, depois de estar assentada na terra, determinei de mandar demar­
car de Pernambuco até o Rio da Prata, sincoenta léguas da costa a cada
capitania, como vereis polias doaçõens que logo mandei fazer» (Hist. da
Col. III, 161).
A idéia não era nova.
Em carta, de data desconhecida, mas anterior a 1530, D. João dc Me­
lo da Cunha se oferecia para colonizar o Brasil às próprias custas, levando
consigo mil moradores, prontos a conquistar «uma terra que nam tem ne­
nhum proveito e pode ter muito», tarefa exequível, ressaltava, porque «os
omens que comygo hão de ir são de muyta sustancia e pesoas muy abasta­
das... e nam sam omens que estimam tam pouco o serviço de V.A. e suas
honras que se contentem com terem quatro indias por mancebas e come­
rem dos mantimentos da terra, como faziam os quedá vieram» (Hist. da
Col. III, pág. 90).
E nisto é que insistia o dr. Diogo dc Gouveia, ilustrado lusitano que
morava na França, onde dirigia o colégio de Santa Bárbara, em carta de

PJI 29 de fevereiro de 1532: «Eu por muitas vezes lhe escrevi o que me parece
deste negócio. A verdade era dar, Senhor, as terras a vossos vassalos, que,
se tres anos hâ que V. A. as dera aos dois de que vos falei, a saber, o ir­
mão do capitão da Ilha de São Miguel, que queria ir com dois mil mora­
dores lá a povoar, e Cristovão Jaques, com mil, já agora houvera quatro
ou seis mil crianças nascidas e outros muitos da terra casados com os nos­
sos e é certo que, após estes, houveram de ir muitos. E se vos estorvaram,
Senhor, por dizerem que enriqueceriam muito. Quando os vossos vassalos
forem ricos, os reinos não se perdem por isso, mas se ganham... porque,
quando houver sete ou oito povoações, estas serão abastantes para defende­
rem aos da terra que não vendam o brasil a ninguém, e não o vendendo,
as naus não há de querer lá ir para voltar de vazio. Depois disso, aprovei­
tarão a terra» (Ap. Varnhagen, Hist. Geral, I, pág. 143, nota III).
A fórmula defendida pelo Dr. Gouveia, e anunciada na carta a Mar-
tim Afonso, acabou vitoriosa, isto é, a divisão da terra em quinhões, doa­
dos a vassalos que recebiam do Soberano «direitos majestáticos», da lingua­
gem de João Ribeiro, tomando aos ombros a tarefa de povoar a conquista
e defendê-la contra a ameaça dos estrangeiros; em vez de esquadras passa­
í geiras, ou de feitorias medíocres e ineficientes, a presença permanente de
autoridades para vigiar a terra, não permitindo o comércio dos france­
ses com os indígenas, tirando aos piratas do Mar do Norte o único atrativo
realmente sedutor do Brasil — o contrabando de pau de tinta e outros pro­
dutos, o íman que os atraía à região.
E de começo deu certo: explicando, em carta de abril de 1542, por­
que se lhe fazia imperioso permanecer em Olinda, em vez de rumar para o
interior, à cata de ouro e metais, esclarecia Duarte Coelho precisava «dei-
O Sistema Sesmarial no Brasil 21

xar aqui a cousa fornecyda e a bom recado por todallas vyas, em especiall
por estes franceses que, se sentyrem nam estar na terra, corr>eterão a fazer
das suas riballdaryas, porque á quatorze dyas que aquy quiseram fazer o
que soyam a fazer, mas nam poderam» (Hist. da Col. III, pág. 314).

3 O REGIME SESMARIAL

O regime das capitanias foi, entretanto, efémero e, pela própria fragi­


lidade íntima e pelo pequeno tempo em que funcionou, quase não deixou
traços em nossa estrutura interna, não passando de mero incidente
episódico, sem repercussão decisiva em nossa evolução, donde se deve en­
tender em termos aquela síntese de Max Fleiuss, sobre o quadro colonial
de 1534: «a terra dividida em senhorios, dentro do senhorio do Estado»
(História da Administração do Brasil, 10).
Lição aceitável, como resumo do «esboço geral do sistema
administrativo» — pois política e administrativamente a Colónia não pas­
sava do senhorio dos donatários, subordinado ao senhorio supremo do el-
Rei —, o povoamento e a ocupação da terra, tudo quanto se liga ao
problema fundiário, revelam outra realidade.
Pouco importa diga el-Rei, como na carta de Duarte Coelho, lhe faz
inrevogável doaçam amtre vyvos valedoyra deste dia pera todo sempre de
«■

juro e derdade, pera elle e todos seus filhos, netos e erdeiros... de sesenta
legoas de terra... da qual terra... lhe asy faço doaçam e mercê» etc: não se
tratava de domínio do solo, mas de «poderes políticos», de jurisdição, de
governos, o que nem sempre tem sido devidamente apreendido pelos
melhores mestres, como o egrégio Rodrigo Otávio, quando, árbitro na
pendência entre a Prefeitura do Distrito Federal e os Beneditinos, escrevia:
«a coroa, com a cessão aos donatários, pode-se dizer, deixou praticamente
de possuir na Colónia qualquer porção de terras; ela cedera tudo quanto
possuía e nada mais tinha para conceder», donde a estranheza de que «no
regimento aos seus governadores, vice-reis e capitães generais, nomeados
para a administração na Colónia», fizesse o Soberano questão de consignar
«as faculdades de conceder terras de sesmaria em nome da Coroa» (Rev.
do Inst. Hist. vol. 153, pág. 174).
Talvez a linguagem das cartas dos donatários responda por esta
concepção de que el-Rei cedera direitos dominiais sobre o solo, quando, na
verdade, se limitara a outorgar «poderes políticos», largos, sim, «direitos
majestáticos quase absolutos» mas, de nenhum modo, direitos sobre o solo,
como, de resto o ressalta Rocha Pombo, ao escrever: «quando se fala em
doação, parece, realmente, que se tratava de propriedade territorial. E
não é isso, entretanto, o que se fazia. Não era a terra que o Soberano da­
va, mas o benefício, o usufruto dela somente. E tanto era assim que, na
própria carta de doação, concedia o Rei... um dado prazo de terras ao do­
natário, e como propriedade plena, imediata e pessoal. O Capitão donatá­
rio... era como um locotenentc do Rei... exerce direitos de soberania. Só
não é proprietário da terra: aufere, apenas, uns tantos proveitos do feudo
que lhe foi concedido» (Hist. do Brasil, I, 110).
22 Costa Porto

As prerrogativas constantes da carta de doação traem este sentido


político, jurisdicional, de «imperium»: «jurdiçã cyuel e cryme da dita ter­
ra»...; «estar a enliçam dos Juizes e alympar e apurar as pautas»; «passar
cartas de confirmaçam aos ditos juizes e officiaes»; «conhecer dações no­
vas... e dapelações e agrauos»; «fazer villas», limitando-lhes e assinando
«termo»; «cryar e prouer... os tabelliaes do pubrico e judiciall»; «mer­
cê...das alcajdarjas mores» etc.
No ponto de vista patrimonial, o que lhe pertence são as «rendas e
direitos & foros e trebutos que a elas (alcaidarias) pertencerem»; «as
moendas dagua, marynhas de sal e quaesquer outros enjenhos de qualquer
calydade que seya»; «metade da dizima do pescado» • a vintena; a «redizi-
ma de todalas as rendas» da Capitania, isto é, «que de todo
Rendimento... aya...tiuma dizima que he de dez partes huma»; a «vyntena

I
parte do que lyquydamente render para mym foro (forro) de todos os cus­
tos o brasyll da capitania»; a faculdade de vender, cada ano, 24 peças de
escravos que «resgatarem e ouverem na dita terra»; dispensa dos «direytos
de sysas, emposições de saboaryas, trebutos de sall» (Hist. da Col. III. pág.
309) etc.
Como se vê, direitos de «príncipe», poderes políticos, não domínio real
do solo.
De relação à terra, a linguagem das cartas de doação não enseja mar­
gem a dúvidas. As «sessenta léguas de largo ao longo da costa», doadas a
Duarte Coelho, por exemplo, se dividiam em duas partes: uma, de dez
léguas, pertencia ao donatário, que sobre ela exercia domínio pleno -
«lyvre, izemta», sujeita, apenas, ao dízimo à Ordem de Cristo-, podendo o
capitão, dentro em vinte anos da posse da capitania, separá-las onde qui­
sesse, «não as tomando, porém, juntas sanam Repartydas em quatro ou
cynquo partes», mediando, entre cada uma, a distância de duas léguas;
quanto às cinqilenta restantes, devia o donatário distribuí-las entre os mo­
radores e sobre elas não exerce o capitão nenhum domínio, donde dizer
antigo documento que o «donatário não he senhor absoluto das terras se-
nam cesmeiro e repartidor...e enquanto cesmeiro não he mais cesmeiro
que os outros cesmeiros, conforme a verba de sua daçam» (Tombo, 368-
369).
Afirmar-se, pois, como o faz Rodrigo Otávio, que, após o regime
donatarial, a Coroa «deixou praticamente de possuir na Colónia qualquer
porção de terras», e, tendo cedido «tudo quanto possuía, nada mais tinha
que conceder», não traduz a realidade histórica, pois o donatário não
recebe, como coisa sua, senão aquele nastro de dez léguas, seu património
individual, nalguns documentos denominado «reguengo».
O sentido etimológico de Reguengo, sem dúvida, é diverso - o que
pertence ao Rei — «regalengo, regaengo, reguengo» — enraizando-se sua
história, segundo o mostra Herculano — Opúsculos, V. pág. 173 e segs. — na
velha distinção romana entre bens do fisco — património do Imperador —
e bens do erário — património da «respublica», do Império, do Estado ro­
mano.
O Sistema Sesmarial no Brasil 23

Desconhecido, na Idade Média, o sistema das contribuições gerais em


forma de impostos, os Monarcas «tomavam para seus bens patrimoniais
uma porção de terras», que lhes integravam o domínio privado, enquanto
outras pertenciam à Coroa, «com o fim de tirar delas o rendimento neces­
sário para as despesas do Estado», havendo, assim, dois tipos de bens,
sobretudo imóveis: os do Soberano, como pessoa privada, que os podia
vender, arrendar, aforar — os «reguengos» —, e os do Estado, com aque­
las características do atual «património nacional».
Quando, a partir de D. Pedro I, «a pessoa do Rei começou a tomar o
lugar do Estado — «L’État c’est moi» — os bens pessoais do Monarca — os
«reguengos» — passaram, na legislação e nos costumes, a misturar-se com
os da Coroa, do Estado, da «república», subsistindo, entre ambos, mera
distinção nominal, e isto «não em relação às cousas, mas em relação às
pessoas», pois, como pontilha Herculano, «os reguengueiros, tendo obriga­
ções, gozavam de privilégios especiais e esses privilégios é que tornavam ne­
cessária a diferença».
Confundida a pessoa do Rei com o próprio Estado, os bens do Rei e
os do Estado passaram a chamar-se, indistintamente, «reguengo», e, sem­
pre em alargamento do sentido — obliterada a noção etimológica originá­
ria -, não seria demais, por fim. se olhasse apenas a natureza do senhorio,
considerando-se bens alodiais, os dos indivíduos, como tais, e chamando-
se, genericamente, «reguengo» o que pertencesse a quem detivesse alguma
parcela de autoridade.
Alguns documentos coloniais mostram o duplo sentido de reguengo:
quando, por exemplo, o governador Francisco Barreto, em 1665, doa aos
beneditinos de Olinda «humas casas que estam dentro do Recife...cujas
bem feitorias e chãos pertencem a sua Majestade por serem obradas pelos
Olandezes em huns Reguengos que estavam devolutos entre outros chãos»
(Tombo, 184) «reguengo», evidentemente, quer dizer terras pertencentes
ao Rei ou à Coroa; quando, fazendo doação de terras aos mesmos benedi­
tinos, Jorge de Albuquerque determina «serão obrigados a me pagar dez
mil Reis de foro em cada hum anno por cada légua de terra, por lhe dar
estas terras do meu reguengo» (ib. 25), aqui a palavra significa a faixa de
solo dado ao donatário. (3)

4 O BRASIL «REDESCOBERTO»

Foi a ameaça do francês, repitâmo-lo, que levou a Metrópole a voltar


as vistas para a Colónia.

(3) O que. porém, nunca se nos deparou nos documentos do tempo foi aquela «condi­
ção-, a que alude Almeida Prado (Pernambuco e as Capitanias do Norte. I, 29), «de qúe te­
riam as capitanias, de dez em dez léguas dc frente para o mar, um nastro de dez quilómetros.
no mínimo, de largura, pertencente ao património real, do mesmo gênero dos «reguengos» da
Metrópole-. Esta área, reservada ao património do Rei ou da Coroa, nunca a encontramos
nas cartas, nem havia razão para tal; a carta de doação assegura ao donatário mero «poder
político-, de jurisdição, e não dc domínio, dc sorte que, apesar dos «poderes majestáticos* dos
capitães, o solo continuava pertencendo à Coroa.
I

24 Costa Porto

Contando com as simpatias dos indígenas, a gente de Francisco I qua­


se acaba assenhoreando-se da conquista cabralina, acentuando Capistrano
que: «durante anos ficou indeciso se o Brasil ficaria pertencendo aos Peró-
portugueses • ou aos Mair-franceses» (Cap. de História Colonial, 35).
Quando os meios diplomáticos se mostraram ineficientes, D. João III
decidiu-se a garantir o Brasil pela força, enviando, em 1526, a esquadra
• l de Cristóvão Jaques e, em 1530, a de Martim Afonso.
Cristóvão Jaques pouco diferia dos piratas que vinha combater na
América: era um cabo de guerra, da escola dos «barões assinalados», cujo
papel foi, quase sempre, o de «devastar» a Ásia e a África e devastar
não só no sentido etimológico, mas no usual, matando, esfolando, espa­
lhando ruínas —, e viera ao Brasil para isso — para corrigir a audácia dos
«gallos», a quem o dr. Jorge Nunes chamava, com todas as letras, «latro-
nes».
Martim Afonso, esse vem com missão mais construtiva: ao lado daque­
la de alijar os franceses, também, e prevalente, a de realizar obra séria de
povoamento, dando-lhe el-Rei a faculdade de distribuir as terras entre os
moradores com a condição de que as explorassem «dentro em seys annos
do dia da dita data», iniciando-se, assim, o plano de ocupação efetiva do
solo.
Cedo, porém, ficou evidenciado que o processo das expedições de
patrulhamento e defesa da costa não resolvia a situação. «A verdade era
dar a terra a vossos vassalos», ponderava, da França, o Dr. Diogo de Gou­
veia, e el-Rei termina acatando-lhe as sugestões, introduzindo o sistema
donatarial, copiando a Metrópole, de certo modo, aquela orientação dos
Imperadores de Constantinopla, para defender a Itália contra a pressão
dos lombardos: as donatarias, do mesmo passo que apressavam o povoa­
mento, atuavam a modos de novos «exarcados» constituindo barreira às
tentativas dos franceses.

5 A REPARTIÇÃO DA CONQUISTA

O sistema donatarial apresenta dois ângulos básicos: o da repartição


política — da jurisdição e do «imperium» — o aspecto em que mais se tem
atentado — e outro, esquecido, mas acreditamos, o mais relevante, a dis­
tribuição do solo entre os moradores.
A leitura das cartas de doação desvela-nos singelamente em que
consistia o sistema das donatárias sob o primeiro aspecto: a determinado
número de vassalos foi dada uma porção de terras — delimitadas ao longo
da costa e, para o Interior, «tanto quanto poderem penetrar e fôr de mi­
nhas conquistas» — outorgando-se-lhes poderes largos, imensos,
«majestáticos», mas, convém sempre insistir, poderes «políticos», de co­
mando, jurisdicionais, pois, como cousa própria, apenas recebem aquele
nastro de dez léguas, que lhe constituem domínio privado.
De relação ao solo esse continuará constituindo património do Estado,
pertencente à Nação, encarnada no Soberano, que, empenhado em pro­
mover o povoamento e a colonização da conquista, determina aos capitães
O Sistema Sesmarial no Brasil 25

o repartam e distribuam de sesmaria entre os moradores, gratuitamente,


«sem foro nem direito algum», apenas com a obrigação de pagar à Ordem
de Cristo o dízimo — «dez em um» — dos frutos colhidos da terra.
No sesmarialismo, assim, é que se baseia toda a história de nossa
evolução fundiária.
«Dar e repartir terras de sesmarias», dizem os documentos régios,
tornando-se assim oportuno investigar o sentido da expressão, cujo conceito
melhor se aclarará distinguindo dois aspectos entrelaçados: a «cousa em si»
ou a «realidade numenal» — e o «nomen», com que se traduzia.
A «cousa em si», essa é antiga e podemos enraizá-la nas melhores
tradições romanas. Em suas origens, os habitantes do Septimontium e do
Lácio são predominantemente pastores, definindo Boileau o primitivo Ti-
bre como «un torrent fait de pissat de boeufs».
«Tutto dimostra», lembra Cogliolo, «che il popolo romano fu
nellorigine e per molto tempo, un popolo di agricoltori: 1’importanza delia
proprietá fondiaria e la poca protezione alie cose mobili; le lodi ai lavori
dei campi e il disprezzo per i commerci; le parole adsiduus, proletarium,
lacuplis, detrimentum, da 'terere frumentum’, emolumentum, da ‘molere
frumentum’, pecunia, da pecus», etc. (Storia del Diritto Privato Romano,
47).
Nos primórdios da Urbs, o problema do solo quase inexiste. Embora
não haja acordo quanto ao primeiro regime fundiário latino — sustentan­
do uns sempre houve a propriedade privada, enquanto, para outros, a ter­
ra de começo pertencia à coletividade, à «gens», quando nada à família,
tendo cada «pater» como cousa sua apenas o «heredium» —, o que as fon­
tes mostram é que, em Roma, a terra sempre foi encarada como o «valor
maior»: o solo itálico é «res mancipi», predomina o sistema da pequena
propriedade — «bina iugera populo romano satis erant.. .perniciosum in-
telligi eivem cui septem iugera non essent satis», segundo recorda Plínio; a
alienação da herança fundiária, se se não proibia nas leis, encontrava rea­
ção nos costumes — «tum paterna emancupare proedia turpia habebatur»,
assinala Quintiliano — e o que Cícero censura em Bruto é haver vendido o
solo herdado: «ubi suntii fundi, Bruto, quos tibi pater publicis commenta-
riis consignavit»?
Depois, com a decadência dos «costumes», começam a surgir os
«latifundia» — que «perdidere Romam», do conhecido conceito de Plínio -
, quando os nobres e patrícios se apossam de largos tratos pertencentes ao
Estado, criando os problemas sociais que as . leis agrárias, sobretudo dos
Gracos, procuram, em vão, corrigir.
Mas, mesmo nestes casos, não se admitia permanecesse o solo inculto;
e indivíduos ou pessoas jurídicas, se possuíam áreas vastas, costumavam dá-
las de arrendamento «ad perpetuum» ou «ad longum tempus», mediante o
pagamento de pensão anual — «canon», ou «vectigal» —, discutindo-se,
ainda nos tempos de Gaio, se tal processo importava venda ou aluguel, até
que Zenão — ou Justiniano, interpolando-lhe uma constituição — decidiu se
tratava de negócio «sui-generis» — enfiteuse — situação jurídica peculiar,
1 26 Costa Porto

em que co-existem dois domínios simultâneos, o «domínio direto» ou «nu»,


do proprietário, e domínio útil, do enfiteuta — «poder jurídico sobre coisa
de outrem», da conceituação de Manzoni.
Tais praxes se tornam mais usuais no Baixo Império, quando não se
trata, propriamente, de regular a extensão das áreas em mãos de poucos,
mas se enfatiza a tônica do aproveitamento, na repulsa, agora expressa, à
existência de solo sem cultura, reunindo Justiniano, no livro XI, tít. 58, do
«Codex», várias constituições disciplinando o problema «de omni agro
deserto», entre as quais aquela — de Graciano, Valente e Teodósio — que
estabelecia a chamada «adiectio», ou «epibolé», isto é a faculdade de po­
der o proprietário do solo anexar a parte vizinha, se inculta ou abandona­
da (Codex, XI, 58,7), e aqueloutra, que dava o domínio da terra a quem
a explorasse durante dois anos, «si bienii fuerit tem pus emensum, omnis
possessionis et dominii carebit, qui siluit» (XI, 58,8).
Os reinos bárbaros imitaram a política romana, o que não é de
admirar, quando se atenta em que, substituindo os vencidos, lhes adota­
ram o direito, ajustado às condições do meio e do tempo, principalmente
na península ibérica, onde os visigodos se regiam pelo breviário de Alarico,
estruturado à base do direito clássico.
Na fase da luta final entre cristãos e mouros, permaneceu a norma
romana de repulsa ao solo inculto, e quando os exércitos cristãos iam
tangendo o sarraceno, a terra sem dono se distribuía com os conselhos mu­
nicipais — inclusive para apressar o repovoamento —, não se admitindo
solo sem cultura — um crime contra a coletividade, contra o bem comum,
contra o interesse geral. Cada comuna, via de regra, possuía um território,
que lhe constituía o património — uma «res publica» — e «antiquíssimo
costume, nalgumas regiões da península, lembra Cirne Lima, «prescrevia
fossem as terras de lavrar da comuna divididas segundo o número dos
munícipes, e sorteadas entre estes para serem cultivadas e desfrutadas ad
tempus, por aqueles aos quais tocassem» (Pequena Hist. Territorial do
Brasil, Sesmarias e Terras Devolutas, pág. 11).
Nem se distribuíam somente as terras tomadas ao inimigo ou perten­
centes aos municípios. Também, em alguns casos, vemos porções do
domínio privado distribuídas à boa maneira romana, quando os senhorios
não as exploravam, recordando ainda Cirne Lima o pedido de certo João
Eanes, de um olival, «além do Mondego, defronte de Coimbra», que a Co­
legiada de São Bartolomeu possuía, rogando «em pena...se lhe desse, a elle
denunciante», decidindo el-Rei, D. Afonso V: «Outorgo e aprazme que ho
dito olival hajades quejando que elles ho aviam, por ho no amanharem,
li em maneira que me ho notificastes, de guiza que vós...lhe daredes ha pen-
| iH som que alvidrarem hos ornes bõos» (il. 12).

6 - EM TEMPOS DE EL-REI D. FERNANDO

il Herdara Portugal esta tradição — romana, visigoda, e mesmo, talvez,


sarracena — da repulsa ao solo inculto, robustecida pelos fatores mesológi-
! II cos peculiares ao Reino, nesga misérrima de solo, sem indústria e sem co­

I mércio, onde, portanto, tudo tinha de ser tirado da agricultura.

t
O Sistema Sesmarial no Brasil 27

Cessadas as lutas contra o mouro e contra o castelhano, lentamente


diminuída a força dos barões feudais, a população foi tratando de cultivar
o solo e, povo eminentemente ruralista, seria difícil encontrarem-se terras
incultas, cada um tratando de aproveitar sua diminuta courela, raros os
latifúndios, raríssimo quem, possuindo uma gleba, não a trabalhasse.
Mas, nos fins do século 14, a situação em Portugal se torna aguda.
Depois dos grandes monarcas, continuadores das tradições de Afonso
Henriques, sobe ao trono — «remisso e sem cuidado algum» — D.
Fernando, o Formoso, cujo reinado representa fase sombria na história lu­
sitana. Talvez dotado, pessoalmente, de virtudes e qualidades humanas ex-
celentes, o Soberano teve, entretanto, governo agitado e infeliz a
«procelosa tempestade, noturna sombra e sibilante vento» de que falami os
Lusíadas.
Na desvairada paixão por D. Leonor Teles, consegue que o Papa lhe
anule o casamento com João Lourenço da Cunha, tomando-a como esposa,
provocando, assim, a reação do povo, da «arraia miúda», contra o
consórcio com a «barregã», a «adúltera», a «comborça», e, para atender
aos caprichos da Rainha, D. Fernando é levado a agir com energia e rigor,
sucedendo-se motins, prisões, penas capitais — a desordem interna —,
enquanto, tendo quebrado os compromissos com a filha do Soberano de
Castela, provocou a invasão do país, a desordem externa —, quando
«esteve perto de destruir-se o Reino totalmente», mergulhando na voragem
a velha bravura lusitana, na demonstração de que «um fraco Rei faz fraca
a forte gente».
Lutas internas, invasão estrangeira, gastos com as guerras, perda de
homens, paralisação da vida nacional, tudo agravou, ou mesmo acarretou,
a crise de abastecimento, a fome, a miséria, cujas causas, entretanto, os
conselheiros régios enraizavam, unicamente, na incultura do solo, deixado
em «ressios», por incúria, mândria, desleixo dos proprietários.
Procedera-se, registra Severim de Farias, ao censo das terras de
semeadura, e chegara-se à conclusão de que «se todas se cultivassem, have­
ria pão de sobejo», não sendo mister «buscá-lo fora», donde haver D.
Fernando adotado severa política de promover, compulsoriamente, o apro­
veitamento do solo, alvo colimado pela primeira «lei de sesmarias», baixa­
da em 1375, de que os cronistas do seu Reinado, como Fernão Lopes, nos
conservaram longos extratos, e figura, não sabemos se interpolada, nas Or­
denações Afonsinas, de 1446.

7 A PRIMEIRA LEI DE SESMARIAS

A legislação de D. Fernando pode resumir-se assim:


a) de início, põe el-Rei em relevo o drama da crise de abastecimento
— «comsyrando como per todallas partes de nosso Reyno ha disfallicimen-
to de mantimentos de trigo e de cevada que amtre todallas terras e provín­
cias do mundo soyam seer muy abastadas», de sorte que «estas cousas som
postas em tamanha carestia que aquelles que hão de manter fazendas em
qualquer grau nam podem aver estas cousas»;
28 Costa Porto

b) em seguida, aponta o que, na concepção dominante, constituía a


causa da crise — «e esguardando como amtre todallas razoens por que este
disfallicimento vem mays certo e especiall he por mingua das lavras que os
ornes leyxão e se partem delias, entendendo em outras obras e em outros
mesteres que non som tam proveytosos pera o bem commum», de modo que
«as herdades que soyam a seer lavradas e semeadas... foram desamparadas
e deitadas em ressio, sem prol e em grande damno do povo»;
c) finalmente, a fórmula de «poer remedio... pera aver avondamento
das ditas cousas»; «estabelecemos, hordenamos e mandamos que todos os
que ham herdades suas próprias, ou teveram emprazadas ou afforadas, se-
yam constrangidos pera as lavrar».
Ponto básico, portanto, da legislação de 1375: a cultura do solo é
obrigatória tendo em vista o interesse coletivo — o abastecimento;
d) se, entretanto, o proprietário «nam poder per sy lavrar todallas
dytas herdades que ouver, por serem muytas ou em desvayradas comar-
quas», a lei lhe permite «lavre parte delias per sy ou per ho que ele quiser
e lhe mays aprouver... e as mays as faça lavrar per outrem, ou as dê a la­
vrador que as lavre e semeie por sua parte, ou a pensom certa ou foro...
de guiza que as herdades que som para dar pam sejam todas lavradas e
aproveytadas e semeadas compridamente como for mister».
Deste modo, segundo ponto fundamental: se o senhorio não puder
explorar toda a herdade, deverá dar, de arrendamento, o excesso;
e) para fiscalizar o cumprimento da política de distribuição do solo,
mandava el-Rei fossem escolhidos, em cada vila, cidade ou comarca, «dous
õmes bõos dos melhores que y ouver» — os Sesmeiros — , incumbidos, limi­
narmente, de investigar quais as terras incultas, obrigando aos proprietá­
rios as explorem em certo tempo, ou as arrendem, «taxando entre os donos
delias e os lavradores o que justo fosse que lhes desse de renda»;
f) se não chegassem ambas as partes a acordo — ou porque o senhorio
exigisse «grandes pensões», ou porque o rendeiro «nam as quysesse filhar
senam por muy pequenas conthias, ou porventura sem carrego de dar pen­
som» — cabia aos sesmeiros arbitrar «quanta e tamanha parte os lavrado­
res dêem aos senhorios», obrigando, aos primeiros, as aforem e, aos segun­
dos, «as filhem pela estymaçon e tayxaçon que fezerem»;
g) finalmente, a medida drástica: se o senhorio não quiser trabalhar a
terra diretamente, nem aforá-la — «non querendo convir em cousa rezoa-
da» —, cabia ao sesmeiro confiscá-la, distribuindo-a com quem a aprovei­
tasse — «perca a herdade e que vaa pera o bem commum do lugar onde
estiver».
Até aí encarava a lei a situação daqueles que não trabalhavam por in­
dolência, preguiça, mas podia haver casos de incultura por falta de braços,
porque os senhorios «nam ham nem podem aver mancebos que lhes fazem
mester pera ysso», pois «muytos daquelles que usavam de lavrar e ser­
viam no mester da lavoyra leyxaram este mester...e se recolhem aos Paços
dos Riquos õmes per averem vida ffolgada e mays sollta e por filharem o

u
O Sistema Sesmarial no Brasil 29

alheo mays sem receo», ou «nam querem servir e usar doutros offycios»,
preferindo andar «vadios pela terra, e allguns se lançam a pedir esmolas,
nam querendo fazer outro serviço».
Daí a norma assim resumida por Fernão Lopes: «Todos os que erão
ou soyam a seer lavradores e os filhos e os netos de lavradores... fossem
constrangidos pera lavrar», enquanto se corrigia o êxodo rural, compelidos
a voltar aos campos os vadios, desocupados, mendigos, falsos religiosos,
salvo, quanto aos primeiros, «se ouvessem, de seu, valia de quinhentas li­
bras que, naquelle tempo, valião cem dobras, que era grande somma de
dinheiro».
A lei de D. Fernando, fiel aos objetivos a que visava — resolver o proble­
ma do abastecimento —, dizia respeito somente às «herdades que som pera
dar pam», cujo aproveitamento se ordenava rigidamente, a fim de fazer
face à crise alimentar do Reino. Em tempos de D. João I, porém, a situa­
ção interna se agravara: feitas as pazes com Castela, o Mestre d'Avis inicia
o programa do espraiamento ao longo do «mar oceano», tomando Portu­
gal a dianteira nos empreendimentos para a conquista das terras «de Ásia
e África», e, alistando-se nas frotas do Oriente, o lusitano deixa «o pátrio
ninho», e assim, além das «herdades que som pera dar pam», aparecem
despovoadas, igualmente, as cidades, falando-se genericamente em «casas,
pardieiros e bens e herdades que jazem em mortório e que já em outros
tempos foram... povoados, vilas, olivais e pumares», tudo o que, estando
inculto, devia ser redistribuído.
Não parece, entretanto, houvesse D. João I baixado normas de caráter
geral, mas, como dizem as Ordenações Afonsinas, «algumas vezes mandou
a muitos lugares e vilas de seus reinados se dessem as terras e herdades de
sesmaria ou de outra forma», isto é, determinou, para hipóteses concretas,
se aplicassem os princípios fixados no ordenamento de el-Rei D. Fernando.
E, na verdade, o que as Ordenações Afonsinas nos conservam a este
respeito é a solução de caso concreto, quando, atendendo ao apelo do povo
de Entremoz, el-Rei nomea, para sesmeiro da região, Álvaro Gonçalves, a
quem dá instruções especiais, calcadas nos princípios básicos do
disciplinamento de 1375.
Fiel à orientação firmada na lei de D. Fernando, a carta a Álvaro
Gonçalves faz do aproveitamento o problema fundamental: devia o
sesmeiro distribuir tudo quanto esteja «em mortório», de sorte que nada
fique inculto; mas, «antes que elle dê os ditos bens...mande lançar
pregões...que aqueles cujos ditos bens forem...que a ataa hum anno os vão
lavrar e aproveitar, ou os vendam ou os emprazem, ou arrendem ou os
dêem a foro, a taes pessoas que os lavrem e aproveitem»; se o senhorio não
atendesse a ordem — não lavrando nem os dando em foro —, mandava el-
Rei que o sesmeiro «os dê e possa dar de sesmaria a quaesquer pessoas que
elle entender que milhor e mays cedo poderem lavrar... para todo o sem­
pre, como cousa sua, sem outro nenhum embargo que lhe sobre elle seja
posto». A mesma orientação de D. Fernando: lavra direta, arrendamento
compulsório ou confisco.
30 Costa Porto

Como encontrasse algumas dificuldades práticas, na execução do


programa traçado, o sesmeiro de Entremoz pediu a D. Duarte, a seguir,
esclarecimentos sobre situações concretas, e sua solução constitui objeto da
carta daquele Soberano, que, à semelhança de D. João, trata de casos de­
terminados.
O disciplinamento sesmarial lusitano — constante da lei de D. Fer­
nando e das instruções do D. João e de D. Duarte — passou a ter alcance
geral, quando foi codificado — não sabemos se com interpolações — na
grande legislação lusitana, as «Ordenações do Reino» — as Afonsinas, de
1446, livro IV, tít. 81, as Manuelinas, de 1511-1512, livro IV, tít. 67, § 3
e, finalmente, as Filipinas, de 1603, livro IV, tít. 43, §§ 1 e 4.

8 - QUE ERAM «SESMARIAS»

A luz do que preceituam as Ordenações, torna-se fácil sumariar a re­


gulamentação sesmarial, apontando-lhe os rasgos essenciais e básicos.
«Sesmarias», definem as Ordenações Filipinas, «são propriamente as
dadas de terras, casais ou pardieiros que foram ou são de alguns senhorios
II e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas e agora o não
são».
O objetivo da legislação é não permitir terras incultas: ocorrendo o
inaproveitamento, o dono do solo deve explorá-lo — diretamente, ou por
prepostos —, arrendá-lo, se o não puder cultivar, e, em caso contrário, tê-
lo-á confiscado, para distribuição com quem o queira aproveitar.
Dentro deste esquema geral, cabia aos sesmeiros:
a) apurar quais os senhorios das terras, citando-se para esclarecer por
que as exploravam e, se não comparecessem nem dessem razões convincen­
tes, assinar-lhes prazo, máximo de um ano, para que trabalhasserq o solo
ou o arrendassem;
b) se não obedecessem, deviam tomar-lhes os bens e distribuí-los entre
lavradores que os quisessem explorar no prazo máximo de cinco anos;
c) se recebida a sesmaria, o novo beneficiário não a aproveitasse no
prazo de lei, ser-lhe-ia tomado o solo para nova redistribuição, cominando-
se, contra o faltoso, «certa» multa pecuniária;
d) não determinava a lei a área das datas, fixando, apenas, este
princípio básico, tônica fundamental do sistema: «seram avisados os ses­
meiros que nam deem mayores terras a huma pessoa que as que rezoada-
mente parece que no dyto tempo as poderão aproveytar».

9 - ENIGMA «LINGUÍSTICO»

Ao introduzir, na Colónia, o sistema donatarial, determinou el-Rei E).


João III aos capitães dessem as terras de sesmaria, «na forma que se con­
tem na minha Ordenação», vale dizer, mandava transplantar para o novo
mundo o mesmo ordenamento excogitado para o Reino, nos tempos de D.
O Sistema Sesmarial no Brasil 31

Fernando, fórmula, de resto, natural: como no Reino, e para resolver o


problema do solo inculto, o Soberano ordenava fossem as terras da
conquista repartidas entre os moradores — «de sesmaria» —, adotando a
velha terminologia de 1375.
Reponta, assim, o segundo ângulo do problema: saber por que tal
processo se denominava «dar terras de sesmaria», ou, mais precisamente, o
que quer dizer a palavra «sesmaria». «Na própria ■ pelavra sesmaria, acen­
tua Cirne Lima, estão reunidos os característicos principais do instituto,
como se transmitiu à legislação posterior» (Op. cit. 15).
A verdade, porém, é que não foi possível, até aqui, apontar a verda­
deira etimologia da palavra sesmaria, cujo sentido originário, por isso mes­
mo, constitui intrincado enigma linguístico.
Uma opinião pouco usual liga sesmaria ao latim caesinare, ou
caesimare — de caesim. aos golpes, aos cortes, como a traduzir que a ter­
ra, cortada pelo arado, sofria rasgões, ficando em condições de produzir,
teoria que o severo desembargador Vieira Ferreira considera «inepta», lem­
brando que o verbo caesimare. ou caesinare, nunca existiu, mesmo na bai­
xa latinidade, não o registrando Calepino nem Du Cange, sendo, portanto,
invenção de algum «sonhador imaginativo» (Rev. Forense, vol. 133).
«Fortemente apoiado às bases históricas das sesmarias», opina Cirne
Lima, é o ponto de vista de Scheler, para quem sesmaria procederia do
verbo sesmar, poi »ua vez derivação de Ad-Aestzmare —• avaliar, calcular
— «verbos, acentua, que exprimem, com admirável justeza, a única opera­
ção realmente necessária para a constituição dos sesmos».
Segundo outros, sesmaria se enraíza em sesma, medida de divisão das
terras — «a quodam genere mensurae quae dicitur sesma, id est, coaequa-
tio» —, o que não esclarece melhor a questão, restando saber por que
sesma significava a medida.
Há quem veja, em sesmaria, uma derivação de sesmo — «sítio onde se
achavam localizadas as terras» — ou de sesmar — «separar, dividir» — o
que tambéqinão ajuda muito, pois seria mister explicar por que sesmo
queria dizer o «sítio» e por que sesmar queria dizer dividir.
Outra opinião generalizada considera sesmaria derivação de latim hi­
potético siximum — a «sexta parte» — porque, diz-se, quem recebia terras
de sesmaria ficava obrigado a pagar, ao antigo senhorio, ou ao Estado, a
sexta parte dos frutos colhidos: «ea, autem, bona sic concessa discuntur de
sesmaria ex eo forsan quia ex lis sexta pars fructuum olim fisco pendeba-
tur», esclarecia Almeida, citado por Cirne Lima (Op. cit. pág. 16, nota
19).
Tal explicação, entretanto, não nos parece arrimada em nenhum
argumento sério, não havendo, nas fontes, a menor alusão a este foro, cujo
pagamento, de resto, se afigura de todo em todo irracional, e, historica­
mente ilógico. Na verdade, já vimos que a distribuição dos solos possivel­
mente teve origem na fase de lutas contra o sarraceno, quando, expulso o
inimigo, se distribuíam, entre os cristãos, as terras desocupadas e sem do­
no.
■ 7

32 Costa Porto

Ora, a quem iria o beneficiário pagar o tributo da sexta parte dos


frutos?
( ?. Também a redistribuição do solo tinha lugar em casos especiais. Na
fase do feudalismo, muita vez alguns senhores atrabiliários costumavam
apossar-se, pela violência, de terras de pequenos moradores, tangcndo-os
do local e incorporando as glebas nos seus feudos desmedidos, o que se di­
zia «tomar terras de presuria», abuso proibido severamente por el-Rei D.
' I Afonso V, que não somente o vedou, mas ordenou fossem as terras toma­
das de presuria devolvidas aos antigos donos.
Ora, seria razoável admitir que, nestes casos, o contemplado com a
redistribuição fosse pagar tributo aos presores?
Absurdo.
Cremos que o deslinde do «enigma lingilístico se há de pedir à
história e não à filologia.
Quando aboliu a Realeza, Roma derivou para o regime da
administração colegiada — «ne potestas solitudine corrumpatur» — , prevale­

i
I
cendo o sistema do «duunvirato» — dois cônsules, dois pretores, etc. —,
processo seguido pelos que copiaram os métodos objetivos dos romanos.
Com o correr dos tempos, aumentando os encargos e alargado o cam­
po de atividades da administração — romana ou medieval — e também,
como lembra Otto, «auteto civium ambitiosorum numero», generalizou-se a
ampliação dos quadros dirigentes, surgindo colégios de três, quatro, cinco
e seis membros, vulgares então, os casos de regime de seis — o Sevirato —,
constituído deSexviri, ou Seviri — «scabini seu urbis consiliarii, ubi sex ad
id officium eliguntur».
Que, em Portugal houve o Sevirato mostram-no vários documentos
antigos, registrados na «Memória para a História da Legislação e Costumes
de Portugal», de Antônio Caitano do Amaral; e que os conselhos formados
por estes «scabini» se denominassem Sesmos deixa-o claro velho documento
lusitano — o foral de Penamacor —, onde se fala em «iudex qui consilium
vel Sesmum manufeirint» (Op. Cirne Lima).
Parece, assim, legítimo concluir: a) o problema da distribuição da ter­
ra inculta e sem dono estava afeto a um «conselho»; b) este conselho se de­
nominava Sesmo; c) a denominação de Sesmo, por sua vez, resultava do
fato de ser o conselho constituído de seis membros, os Sixviri, ou Seviri.
Esta uma explicação que Cirne Lima apresenta seu tanto
reticentemente, quando escreve: «Seis, acaso, seria, o número dos sesmeiros
reunidos em colégio administrativos? Seriam os Sesmeiros sobrevivência dos
Sexvirí ouSeviri municipais da era romana?«(Op. cit. pág. 16).
E prosseguindo: «a voz latina Sevir, traduzida para o gótico, e deste no­
vamente para o latim vulgar, ter-se-la transformado na designação
Sesmarius, que Du Cange consigna?» É verdade que, depois de acentuar
que, segundo Heyne, a tradução literal de Sevir seria, em gótico, Sahs
Manna — como, no antigo alemão, seria Sesman, de acordo com Grimm
—, e que traduzindo os membros do Sevirato por Sahs manna, os godos te­
O Sistema Sesmarial no Brasil 33

riam dado aos peninsulares a origem de Sesmarius, corre o mestre gaúcho


a ponderar: «parece que a filologia não abona conjecturas tais» (Op. cit.
pág. 17). Demos de barato não encontre esta hipótese base segura na filo­
logia: cabe sempre refletir em que o problema não se há de resolver à
base de simples filologia, mas da história.
Por outro lado, convém não perder de vista fenômeno sugestivo na vi­
da das línguas: muita coisa que se não explica à luz da filologia, acaba
compreensível através da semântica, a grande força modificadora dos idio­
mas vivos. Filologicamente, de fato, muitas palavras não teriam sentido ou
nos dariam conceitos totalmente diversos do original.
É que a semântica, vez por outra, opera mudanças fundamentais.
Tome-se, por exemplo, a palavra «escola»: segundo lembra Mário Barreto
(Últimos Estudos, págs. 10 e 11), vem do grego, Scholé, com o sentido de
ócio, repouso; mas aquele que estava em repouso, liberto das fadigas cor­
porais, tinha mais lazer para se dedicar aos estudos, às coisas da inteligên­
cia e, daí Schola passar a significar a preocupação com as cousas da inteli­
gência e da cultura e, também, o lugar em que os mestres ensinavam.
Apricus, em latim, quer dizer exposto ao sol, enquanto abrigar-se, seu
derivado, significa o contrário — estar livre dos raios solares: é que se pas­
sou a olhar o efeito de se estar exposto ao sol — ao abrigo, a coberto de
muitos males originados da impureza do ambiente, talvez a tradução do
velho conceito do «onde entra o sol, não entra a doença». Também a pala­
vra, latina Lucus quer dizer bosque cerrado, onde não entra a luz do sol,
apesar do radical Lux, a luz.
Parece-nos, pois, que a origem de Sesmaria se torna fácil de reconsti­
tuir: as terras distribuídas diziam-se de sesmaria porque a repartição se
processava através do Sesmeiros, integrantes do Siximum, ou Sesmo, colé­
gio integrado de seis membros — os Sexviri ou Seviri, encarregados de re­
partir o solo entre os moradores, fracionando as áreas dos terrenos de alfoz
das cidades em pequenos tratos — «courelas» ou «sesmarias». Olhados co­
mo sinónimos, havia, entretanto, acentua Herculano, ligeira diferença en­
tre os conceitos de «sesmeiro» e «coureleiro»: aquele seria, antes, um ma­
gistrado do povo, enquanto «coureleiro» seria um delegado ou preposto de
el-Rei ou dos donos de castelos.
Na Colónia, mantém-se, de início, a mesma linguagem: terra de ses­
maria é aquela repartida pelos sesmeiros de el-Rei, mas, a pouco e pouco,
se foi modificando o sentido, passando Sesmeiro a designar o que recebia a
sesmaria e não quem a distribuía, sentido usado na linguagem vulgar e,
depois, introduzida nos próprios documentos oficiais, figurando com esta
acepção, cremos que pela primeira vez, na carta de 28 de setembro de

1
1612, reguladora do problema das terras do Rio Grande do Norte.

10 - TRANSPLANTAÇÃO FATAL

Descoberto o Brasil, a Metrópole, ofuscada pela visão do Oriente, não


enxergou maior vantagem na conquista, muito tempo olhada como simples
«pousada para esta navegação de Calicute», da carta de Caminha, a terra
34 Costa Porto

que «N.S. milagrosamente quis que se achasse, porque he muyto conve­


niente e necessária à navegação da índia», como escreve D. Manuel, na
comunicação de 28 de agosto de 1501, aos Reis Católicos.
E, salvo esporádicas frotas de reconhecimento da costa, ou expedições
esparsas explorando o comércio das pobres cousas do mundo americano, os
30 primeiros anos decorrem sem nenhum esforço sério de povoamento e
ocupação efetiva da Colónia.
Em 1516, duas medidas, lembradas por Varnhagen, mas, segundo
parece, falhadas: um alvará, mandando se dê algum material — foices e
machados — a quem quisesse ir trabalhar no Brasil, e outro, ordenando se
escolhesse homem experimentado para fundar engenhos na Colónia.
A documento desconhecido alude Capistrano, em carta de 1905 a Ra­
mos da Paz - o «Regimento» dado a João da Costa, «quando foi a desco­
brir terras ao Brasil». E indagava: «será possível que ainda exista? Como
tem escapado, até hoje, a todas as investigações?» (Correspondência, I,
pág. 21).
Torna ao assunto depois, mas em seguida silencia, sinal de que nada se
encontrara.
Com D. João III é que se inicia, efetivamente, o plano de colonização,
quando, em 1530 envia Martim Afonso ao Brasil, concede-lhe el-Rei facul­
dade para distribuir terras às pessoas «que comsygo levar (e) aas que na
dyta terra quyserem viver e povoar»; e quando, afinal, introduz o sistema
donatarial, quanto ao problema do solo o que lhe acode é transplantar a
velha fórmula dos tempos de D. Fernando, mandando aos donatários o re­
partam com os moradores, «na forma que se contem em minha
ordenação», repontando, assim, aquela indagação de Messias Junqueira:
por que, em vez de reviver, no Brasil, a fórmula do feudalismo medieval,
preferiu D. João III adotar o sistema sesmarial, distribuindo as terras com
os moradores, à moda do que se fez no Reino, em tempos de D. Fernando?
Para Cirne Lima — repetindo a doutrina mais comum —, «a trans­
plantação do regime de sesmarias para as terras do Brasil» se deve, «incon­
testavelmente», àquela disposição que «das Ordenações Manuelinas passou,
com modificação pequena, ao texto das Filipinas»: «defendemos
(proibimos) aos Prelados, Mestres, Priores, Comendadores, Fidalgos, e
quaesquer outras pessoas, que terras ou jurisdições tiverem, que os casais,
quintas e terras que ficarem ermas, se não forem suas em particular, por
título que delas tenham, ou per título que tenham as Ordens, Igrejas e
Mosteiros, as não tomem nem apropriem para si, nem para as Ordens,
Igrejas e Mosteiros, e as deixem dar os sesmeiros de sesmaria... Nem to­
mem os maninhos...nem os ocupem...e os sesmeiros poderão dar os mani­
nhos nos casos e maneira que per nós é determinado».
Em outras palavras: sendo as terras do Brasil «pertencentes» à Ordem
de Cristo, seus Grão-Mestres — no caso os Monarcas lusitanos que vinham
exercendo aquela dignidade desde os tempos de D. Manuel — seriam obri­
gados a distribuí-las de sesmaria, não as podendo tomar «pera sy», nem
para a Ordem.
O Sistema Sesmarial no Brasil 35

A lição, entretanto, não nos parece fundada, arrimando-se, cremos,


no pressuposto de que o solo brasileiro «pertencia» à Ordem de Cristo,
quando, na verdade, apenas, lhe estava sujeita à «jurisdição espiritual» —
«in spiritualibus duntaxat», conforme se lê nas bulas pontifícias.

11 O BRASIL E A ORDEM DE CRISTO

O assunto, porque ainda não estudado devidamente, mereceria detido


exame.
A Ordem de Cristo surgiu em Portugal para substituir a dos
Templários, criada na fase de exarcebação do ardor das «Cruzadas»,
quando o esforço para a reconquista dos «Lugares Santos» da Palestina fez
surgir as conhecidas instituições religioso-militares, cujos membros, dedica­
dos à ação e não à ascese, somavam aos votos comuns às entidades congé­
neres — obediência, castidade e pobreza — o de, monges-soldados, defen­
der pelas armas os «lugares santos».

Talvez a mais importante de todas, a Ordem dos Templários, depois


de haver largos serviços à causa da propagação da fé, acabou acumulando
enormes riquezas, deixando-se corromper pelo fausto e pela ambição, pro­
vocando a reação dos Monarcas europeus, liderados por Felipe, o Belo, da
França, que, talvez cobiçando-lhe o rico património, lhe moveu dura per­
seguição, culminando por condenar-lhe à morte o Grão-Mestre, e de tal
modo influindo junto aos demais soberanos que Clemente V — Papa entre
1304 e 1314 — findou extinguindo-a, pela bula Vox in Excelso, do
Concílio de Viena, de 22 de março de 1312, enquanto, pela bula Ad Pro-
vidam, de 2 de maio, ordenava passassem os localizados seus bens à Ordem
dos Hospitalários, exceto os em Castela, Aragão e Maiorca e Portugal, cujo
destino se decidiria depois.

Quando, pela bula Regnans in Coelo, de 12 de agosto de 1208, Cle­


mente V comunicou aos reis cristãos da Europa os processos movidos con­
tra a Ordem — emprazando-os para, no Concílio de Viena, decidirem
quanto ao seu futuro —, t). Dinís ficou alarmado: os Templários pos­
suíam, em Portugal, fortuna considerável, interessando ao Soberano ficasse
tudo no Reino, temendo evasão do património ali acumulado, e neste sen­
tido, diz Vieira Guimarães, «a 21 de janeiro de 1310, celebrou um pacto
<
com o genro, D. Fernando de Castela — a quem, mais tarde, se ajuntou
D. Jaime, de Aragão — de mútua aliança, para o caso de querer o Papa,
vindo a Ordem a acabar, tirar do senhorio e jurisdição real os bens que ela
possuía nos seus Reinos» (A Ordem de Cristo, pág. 70).

Decidida, por fim, a extinção da Ordem, o Monarca Lusitano envia a


Roma embaixadores para pleitear de João XXII, sucessor de Clemente V,
fossem seus bens incorporados ao património da Coroa, a fim de prosseguir
a luta contra os sarracenos ou, como fórmula conciliatória, se criasse nova
instituição local, de sorte que a riqueza dos Templários não saísse do Rei­
no.
36 Costa Porto

João XXII prefere a segunda solução e, pela bula Ad ea ex quibus. de


14 de março de 1319, funda a «Ordem da Milícia de N. S. Jesus Cristo», à
qual transfere «todos os bens móveis e imóveis...seculares e eclesiásticos... e
tudo que tinha e devia ter a Ordem dos Templários», desfecho aceito por
el-Rei D.Dinís, que, em carta de 24 de junho do mesmo ano, declarava:
«entendo não hey direyto nos ditos lugares que se devem tornar a esta nova
ordem que agora se ha de refazer...(e) à qual o Papa outorgou (o que) ou-
vesse no meu Reyno e senhorios e que elle outorgou e eu outrosy, todos os
bens que o Tempo hy avia» (Ap. Amaral, op. cit. 128).
Compreensível o empenho de D. Dinís por que os bens dos Templários
não saíssem de Portugal: tratava-se de fortuna obtida na própria terra —
através, muita vez, de doação feita pelos próprios Monarcas lusitanos —
sendo possível, ainda, sonhasse el-Rei, já então, com o programa do alar­
gamento das fronteiras do pequeno reino, misérrimo «retalho de Castela»,
pensando em investir contra o continente africano, abatendo o Mouro e,
do mesmo passo, aumentando os domínios portugueses: com este objetivo,
lembra Pedro Calmon, «diz-se que el-Rei D. Dinís mandara plantar o pi­
nhal de Leiria, em cujos troncos a carpintaria das tercenas navais falqueja-
ria a mastreação das caravelas». (Hist. do Brasil, I, pág. 12).
A criação da nova Ordem somente em parte atendia aos planos do
Monarca: os bens dos Templários não sairiam do Reino, mas sobre eles o
Trono iria ter influência reduzidíssima, dado que a direção da Milícia per­
manecerá desvinculada da Coroa, pois, provido vitaliciamente, o Grão-
Mestrado não se exercia hereditariamente, e se o primeiro titular — D. Gil
Martins — foi nomeado pelo Papa, os sucessores deveriam ser eleitos «em
capítulo geral, pelos cavaleiros professos», seguindo-se confirmação pon­
tifícia.
E pelo menos até 1373, os seis primeiros Grão-Mestres foram, todos,
pessoas estranhas à família real, sem nenhuma interferência dos Monarcas
na escolha: D. Gil Martins, designado por João XXII, na própria bula de
erecção da Ordem, e cujo mandato teria ido até 1321; D. João Lourenço,
falecido em 1327, parecendo ter renunciado ao posto, antes de morrer; D.
Martim Gonçalves Leitão, que regeu a Ordem até, possivelmente, 1335;
seu irmão, D. Estêvão, até 1344; D. Rodrigo Anes, até 1346, ou 1347; D.
Nuno Rodrigues, até 1372 (Vieira Guimarães, op. cit. passim).
Morto D. Nuno, el-Rei D. Fernando, por injunções de D. Leonor,
terá sido o primeiro em interferir, abusivamente, nos destinos da Ordem,
designando-lhe substituto — D. Lopo Dias de Sousa —, nomeação triplice-
mente irregular, pois falecia a el-Rei autoridade para fazê-la, o escolhido
não pertencia aos quadros da Ordem — condição essencial para o
exercício do Grão-Mestrado — e tinha, apenas, 12 anos de idade, pelo que
Gregório XI e Urbano VI lhe negaram confirmação, permanecendo o car­
go vago até, possivelmente, 1385, quando, atingindo a maioridade, D. Lo­
w po foi confirmado, dirigindo a Ordem talvez até falecer, em 1417.

Depois de D. Fernando, rebenta em Portugal o movimento popular

í* ■ que findou levando ao trono o Mestre d’Avís, sob o nome de D. João I, cujo
governo é um dos pontos altos na vida do pequenino Reino: o casamen-
O Sistema Sesmarial no Brasil 37

to dos dois monarcas — o lusitano e o espanhol — com as «ínclitas prince­


sas» da Inglaterra facilitou a «paz desejada já das gentes», e, tranqiiilo
quanto à situação interna da Monarquia, o Mestre d’Avís volta as vistas
para o expansionismo marítimo, iniciando a «jornada africana», vitoriosa­
mente coroada pela conquista de Ceuta, em 1415, e levada a cabo, preci­
samente, com o auxílio financeiro da Ordem de Cristo, então já
opulentíssima, apontando-a Sevcrim de Faria como «a mais rica religião
militar que nunca houve», e indicando-lhe os principais patrimónios tem­
porais: 454 comendas, que lhe rendiam 250.000 cruzados por ano, o se­
nhorio de 21 vilas, além de largos privilégios recebidos dos reis e dádivas
dos fiéis.
Percebendo não podia levar a cabo o programa expansionista sem os
recursos materiais da Ordem de Cristo, procurou D. João I exercer mais
diretamente o controle da Milícia, vinculando-a à Coroa e, com este obje­
tivo, deu o primeiro grande passo, pleiteando de Martinho V, no começo
da década de 1420, fosse o seu filho, o Infante D. Henrique, designado
«administrador» da Instituição, pretensão satisfeita com tanta maior facili­
dade quanto o Pontifício se mostrava muito agradecido ao Monarca
lusitano, cuja política de «propagação da fé» vinha sendo executada exata­
mente para atender ao apelo da bula «Sane Charissimus», de 4 de abril de
1418, em que se conclamavam os Imperadores europeus «ut ad infidelium
errorunque eorundem exterminium... potenter a viriliter se accingant».

De resto, a absorção da Ordem de Cristo pelo trono vinha completar


a lenta infiltração da Coroa nas instituições congéneres: o próprio D. João
I era Mestre de Avís, seu filho, D. João, conseguira o mestrado da Ordem
de São Tiago e, agora, o Monarca investe contra a Ordem de Cristo, cuja
direção solicita para D. Henrique, trazendo à colação, acentua o Padre
Brásio — (A Ação Missionária no Período henriquino) —, quase os mes­
mos argumentos usados quanto às outras Ordens; em primeiro lugar, o
desvirtuamento da instituição que, fundada «ad impugnationem inimico-
rum Crucis Christi pro defensione fidelium», se desviara da pureza primiti­
va, porque «qui magistratui illi praefuerant, potius redditus et proventus
ipsius magistratus ad usus illicitos exposuerant quan ad quod fundatus fue-
rat magistratus»; em seguida os esforços despendidos «contra pérfidos sar­
racenos» — aos quais arrebatara «nobilem civitatem Ceptae» — e a neces­
sidade de amplos recursos para prosseguir a guerra contra os pagãos —
«pro augmento christianae religionis» —, tarefa que o Reino não mais su­
portava, pois «continue magna expensarum onera cogitur subire»,
tornando-se imprescindível dispor de meios materiais, aplicáveis na campa­
nha a que o conclamara o Pontífice.
Viu D. João o pedido coroado de êxito quando, pela bula «In
«Apostolicae Dignitatis», de 20 de maio de 1420, Martinho V entregou a di­
reção da Ordem ao Infante, lembrando o Padre Brásio que D. Henrique
não foi designado, propriamente, Grão-Mestre, mas simples «administra­
dor» da Ordem -— embora com plenos poderes —, sendo, de resto, a de­
signação temporária — «usque ad nostrum beneplacitum» —, somente
tornando-se permanente pela bula de 24 de novembro do mesmo ano.

i
38 Costa Porto

Até então, é certo, a Ordem de Cristo nunca estivera alheia às lutas


portuguesas, tanto nas guerras de Independência, como contra os mouros,
mas tudo dependendo da boa vontade dos Grão-Mestres, sobre cuja
orientação el-Rei nada influía: agora, porém, os interesses do Grão-
Mestrado e da Coroa se identificam, pois o Infante pertencia à Casa Real
— filho de D. João I, irmão de D. Duarte, tio de D. Afonso, ele mesmo
podendo, eventualmente, assumir a Coroa, como membro da dinastia rei­
nante a partir de 1420, o Grão-Mestrado da Ordem de Cristo continuará
sempre na Casa Real, exercido sucessivamente pelos Infantes, até 1485,
quando, tendo assassinado o irmão D. Diogo, el-Rei D. João II designa, à
revelia do Papa, o cunhado D. Manuel, Duque.de Beja, para o cargo. Afi­
nal, falecendo D. João em 1495, D. Manuel o substitui no trono e, pela
primeira vez, se reúnem na mesma pessoa as dignidades de Rei e de Grão-
Mestre. situação que continua com D. João III e se torna definitiva — pa­
rece que a partir de 1551, quando, pela bula Praeclara Clarissimi. Júlio III
determina que, daí em diante, o Grão-Mestrado da Ordem seja exercido
pelos Monarcas lusitanos — permanecendo, entretanto, a distinção lógica
e formal entre as duas funções, dirigindo el-Rei a Ordem de Cristo «non
tanquam Rex, sed tanquam Administrador, constitutus a Sede Apostóli­
ca...ita ut in una persona Regis considerari debet duplex dignitas, Regalis
altera et Magistri», da lição de Cabedo.
Com D. Manuel completara Portugal a política expansionista lusitana,
custeada pela Ordem de Cristo, e, em sua mor parte, planejada pelo In­
fante que, dirá Nicolau V, segundo a síntese da bula Aeterni Regis, de
Xisto IV, imitando D. João I, «muito aceso per ardor da fé...fez divulgar e
alevantar o glorioso nome do Criador por toda a universa redondeza da
terra», ansioso por converter «os Mouros, perfiosos inimigos da viva Cruz»;
e depois de batido o Sarraceno da África, com a tomada de Ceuta, em
1415, preocupado em levar a fé a «quaisquer infiéis...povoou de cristãos,
no mar oceano, algumas ilhas, nas quais fez alevantar igrejas e outros
lugares piedosos»; finalmente, verificando que «nunca, em tempo algum,
ou ao menos que fosse em memória de homens não se acostumasse de na­
vegar pelo dito mar oceano contra as partes meridionais e orientais», jul­
gou «faria mui grande serviço a Deus se, por sua indústria e obra, dito
mar pudesse ser navegável até os índios... para ajuda contra os Mouros e
quaisquer outros inimigos da fé de Cristo e para fazer guerra a outros po­
vos gentios e paganos... não ensujeitados na seita do nefando Mafamede,
para lhes pregar o sacratíssimo nome de Christo», utilizando, nesta tarefa,
os recursos da Ordem, como se diz, expressamente, na bula Inter Coetera,
de Calixto III.

12-0 PADROADO
Ao problema da «propagação da fé» acha-se ligado o instituto do Pa­
droado, que, hoje, simples «reminiscência histórica», merece, entretanto,
análise ao menos sumária, pois constitui um dos aspectos mais peculiares
nas relações entre o Estado lusitano e a Igreja e relevantíssimo na vida do
Brasil Colonial.
O Sistema Sesmarial no Brasil 39

Conceituando-o como «aquele privilégio oneroso concedido à Nação


portuguesa, em gratidão pelo muito que ela fez em prol da religião e da
fé» e graças ao qual gozavam os Monarcas da faculdade de «indicar os no­
mes dos Bispos, prover as diferentes dignidades», com o encargo de susten­
tar os missionários e velar pelas igrejas e pelo culto, pondera o douto Silva
Rego que o Padroado não surgiu de um dia para o outro, em dado mo­
mento da história, mas resultou de «uma acumulação sucessiva de privilé­
gios e direitos que a Igreja conferiu aos Soberanos portugueses» (O Padroa­
do Português no Oriente). E como preliminar, caberia distinguir duas rea­
lidades que, embora interrelacionadas, são inconfundíveis: o domínio das
terras descobertas ou tomadas aos infiéis — poderes «in temporalibus» e
as largas faculdades de natureza espiritual, de que surgiu o Padroado.

Quanto às «terras descobertas e a descobrir, pelo mar oceano até as


índias», a conclusão parece inquestionável: mercê de várias bulas pon­
tifícias, repita-se, pertenciam à Coroa portuguesa, ao Estado, «ad Rempu-
blicam», da linguagem de Cabedo.

Desde as origens, procurara a Igreja, fiel à lição do fundador, delimi­


tar as fronteiras com o mundo, reservando-se «ea quae sunt Dei» e deixan­
do ao Estado o que dizia respeito a César.

Mas, ao longo da Idade Média — e tendo de enfrentar,


materialmente fraca, o desafio das cousas terrenas — foi cedendo algumas
de suas prerrogativas aos que lhe davam ajuda «in temporalibus», de ajun­
tar, no caso de portugal, que, desde D. João I, o trono de Lisboa se vinha
distinguindo no esforço da «_propagação da fé», combatendo os sarracenos
da África, donde, alargando os favores nas «cousas de César» — o reco­
nhecimento do domínio sobre as terras descobertas e a descobrir —, rega­
lias, também, no setor espiritual, mais tarde compendiadas no Padroado.

A matéria se apresenta muito confusa e tumultuada, difícil


determinar, com segurança, quando e com que escoras, os Reis portugue­
ses se arrogam o direito de interferir na seara eclesiástica - indicando
bispos, provendo dignidades, exercendo jurisdição no espiritual —
afigurando-se, entretanto, infundada a doutrina de que esta extralimitação
resultasse da bula Rex Regum, de 8 de setembro de 1436, cujo alcance seria
limitado.

Ao que parece, teria a Santa Sé concedido algum privilégio especial à


Coroa lusitana, atribuindo-lhe faculdades espirituais em determinadas
áreas do Império de ultramar, o que explica o fato de, em carta de 26 de
outubro de 1434, el-Rei D. Duarte haver transferido ao irmão, o Infante
D. Henrique, «todo o espiritual das nossas Ilhas da Madeira, do Porto San­
to e Deserta... pela guisa que o há em tomar», rogando «ao Padre Santo
que praza a sua Santidade outorgar e confirmar... as ditas Ilhas pela guisa
que supra é dito», o que teria ocorrido com a Rex Regum.
40 Costa Porto

Também não parece legítima aqueloutra doutrina de que as origens


do padroado se devam buscar na bula etsi suscepti, de 9 de janeiro de
1442, que disciplina caso concreto, fácil de explicar, firmando um «ius sin-
gulare», em favor do Infante D. Henrique.
Recorde-se que, pela bula In Apostolicae Dignitatis, de 20 de maio de
1422, Martinho V designara o Infante «administrador da Ordem de
I Cristo», cujos estatutos lhe impunham, para o desempenho do cargo, fazer
voto de «castidade, obediência e pobreza». Ora, possuindo grande
património pessoal, de que, naturalmente, não queria despojar-se, teria D.
Henrique solicitado a Eugênio IV dispensa da exigência regulamentar, o
que lhe foi deferido, ou, nas palavras testuais do diploma pontifício,
«propondo ele emitir a profissão regular que é costume ser emitida pelos
freires da mesma, nós, nesta parte inclinados às suas súplicas... concede­
mos que, depois de ter emitido essa profissão, possa reter, enquanto viver,
o Ducado de Vizeu e quaisquer outros domínios temporais e ai legitima-
II mente pertencentes, tanto agora como antes, caso não emitisse a sobredita
profissão» etc.
É verdade que o Pontífice ia além, outorgando-lhe, ainda, a
faculdade de «receber cada uma das Igrejas, cujo direito da padroado os
i' fiéis cristãos lhe doarem» — sinal de que o costume era antigo no Reino —
acrescentando o privilégio de que «naquelas (igrejas) que... não hajam tido
Bispos próprios, possam ser as cousas espirituais exercidas por outros bis­
pos... eleitos pelo mesmo Mestre», favor expressamente estendido à Igreja
ou Capela da gloriosíssima Virgem Maria de Ceuta e às de Valdangere.
Tetuão e Alcácer Seguér. Uma espécie de «padroado», sem dúvida, mas
limitado a determinadas regiões do Império.
De começo exercido em poucas e determinadas porções do mundo
lusitano, o Padroado ter-se-la alargado, alcançando todas as possessões do
ultramar, em época não definitivamente esclarecida, possível, entretanto,
admitir resultasse da bula Cuncta Mundi, de 8 de janeiro de 1454, a partir
da qual a situação seria simples: além do domínio temporal das terras des­
cobertas, a Coroa portuguesa exerceria, sobre elas, o poder espiritual, o
Padroado — misturando-se, num todo, «ea quae sunt Caesaris»e «ea quae
sunt Dei». A seguir, ocorreria inovação de vulto: Estado pobre, vinha Por­
tugal levando a cabo o programa expansionista — «dilatando a fé e o Im­
sí pério», arrebatando «terras ao sarraceno» —, graças à ajuda financeira da
Ordem de Cristo e daí o apelo de el-Rei D. Afonso e do Infante ao Papa
Calisto III, no sentido de recompensar esta cooperação, imprescindível, plei­
to atendido pela bula Inter Coetera, de 13 de março de 1554, em que,
confirmando a Cuncta Mundi, de Nicolau V, dizia o Pontífice: «statuimus
et ordinamus quod spiritualit: s et omnimoda jurisdictio ordinaria, domi-
nium et potestas In Spiritualibus Duntaxat, in insulis, villis, portibus, terris
et locis, a Capitibus bojador et de nam, usque por totam Guineam... us-
que ad Indos... ad Militiam et Ordinem... spectent atque pertineant... ita
quod Prior Maior... Ordinis dictae Militiae omnia et singula beneficia ec-
clesiastica, cum cura et sine cura, saecularia et ordinum quorumcumque
regularia in insulis, terris... conferre et illis providere, omnia que alia et
O Sistema Sesmarial no Brasil 41

singula quae locorum Ordinarii... habere censentur, de iure vel consuetu-


dine facere. disponere et exequi ponint ete consueverunt, pariformiter absque
nulla differentia facere, disponere et exequi possit et debeat».
Resumindo, seria possível esquematizar o seguinte quadro: a) as terras
de ultramar sempre pertenceram à Coroa, ao Estado, «ad Rempublicam»,
domínio que nunca transferido a Ordem de Cristo; b) na linha de genero­
sidade em crescendo, teria a Santa Sé concedido a Portugal, aos Reis
lusitanos, também a jurisdição in spiritualibus — o Padroado que, de co­
meço limitado a determinadas porções do Império, teria, a seguir, alcance
geral, alcançando todo o ultra-mar, talvez pela bula Cuncta Mundi, de 8
de janeiro de 1454; c) finalmente estes poderes «in spiritualibus» foram, a
pedido de D. Afonso e do Infante, transferidos à Ordem de Cristo, pela
bula Inter Coetera, de 13 de março de 1554.
Descoberto o Brasil, suas terras, pertencentes «ad rempublicam», esta­
vam sob a jurisdição espiritual da Ordem de Cristo, praticamente, é certo,
da Coroa, mas por força de circunstâncias especialíssima: desde 1495 D.
Manuel reunira, na mesma pessoa, as dignidades de Rei e de Grão-Mestre,
situação ocasional e tornada definitiva a partir de 1551, por determinação
do Papa Júlio III.
A Ordem dc Cristo, insistimos, não era dona das terras da Colónia,
segundo, de resto, o positiva a maneira como era distribuído o solo.
Quando, nos tempos de D. Fernando, a Coroa pôs em prática o programa
de «reforma agrária», repartindo o solo inculto e inaproveitado, o proprie­
tário indolente, omisso, que não explorava a gleba, poderia, inclusive, in­
correr na pena severa de confisco, tomando-se-lhe a terra, que passava «ao
bem comum».
Em certos casos, porém, a incultura não dependia do proprietário —
como sucedia naquelas terras arrendadas «ad perpetuum», ou «ad longum
tempus», sob enfiteuse, em que havia dois senhorios — o «nu», do proprie­
tário, e o «útil», do enfiteuta — e nesta hipótese, injusto tomar o solo a
quem nenhuma responsabilidade tinha no inaproveitamento, a lei, sábia e
sensata, mandava continuasse o novo beneficiário pagando o arrendamento
ao senhorio direto, expresso o preceito das Ordenações: «onde quer que se
derem sesmarias de quaisquer cousas, se as terras, onde estiverem, foram
isentas, se dêem sesmarias isentas; se forem tributárias, com o tributo delas
se dêem e não se lhes ponha outro tributo».
Ora, fossem as terras do Brasil de alguns senhorios, estivessem sujeitas
a algum dono — além da Nação, da «respublica» —, sua distribuição se
deveria processar mediante o pagamento do tributo devido ao senhorio e,
na verdade, tal não ocorria, repartindo-se o solo «lyvremente, izento,
sem foro nem tributo nem dereyto allgum», salvo, unicamente, o dízimo
de Deus.
Nem se diga traduzisse o dízimo alguma idéia de reconhecimento de I
direito sobre a terra, pois não passava de ónus sobre a produção, pago,
mesmo, por quem não tinha terra, pelo fato simples de, como cristão, o
42 Costa Porto
1
produtor dever contribuir para o programa de propagação da fé, qualquer
coisa lembrando os impostos prediais e territoriais de nossos dias, cujo pa­
gamento não importa reconhecer direito, às Prefeituras e aos Estados, so­
bre prédios e edifícios.

13 O ERRO DO SESMARIALISMO COLONIAL

A adoção do sistema sesmarial no Brasil, cremos, resultou das


condições peculiares da Colónia, cuja situação, ao primeiro exame, pare­
cia, ao menos sob um aspecto, decalque daquela do Reino, em tempos de
D. Fernando: a existência de terras inaproveitadas, incultas, inexploradas.
Muito fácil, hoje, censurar a política de D. João III quanto ao proble­
ma fundiário brasileiro, valendo, porém, ponderar: não houvesse derivado
para a distribuição do solo, à semelhança do que se fizera em Portugal,
em 1375 — e se repetira na Madeira —, que outra fórmula teria sido viá­
vel no Brasil?
Até hoje ainda se não apresentou nenhuma, nem pior, nem melhor.
Dando terras de graça — no começo sem quase outra formalidade
além do pedido — o povoamento se arrastou, moroso, amarrado à faixa
minúscula da orla litorânea, por falta de gente, pelas dificuldades de inte-
riorização, valendo notar que, ainda hoje, quatro séculos e meio depois do
descobrimento, mais da metade do país — exatamente 4.814.037 Km, in­
tegrados pelos Estados do Amazonas, Pará, Mato Grosso e Acre oferece
densidade demográfica inferior à de desertos, menos de um habitante por km2,
segundo os dados do Censo de 1940.

Que sucederia se a terra houvesse sido vendida, arrendada, explorada sob


enfiteuse?

Diante da imensidade do solo despovoado e inculto, a Metrópole não teria


outro caminho a seguir.

Olhos fitos no velho figurino de D. Fernando — deparando-se-lhe a


vastidão da conquista, cuja ocupação efetiva se tomava imperiosa, sob pena de
vê-la cair no domínio da França —, resolve D. João III adotar o mesmo
processo, velho de quase século e meio: no reino, terras incultas foram dadas de
sesmaria; no Brasil, o solo inexplorado — embora por outras causas — , seria
natural igualmente se repartisse de sesmaria, solução de si mesma correta con­
sistindo o erro não em transplantar, para o Brasil, o velho modelo dos tempos
de D. Fernando, mas, fazendo-o, não levar em conta as circunstâncias diferen­
tes do mundo americano, as peculiaridades ambientes, as condições sui-generis
da situação colonial.

Na verdade, entre Portugal de D. Fernando e o Brasil de D. João III, só ha­


via mesmo um ponto comum: a existência de solo sem cultura, sem aproveita-
mento, inexplorado.

Tudo o mais, diverso.


O Sistema Sesmarial no Brasil 43

Diversas, em primeiro lugar, as causas: no Reino, a incultura


resultando do descaso dos senhorios que, indolentes, nem o trabalhavam,
nem deixavam outros o cultivassem, donde o remédio drástico do confisco,
para redistribuição entre os que não tinham terras, enquanto no Brasil,
decorria da carência de braços, da falta de população, pois a Conquista
se apresentava num deserto humano.
Diversos, por igual, os objetivos: no Reino, distribuía-se o solo a fim
de possibilitar a produção e, com ela, ela. assegurar o abastecimento; no
Brasil, visava-se, de certo, à produção, mas tendo-se em vista, de maneira
precípua, o povoamento, mesmo porque não havia população para abaste­
cer.
Diversos, ainda, os métodos de fiscalizar o funcionamento do siste­
ma: em Portugal, de território minúsculo, em cada cidade, comarca ou vi­
la, mandava a lei houvesse funcionários encarregados de distribuir o solo e
vigiar pela aplicação do disciplinamento sesmarial, enquanto, na Colónia,
tudo ficava afeto a meia dúzia de delegados de el-Rei — donatários, pro­
vedores, etc. —, todos residentes nas sedes, ignorando o que se passava pe­
lo interior.
Não levando em conta nada disso, a Coroa, em golpe ingénuo de má­
gica, agindo como se a lei pudesse sobrepor-se aos fatos, traçava disciplina­
mento a distância, pretendendo amoldar a realidade às normas, em vez de
ajustar a regulamentação às condições específicas do meio.
As cartas de doação e os forais determinavam fosse a distribuição do
solo pautada pelos princípios das Ordenações e já aí repontava o primeiro
desazo, pois o próprio conceito de sesmaria — «terras... que foram ou são
de alguns senhorios e que já em outros tempos foram lavradas e aproveita­
das e agora o não são» — de nenhum modo se ajustava ao Brasil, cujas
terras nunca haviam sido de alguns senhorios, nunca haviam sido lavradas,
«terras de ninguém», inapropriadas por privados.
Este, cremos, o erro de base da Coroa, que de resto, se observa em
tudo, no vezo tonto de se legislar de longe, sem conhecer a realidade,
elaborando-se a norma em Lisboa, e despachando-se, empacotada, etique­
tada, formalizr.da, para traçar a conduta dos súditos na América.
Em primeiro lugar, causa espanto o modo como o Soberano descia a
regular detalhes da vida colonial, tratando de ridicularias, de nonadas,
mandando-se, como o faz D. Sebastião, em carta de 28 de abril de 1570,
que «pessoa algum nam poderá dar a comer em sua mesa mais que um as­
sado e um cozido, e um picado ou desfeito, ou arroz e cuscus, e nenhum
doce, como manjar branco, bolos de rodilha, ovos mexidos, etc.» (Varnha-
gen, Hist. Geral II, pág. 20, nota 40); regulamentando o vestuário dos es­
cravos; determinando o tratamento aos camareiros e às autoridades régias;
fixando quem tinha precedência nas procissões e atos litúrgicos, etc., tudo
sem nenhum senso das realidades coloniais, baixando-se normas de todo
alheias às condições ambientes, nada obstante as ponderações sensatas de
muito homem da Colónia, muito administrador objetivo, de pés fincados
no chão, que reclamavam orientação mais ajustada à vida, mais realista,
menos abstrata e vaga.
44 Costa Porto

Esta, por exemplo, uma das grandes batalhas de Duarte Coelho com o
fisco lusitano e da qual saiu esmagado. Os regimentos de Antônio Cardoso
e dos Provedores inovaram o regime fiscal firmado nas cartas de doação e
nos forais, praticamente abolindo «as lyberdades e pryvilegyos» concedidos
aos moradores, e, ante o clamor geral, o donatário escrevera ao Soberano,
tomando ao assunto em abril de 1549, pedindo-lhe «veja minha carta e lhe
tome ho emtemto e achará que tudo he sustancya de seo serviço, sobre que
ando morrendo, que milhor me fora já hua morte que tantas sem acabar
de morrer». Porque, pondera, «as cousas destas calydades cá per fora tam
alongadas do Reino querem-se per outros meos e maneiras que nam as de
11a».
Tudo quanto se liberalizara lhe parecia razoável e adequado «pera
povoar terras novas e tão alomgadas do Reino», donde ponderar «não
comsymta V. A. 11a bulyrem em taes cousas, porque não hc tempo pera
com tal se bulyr mas pera mais acresentar as lyberdades e prevyleyos e não
pera os deminuir», o que «em tempo allgum nem em parte allguma se
nam deve fazer, quanto mays tam cedo a estas partes tam alomgadas do
Reyno», pois, com regalias e favores, «a gente quyeta estará a araygará na
terra e faram fazendas de que dobrado e tresdobrado proveyto terá V. A.»
O ouvidor Pero Borges, em carta de 7 de fevereiro de 1550, pinta-nos
quadro sombrio da Colónia, onde a imitação servil da vida jurídica do
Reino estava causando males imensos o vezo de copiar as normas da Me­
trópole, fazendo o Brasil andar à matroca, parecendo «terra desamparada
de vossa justiça»: porque em Portugal havia ouvidores, também se criavam
ouvidorias na Colónia, e, rareando o elemento humano, guindavam-se aos
cargos homens como Francisco Romero, de Ilhéus — «pera cousas de
guerra acordado, experimentado e de bôo conselho», mas incapacitado
«pera ter mando na justiça, porque he ignorante», tendo sido, de resto,
«preso no Limoeiro... por culpas que commeteo no dito officio»; ou como
aquele estranho Juiz, «que non sabe leer nem escrever» e «dá muytas sen­
tenças sem ordem nem justiça». Obedecendo aos preceitos rígidos das Or­
denações, os donatários «faziam nomeações excissivas» para os cargos pú­
blicos, e «nestes officios mettem degredados por cullpas de muita infamia e
desorelhados».

Em Ilhéus, deparara-se-lhe o caso de um homicida que, de acordo


com a lei, devia ser julgado pelo Governador Geral, na Bahia, mas difíceis
as viagens entre os dois centros, o prisioneiro, antes de enviado a julga­
mento, «será primeiro comido dos bichos que despachado».

Tivera Borges de julgar uns colonos que, casados no Reino, viviam,


na terra, «abarregados publicamente com gentias», crime punido pelas Or­
denações com o degredo para a África: realista, o Ouvidor, entendendo
soar um contra-senso, em terra sem moradores, deportar-se gente para a
África, comutou-lhes o degredo para outras capitanias, e, embora as Orde­
nações estabelecessem «nam sejam solltos sem especial mando de V. A., eu
os mandey solltar pera yrem comprir seus degredos, porque a dita ordena­
ção non se deve de entender em logares tam alomgados donde V. A. estaa
O Sistema Sesmarial no Brasil 45

e logares onde estão de contino como em guerra», mesmo porque «em


nenhua cousa aproveitão os homens presos, senam que elles nam servem e
occupão quem os guarda».
E numa síntese, a mostrar a necessidade de disciplinamento especial
para a Colónia, a observação de que no Brasil «acontecem mil casos que
nam estam determinados polias Ordenações» (Hist. da Colonização, III, 268
e segs).
Sempre desavindos em quase tudo, num ponto estavam de acordo o
Bispo Sardinha e D. Duarte da Costa: o que ficava bem no Reino nem
sempre podia ajustar-se à Colónia. Em carta de 12 de julho de 1552, o Bis­
po comunica a ei-Rei conservara no posto o Vigário de Salvador, embora
as informações o dessem como «muito ambicioso e mais querençoso de
ajuntar fazendas que inclinado às cousas da Igreja», assim agindo «tanto
pela necessidade que há cá de clérigos», como por lhe parecer que «nos
princípios muito mais cousas se hão de dissimular que castigar,
maiormente cm terra tão nova».
D. Duarte, esse lembra a el-Rei que, na Colónia, «guardar-se a orde-
naçam ao pee da letra parece cousa rija», o que será repetido por Mem de
Sá, quando, em carta de 30 de março de 1570, ponderava a D. Catarina,
regente de Portugal, em nome do neto, D. Sebastião: «esta terra não se
pode nem deve regular pelas leis e estilos do Reino: se V.A. não for muito
fácil em perdoar, não terá gente no Brasil».
A centralização excessiva complicava tudo.
Administradores de visão, como Duarte Coelho, viviam a reclamar
providências objetivas, certa liberdade de ação a quem dirigia a Colónia,
de nada servindo a lei quando o meio não ajudava. Presa ao rigorismo da
letra do disciplinamento, a autoridade, quando queria acertar, encontrava
atropelos de toda ordem e terá sido isso que levou Mem de Sá àquela carta
altiva ao Conde de Idanha, de 10 de agosto de 1570: «todas as vezes que
poder, hei de alembrar a V. Mcê o perigo em que todas estas capitanias
estão pela sua má ordem e pouca justiça, porque trabalhe... com suas alte­
zas que provejam de algumas cousas que na sua carta aponto. Eu sou um
homem só e quanto tenho feito, em todo o tempo que há que estou no
Brasil, desfaz um filho da terra em uma hora. S. A. dá as capitanias e os
ofícios a quem lhos pede sem exame se os merecem. E cá não há oficial
que preste, nem capitão que defenda uma ovelha, quanto mais capitanias
de tanto gentio e degregados. Tomo a Deus por testemunha... que faço
mais do que posso. A mercê que lhe peço é que me haja licença de Suas
Altezas para me poder ir, que não parece justo que, por servir bem, a pa­
ga seja terem-me degredado em terra de que tão pouco fundamento se
faz» (Ap. Hist. Geral, I, pág. 436).

14 DESFECHO FATAL.

No caso das sesmarias, o que o bom senso indicava era baixar-se


legislação adaptada à Colónia, e não copiar o figurino reinol, inadequado
ao meio e fatalmente condenado a fracasso. Teimou-se, porém, em trans-
r

46 Costa Porto

plantar a velha legislação para o Brasil — de começo sem um adendo,


seca, pura, rígida, «na iorma que se contem em minha ordenação» — e os
resultados teriam de ser desastrosos.
Em primeiro lugar, o conflito entre a lei e a realidade terminou,
como sempre, deturpando a pureza dos sistema, tomando-lhe os princípios
básicos e fundamentais quase letra morta, ou, quando aplicados, levando a
consequências opostas àquelas do Reino.

Na pendência em torno das terras de Palmares, reclamando contra as
exigências do alvará régio de 12 de março de 1695, Domingos Jorge Velho
pondera que «as clauzulas e condiçoens das leys e ordenaçoens q. ha nesta
matéria de semelhantes sesmarias, e que estão expressadas em 1.4.° das
Ordenações tto 43, e explicadas em os dezasseis §§ delles, não se sabe que
em tempo algum fossem observadas nestas conquistas do Brasil» (Ap. En-
nes, As Guerras dos Palmares, 332).
■ Talvez exagero de demandante em apuros, mas com alguns visos de
verdade. De fato, transplantara-se, inteiriço, o modelo reinol e. mesmo ad­
mitido fosse o seu disciplinamento perfeito, eficiente, cabal, restava o pro­
blema da execução em meio diverso: Portugal, de área territorial ínfima,
1 ■ densamente povoado, com tradição de juridicidade sedimentada através de
1- séculos, e a Colónia, um mundo desabitado, vasto, difícil de dominar.
Grave, entre outros, o problema de fiscalização: no Reino, em cada
■ comarca, vila cidade, havia delegados régios — os «sesmeiros» — incumbi­
dos da distribuição do solo e da fiscalização do funcionamento do sistema,
os próprios moradores interessados em ver se o beneficiário da data cum­
prida as exigências legais, pois, em caso de inadimplemento, podia cada
um ser contemplado na redistribuição; enquanto isso, no Brasil rareiam os
habitantes, não há quem fiscalize, tudo anda à matroca, a tarefa fiscaliza-

1 dora, de começo afeta aos donatários — a quem cabia efetuar a


distribuição das sesmarias — passaram, mais tarde, para os provedores, va­
lendo, de modo geral, pela aplicação das normas todos quantos exercessem
alguma parcela de autoridade.
Mas, em primeiro lugar, ínfimo o número de dirigentes, de pessoas,
de prol, de categoria, de relevo, a maioria dos donatários, ficando no
Reino ou, depois de tentar a experiência colonizadora, recuando diante
t dos entraves: mesmo quando, em 1549, se inaugura o governo geral, Tomé
de Sousa, Duarte da Costa, Mem de Sá, etc., residem na Bahia e os Prove­
dores e Ouvidores locais, nas sedes das antigas capitanias, podendo, quan­
do muito, acompanhar o que se passa pelos arredores, ficando as zonas
distantes entregues à própria sorte.
Por outro lado, ao menos no primeiro século, o elemento humano,
além de pouco, é da pior extração.
Uma das teclas mais repisadas nas cartas de Duarte Coelho é
exatamente esta: muitas das desordens verificadas na Colónia resultavam
da ausência dos donatários, entregue o rebanho a «mercenários e não pas­
tores», gente inadaptada à altura da missão, donde sugerir ao Soberano
mandasse aos capitães viessem dirigir pessoalmente seus feudos, ou, pelo
O Sistema Sesmarial no Brasil 47

menos, pusessem «em suas terras pessoas autas e sofycyentes e ouvydores


que entendam e saibam o que há de fazer, e não homens de por ahy
que... não fazem, mas desfazem no bem que se deve de fazer», dizendo.
dos dirigentes de Itamaracá, por exemplo, que «melhor seria não estarem
ahy».
Tomé de Sousa parece ter lido as cartas de Duarte Coelho, pois, na
correspondência para o Reino, quase lhe repete as reclamações com as
mesmas palavras: assim, cm carta de 1 de junho de 1553, entre as medidas
«sem as quais esta terra se não poderá sustentar se não se hum homem po­
de viver sem cabeça», lembrava cl-Rei «deve mandar que os capitães resi­
dam em suas capitanias», e, não o podendo fazer «por allgus justos respei­
tos, ponhão pesoas de que V. A. seya contente, porque os que aguora ser­
vem de capitães não os conhece a may que os pario», acrescentando haver
demitido o capitão dos Ilhéus, «por ser christão novo, accusado polia sam-
ta Inquisição e não ser pera o tal carguo em modo allgum».

A carta de Pero Borges, de 1550, é um libelo tremendo contra a*ad-


ministração colonial do tempo. Tanta a desordem que o severo Ouvidor
acaba por explodir, concluindo: «isto he uma publica ladroice».
Mem de Sá não pinta quadro menos severo, resumindo, assim, o
julgamento sobre as autoridades do Brasil: «cá não há oficial que preste
nem capitão que defenda uma ovelha quanto mais capitanias de tanto
gentio e degredados».
Mesmo, porém, se tratasse de gente boa — do estofo de Duarte
Coelho, de Tomé de Sousa, de Antônio Cardoso, de Pero Borges —, que
poderiam fazer, tendo-se em conta a imensidão da Colónia?
A todos estes percalços, somava-se entrave sério: o disciplinamento
não ajudava.
De começo, na verdade, ordenara el-Rei se distribuísse o solo na
forma prescrita pelas Ordenações que, neste ponto muito concisas, se limi­
tavam, praticamente, a estabelecer o aproveitamento em prazo determi­
nado — não tratando da extensão das datas — apenas condicionadas às
possibilidades de exploração, conceito muito vago e subjetivo,
descambando-se depois, para o pólo oposto tantas e tais as medidas baixa­
das pela Metrópole que ninguém podia tomar pé no tumulto, de levar em
conta o fato de, muita vez, se tratar de solução para casos específicos, oca­
sionais, locais ou pessoais, a que certas autoridades atribuíam alcance ge­
ral, não raro agravando a situação.
E, ângulo prático relevante: regulando as cousas à distância, a Coroa
não levava em conta as realidades coloniais, determinando providências
inexeqiiíveis, de modo que, ao peso da «bula das circunstâncias», o siste­
ma acabaria não funcionando conforme o figurino ou funcionando mal,
com distorções deturpadoras de sua pureza, acarretando conseqilências
aqui e ali conflitantes com as boas intenções dos seus idealizadores.
48 Costa Porto

í 15 - LATIFÚNDIO E PEQUENA PROPRIEDADE

Uma das principais distorções do nosso sesmarialismo fruto, em


grande parte, do desazo em ignorar as peculiaridades da Conquista,
aplicando-se-lhe o disciplinamento imaginado para a Metrópole — ocor­
reria de respeito à estrutura fundiária e cuja síntese seria esta: enquanto
no Portugal dos fins do século 14, a prática do sesmarialismo gerou, em
regra, a pequena propriedade, no Brasil foi a causa principal do latifún­
dio.
Em si mesmo, sem dúvida, o sesmarialismo mostrava-se «polivalente»,
tanto podendo levar à pequena, como à média ou à grande propriedade,
porque não havia na lei nenhuma fixação objetiva das extensões das áreas
a distribuir, tudo reduzido ao critério, vago, das possibilidades do aprovei­
tamento e, desta sorte, se o pequeno lavrador recebia courelas miúdas, ou­
tro, de maiores recursos, poderia receber porção maior, bastando pudesse
cultivá-la.
I
Na prática, entretanto, as condições gerais do meio lusitano faziam
com que a distribuição do solo conduzisse, fatalmente, à pequena proprie­

i dade, muita vez quase ao minifúndio.


Em primeiro lugar, a repartição importava o fracionamento do todo
primitivo.
Encontrando herdades inaproveitadas, o sesmeiro, depois de intimar
os senhorios a explorá-las, procedia, se inatendido, ao confisco — «que va
pera o bem commum» —, efetuando, em seguida, a redistribuição entre os
lavradores sem terra, apenas levando em conta as possibilidades de explo­
ração: desta sorte, o que pertencera a um quase sempre se quinhoava a vá­
rios, tanto maior fosse o divisor, tanto menores seriam os quocientes, em
regra mofinos, pois a maioria dos lavradores se constituía de gente pobre
— tão pobre que não conseguira, sequer, comprar glebas onde trabalhar.
E não fixando tetos intransponíveis às courelas, sujeitava-se o distri­
buidor àquele pricípio das Ordenações — «serem os sesmeiros avisados de
que não deem mayores terras que as que rezoadamente parecer que
poderão aproveytar» —, decorrência lógica da filosofia mesma do sistema,
em que a distribuição do solo tinha em vista a produção, em termos de re­
solver a crise de abastecimento, prevalecendo aquela linha mais tarde ex­
pressa na carta régia de 28 de setembro de 1612: quanto menos terra se
distribuísse, maiores seriam as possibilidades do aproveitamento.

I Quando nada disso bastasse, restava, como fator marcante, a


diferença entre a situação do Reino e da Conquista no ponto de vista de
população e de terra: Portugal dominado pelo binómio «muita gente e
pouca terra» e o Brasil, pelo oposto — terra em excesso e ninguém para
povoá-la.
No Reino, em verdade — de área territorial diminuta —, quando

l< surgia uma herdade inaproveitada, enxameavam lavradores que não ti­

J
nham onde trabalhar, donde a repartição fazer-se em courelas modestas, a

!
O Sistema Sesmarial no Brasil 49

fim de comtemplar o maior número de necessitados; no Brasil, sobrando


terras e quase ninguém que as pedisse ou ocupasse, não havia razões para
sovinice, para restringir datas, para ser severo nas concessões.
Tratava-se, realmente — mesmo dentro das limitações de Tordesilhas
—, de cerca de 750 léguas de costa, e, para o Interior, penetrando quando
fosse possível e pertencesse à Coroa lusitana — e, para encher estes claros,
densidade demográfica inferior à de dcsertosmos primeiros anos, quase não
há notícia de brancos na Colónia, tudo limitando-se à presença esporádica
de frotas de reconhecimento da costa, de navios que negociam com pau
brasil, de franceses espalhados pelo litoral, mas sem intuito de permanên­
cia, um que outro português adoidado, lendário e sem história — um Ca-
ramuru, um Ramalho, um Bacharel de Cananéia, um Frois, Capico, etc.;
em diversos pontos do litoral, sobretudo no Nordeste, alguma feitoria, «pa­
ra facilitar os carregamentos»; meras «caiçaras ou cercas, próprias, apenas,
para guardarem à roda, e soltos, alguns animais domésticos de fácil repro­
dução».
Movimento mais intenso no mar, pelas costas, pelos embarcadouros,
nenhum sentido, porém, de fixação efetiva.
Ainda em 1528, o quadro não seria muito diferente, segundo o delata
lamurienta carta escrita a D. Jão III por D. Rodrigo de Acufla — espanhol
meio amalucado que escapou à ruína da esquadra de Loaysa, e acabou nau­
fragando no litoiid alagoano, nos baixios que lhe receberam o nome.
Queixava-se D. Rodrigo de, perseguido pelos franceses, haver chegado a
Pernambuco, «pemsamdo hallar toda homra y cortesia como cn tycras de
hu ermano y tam amygo del Emperador», recebendo, entretanto, «mays
agravyo que me pudieron hacer en torguya», principalmente por parte de
Cristóvão Jaques, que não o quisera levar para a Europa, dexando-o em
terra, «perdido, descalzo y desnudo como hu selvagem», torpezas que os
portugueses estavam acostumados a praticar, não somente contra «los hyjos
de los portugueses», aos quais «se los dexão aquy pera manjar y viamda de
los selvagens, cossa ynhumana de hoyr e mas cruel de suffryr» adiantando
ter ouvido «se hallarem derramados nesta tyera mas trezycntos crystianos e
hyjos de crystianos, los quales estaryan mas cerca de se salvar em torquya
que aquy» (Hist. da Col. III, pág. 89).

A existência de 300 brancos, ou filhos de brancos, na futura capitania


de Duarte Coelho, parece exagero; mas, admitido fosse verdade o cálculo
de Acunã, que representavam em relação ao imenso território a ser acupa-
do?
Mesmo no fim do século 16, a situação não se mostrava muito
animadora: utilizando os elementos fornecidos pelo Padre Anchieta, Car-
dim, o autor dos «Diálogos», Gabriel Soares, etc., calcula Rio Branco fosse
a população da Colónia, então de cerca de 57 mil habitantes, dos quais 25
mil brancos, uns 18 mil indígenas domesticados e uns 14 mil africanos.
(Hist. Geral, 2. pág. 7). Sobrando terra e faltando gente, não havia por
que restringir as áreas, verificando-se, ao contrário, aquilo a que se refere
o parecer do Procurador da Coroa, no caso dos Palmares: «neste particular
50 Costa Porto

de sesmarias, he certo que se têm dado mais terras das que se têm desco­
berto, porque os ornes as pedem com largueza e, como estão incultas, se
dão com liberalidade» (Ap. Ennes, op. cit. pág. 255).
Realmente, o que vemos, em toda parte, é esta liberalidade na con­
cessão de sesmarias.
Em primeiro lugar, áreas imensas de quatro, cinco, dez, vinte léguas,
muitas vezes em quadra, isto é, 16, 100 e mais léguas, a sesmaria doada a
Brás Cubas, lembra Eduardo Zenha, abrangia parte dos atuais municípios
de Santos, Cubatão e São Bernardo do Campo, enquanto, no Nordeste.
foram freqiientes as concessões de terras, mais largas do que Estados de
nossos dias, como as da Casa da Torre, dos Guedes de Brito, de Sertão,
etc.
Além de receber, de uma vez, extensões imensas, seria usual, ainda,
repetirem-se as datas, contemplando-se o mesmo colono com sucessivas ses­
marias, em épocas e lugares diferentes.
Pelo menos até o fim do século 17 não encontramos, nem na lei nem
na prática, nenhuma restrição: se os donatários somente podiam separar,
para si, dez léguas — vedando-se-lhes «tomar terra allgua de sesmarya pe­
ra sy nem pera sua molher, nem pera o filho erdeiro», não podendo distri­
buir com os outros filhos «mays terras da que teverem dada a qualquer ou­
tra pessoa» — quanto aos colonos nunca houve restrição e os imensos lati­
fúndios da Casa da Torre, da Casa da Ponte, da Casa do Sobrado, de João
Pais, de Vieira, etc., resultaram de sucessivas datas de terra. A partir de
1759 — mais ou menos, e talvez por força da carta régia de 20 de outubro
de 1753 — é que vamos encontrar, na Documentação Histórica, por exem­
plo, a exigência de somente se concederem sesmarias a quem não houvesse
recebido outras anteriores, lendo-se cláusulas assim: «jurando os suplican­
tes não possuírem sesmaria alguma», (Doc. Hist. 2, págs. 129, 138, 144,
etc.), ou juramentos deste teor: «Aos 16 de...perante mim aparecerão os
supplicantes... pessoas que reconheço pelas próprias de que se tratão... aos
quais dei juramento aos Santos Evangelhos.. .encarregando-lhes que juras­
sem se tinhãm outra sesmaria ou havião alcançado fora da que preten-
dião...e de como assim o jurarão fiz este termo em que assinarão (ib. II,
129, 130, 138, 144, 148, etc.).
Mesmo, porém, depois vemos, na Documentação Histórica, muitos ca­
sos de doações sucessivas: Francisco Falcão Enserabodes, por exemplo, re­
cebe, em 1778, três léguas de terras, no rio Sebiró (ib.234) e mais uma lé­
gua, em 1782 (pág. 266); Antônio Afonso de Carvalho recebe, em 1757,
uma sesmaria nas cabeceiras do Rio das Piranhas (ib. 154) e outra, no ria­
cho Escurinho (pág. 158); ainda em 1804, João Batista da Silva recebe
duas sesmarias, em Bom Jardim (Doc. Hist. IV, págs. 12 e 13).
Além de receber muitas datas sucessivas, podia o colono alargar os
domínios fundiários por «aquisição derivada», comprando terras de tercei­
ros, improcedente a lição de Lira Tavares de que a legislação «vedava o
trespasse por qualquer título, a pessoa alguma...sem prévia audiência do
Provedor-Mor, que submetia a consulta ao Governador» (Op. cit. pág. 12).
O Sistema Sesmarial no Brasil 51

Mesmo existisse, tal proibição não seria absoluta, apenas dependendo


a ■lienação do «placet» das autoridades, mas, na verdade, nem isto acon-
■ia, nunca se nos deparando nas fontes qualquer ordem neste sentido.
contrário, o foral dos donatários previa um caso em que a alienação
era compulsória: de fato, proibindo el-Rei que os capitães tomassem terras
para si, ou as dessem a mulher ou ao herdeiro da Capitania, facultava-
lhes, entretanto, concedê-las aos «não herdeiros», os quais, todavia se viessem
a suceder, seriam obrigados, dentro em um ano após, «a largar e trespas-
sar a dita sesmaria cm outra pessoa e não a trespassando no dito tempo»,
perdê-la-iam para o Monarca.
A transferência de domínio do solo recebido de sesmaria consta, ex­
pressa, de outros itens legais. Empenhado em evitar abusos, em linha alta­
mente moralizadora, D. João não somente proibira que os donatários to­
massem terras para si — além das dez léguas do «reguengo» —, mas lhes
vedava «pô-las em outrem para depois virem a ele por modo algum que se­
ja», permitindo, entretanto, pudessem adquiri-las «por título de compra
verdadeira das pessoas que elas quiserem vender», apenas com a condição
de «passados oito anos e depois de as tais terras serem aproveitadas».
E, no Regimento de Tomé de Sousa, de 18 de dezembro de 1548, fi­
gura a cláusula de que, recebendo glebas de sesmaria, não as podia o
colono «vender nem enlhear», se não depois de três anos da data, o que
parece seria na prática letra morta.
De resto, não havia razões que obstassem a alienação de terras.
Sem dúvida, a concessão se fazia sob cláusulas resolutivas — do apro­
veitamento em prazo determinado, mais tarde do pagamento de um foro,
do registro, da confirmação da medição e demarcação — e, descumprida
alguma destas exigências essenciais, caducava a doação, voltando a terra à
Coroa, como «devoluta».
Mas satisfeitas as condições de lei, o colono adquiria o domínio pleno
do solo Ex Tunc, isto é, desde o momento da data, e não Ex nunc, isto é,
do momento do preenchimento das condições e, como dono do solo, podia
«da terra e na terra fazer o que bem lhe aprouver», como se diz nalgumas
cartas, tendo, em resumo, aquelas faculdades atribuídas pelos pandectistas
ao «dominium» romamo — «uti, frui et abuti» — incluindo-se no «abuti»
— tecnicamente entendido como o direito de «dispor» da coisa — a facul­
dade de alienar a qualquer título.
E o fato positivo é que toda gente vendia e comprava terras recebidas
de sesmaria, ou herdadas, pedindo e obtendo novas datas, abusando da
generosidade dos distribuidores para fazer do sesmarialismo quase um
negócio lucrativo. O caso por exemplo, de D. Isabel, filha de Jerônimo de
Albuquerque: solteira e sem herdeiros — «declaro.. .nunca fui casada, nem
tenho herdeiros alguns», afirma em testamento (Tombo, pág. 71) —, o
que infirma a lição de Rodolfo Garcia de que «das muitas filhas de Jerônimo
de Albuquerque...nenhuma ficou para tia» — (Primeira Visitação do San­
to Ofício, pág. XXX) — deixa os bens aos beneditinos, a quem já vendera
algumas terras (Tombo, 485) e, em 1625, está pedindo novas datas a Ma-
tias de Albuquerque, alegando que, morto o pai, «ficou muito pobre pera
se sustentar conforme o seu estado» (Ib. 479).
52 Costa Porto

16 - SÍSTOLES DE DIÁSTOLES

Duplo fenômeno é fácil constatar na história do nosso fundiarismo: o


jogo sincronizado de «sístoles» e «diástoles», aquelas processadas à base de
aquisições derivadas de domínio, e estas, sobretudo por força da sucessão
hereditária que foi, entre nós, um dos fatores mais acentuados no esfacela­
mento do latifúndio.
Na verdade, salvo casos excepcionais de instituição de «morgadios» —
quase um novo «ereto non cito» do velho direito romano, em que os bens
permaneciam indivisos, constituindo domínio do filho preferido, via de re­
gra o mais velho —, predominava no direito lusitano o regime da sucessão
hereditária romana, definitivamente cristalizado nas «Novelas» de Justinia-
no, e cujas linhas gerais obedeciam àquele mecanismo resumido por Ulpia-
no, no comentário «ad Edictum»; «cum paterfamilias moritur. quotquot
capita ei subiecta fuerunt, singulas famílias incipiunt habere » (D. XVI,
195, § 2).
Em regra, o património do «de cuius» se partilhava entre os herdeiros
— o cônjuge sobrevivente e ascendentes ou descendentes —, de sorte que,
se o defunto possuía dez léguas de terras e deixava cinco filhos, cada um
recebia, em herença, uma légua, fracionando assim o latifúndio primitivo, a
diástole fragmentando o todo originário.
Mas não raro um herdeiro, ou um estranho, adquiria as porções dos
outros, reconstituindo o todo primitivo: a sístole, novamente geradora do
latifúndio.
Deste jogo de sístoles e diástoles temos exemplo sugestivo no caso de
Paratibe, cujas terras — «compreendendo uma extensa zona corresponden­
te a todo o território da Maranguape e as terras de Maciape» — Duarte
Coelho doara ao cunhado, Jerõnimo de Albuquerque, «em remuneração
de seus serviços prestados na Colónia» (Pereira da Costa, Anais Pernambu­
canos, I, pág. 342).
Casando a filha, D. Antônia, com o fidalgo lusitano Gonçalves
Mendes Leitão, concedeu-lhe Jerõnimo, cm dote (4) a sesmaria de Parati­
be, onde o genro construiu um engenho, cuja capela foi solenemente con­
sagrada, em 1559, pelo irmão, D. Pedro Leitão, Bispo da Bahia. Mais tar­
de, Gonçalo deu parte de Paratibe a um dos filhos, que ali levantou novo
engenho, chamando-se, ao primeiro Paratibe de Cima e o segundo, Parati­
be de Baixo.

(4) Fiel à boa tradição romana — qujrkária, cm que o «dote» acompanhava, quase in­
variavelmente, o casamento — à moça sem dote Flauto chamará «inlocabilis virgo» — o di­
reito colonial, de certo como imposição dos costumes, tomara-lhe a constituição cousa rotinei­
ra, freqilentes, nos antigos documentos, alusões ao dote cm favor de filhas casadeiras. embo­
ra. muita vez, não passasse de simples promessa, Isabel Pais, por exemplo, fala em que «casa­
da com Antônio Moreira cm dote nos deram ou prometeram uma terra em seiscentos mil
reis, a qual terra nunca teve efeito, pagando-sc, apenas, 90 mil reis, nos achamos enganados
c meo marido por amor de mim não demandou minha mãe» (Tombo, 99); a D. Garcia de
Freitas os pais entregam, em dote, uns chãos cm Olinda (ib. 103); Nuno de Barros de Lourei­
ro «dá má vida» à esposa c a espanca, irritado porque «seu pai lhe não satisfez com o dote».
(Denunciaçõcs. pág. 185).
O Sistema Sesmarial no Brasil 53 ■

A «diástole», fragmentando o latifúndio primitivo.


Mas João Fernandes Vieira, em meados do século 17, adquiriu várias
partes da antiga sesmaria, restaurando o latifúndio — a «sístole» operando
nova concentração fundiária —, parte do qual seria vendida, em 1689, ao
sertanista bandeirante Manuel Alves de Morais Navarro, donde o nome de
«Engenho do Paulista» dado à região, sede das indústrias de tecidos Lund-
gren, atual município pernambucano do Paulista.
Este jogo sincronizado de «diástoles» e «sístoles» foi frequente na Coló­
nia, predominando, porém, via de regra, a influência da divisão hereditá­
ria, fator relevante no esfacelamento dos imensos latifúndios coloniais, co­
mo o da Casa da Torre, de Pais Barreto, de Vieira, etc.

17 • CANAVIAL E LATIFÚNDIO

Fácil, assim, compreender por que houve tanto latifúndio, sobretudo


no Nordeste: áreas imensas dadas de sesmaria ao mesmo morador; sucessi­
vas doações, usuais ao menos nos séculos 16 e 17; a possibilidade de alar­
gar os domínios por aquisição derivada — doação, compra, herança, etc.
E, ao lado disso, o tipo de atividade de exploração do solo preferida
pelo colono nordestino.
Na verdade, houve duas civilizações no Nordeste colonial: a da cana-
de-açúcar, cujo «habitat» foi o litoral, e a pecuária, desenvolvida no «me­
diterrâneo», (5) no interior, no «saartão da terra».
Não temos elementos positivos para determinar quando se introduziu
a agro-indústria do açúcar na Colónia.
Varanhagen alude a um alvará de 1516, em que D. Manuel ordena se
recrute um homem experimentado para instalar engenhos no Brasil e
Herrera registra a existência, em 1518, de engenhos no Brasil, lembrando
ainda Porto Seguro o fato — cuja comprovação constaria de papéis que,
pessoalmente, compulsara — de entrarem em Lisboa, em 1526, açúcares
produzidos em Pernambuco e em Itamaracá.
Mas, observa Basílio de Magalhães, seria possível obter açúcar não
somente de cana — «saccharum officinarum» —, mas «de qualquer planta
sacarífera indígena», como arroz, algodão, banana, etc. (O Açúcar nos
Primórdios do Brasil Colonial, pág. 19).
Tudo isso seria esclarecido se pudéssemos conhecer melhor as
atividades de personagem meio penumbroso do tempo — Pero Capico —,
sobre o qual, entretanto, apenas possuímos aquele alvará de 1526, em que
D. João III manda a Cristóvão Jaques o conduza a Europa, com suas «fa­
zendas»; Capico poderia ser aquele homem experimentado, de que fala o
alvará de 1516; sua atividade podendo explicar a existência daqueles enge­
nhos, que Herrera registra em 1518 e cuja produção entraria em Lisboa,
em 1526.

(5) Há quem diga Hinterland...Viva Anchieta. que preferia Mediterrâneo (Capistrano.


IS
Correspondência, II, pág. 199).
54 Costa Porto

Nada disso, porém, está definitivamente apurado.


Opinião muito generalizada aponta São Vicente como o primeiro
centro de agro-indústria açucareira, tendo-se, dali, espalhado mudas para
o resto da Colónia, tese, entretanto, que Capistrano acentua «não deve ser
exata» (Capítulos pág. 47) e, a nosso ver, com razão: ao menos quanto ao
Nordeste, seria mais fácil trazê-las das Ilhas, dadas as dificuldades da
navegação no tempo.
De relação a Pernambuco, se houve alguma experiência na fase
predonatarial, terá sido irrelevante e efémera, podendo-se admitir tenha
sido Duarte Coelho o fundador definitivo da civilização do açúcar, datan­
do os primeiros engenhos pernambucanos de-1542, na melhor das hipóte­
ses.
Realmente, os sete primeiros anos passou-os o donatário em lutas com
o indígena, preso em Olinda, sem se poder espraiar. Somente em 1540,
pôde ir ao Reino, onde teria procurado atrair capitais para a capitania —
em carta de abril de 1542, fala em «engenhos que de lá trouxe contrata­
dos» — e então terá começado a cultura de canaviais e fundação de enge­
I nhos. Na carta de abril daquele ano, o donatário alude a que «temos

IL
H grande soma de canas plantadas» e «cedo acabaremos um grande engenho
e ando ordenando de começar outros», o que parece delatar que nenhum
engenho estava ainda moendo em Olinda.
Apesar de dizer o donatário que, na Capitania, tudo ia «bem e
melhor, a Deus louvores», a marcha do desenvolvimento da agro-indústria
do canavial se processava lenta, pois em 1551, em carta ao Soberano escla­
rece havia em Pernambuco «cinco engenhos moentes e correntes» — a mé­
dia de um engenho de dois em dois anos.
Não temos elementos positivos para saber quais estes «cinco
engenhos», e onde se localizavam, mas talvez se possam oferecer conjectu-
ras mais ou menos plausíveis, reveladoras de quanto a penetração fora
morosa, o lusitano, em 15 anos, não indo além da faixa entre Igarassu e
arredores de Olinda. O primeiro seria o do donatário, Engenho do
Salvador, localizado nas várzeas de Beberibe; o segundo, o de Jerônimo, de
invocação de N. Senhora da Ajuda, chamado também do Beberibe, ou
«Engenho Velho», que funcionou pouco tempo, trocando-se a cultura da
cana pela exploração de cal, e situados nos terrenos conhecidos como «For­
no do Cal», onde, depois, funcionou a FOSFORITA Olinda; o terceiro se­
ria, talvez, aquele engenho que Afonso Gonçalves começara a construir em

i Igarassu, como se vê na narração de Fr. Vicente; o quarto, o de Santiago,


de Olinda, de Diogo Fernandes, marido da famosa Branca Dias e que, co­
mo o de Igarassu, foi destruído na luta com o indígena, de 1553, conforme
se vê da carta de Jerônimo, de 28 de agosto de 1555; finalmente, o último
seria o de Jaguaribe, de inovação de Santo Antônio, construído por Vasco
Lucena e onde, no século 19, trabalhou o inglês Koster.
Depois que o segundo donatário limpou a costa dos indígenas, foram
se espalhando os engenhos, registrando Cardim, em 1584, a existência de
66.
O Sistema Sesmarial no Brasil 55

Na Bahia, os engenhos se derramavam ao longo do Recôncavo,


aproveitando não somente a excelência do solo, mas ainda as facilidades
de comunicações por água.

De modo geral, quase toda a costa nordestina teve sua civilização


estruturada à base dos canaviais e dos engenhos, que deram à Colónia nor­
destina aquele brilho e aquele fulgor registrados pelos antigos cronistas,
principalmente Cardim, Gabriel Soares. Fr. Vicente, o autor dos «Diálo­
gos», etc. Ora, o engenho sempre se mostrou muito guloso de terras, a
própria filosofia do sistema sesmarial firmando estreita correlação entre ca­
navial e largas áreas. É que, não tratando expressamente da extensão das
sesmarias, a legislação lhes condicionava o tamanho às «possibilidades» do
aproveitamento, e, desta sorte, o morador de pequenos recursos receberia
quinhões reduzidos, podendo-se, porém, distribuir parcelas mais vastas
àqueles que tivessem meios de trabalhar mais, possuíssem maior fortuna,
estivessem em condições materiais de explorar porções alargadas.
E, dadas as condições da agro-indústria do acúcar, o colono que pedia
terras para canaviais e engenhos parecia com a presunção de maiores
«possibilidades de aproveitamento», porque engenho e fortuna andavam
emparelhados, como realidades que se completavam.

A impressão que nos deixa a análise da vida colonial, sobretudo nos


dois primeiros séculos, é de que no açúcar se alicerçavam a riqueza, a
grandeza, o fausto da chamada «nobreza rural» do Nordeste, por exemplo,
quase unânime, neste ponto, o depoimento dos antigos cronistas de 1500, e
começos de 1600: já em carta de 14 de abril de 1549, Duarte Coelho fala­
va da Nova Lusitânia como «ho que Deus...qys que este ganhando o mi-
Ihor pryncipyado e povoado e regydo...que todallas outras», resultado, em
grande parte, da atividade canavieira; Anchieta, em 1585, pinta Pernam­
buco como «terra rica no comércio é uma nova Lusitânia e muito frequen­
tada», tendo 66 engenhos, «cada um, uma grande povoação» (Cartas,
410); clássica a descrição de Cardim, que encontrou em Olinda um luxo
desadorado, senhores de engenhos «grossos de oitenta mil cruzados», be­
bendo bons vinhos, tendo mesa farta, vestindo bem, montando ginetes ca­
ros e bem ajaezados, acentuando que, na Nova Lusitânia, se luxava tanto
quanto em Lisboa.
Outro não é o quadro descrito nos «Diálogos», e todo esse fausto é,
muitas vezes, expressamente atribuído aos engenhos de açúcar.
Por sua vez, Antonil — anagrama do jesuíta João Andreoni, luquense
—, «Cultura e Opulência do Brasil», depois de frisar que «o ser senhor de
engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido,
obedecido e respeitado de muitos», acrescenta: «se for, qual deve ser,
homem de cabedal e governo, bem se pode estimar no Brasil ser senhor de
engenho quanto proporcionadamente se estimam os títulos entre os fidal­
gos do Reino».
56 Costa Porto

Handelmann chamou à atividade canavieira «aristocrática», porque,


realmente, dava relevo social e imponência aos que a ela se dedicavam,
mas sendo aristocrática e «aristocratizadora», a agro-indústria, dc certo
modo, supunha classificação anterior, pelo menos em termos de dinheiro,
pois, quem não possuísse cabedais de vulto não se arriscasse a meter-se em
canaviais e fábricas.
O engenho dava muito lucro; os «meles do Brasil» constituíam negócio
excelente, os produtores de açúcar viviam folgados, ganhando dinheiro a
rodo, mas para ser senhor de engenho se exigiam cabedais largos,
acentuando Duarte Coelho, instalavam engenhos os «poderosos para isso»,
liguagem repetida, mais tarde, quase literalmente, por Brandônio, nos
• Diálogos».
Muitas cousas condicionavam o êxito final na exploração do engenho,
e uma delas, fundamental, a presença direta do dono à frente dos
negócios, pois, do contrário, feitores e capatazes podiam levá-lo à ruína.
Lucas Giraldes, por exemplo, parece não se saiu muito bem com os seus
engenhos nos Ilhéus, porque adotou o comodismo de ficar-se no Reino,
entregando-lhes a direção a prepostos, como o italiano Tomás, o qual, es­
pertalhão e loquaz, em vez de dinheiro ou de açúcar, somente lhe manda­
va «cartas de muito eloqiiência», pelo que, registra fr. Vicente, o donatá­
rio lhe enviou esta saborosa carta: «Tomaso, quiere que te diga, manda le
assucre e deixa la parolle e assinou-se sem escrever mais letras» (Hist. do
Brasil, 100).
Mas o mais importante era dispor de capitais para movimentar as
culturas e fabricação do açúcar.
Antonil, depois de registar tudo quanto se fazia necessário ao engenho
— em pessoal e material — acentua: «o que tudo bem considerado, assim
como obriga a uns homens de bastante cabedal e bom juízo a quererem,
antes ser lavradores possantes de cana... do que senhores de engenho... assim é
para pasmar como hoje se atrevem tantos a levantar engenhocas tanto que
chegaram a ter algum número de escravos e acharam quem lhe emprestasse al­
guma quantidade de dinheiro para começar», com o que ficavam «logo na pri­
meira safra tão empenhados com dívidas que, na segunda ou terceira, já se de­
claram perdidos »tornando-se objeto de zombaria pela «mal fundada presun­
ção que tão depressa converteu em palha seca aquela primeira verdura, de uma
aparente, mas enganosa esperança».
Desta sorte, quem pedia terras para canavial e engenhos se supunha
ter possibilidades largas de aproveitamento, podendo, desta maneira, rece­
ber quinhões imensos, sem ferir a letra e o espírito da lei.

E na verdade, canavial e latifúndio sempre andaram muito unidos.


Com a experiência de velho tapejara da vida açucareira, Antonil
aponta como «o principal fundamento para ter um engenho...bom ou mau
rendimento» a posse de terras; e Brandônio, outro experimentado analista
O Sistema Sesmarial no Brasil 57

regional, fala de «três cousas necessárias:» aos engenhos — «muitas terras e


boas, águas bastante... e lenha em grandes matas, também em
quantidade» (Diálogos, III, 152).
Neste ponto, a própria Metrópole criava, para os engenhos, situação
privilegiada. No Regimento de Tomé de Sousa,por exemplo, enquanto, de
relação às sesmarias em geral se ordena sejam aproveitadas «no tempo que
pera iso aa de ser noteficado... e com as condições e obrigações...de minha
ordenação» — os engenhos deviam os sesmeiros edificá-los «demtro no
tempo que lhe limitardes e que seraa o que bem vos parecer».
No tocante à área, enquanto vigorava o princípio das «possibilidades
de aproveitamento», o caso de engenhos é disciplinado de modo especial:
«pera serviço e meneyo dos ditos enjenhos lhe dareis aquela terra que pera
yso for necessária» e «aalem da terra que a cada enjenho aveis de dar pera
servyço e meneyo dele, lhe limitareys a terra que vos bem parecer».
Opinando sobre um pedido de Soares Moreno, o Conselho Ultramari­
no, em decisão de 26 de março de 1621, sugere se lhe conceda maior área,
porque «as terras são toda a substância dos engenhos, enquanto, mais tar­
de, a provisão de 3 de novembro de 1681 quase torna obrigatório o
latifúndio ao determinar não se constituíssem engenhos a menos de meia
légua um do outro, a fim de que lhes não escasseasse as lenhas» (Varnha-
gem, Hist. Geral, 3, pág. 285), existindo mesmo, como mostra Virgínia
Rau (Os Manuscritos da Casa de Cadaval, etc., pág. 128) a figura de ven­
da compulsória: se o engenho não dispusesse de lenha suficiente, os vizi­
nhos seriam obrigados a fornecer-lhes e, até, a vender-lhes as matas, me­
diante preço fixado pela Câmara e pelo Provedor.
Até em disposições testamentárias, encontramos afirmações assim:
«convém que os engenhos tenham muita largueza e grandes logradouros,
por falta das quais tem dado fim muitos engenhos» (Ap. Oliveira Viana,
Inst. Pol. do Brasil, I, pág. 126).
Assim, via de regra, onde houve canavial, houve latifúndio, fenômeno
ligado à própria natureza da exploração económica, ajudada pelas condi­
ções especiais da Colónia, onde, havendo pouca gente e sobrando terra, as
autoridades sempre se mostraram generosas, quinhoando áreas imensas a
quem as pedia, mesmo porque lhes militava em favor a presunção de que
as podiam aproveitar.

O PASTOREIO

í1
18

Esta civilização do açúcar, entretanto, sempre viveu amarrada ao lito­


ral e o que os antigos cronistas muito censuram nos velhos lusitanos é se
haverem mostrado «negligentes», não se aproveitando das terras, mas
contentando-se «de as andar arranhando ao longo do mar, como caran-
gueijos», segundo acentuava Fr. Vicente, ou, como dizia Alviano, nos
«Diálogos», «em tanto que habitam neste Brasil, não se alargaram para o
sertão para haverem de povoar nele dez léguas, contentando-se de, nas
fraldas do mar, se ocuparem somente em fazer açúcar». (Ib., I, pág. 28).
58 Costa Porto

Tudo na Colónia, porém, forçava este confinamento, a própria


Metrópole, de certo modo, freando a penetração para o Interior, receiosa
de invadir terras de Espanha, pois — embora não se soubesse, ao exato,
onde começavam os lindes de Tordesilhas — ninguém duvidava findassem
peno do litoral as 370 léguas contadas de Cabo Verde, donde, nas cartas
de doação, a norma de terem as capitanias tantas léguas de costa, mas pe­
netrando para o interior, «tanto quanto poderem e for de minha conquis-
ta».
Por outro lado, a prudência aconselhava medir bem os passos dos
moradores, ante o perigo do indígena brabo e comedor de gente, donde
aquele item do Regimento do Primeiro Governador: «polia terra firme a
dentro não poderá hir a tratar pessoa allguma sem licença vossa...e a dita
licença se não dará senam a pessoas que parecer que irão a bom recado e
que de sua ida se não seguirá prejuízo algum».

Pondo barreiras à simples penetração ocasional, muito mais rigoroso
se mostrava o regimento no tocante à fixação permanente do colono, don­
o de o preceito de que, visto resultar «muyto prejuízo de as fazendas e

emjenhos e povoações delles se fazerem lomge das villas de que amde ser
favorecidos e ajudados», vigiasse Tomé de Sousa porque «daquy em diante
-i se façam mays perto das ditas villas que poder ser».
E tanto o Governador levou a sério a defesa dos moradores, vedando-
lhes a penetração que, nada obstante devotíssimo da Companhia de Jesus
— ou vindo, em quase tudo o Padre Nóbrega —, quando o Superior idea­
lizou o plano de meter-se «polia terra a dentro fazer casas no sertão», não
o permitiu, comunicando a el-Rei «eu lho defendy de maneyra e com pala­
vras com que se devem defender as taes obras, dizendo-lhe que asy como se
for V. A. alargando, se vão elles também», e surgerindo ao Soberano, para
evitar ficassem os jesuítas queixosos, «acuda loguo a ysso, porque não que­
ria eu ter com homens tam vertuosos e tanto meus amigos deferença de
pareceres, porque sempre tenho ho meu por pyor e se não fora toda esta
costa contra esta hopenião, não ousava eu de lho impedir (Hist. da Col.
000, 366).
E el-Rei atendeu à sugestão, pois em carta de 1558, Antônio Blasquez
alude a que, desejando os jesuítas ir pregar no interior, os «estorvaram por
uma carta del-Rei, em que ordena ao Governador não deixe entrarem os
padres pela terra a dentro, dizendo que os poderão matar os índios»,
parecendo-lhe esta «a cousa mais fora do caminho do mundo», pois os
indígenas eram pacíficos (Cartas Avulsas, 181).
No caso pernambucano havia ainda a ameaça do estrangeiro,
! permanentemente trazendo a capitania de sobreaviso: quando,por exem­
| plo, Duarte Coelho é instigado por el-Rei para devassar o Interior, o que
alega, entre outros motivos, é o perigo dos contrabandistas do Mar do
Norte, que «se sentyrem nam estar na terra, commetteram de fazer das
suas ribaldaryas, porque a catorze dyas que aquy quyseram fazer o que so-
yam a fazer, mas nam porderam».
O motivo, porém, que mais terá forçado esta prisão do colono à orla
litorânea foi aquela «economia colonialista», do conceito de Caio Prado.


O Sistema Sesmarial no Brasil 59

Não havendo mercado interno, toda a produção buscava consumo no


exterior, e, desta sorte, o engenho — a atividade marcante dos primeiros
tempos tinha de se localizar, perto do mar, dos portos de embarque, «sob
pena, diria Capistrano, de, sendo um só o preço dos gêneros de
exportação, não poderem (seus proprietários) competir com os fazendeiros
mais vizinhos do mar, cujo produto não se gravava com as despesas do
transportes». (Caminhos antigos, 76).
Desta pressão da «economia colonialista» temos exemplo eloquente em
episódio conservado pelo Tombo de São Bento, de Olinda: haviam os be­
neditinos construido um engenho em Mussurepe — então olhado como o
fim do mundo, «nos limites desta capitania, muito ao certam, oito ou nove
léguas da costa e do porto» — e em 1623 pedem ao delegado paga ao do­
natário por força da carta de doação — pois o açúcar lhes custava «de tra­
zer ao Recife só de carreto trez cruzados ao menos, e por esta rezam nam
ha lavrador que queira no dito engenho tomar partido e assim está muito
arriscado a se desemparar». (Tombo, 350).
Esta a razão principal por que a primitiva civilização nordestina estru­
turada à base dos canaviais e dos engenhos — se processou ao longo da
costa, forçando o colono arranhar a praia, feito carangueijo: em Pernam­
buco, por exemplo, durante muito tempo, a penetração regular, sistemati­
zada, não iria alem de dez léguas da costa e mais rumos ao sul, a igual
distância do mar, pelo «sertão de fora», medroda do oeste bastanto lem­
brar que é de 20 de julho de 1678 a carta de sesmaria passada em favor do
Capitão Mor Estêvão Pais Barreto, das terras junto à barra do Pirangi, o
território do atual município pernambucano de Palmares. (Anais Pernam­
bucanos, IV, pág. 152).
Enquanto, porém, a civilização do açúcar se arrastava presa à ourela
marítima, outros colonos, menos poderosos economicamente para ensaiar a
atividade dos engenhos, se foram, a partir dos meados do século 17, aden­
trando pelo mediterrâneo, procurando dominar c povoar os sertões nordesti­
nos, no esforço de vencer o meio e conseguir triunfar na aspereza do mundo
desconhecido, oferecendo-se-lhes o mesmo problema do homem do litoral:
criar riquezas, dado que não havia nada senão o solo imenso para explorar.
Ora, o segredo do lusitano na Colónia cabralina consistira em perce­
ber que o futuro estava na cultura da terra e eis por que, tirando a ex­
ploração comercial do pau-brasil, o empenho dos primeiros exploradores,
no nordeste, se voltou para o canavial, então olhado como o «valor maior»
da conquista.
Mas, à medida que se ia alastrando interior em fora, o colono sentiu
não podia fazer da agricultura o fulcro de suas atividades.
Em primeiro lugar, a «economia colonialista» forçava-o a fixar-se per­
to da praia, nas vizinhanças dos embarcadouros, permitindo o escoamento
da produção para o Reino: distante da costa, não havia pensar em
agricultura remuneradora, porque o frete se tornaria oneroso em excesso e,
praticamente, não existia, dado que todo o transporte do tempo se fazia
através de carros de bois, havendo, mesmo, profissão especial — a de «car-
60 Costa Porto

reiro que tem seus bois», como se lê em alguns lances das Denunciações
(pág. 342) — e profissão, de resto, bem rendosa, dizendo-se de um destes,
João Afonso, que «estava muito rico, que tinha dez mil cruzados em di­
nheiro». (ib. 460).
Como resolver o problema dos carretos, transportando mercadorias
em carros de bois, a cinco, dez, vinte léguas de distância?
Por outro lado, também o solo não ajudava.
Os engenhos, lembra Capistrano, localizavam-se no litoral, «pela
maior fertilidade dos terrenos bem vestidos e pela abundância de lenha,
necessária às fornalhas, em um laborar que, às vezes, durava, dia e noite,
oito e nove meses» (Caminhos Antigos, 76), mesmo outras lavouras não
encontrando condições adequadas — terra fraca, em certos pontos castiga­
da pela estiagem, pela irregularidade de chuvas, o que fazia da agricultura
um jogo, uma aventura. Logo ficou provado, acentua Capistrano. que «as
caatingas pouco remuneravam as lavouras, como então, mais do que hoje,
se praticava, simples latrocínio da terra, sem compensação alguma ofereci­
da por parte do homem», e, forçado a descobrir caminho para aproveitar
o mediterrâneo, a solução foi o gado, o elemento que formou a outra civi­
lização nordestina, o «outro nordeste», o da terra seca, da zona semi-árida,
do sertão.
Quase nada se sabe, de positivo, sobre as origens dos rebanhos
brasileiros. Quanto ao gado bovino, terá vindo das ilhas portuguesas, sen­
do comum ensinar-se que D. Ana Pimentel — castelhana de nobre família
dos Maldonados, filha de Aryas Maldonado, regedor de Salamanca e Tala-
vera e esposa de Martim Afonso — foi quem mandou levar para São Vi­
cente as primeiras sementes, espalhadas, depois, para as mais capitanias.
De relação, porém, ao Nordeste, seria muito mais cômodo vir o gado
diretamente das Ilhas e, pelo menos no tocante à Bahia, sabe-se que Tomé
de Sousa importou uma partida de Cabo Verde, conforme o testemunha a
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carta de 18 de junho de 1551: «Este anno passado veo a esta cidade a ca­
ravela Galga de V.A., com gado vacum que he a mayor nobreza e ffartura
que pode aver nestas partes e eu a mandy tornar a caregar a Cabo Verde
do mesmo gado...e hum anno ha que he partida daqui e non tenho nova
delia; se ella non he ariba...deve ser perdida que este anno passado—se
averá medo delle nestas partes, enquanto ouver memória de homens».
E sabe-se, igualmente, terem saído da Bahia, reses para outras partes
da Colónia, conforme o atesta a autorização do alvará régio de 10 de
dezembro de 1563, de que «do gado que Tomé de Tomé de Sousa...Tem
na capitania da Bahia, possa tirar... pera quaesquer outras... até a terça
parte do gado que ora tem de sua criação» etc. (Documentos para a Histó­
ria do Açúcar, pág. 169).
Lfcf: Mas para Pernambuco é possível houvesse vindo gado bovino muito
’ai
íil’1 antes: o farol de Olinda, de 1537, já fala na «Várzea das Vacas», no «Cur­
ral das Vacas», sinal, parece, de que haveria rebanhos na Capitania.
Ao longo do século 16, a pecuária também ficou amarrada ao litoral,
tanto porque ninguém ousava penetrar além de poucas léguas da costa, co­
mo porque, de começo, o gado bovino constituiria aquela «retaguarda

E
O Sistema Sesmarial no Brasil 61

económica dos engenhos», da linguagem de Simonsen, vivendo, portanto,


em simbiose estreita com o canavial e fábricas de açúcar, que utilizavam os
rebanhos não somente para alimento dos aglomerados rurais entregues à
labuta da agro-indústria açucareira, mas, sobretudo, como tração.
Alguns engenhos moíam a água — o que, porém, dependia de fatores
alheios à vontade do colono —, donde a maioria constituir-se dos chama­
dos «trapiches», movidos por animais, a regra geral numa época em que se
não conhecia a energia termoelétrica.
Por outro lado, o transporte se fazia em lombo de animais ou em car­
ros de bois: a cana, levada ao picadeiro, o açúcar conduzido aos «paços»,
donde se metia nas frotas para o Reino, o próprio transporte humano
efetuando-se em animais. Se os pobres andavam a pé, os ricos viajariam
normalmente a cavalo — ginetes bem ajaezados, como os viu Cardim, nos
fins do século 16, em Olinda — enquanto as famílias utilizariam liteiras,
redes, ou carros de bois: Felipe Cavalcanti acusa Henrique Mendes de «to­
das as luas novas de agosto hir com sua mulher Violante Ruiz e com toda
a mais casa e família em carros emramados com festas», realizar «esnogas»
em Camaragibe, no engenho de Bento Dias de Santiago (Den, pág. 75).
O criatório no litoral, entretanto, não teria sido muito relevante, nem
em volume nem em extensão, mantendo-se, apenas, os rebanhos impres­
cindíveis para a faina dos canaviais e das fábricas, mesmo porque, quando
se foram alargando as duas atividades, teria começado a repontar o velho
conflito entre a agricultura e criação, e cujos traços remotos talvez seja
possível encontrar no episódio de Caim e Abel, a luta entre o «agrícola» e
o «pastor ovium», atividades que nunca se olharam muito bem.
Não havia ainda, sublinha Simonsen, o grande harmonizador plástico
— o «arame farpado» —, que poderia mantê-las, cada uma, em seu canto
próprio e, do choque, o prejudicado foi o rebanho: o canavial não fazia
mal ao gado, mas os animais soltos causavam dano à lavoura, sendo mister
confiná-lo, guardá-lo em cercados, acarretando severos ónus aos senhores
de engenho que, então, buscavam solução intermediária, criando apenas o
suficiente para atender às necessidades normais da agro-indústria do açú­
car, muito senhor de engenho possuindo fazendas em zonas mais distantes,
para criar gado, como Bartolomeu Gomes Borba, do engenho Tracu-
nhaem, que, em 1689, pedia umas terras «no certão do Capibaribe», a fim
de acomodar os rebanhos. (Doc. Hist. I, pág. 3).
À boa moda romana, seria frequente ainda o fenômeno da
«transumância», deslocando-se, depois das safras, os animais para pontos
mais afastados do canavial, tendo sido Bom Jardim, segundo documentos
citados em Caio Prado, um dos centros preferidos pelos senhores de enge­
nhos de Pernambuco. (Formação Económica do Brasil, pág. 183).
Vale ponderar ter-se generalizado, desde muito cedo, a crença, de que
o solo litorâneo não se apropriava à criação, doutrinando, a propósito,
Capistrano: «que a mata é incompatível com a criação do gado ainda ago­
ra se vê no Amazonas. A pouca luz que coa através das copas unidas do
arvoredo não permite a formação de pasto; para os ruminantes, a opulên­
cia vegetativa redunda em inaniçâo irremediável». (Caminhos Antigos, 79).
62 Costa Porto

Desta sorte, a situação geral da Colónia nordestina forçou a formação


de duas civilizações, de dois mundos, de dois planos, na marcha povoado-
ra: a do canavial, agarrada à faixa costeira — mais bem vestida, mais fér­
til, do solo molhado, rico, cheio de húmus, e, sobretudo, dominado pelo
sentido da economia «colonialista», que obrigava o engenho a não se afas­
tar dos portos de embarque — e a do «pastoreio», localizado no sertão, on­
de se situavam os terrenos pobres, de flora modesta, inadequados à agricul­
tura, a «caatinga» pouco remuneradora das searas, e cujo aproveitamento
seria fruto da criação do gado.
De cometo, o colono, preso à hipnose do litoral, evitava a «caatinga»,
mas, afinal, ompreendeu «era bem mais hospitaleira, apesar dos espinhos
que caracterizam grande parte de suas árvores, herança dos tempos dilu­
viais, armas nas lutas contra as colossais preguiças herbívoras, hoje extintas
e então muito numerosas, no entender de V. Detmer». (ib. 79). Imprópria-
da, entretanto, a agricultura, a «caatinga» se mostrava favorável à criação.
porque «entre um tronco e outro há sempre comedia; entre uma caatinga
e outra há sempre campo; de certas árvores, que não perdem a folha,
aproveita-se a rama para alimentar a gadaria contra o flagelo das secas,
concluirá Capistrano.» (Ib. 80).
E o documentário da época mostra era este o sentir dos colonos: solo
vizinho do mar, fértil, rico, molhado, geralmente se pede para canaviais e
engenhos, enquanto as terras ruins, distantes da costa, situadas longe, «ao
certam», essas sempre se requerem para o pastoreio, frequentes alusões a
áreas que «nam servem senam pera gados...por haver muito penedio e par­
tes mui fragozas» (Doc. Hist. pág 4); ou própria apenas «para criar gado
sem outra sertenvia alguma mais, nem mister, por serem as terras inúteis
para todo o gênero de lavoura e muito desertas e grandes sertões.» (ib. 86).
Certa gleba porque «distante desta praça algumas oitenta léguas», é
pedida para criar (ib. 32); Leonel de Abreu e Lima solicita, de sesmaria,
«entre as povoações do Ararobá e rio Pajehu», «uma travessia de terras
muntudias» — palavra não registrada nos dicionários e cuja significação
parece ser «montanhosa» — inteiramente «devoluta e despovoada por se­
rem terras montudias e sem agoa», para acomodar gado (ib - 58); outros
solicitam, para pastoreio, umas terras em que não havia «águas effetivas
em todo o anno», mas em que se podiam fazer «tanques ou represas para
logradouros de seus gados» (ib. 134); ou se fala nuns «capins que nam ser­
vem senam para pastos de gado» (Tombo, 447),
Bem delimitados os dois campos de atividades — engenho e gado —,
enquanto o canavial ia forjando a civilização litorânea, o pastoreio iria res­
ponder pelo povoamento e ocupação da zona mediterrânea, podendo-se di­
zer que, se a civilização costeira foi produto do açúcar, a do sertão nasceu
e cresceu à sombra dos currais de gado, parecendo lícito, ainda, acentuar
ter sido a Bahia o grande centro de irradiação do pastoreio nordestino.
Sem dúvida, a liderança da vida colonial no século 16, e, mesmo, em
grande parte, do século 17, cabe a Pernambuco, mas aquele fausto, aque­
la grandeza, aquele progresso notado, em Olinda, pelos jesuítas, Cardim à
frente, pelo autor dos «Diálogos», por Gabriel Soares, pelo «Livro que dá
Razão do Estado do Brasil», etc, tudo decorre da agro-indústria do açúcar.
O Sistema Sesmarial no Brasil 63

A leitura atenta do Padre Cardim, por exemplo, deixa claro isto: o


luxo, o conforto, a opulência dos olindenses de 1584 não se encontravam
na vila, mas nos engenhos, os quais, entretanto, ocupavam área territorial
exígua.

Até 1551, o donatário registra apenas cinco fábricas, situadas em


faixa litorânea mofina, entre Igarassu e as várzeas do Beberibe, e até 1554,
mais ou menos, a penetração não chegara, rumo do sul, a Guararapes,
pois, segundo se lê em Fr. Vicente, Jerônimo fora, aii, batido pelos caetés
revoltados, sinal de que a marcha povoadora pouco se afastara dos arredo­
res de Olinda.
Com o segundo donatário, é certo, o indígena é tangido para o
interior, limpa a costa de inimigos, e, segundo registra a «Relação de um
Naufrágio», não ousando, os portugueses, até então, «sair mais que uma
ou duas léguas pela terra a dentro e três ou quatro, ao longo da costa»,
agora podiam «ir quinze ou vinte léguas pela terra a dentro e sessenta ao
longo da costa», adiantando Anchieta que havia engenhos até a 50 e mais
léguas de Olinda.

Tudo isso, porém, se há de entender em termos: embora «podendo»


alongar-se várias léguas pelo interior — porque não havia mais a barreira
do selvagem — , não quer dizer haja realmente o colonizador penetrado
tanto.
E quanto à afirmação de Anchieta, é fácil explicar: engenhos
distantes de Olinda, mas ao longo do litoral, na direção das Alagoas e não
rumo a sudoeste, pois, em informação de 1585, tratando de uma sesmaria
dos jesuítas, «a sete léguas da vila» — localizada, parece, em Camaragibe
—, esclarecia não rendia nada, «por não estar aquele lugar ainda bem po­
voado e seguro por causa dos índios potiguares» (Cartas, 411).
Nem podia haver afastamento da costa, dado que, por força da
economia «colonialista» — de «produzir e exportar» —, o canavial e o en­
genho reclamavam vizinhança de portos de embarque, sob pena de fracas­
so, como ia sucedendo com o dos Beneditinos, em Mussurepe.

Enquanto isso, os baianos se comportavam de modo diverso. Também


eles começaram plantando canaviais, mas no Recôncavo, onde, nos tempos
de Gandavo, havia 18 engenhos, 36, nos de Cardim, registrando Anchieta,
em 1584, «alguns 40».

Repleta, porém,, a pequena área de Salvador, a gente de Francisco


Pereira, trancada a leste
1 pela Serra do Espinhaço, começou a espraiar-se
rumo ao norte, buscando as divisas da Capitania de Duarte Coelho — o
São Francisco —, onde, entretanto, se não podia pensar em açúcar, por­
que, embora o terreno não fosse de todo imprestável para os canaviais, re­
pontava a pressão da «economia colonialista»: distanciando-se dos portos
dc embarque, a fabricação de açúcar se fazia desaconselhável, donde, para
fugir à fatalidade da «economia de exportação», o recurso seria a criação
de gado.
64 Costa Porto

E em pouco tempo, ocupada a área direita — a zona do Joanes, do


Jacuipe, do Pojuca, do Itapicuru, do Jaguaribe, do Paraguaçu, etc —,
criadores da Bahia foram além, e, transgredindo a caudal sanfranciscana,
penetraram o lado esquerdo, «pernambucano por força de lei».
É que a capitania de Duarte Coelho abrangia porção imensa. A
leitura desatenta das cartas de doação pode gerar a impressão de que as
capitanias constituíam quadrilátero retangular, com a mesma largura de
frente e de fundo,tendo, assim, a Nova Lusitânia 60 léguas de costa e ou­
tras tantas no extremo da delimitação de Tordesilhas, tudo balisado por
duas linhas retas, uma levantando-se da foz do rio Jussará, para o sertão
— passando, mais ou menos, por Tracunhaem. Bom Jardim, Jabitacá
(Afogados da Ingazeira), Belmonte, Ouricuri, Goiana, Timbaúba, Orobó.
Vicência, Macaparana, Exu, Araripina, etc. estavam fora da jurisdição
duartina, pertencentes a Itamaracá e outra, paralela, partindo da foz do
São Francisco até alcançar as balisas de Tordesilhas.
Mas o que a carta de doação de Duarte Coelho diz é outra cousa: a
demarcação começaria na embocadura do Jussará até a foz sanfranciscana,
mas daí seguiria o curso da caudal, entrando «na dita terra e demarqua-
çam delia todo o dito rio de sam francisco», cujo lado esquerdo, desta
forma, pertencia a Duarte Coelho.
O olindense, entretanto, preso por vários motivos à faixa costeira nao
logrou devassar a área sertaneja sob a jurisdição duartina, embora, como
pontilha Capistrano, o São Francisco sempre houvesse fascinado Duarte
Coelho, que, todavia, não se animou a devassá-lo, por dificuldades
múltiplas, como o esclarece em carta a D. João III: para fazê-lo, conclui,
aguardava «a hora do senhor Deus», hora que nunca lhe chegou.
Há, sem dúvida, algumas expedições pernambucanas descendo a foz,
mas viajando por mar, segundo o torna claro a narrração de Fr. Vicente, e
mesmo estas, ao atingirem a foz e ao procurarem subir a caudal, remando
I '• > H
contra a corrente, encontravam — «nec plus ultra» ao programa de inte-
riorização — as cachoeiras e o sumidouro de Paulo Afonso, que os força­
vam a deter-se irremediavelmente, fenecendo, no baixo São Francisco, o
«rush» povoador partido de Olinda.
Para os baianos, entretanto, a tarefa se oferecia fácil: descendo rumo
à foz, deslisavam ao sabor da corrente e, para atingir o lado
pernambucano, bastava-lhes atravessar o rio, «mero exercício de natação,
o encanto do sertanejo», como lembra Capistrano.
Assim, parece legítimo concluir que o povoamento da margem esquer­
da do São Francisco e o espraiamento rumo ao Piauí e interior do Ceará
— bem como o recuo para o sul, até o «divortium aquarum» do Tocantins
— terão sido fruto do expansionismo dos baianos.
Talvez, também, de pernambucanos, mas moradores à margem es­
querda, como os Guedes de Brito, da Casa da Ponte, e não de pernambu­
canos de Olinda, que, de certo, por ali poderiam ter andado, povoando,
colonizando, mas não em processo coordenado, sistemático, apenas ocasio­
nal, esporádico, em casos excepcionais e raros.
A «atrofia a Sudoeste», da discutida tese de Capistrano.
O Sistema Sesmarial no Brasil 65

19 PECUÁRIA, SOLUÇÃO FATAL

Derivando para o pastoreio, o colono dos primeiros séculos agia por


força das próprias condições do meio e do tempo.
O solo, de modo geral, se mostrava impropriado à agricultura, nota-
damente à exploração da agro-indústria do açúcar, e, mesmo fosse, em tu­
do, igual ao do litoral, o sentido colonialista da economia da época não
permitia pensar-se em agricultura, principalmente em cana. E para
vencer-lhe a resistência hostil, só mesmo o gado.
Não que o rebanho se libertasse totalmente, da pressão da economia
colonialista, as suas três principais utilizações — carne, peles e tração —
impondo-lhe a dependência estreita do litoral, único lugar da Colónia on­
de havia população, ponto de escoamento da exportação da pele para o
Reino, ora em comércio autónomo — venda direta de couro curtido, de
meias solas, de atanados — .ora como embalagem de muita mercadoria en­
viada para a Metrópole em surrões de couro.
Aquela «época do couro», de que fala Capistrano — quando toda a
vida local quase se esgotava em termos de aplicação da pele de animais —
as portas das cabanas, os leitos, os móveis, o vestuário, o calçado, os
utensílios de trabalho, etc. —, devemos entendê-la em termos: dizia respei­
to aos sertões dos meados do século 17, quando o povoamento atinge o in­
terior, e, ainda assim, o ralíssimo da população não dava a este consumo
importância realmente ponderável, pelo menos capaz de absorver a produ­
ção dos rebanhos, cujo melhor mercado era o litoral, ou através do litoral.
Mesmo quando se desloca da ourela marítima para cobrir o vasto me­
diterrâneo nordestino, a pecuária continua sujeita à pressão da «economia
colonialista» e já aí em duplo sentido: ora buscando o mercado lusitano,
no tocante à pele, ora buscando o consumo costeiro, no caso da carne
pois eram os engenhos, as vilas, os aglomerados da faixa litorânea que
davam vazão aos excessos dos rebanhos.
Enquanto, porém, esta pressão se afirmava insuperável na agricultura
— os gêneros agrícolas precisando de estar perto dos embarcadouros por-
que, do contrário, as despesas de frete; se tornavam inaturáveis — 0 gado
ladeava o problema e fugia à manopla de ferro do sentido colonialista da
economia do tempo, porque, mercadoria■ ' '
que andava ---------
nos ’
próprios as
pés,
reses carregavam-se a si mesmas, vencendo lonjuras infinitas, carrunhand°>
morosas embora, em busca da orla costeira, sem levar em conta asdific^ 1’
as dificuh
dades.
E quando estas se agravavam sobreposse, vinha o expediente de der»-
var para os chamados «caminhos de vazao» mais curtos, mais diretos .
abreviando as marchas através de traçados smgelos. agudo que MOrsing di­
zia dos sistemas ferroviários: que se desenvo vem em tnangu os, «ern j)USCa
das hipotenusas».

r
66 Costa Porto

raios diminutos de penetração longe da costa; o rebanho esse carregava o


próprio peso, zombava das distâncias, dominava a vastidão do «sertão da
terra», e foi isso, antes de tudo, que lhe permitiu transformar-se em ele­
mento fundamental no povoamento do interior nordestino.

Ora, talvez mais do que o canavial, os currais primitivos reclamavam


áreas imensas: criação extensiva, em zonas distantes, infestadas de índio
brabo, de animais ferozes, terras que não despertavam interesse, cobiçadas
de poucos, muito mais que na região dos canaviais se fazia maior a genero­
sidade das autoridades distribuidoras, prevalecendo, ainda mais intenso, o
hábito de se concederem largas datas, de se repetirem as sesmarias,
encontrando-se exatamente na área do pastoreio os maiores latifúndios do
Nordeste, com os da Casa da Torre, de Certão, dos Guedes de Brito, etc.

Canavial e pastoreio, deste modo, respondem pelo desadoro do


latifúndio nordestino, desfecho tanto mais fatal quanto a lei se mostrava
omissa e as condições gerais da Colónia lhe facilitavam a proliferação.
De certo, a filosofia do sistema, o fundamento mesmo de sua origem e
funcionamento, implicavam a idéia das pequenas datas, desde que se fazia
do aproveitamento a tônica do sesmarialismo. Mas, enquanto no Reino o
aproveitamento se olhava com muita seriedade — inclusive porque a
distribuição de terra constituía um «meio», visando-se a um «fim», o abas­
tecimento na Colónia, não havendo população para aiimentàr, o alvo
principal era o povoamento e daí porque a exploração efetiva do solo fin­
dava mais simbólica, formal, aparente, bastando, ao receber a sesmaria,
evidenciasse o colono intenção de domínio — plantando canas, lavouras,
construindo currais — em atitude de quem simplesmente deseja ocupar o
solo, o «animus domini», de Savigny.
E sempre o velho problema: havendo terras em demasia e pouca gente
para ocupá-las e povoá-las, não se justificava rigor na distribuição.

20-0 PROBLEMA DAS ÁREAS, NAS SESMARIAS


) H
Mandando fossem as terras da Colónia distribuídas de sesmaria na
forma das Ordenações, as cartas de doação e os forais deixavam em aberto
o problema da área.

A legislação, desde el-Rei D. Fernando, nunca havia cuidado


i®p especificamente da extensão das datas, tudo cifrando-se ao critério vago
fll das «possibilidades» de aproveitamento em prazo certo, possibilidades que,
no Brasil dos dois primeiros séculos, figuram mais como tema floral e
abstrato: sobrando o solo e rareando quem o quisesse aproveitar, as autori­
dades agiam com liberalidade excessiva, dando o que se pedia, porque,
por maior que fosse a generosidade, sempre restaria espaço para atender a
todos.

I
li
O SlSTEM/V SESMARIAL NO BRASIL 67

No comum, tanto nos pedidos, como nas cartas de doação, aparecem


delimitadas as áreas — tantas léguas de terra, devidamente confrontadas e
às vezes demarcadas — de sorte que, embora vastíssimas, se sabia ao certo
o tamanho das sesmarias. Mas em alguns casos nem na própria demarca­
ção permite calcular a extensão da data.
Em 1556, por exemplo. D. Beatriz distribuiu a Duarte Lopes uma ses­
maria em Olinda, limitada pelo «outeiro que está sobre o Varadouro», pe­
lo caminho... até o oiti que está ao passo onde mataram o Varela,» pelos
mangues do Bebcribe, até retornar ao Varadouro. (Tombo, 32). Tudo
muito bem delimitado: mas qual a extensão da terra doada? Em 1543,
Duarte Coelho faz doação a Bartolomeu Dias da «terra que está do outeiro
de Sam Pedro para a banda do Noroeste», limitada ao Sul e Sudoeste
«com terras de João Braz c Bartolomeu Rodrigues», ao Norte e Noroeste
com terras de Jerônimo, a leste pela Merueira, etc. (ib. 245): mas a exten­
são?

De uma sesmaria dada a João de Sabanda (ib. 247) apenas se conhe-


cem as limitações, nada, porém, quanto ao tamanho.
E muita vez nem o colono sabe o que pede, solicitando, de modo
genérico e vago, terras «na parte onde está um poço chamado Couro da
Anta até a parte aonde está um ribeiro grande, chamado das Araras»,
adiantando não saber «as léguas que há do dito poço... até o dito ribeiro»,
(Doc. Hist. I, pág. 3); ou «toda a terra que se achar devoluta e sem dono»
(ib. 26); ou «toda a terra e sobra que estiverem dentro das ditas confronta­
ções» (ib. 44); ou «toda a mais que se achar capaz de situação de gados»
(ib. 136); «ou todas as terras que nestes meyos se acharem» (ib. 207).
O fenômeno, insistamos, nada tinha de mais: se sobrava terra e rarea­
vam os moradores, não havia razões para limitar as datas, pois, por mais
que se distribuísse generosamente o solo, sempre ficaria espaço para quem
viesse depois.

21 - AS PRIMEIRAS LIMITAÇÕES

Nos começos do século 17, sob o domínio dos Felipes, encontramos as


primeiras medidas de restrição de áreas, mas, então, para caso concreto,
visando a corrigir abusos praticados por Jerônimo de Albuquerque, na
distribuição de sesmarias no Rio Grande do Norte.
Ultimada a conquista da Paraíba, a situação não se oferecia muito
segura para os moradores, pois os franceses continuavam comerciando com
os potiguares do Rio Grande do Norte, «e dali saíam também a roubar os
navios que iam e vinham de Portugal, tomando-lhes não só as fazendas
mas as pessoas», ordenando, por isso, a Coroa espanhola a Manuel Masca-
renhas Homem, Capitão-Mor de Pernambuco, fosse sujeitar a região norte,
ali construindo «uma fortaleza e povoação».
I

68 Costa Porto

Coroado de êxito o empreendimento, Mascarenhas entregou a capita­


nia ao comando de Jerônimo de Albuquerque, seu primeiro capitão-mor,
(6) a quem foi afeta, igualmente, a tarefa de distribuir a terra de sesma­
ria, a fim de apressar o povoamento.
Queixaram-se, porém, a el-Rei os moradores de haver Jerônimo agido
com parcialidade e protecionismo, fazendo entre filhos e parentes «uma
repartyçam muyto exorbitante em cantydade», acusação, entretanto, que
parece infundada: na verdade, segundo registra Pereira da Costa, a comis­
são nomeada para rever a distribuição feita pelo Capitão-Mor, apurou te­
rem sido distribuídas 185 sesmarias, apontando-se, especificamente. aque­
las dadas aos filhos e parentes de Jerônimo: a Matias e Antônio de Albu­
querque, 500 braças quadradas no Cunhaú e umas salinas, na vila de Na­
•; • ' tal; a Gaspar de Albuquerque, uma légua em quadro, depois mais duas,
para ele e para Jerônimo de Ataíde. e. novamente, outra sesmaria, aos
mesmos, sem determinar a área; a Lourenço de Albuquerque e Afonso La­

I li ■
11 garto, meia légua quadrada; a Jerônimo Fragoso, outra, sem determinação
da área; outra finalmente, a D. Maria de Albuquerque» (Anais Pernambu­
canos, II, 290).
I I
Ora, não há aí nenhuma «exorbitância», porque tais extensões eram
usuais na Colónia.
O certo, porém, é que el-Rei Felipe III — II de Portugal — , achou
a distribuição excessiva, ordenando ao governador D. Diogo de Menezes
procedesse a nova partilha, e, ante a omissão estranha do seu delegado,
baixou a carta régia de 28 de setembro de 1612, a fim de regularizar a si­
tuação.
De saída, houvera abuso grave: os «sesmeiros» — é a primeira vez,
cremos, que em documento oficial aparece a palavra sesmeiros para signi­
ficar o beneficiário das datas, e não o distribuidor, como no Reino — ha­
viam recebido as terras com a obrigação de as «cultivarem e
beneficiarem», não tendo, porém, satisfeito esta exigência fundamental,
com o que, pondera o Monarca, «meo serviço e fazenda recebem perda».
Assim, a função primeira dos novos delegados régios — Alexandre de
Moura e o Ouvidor Garcia Tinoco — deveria voltar-se para regularizar es­
te estado de coisas, cabendo-lhes, como medida liminar, citar os sesmeiros

(6) — Em estranho anacronismo, escreve Max Flciuss, em sua «História Administrativa


do Brasil», pág. 32: »Jerônimo de Albuquerque, vindo para Pernambuco em companhia do
cunhado Duarte Coelho... onde se-conservara desde 1535... conquistou gloriosamente aos fran­
ceses o Maranhão, onde faleceu em 1618, na idade de 70 anos c foi igualmente o primeiro
capitão-mor do Rio Grande do Norte».
Tendo vindo para Pernambuco cm 1535, com o cunhado, se falecesse cm 1618 Jerônimo
teria, no mínimo, uns bons 80 e tantos anos e não 70; e na verdade, seu falecimento ocorreu
em fins do século 16, antes de 1592, pois, numa escritura de venda de 6 de maio deste ano.
Domingos Fernandes e sua mulher, Catarina Lopes, se dizem senhores de «huma sorte de ter­
ras» em Bebcribe, vizinha à -levada do engenho de Hieronimo de Albuquerque QUE DEUS
TEM» (Tombo, 546).
O Jerônimo do Rio Grande do Norte, é o «Júnior», terceiro filho da união do velho «A-
dão Pernambucano», com a índia Arcoverde c que, tendo conquistado o Maranhão aos fran­
ceses, juntou ao nome o apelido de Maranhão, tronco da tradicional família dos Albuquerque
Maranhão, de Pernambuco.
O Sistema Sesmarial no Brasil 69

para dizerem «da rezem que teveram pera nam cumprirem as obrygações
de suas doasões, e nam as dando soffycientes, se fará delias a dyta reparti-
çam», na qual deviam «guardar ygualdade», «tendo respeyto â pocebilidade de
cada hum e ao que elle poder cultivar», limitando ao máximo a extensão
das datas, pois «requerendo menos cantydade, poderam milhor cultivar e
beneficiar».
Dando ênfase especial ao aproveitamento, ordenava ainda el-Rei
fossem mantidas as doações anteriores, cujos sesmeiros tivessem feito
«benfeitorias de consideração, ainda que...fora do tempo», e, «informado
de que foy muyto exorbitante em cantydade de terras a repartiçam que
delias fez Jerônimo dalboquerque.. a seos filhos, e, demais, nam se terem
feito nellas benfeitorias no termo que lhes assynou», manda se faça revisão
nas doações, partindo-se «e as ditas terras pelo meyo ao direyto, ficando
aos filhos de jerônimo dalboquerque a metade que elles escolherem, com
as mesmas obrigações com que lhes foram dadas».
Finalmente — medida de caráter específico, somente erigida em regra
geral nos fins do século —. deviam os sesmeiros pedir confirmação das
datas a el-Rei.
Também para o Estado do Maranhão — criado em 1621, indepen­
dente do resto da Colónia, denominado, genericamente. Estado do Brasil
—, parece houve legislação especial, possivelmente com limitação das áreas
das sesmarias.

22 - OS DRAMAS DO REINO, NO SÉCULO 17.

Nos meados do século 17, porém, opera-se modificação profunda na


vida da Metrópole.
Os erros imensos cometidos na política do Oriente começaram a
produzir frutos no Reino de D. João III, e se vão agravando, Portugal
onerado de dívidas, lutando para conservar o império ultramarino, que só
lhe trazia encargos, impossíveis de ser suportados pelo erário cada dia mais
sobrecarregado, como se vê da pintura do Vedor da Fazenda, D. Antônio
de Ataíde, Conde de Castanheira, em exposição ao Soberano (História da
Col. III, pág. 15).
Sepultada, com D. Sebastião, em Alcácer-anebir, a sorte do Reino,
assume o trono vacilante seu tio, o Cardeal D. Henrique, octogenário e
doente — o qual, pensando em perpetuar a dinastia de Avís, chegara, apesar
de eclesiástico, a alimentar o plano de casar-se, afimando Vamhagen ter visto
os autógrafos das cartas enviadas, neste sentido, a Felipe II (Hist. Geral, I,
pág. 466, nota 20). Falecendo D. Henrique, sem herdeiros, segue-se a perda da
independência, quando, vencendo as pretensões de Antônio de Cascais, Prior
do Crato, Felipe II — o «Demónio do Meio Dia» — se apossa da Coroa Lusita­
na, anexando Portugal à Espanha — o novo «cativeiro da Babilónia», que du­
rou longos 60 anos.
E quando, em 1640, Portugal se liberta do jugo espanhol, está
praticamente arruinado.
70 Costa Porto

Dantes, não comportando o território metropolitano os excessos demo­


gráficos sempre em crescimento, o reinol recorria ao Oriente, alistando-se
nas armadas, entregando-se ao tráfico de especiarias, dedicando-se ao
comércio que, custando embora trabalhos árduos, trazia resultados
compensadores. Para a América é que poucos queriam vir, um deserto,
um fim do mundo, somente suportado à força, ou como aventura, em que
alguns afoitos esperavam conseguir fortuna rápida e, «ricos e honrados»,
tomar ao Reino, para descansar os ócios de burgueses apatacados,
podendo-se aplicar à maioria dos migrantes para o mundo cabralino os
versos de Nobre: «.Ai do lusíada, coitado, que vem de tão longe, coberto
de pó. Que triste foi o seu fado. Antes fosse p'ra soldado. Antes fosse pro
Brasil».
Agora, porém, a América é a tábua de salvação, e de tal modo se
desata o êxodo do reinol que o Conselho Ultramarino se espanta, recla-
mando ao Monarca medidas de repressão, pois do contrário, adverte, «ce-
do os despovoará o Reino».
Apesar, porém, de várias leis baixadas para dificultar a migração, o
fluxo migratório é, dia a dia, mais intenso, e. nos fins do século 17. a
faixa costeira quase não comporta mais ninguém, ressaltando vários docu­
mentos da época a quase saturação do litoral: quando, por exemplo.
uns moradores pedem, em 1693, terras no Passira Mirim, o Procurador da
Coroa corre a pedir provem estão devolutas ou desaproveitadas, «visto que
em paragem tão pouco distante» (Doc. Histórico, I, 30); já em 1690, opi­
nando sobre um pedido de terras «nos campos de Inhamu e Tamboatá.»
nas Alagoas, apontadas como devolutas, o Procurador da Coroa pondera­
va, prudente: «faz-me dúvida que no termo da povoação haja terra desa­
proveitada e devoluta», sugerindo «devem os supplicantes justificar que as
ditas terras estão... desaproveitadas» (Doc. Hist. I, 14), enquanto, em
1729, a Câmara do Recife, opinando sobre um pedido de sesmarias para
as bandas de Ipojuca, sugeria análise mais detida do problema, «por se
evitarem letígios e prejuízos de terceiros, por não haverem (sic) hoje terras
que não estejam dadas, principalmente no lugar que os supplicantes reque­
rem » (Ib. 2, pág. 93).
Daí a política de restrições das áreas — para ficar «lugar de se acomo­
darem outros pretendentes de igual merecimento.» como se fez em parecer
de 1685 (ib. I, pág. 161) —, datando dos fins do século 17 a nova
orientação da Metrópole, de fixar tetos máximos das sesmarias, em limita-
ção crescente, começando por cinco léguas, descendo, depois, para quatro.
três, duas, uma e, finalmente, nalguns casos, meia légua.

23 - POLÍTICA DE LIMITAÇÃO DAS SESMARIAS

A lição de Cândido Mendes — de que «no Brasil não havia limite


certo para as concessões» ■- (Comentários às Ord. Fil. IV, 43, § 3.°) pode
aceitar-se como verdadeira de relação ao século 16 e quase todo o século
17, em cuja última década, porém, começam a aparecer as primeiras leis
restritivas das áreas, fixando os tetos máximos das sesmarias.
O Sistema Sesmarial no Brasil 71

E, ainda, aí. há distinguir as normas de caráter geral e aquelas de al­


cance específico, visando a disciplinar situações concretas, como foi o caso
do Piauí.
A região piauiense, integrante da donatária de João de Barros e
sócios, permaneceu desconhecida e despovoada até meados do século 17,
quando começou a ser devassada pela marcha da pecuária, vinda da Ba­
hia, parecendo certo que os primeiros ocupadores foram sertanistas ban­
deirantes, como Domingos Jorge Velho e outros, e donos de currais, como
os irmãos Senão Domingos Afonso, o Mafrense, o Julião Serra — a
quem se atribui o descobrimento e o nome da Serra dos Dois Irmãos — os
Garcia d’Ávila, da Casa da Torre, os Guedes de Brito, da Casa da Ponte
etc.
O trabalho dos sertanistas de Piratininga consistira, antes, em limpar
terra, os
a região dos indígenas, e, assim assegurado o relativo sossego da terra.
donos de rebanho foram pedindo sesmarias infinitas — de muitas e muitas
léguas —, a tal ponto que na «Descrição dos sertões do Peauhy», informava o
Padre Miguel do Couto, ao Bispo de Olinda, estarem suas terras apropriadas
por Sertão e D. Leonor Marinho, viúva do Coronel Ávila, «os quais as partemas
meyas, têm nellas algumas fazendas de gado, as mays arrendam, a quem lhes
quer metter gado, pagando dez réis» — deve ser dez mil réis — «de foro, por ca­
da sítio» (Ap. Ennes, op. cit. 37).

O velho hábito do sesmarialismo colonial: os sesmeiros, quase sempre


potentados de Olinda e Salvador, pediam a terra, legalizavam o domínio e
passavam a ganhar dinheiro às custas do sertanista anónimo, que enfrenta­
va os riscos, não passando, entretanto, de simples «precarista», explorado
pelo proprietário, mero beneficiário dos lucros.
Talvez os inimigos do Sertão e da Casa da Torre estimulassem os
foreiros, despertando-lhes o ânimo de revolta tanto mais natural quanto
muitos raciocinariam como aquele colono, de que fala Lira Tavares: «se as
terras se dão para povoar, razão he se prefira quem as povoou».

O certo é que começam a amiudar-se os conflitos entre os sesmeiros e


os posseiros, ou simples ocupantes, e, agravando-se a situação, o Bispo de
Pernambuco, D. Fr. Francisco de Lima, regressando de uma visita pastoral
ao Piauí, enviou a Roque Monteiro Paim, Secretário do Conselho Ultrama­
rino. minucioso relatório, expondo-lhe o quadro sombrio que observara.
Alarmado, o Conselho mandou instruções ao Governador de Pernambuco,
recomendando-lhe procurasse harmonizar os interessados, fazendo «muito
pollos compor, de maneira que não cheguem àquelle rompimento de que
se pode temer algumaz ruinaz, dando-lhes a entender que, nestas suas con­
tendas, devem esperar o recurço da justiça, sem se valerem de meyos vio­
lentos que neste caso não só serão prejudiciais, mas desagradaveis a S.M. e
quando não baste esta insinuação para os apaziguar», faça «passar o Ouvi-
dor Geral...com alguma gente de que se acompanhe...para que os una e
ponha em toda pas, e proçeda contra os culpados que se não quizerem re-
duzir ao que for rczão».
72 Costa Porto

Prosseguindo, entretanto, os desentendimentos, baixou el-Rei a carta


régia de 3 de março de 1702, determinando aos sesmeiros procedessem à
demarcação das datas, cominando-se contra os relapsos a pena de caduci­
dade, norma que não passou do papel, pois se fazia praticamente im­
possível demarcar as terras naqueles confins.
E que a própria Metrópole não levava a sério seus preceitos revela-o
episódio sugestivo: no cumprimento da carta régia de 3 de março, o Ouvi­
dor do Maranhão - Dr. Antônio José da Fonsêca. sob cuja jurisdição ficava
o território do Piauí — declarou caducas as datas não demarcadas,
provocando reação dos magnatas de Salvador, protegidos pelo Vice-Rei,
Marquês de Angeja, o qual representou à Coroa contra o ato do Ouvidor,
í-!’;
pondo-lhe em dúvida, parece, a competência para atuar no Piauí, cujo
: t J controle jurisdicional disputavam os governos da Bahia, de Pernambuco e
do Maranhão.
I

I a
E el-Rei recua: embora decidindo que a jurisdição pertencia mesmo
ao Maranhão, toma, entretanto, sem efeito, o ato do Ouvidor, o qual na­
da mais fizera do que aplicar os preceitos da carta de 1702...
Voltava tudo, assim, à estaca zero, continuando os sesmeiros a exigir
í foros elevados dos moradores, e, ante sua recusa, valendo-se da milícia
i
colonial, espécies de «volantes», nomeados pelo governo da Bahia, a pre­
texto de combater os indígenas, mas cuja atuação, no comum, se fazia sen­
tir contra os foreiros revoltados.
Demorando a Metrópole em solucionar os incidentes, a Câmara da
Vila da Mocha, se dirige, em 1745, a D. João V, reclamando contra os
«extraordinários damnos espirituaes e temporaes que tem havido e actual-

mente se experimentam nesta capitania, originados da sem razão e injusti­
ça com que os governadores de Pernambuco...deram por sesmaria e inde­
vidamente grande quantidade de terras a três ou quatro pessoas particula­
43 res, moradores na cidade da Bahia, que, cultivando algumas delias, deixa­
ram a maior parte devoluta, sem consentirem que pessoa alguma as po­
ii 'W voasse, salvo quem, à sua custa e com risco de suas vidas, as descobrisse e
defendesse contra o gentio bárbaro, constrangendo-lhes depois a lhes paga-
rem dez mil reis de renda por cada sitio», rogando, finalmente, fosse S.M.
M I
«servido mandar que os ditos intrusos sesmeiros não possam usar dos ditos
arrendamentos, nem pedir renda aos moradores desta capitania dos sitios
que...descobriram...mas antes se sirva de ordenar que cada uma das ditas

I. fazendas contribua em cada um anno com algum limitado foro... a metade


para o aumento da real fazenda e a outra metade para rendimento do
Conselho da Câmara».
E indo além, pediam remédio decisivo: ficassem «as terras das sobredi­
tas fazendas pertencendo, in solidum, aos ditos possuidores delias...porque
só desta sorte poderão cessar tão injustos pelitos e o contínuo desassossego

1
ji
i ii
que experimentam os referidos moradores».
Ou porque temesse dar solução apressada, ou ante a pressão dos
sesmeiros, apoiados pelo governo da Bahia, a Metrópole cozinhou o pro­
blema longo tempo, somente surgindo a primeira medida séria, no Reina­
do de D. José I, quando praticamente Pombal passou a dirigir Portugal.
O Sistema Sesmarial no Brasil 73

Nas queixas levadas a D. João V, aludiam os moradores às «oppressões


e prejuízos», em decorrência «das contendas e litígios que lhes moveram os
chamados sesmeiros de um excessivo número de léguas de terras de
sesmaria que nullamente possuem, por se não cumprir o fim para que se
concederam», acentuando virem sofrendo «grandes vexames nas execuções
das sentenças que contra elles alcançaram para expulsão de suas fazendas,
cobrando rendas e foros das ditas terras».
Tudo isso, entretanto, findava natural: a lei não conhecia a figura do
«posseiro», do precarista, do rendeiro, só levando em conta o «sesmeiro»,
isto é, aquele colono que havia recebido as datas dentro do ordenamento
jurídico vigente, e, embora a carta régia de 3 de março de 1702 houvesse
condicionado a legitimidade das datas à demarcação, isto constituía pro­
blema de fato, a ser apurado por vias ordinárias. Assim, quando um ses­
meiro exigia o foro e não era atendido, tratava de despejar o mero ocu­
pante, sendo fatal que a justiça, chamada a decidir, acabasse dando-lhe
ganho de causa.
Mas Pombal, modelo antecipado de «populista», findaria nos conflitos
entre «poderosos» e fracos tomando posição em favor dos humildes, procu­
rando, assim, proteger os foreiros do Piauí, possível agisse, no caso, dentro
da animosidade contra a Companhia de Jesus, a qual, herdeira de grande
parte das fazendas de Afonso Sertão, de certo figuraria entre os latifundia-
ristas visados nas queixas dos moradores.
De qualquer modo, sob a influência do seu onipotente Ministro, D.
José volta as vistas para o problema, e, tendo mandado colher as
«informações necessárias», acaba, ao menos, reconhecendo a justiça da
causa dos ocupantes, tomando decisão drástica: depois de esclarecer fora
servido «por resoluções de onze de abril e dois de agosto deste anno (1753)
anular, abolir e cessar todas as datas, ordens e sentenças que tem havido
nesta matéria, para cessarem os fundamentos das demandas que pode ha­
ver por umas e outras partes», baixa a Provisão de 20 de outubro de 1753,
em que procura solucionar, em definitivo, a situação, fixando estas duas
normas principais:
a) os antigos sesmeiros teriam revalidadas as datas que houvessem
cultivado, por si, ou feitores e prepostos, excluídas as terras em arrenda­
mento ou aforamento, «por não serem dadas as sesmarias senão para os
sesmeiros as cultivarem e não para as repartirem, e darem a outros que as
conquistem, roteiem e entrem a fabricar, o que só é permitido aos capitães
donatários e não aos sesmeiros»;
b) aos antigos sesmeiros se podiam conceder novas datas, de terras
«incultas e despovoadas», desde que não excedessem três léguas de
comprido por uma de largo — devendo-se proceder à demarcação das
áreas, afeta a fiscalização destas medidas ao Ouvidor do Maranhão, De-
sembargador Manuel Sarmento.
Em tese, tudo perfeito: mas na prática, nenhuma esperança de que
funcionasse, naquelas distâncias, o disciplinamento baixado.
V

74 Costa Porto

24 - LEGISLAÇÃO GERAL

Enquanto se debatia o caso do Piauí, tratava a Metrópole de resolver


o problema geral da Colónia, tendo em vista, de modo particular, o lito­
ral, onde mais se vinha acentuando a concentração demográfica do tempo,
ante as levas de migrantes que, do Reino, procuravam o Brasil.
Aumentando o número de pretendentes, reponta a orientação de limi­
tar as áreas das sesmarias, com o objetivo de acomodar todos quantos
pediam terras para aproveitamento, havendo, entre os autores, certa
confusão quanto às medidas então baixadas, usual apontar-se a carta régia
de 27 de dezembro de 1695 como fixadora do teto máximo das datas em
cinco léguas, a seguir reduzido para três, pela carta de 7 de dezembro de
1697, e, depois, sucessivamente, para duas, uma e meia légua, em alguns
casos.
Mesmo depois do século 17, poder-se-ia aceitar a lição de Cândido
Mendes — quanto à ausência de limites das datas —, neste sentido de que,
li íi I embora houvesse legislação expressa, e em caráter geral, na prática a nor­
» I ma restritiva não passava do papel.
E a própria legislação andava aos avanços e recuos: enquanto, parece,
uma carta régia de 1698 fixara o limite máximo de duas léguas de terras,
logo a seguir, outra, de 20 de janeiro de 1699, estabelecia exceção
compreensível, determinando que «as pessoas que tiverem terras de sesma­
ria, ainda que de muitas léguas, se as tiverem povoado c cultivado.. .com
tais pessoas se não entenda» (a limitação), pois, «cumprindo as obrigações
do contrato por sua parte, se lhes deve cumprir a minha», o que equivalia
dizer não tinha a lei restritiva efeito retroativo.
Mesmo antes da legislação limitadora, já algumas autoridades se mos-
travam objetivas e sensatas: dentro do princípio de limitar as datas «para
que fique lugar de se acomodarem outros pretendentes de igual mereci-
mento» (Doe. Hist. I, pág. 161) ; o Procurador da Coroa esclarecia em
1689: «o estilo que se observa nesta capitania he darem-se tres léguas de
sesmaria a cada pessoa» (ib. pág. 4).
Se os colonos continuavam encaminhando pedidos vagos ou exorbitan­
tes. as autoridades régias opinavam no sentido da restrição das áreas:
pedindo cinco moradores «toda a terra devoluta» que se achar, dão-se-lhes
16 léguas, pouco mais de três para cada um (Doc. Hist. I pág. 17); outros
sete pedem 24 léguas e recebem 21 (pág. 19); a três, que pedem «seis lé­
guas em quadro», distribuem-se seis, ordinárias (pág. 32); outro, pedindo
quatro léguas em quadro, recebe três ordinárias (ib. pág. 40).
E a questão se foi apertando, depois da carta régia de 20 de janeiro
de 1699, que introduziu o pagamento de um foro por légua de terra,
exigindo as autoridades medição e demarcação, «por ser assim necessário
para saber-se o foro que deve pagar a S.M. (Doc. Hist. I, pág. 67), ou
«por ser assim preciso expreçar-se na sesmaria a respeito do foro que se há
de impôr» (ib, 2,° pág. 70).
Mas estas medidas restritivas nunca foram aplicadas inflexivelmente.
O Sistema Sesmarial no Brasil 75

Em alguns casos, abriam-se exceções, dando-se a um morador áreas


imensas, como a Francisco Berenguer de Andrade, que em 1689 recebe
«dez léguas em quadro» — a bagatela de cem léguas ordinárias — (Doc.
Hist. I, pág. 8-9), continuando-se, muitas vezes, a levar em conta as possi­
bilidades de aproveitamento, encontrando-se, aqui e ali, afirmações assim:
«declare o suplicante as léguas de terra que pode ocupar», ou «podendo
aproveitar a terra que pede, se me não oferece dúvida» (ib. 1, pág. 194).
Mesmo, porém, quando os distribuidores se apegam, rigidamente, à
letra da lei, muita coisa restava abrandando a força das limitações.
Falava-se, por exemplo, em que cada sesmaria deveria ter o máximo
de tantas léguas: mas qual a extensão de uma légua?
A lei não o esclarecia, a doutrina se mostrava divergente, lembrando
J. Eduardo da Fonseca (Rev. Forense, vol. 28, pág. 267) que «Febo e
Barradas lhe davam quatro milhas, Leitão e Marina, argumentando com
as Ordenações, livro I. tít. 91, § 13, e livro 3, tít. 35 § 6, três, enquanto
Pimenta e Correia Teles a tomavam como tendo três mil braças», o que se­
ria a praxe pelo menos em Pernambuco, segundo se deduz de lanços da
Documentação Histórica (I, 320) e do Tombo de São Bento.
Além disso, os documentos aludem a diversas modalidades de léguas
ordinárias, quadradas, em quadro, etc., conceitos nem sempre muito bem
claros.
O comum eram léguas ordinárias, cuja significação parece muito
simples: tendo uma légua três mil braças, a sesmaria de três léguas
ordinárias deveria abranger nove mil braças, ao todo: mas um parecer de
1753 dá, de légua ordinária, outro sentido, falando em «três léguas de ter­
ra, ordinária, que é com uma só légua de largo» (Doc. Hist.. 2.°, pág.
35).
Uma légua de largo, isto é, três mil braças de frente; mas quantas de
fundo?
O sentido de sesmarias «com tantas léguas de comprimento por tantas
de largura», as fontes o desvelam sem sombra de dúvida: «dez léguas de
terra, cinco de comprido e duas de largo» (Doc. Hist. I, pág. 161), ou,
«pela nova representação que fazem os suplicantes, consta pretenderem so­
mente seis léguas de terra em comprimento e uma de largura que sendo
assim são seis léguas» (ib. 2.°, pág. 71).
Também o conceito de terra em quadro aparece muito claro nas
fontes: «três léguas de terra em quadro que ao todo fazem seis léguas» (ib.
I. pág. 32); «quatro léguas de terra em quadro que são dezaseis» (ib. 97)
ou «dez léguas de terra em quadro, tanto de comprido como de largo».
(ib., 8); «fazendo do comprimento largura e da largura comprimento» (ib.
108); «seis léguas de terra em quadro, as quais vem a montar em trinta e
seis léguas ordinárias, conforme o acórdão que se acha nesta provedoria»
(ib., 2.°, pág. 70); «duas léguas em em quadro que fazem quatro léguas»
(ib.80). Mas, opinando sobre a pendência em torno das terras dos Pal­
mares, o Procurador da Coroa encara léguas em quadra não como o
I i íiH
|í 76 Costa Porto

quadrado de léguas ordinárias, mas de léguas quadradas: «duas léguas em


! ' 1 quadra contem quatro léguas quadradas três léguas em quadra.. .contem
nove léguas quadradas», etc. (Ap. Ennes, op. cit., pág. 313).
E parece, ainda, havia diferença prática, na medição: uma sesmaria
de três léguas quadradas, por exemplo, ora se considerava como um qua­
drado com três léguas de frente e três de fundo — nove léguas ao todo —
ora um paralelogramo formado por uma área cujas linhas distavam, do
centro — o pião — três léguas em todos os sentidos.
T1 E como se mediam e demarcavam estas terras?
Aí é que estava o grave problema — a carência de «geômetras» —
muita demarcação, talvez, processando-se por aquele método que Ulisses
r ■
Lins recolheu de velhos sertanejos do Pajeú: «o medidor enchia o
cachimbo, acendia-o e montava a cavalo, deixando que o animal marchas­
se a passo; quando o cachimbo se apagava, acabado o fumo, marcava uma
légua» (Um Sertanejo e o Sertão, pág. 167).

25 - OSCILANDO ENTRE EXCESSOS


Duas fases bem definidas marcam a evolução do disciplinamento ses-
marial da Colónia.
Até a última década do século 17 — e salvo medidas específicas para o
caso do Rio Grande do Norte e do Maranhão —, tudo se processa de
acordo com os princípios vagos das Ordenações Manuelinas e Filipinas, se­
gundo preceito expresso das cartas de doação e forais
A seguir, vem o excesso de normas disciplinadoras, tumultuadas, não
raro conflitantes, e tudo padecendo do vício geral de toda a legislação rei-
nol: alheiamento à realidade, baixando-se a lei em Lisboa, sem o menor
esforço de ajustar a regra às peculiaridades locais, às condições ambientes,
de todo esquecidas.
Queixava-se Duarte Coelho, em carta de 22 de março de 1548, da de­
satenção do Monarca diante das ponderações que repetidamente lhe fazia
de Olinda...«nam tenha V.A. em tam pouco estas terras do Brasil... co­
mo mostra ter pois nam provê nem me responde às cartas e avy-
sos....pois a yso nam acude, nem me tenha em tam pouco e em tam pouca
estyma, que aja por mall empregado em dar credito ao que lhe dygo e es­

í' ■ crevo».
A censura, entretanto, não parece de todo procedente. Na verdade,
■ I lendo-se, por exemplo, o Regimento de Tomé de Sousa, é fácil observar
que muita cousa é solução a dificuldades lembradas pelo donatário.
L la . E depois que, em 14 de julho de 1642, foi criado o Conselho
Ultramarino, melhorou muito a legislação sobre o Brasil, pois muitos dos
seus membros eram antigos dirigentes coloniais, conhecedores da realidade
e, via de regra, sensatos e objetivos.
Mas permaneciam de pé os vícios de origem, um dos quais a própria
estrutura do Estado, naquela fase de absolutismo régio. Na verdade, o
quadro jurídico constitucional do Estado brasileiro de hoje difere, total­
mente, do então vigente na Colónia. Em primeiro lugar, a realidade esta-
O Sistema Sesmarial no Brasil 77

tal apresenta-se, modernamente, desdobrada em «cortes verticais» — de


«diferenciação de competências» — havendo «órgãos» específicos incumbi­
dos de cada setor de manifestação do poder onímodo e oni-compreensivo
do Estado — o Legislativo, o Executivo e o Judiciário —, enquanto, por
outro lado, tratando-se de uma «federação», aparecem os «cortes horizon­
tais» da distribuição de «competências» no espaço, matérias da alçada da
União, dos Estados-Membros. e dos Municípios (Pontes de Miranda, Co­
mentários à Constituição de 1946, págs. 152 e 162).
Outrora, nada disso ocorria.
Havia a realidade suprema — o Estado — encarnada na pessoa do
Soberano, que, absoluto e sem freios, legislava, julgava, administrava, e se
órgãos existiam encarregados deste ou daquele setor, sua «competência»
não lhes advinha da lei, de uma Constituição — «suprema manifestação
da vontade popular» , mas da vontade do Monarca, no «quod Principi
placuit legis habet vigorem».
Fonte única do direito seria, assim, como no Baixo Império Romano,
a Realeza, e eis porque el-Rei decide tudo, resolve tudo, disciplina tudo.
donde na legislação metropolitana, aquele horror do casuisticismo
centralizado, descendo o Monarca a legislar sobre altos problemas de justi­
ça, da administração, do governo, mas, também, regulando frivolidades
ridículas, dizendo o que o colono devia comer, o que devia vestir, quantos
pratos podiam figurar na mesa, resolvendo o tratamento a dar aos cama­
reiros, a «precedência» nas procissões e atos litúrgicos, o vestuário das es­
cravas, os remédios jurídicos para conflitos na convivência social.
De acréscimo, à moda dos Césares — cuja vontade, manifestada sob a
denominação, genérica, de «constitutiones», revestia a forma de Edicta, de
Decreta, de Rescripta e de Mandata — também os soberanos portugueses
legislavam através de Leis, ou Cartas de Leis, de Cartas Régias, Alvarás,
Provisões, Decretos, Portarias, etc., cuja distinção teórica vemos em Rodol­
fo Garcia (História Política e Administrativa do Brasil, págs. 19 e segs.),
mas, na prática nada tinha de firme, quase repontando como questão de
arbítrio ocasional.
Por outro lado, a vastidão da Colónia atrapalhava.
Muita vez el-Rei
c. baixava ordem .para resolver
------- . casos concretos. ou. regio-
-
nais, e as autoridades acolhiam-na como medida para a Coloma inteira;
outras vezes, a norma geral ficava sem execução nalguma capitania,
porque, sucedendo-se as autoridades, o novo dirigente não tomava conhe­
cimento do preceito perdido nos arquivos, entregue as traças: a carta régia
que mandava cobrar foro das sesmarias é de janeiro de 1699 e na Bahia
somente foi cumprida depois de 1777, quando Cunha Menezes assumiu o
governo, porque o dirigente do tempo, Lencastre, lhe dera “diferente inte­
ligência» e os sucessores a ignorava, registra o autor da «Memória sobre
as Sesmarias da Bahia»-
havia graves erros de cópia: refere Pizarro que uma carta
E muita
. vez «.«tarem os cavaleiros das três ordens isentos do dfzjm0
regia esclarecia nãcomitindo o não, dizia exatamente o c°ntrár’o
enquanto outra transei v ■ nu.
i
!
78 Costa Porto
-1
I Para o analista moderno, o problema se torna mais grave, porque não
existe coleção oficial das leis lusitanas: o que conhecemos é através de
citações e quando um cronista erra, todos lhe seguem as pegadas.
repetindo-se o equívoco, como é o caso da carta régia de 1711, que proibiu
a sucessão das Ordens Religiosas, apontada pela maioria, inexatamente, co­
' ■ mo a norma suspensiva da proibição.

À
i 26 O FUNCIONAMENTO DO SISTEMA SESMARIAL
NA COLÓNIA.

Tentemos, entretanto, à luz da legislação e das praxes então vigentes,


esboçar a maneira como se processou na Colónia o funcionamento do
sistema sesmarial.
11ÍH Uma das primeiras doações de terras no Brasil terá sido a da Ilha de
São João, atual Fernando de Noronha: em carta de 16 de janeiro de 1504,
D. Manuel, «havendo respeito dos serviços que Fernam de Loronha....nos
tem feito», declara «temos por bem que, vindo-se a povoar em algum tem­
po a nossa ilha de Sam Joam....lhe darmos e fazermos mercê da capitania
dela, em vida sua e de um filho seu», tornando, logo em seguida, pela car­
ta de 24 de janeiro, efetiva a doação, «para nela lançar gado e romper e
aproveitar» (Anais Pernambucanos, I, págs. 65 e 66).
O caso de Loronha, entretanto, se assemelhava mais ao sistema de
doação das futuras capitanias, nada tendo com o sesmarialismo, cuja
primeira experiência — embora não conste de sua «carta de poderes» —
teria ocorrido com as concessões de solo efetuadas por Martim Afonso,
legítimo, porém, admitir que sua implantação oficial data do donatarialis-
mo de 1534, quando D. João III determinou aos capitães repartissem o ter­
ritório da Conquista entre os moradores, «livremente, sem foro, nem direi­
to algum», pagando-se apenas, o dízimo, devido à ordem de Cristo.

27-0 DÍZIMO

Esta a primeira nota do sistema sesmarial: não havendo, na Colónia.


terras tributárias — pois o solo era de «nenhuns senhorios» —, a adoção se
fazia gratuitamente, pagando-se apenas o dízimo, e isto, menos sobre o so­
lo do que sobre a produção — «os frutos que na dita terra ouverem» — ,
ônus menos sobre o morador, na qualidade de proprietário, do que de
cristão, como tal obrigado a concorrer para o programa da «propagação
da fé».
Daí porque somente estavam sujeitas ao dízimo aquelas terras destina­
das à agricultura, livres do tributo, assim, os chamados «chãos» — o solo
urbano recebido para construir casas: quando fazem doações de «chão», as
cartas ou adotam a linguagem genérica do «livre, foro (forro) e isento», ou
declaram, expressamente, que a concessão é «isenta do dízimo a Deus»
(Tombo, 32), ou com isenção, «por não ser para cultivar» (Doc. Hist. I.
pág. 284) ou «vistos serem para edificar» (ib. IV, 53).
O Sistema Sesmarial no Brasil 79

Estranhamente, porém, encontramos uma doação de chãos na Rua da


Biquinha sujeita ao dízimo (Tombo, 134) que não atinamos como podia
ser calculado.
Em matéria de dízimo à Ordem, a Metrópole se mostrava rigorosa:
havendo, por exemplo, concedido a Duarte Coelho a redízima do pescado
da Capitania, D. João III imediatamente emenda à mão, dizendo, em
apostila, haver por bem «que a tall mercê não aja effeito. nem tenha vigor
algum, porquanto se vio que não podia aver a dita metade da dizima por
ser da hordem» (Doc. para a Hist. do Açúcar, 16).
Casos de isenções parciais aparecem, nos antigos documentos: assim,
pelo alvará de 21 de julho de 1551, D. João III, a fim de animar o povoa­
mento da Colónia, determinou que «toda ha pesoa que ha sua custa e des­
pesa se for a essa cidade (Salvador) c povoações pera nelas vyver e has po­
voar e aproveytar este ano de 51 e no que virá de 52, e asy os que la man­
darem no dyto tempo a fazer de novo engenho de açuquares ou reformar
os que tynhão nesa capitania da baia e da do spirito santo... sejão excusos
de paguarem o dízimo... de suas novidades por tempo de cinco annos»
(Doc. para a Hist. do Açúcar, III).
Igualmente, pelo alvará de 21 de agosto de 1587, embora proclaman­
do que «pagar dízimo seja obrigação geral de toda a cristandade», el-Rei
dispensa do pagamento, pelo prazo de 15 anos, os gentios «que se conver­
terem à santa fee» (ib. pág. 232).
E o Governador do Maranhão alude à praxe de que «no assentamento
das terras novas custuma a liberalidade real isentar os moradores delias dos
ditos dízimos por alguns annos», solicitando igual providência para os ma­
ranhenses, ponderando: «O que V.M. poderia tirar nestes annos desta po­
bre gente pouco monta à Fazenda Real» e «muito à pobreza dos morado­
res», ficando «mais penhorados com a liberalidade real para os empregar e
fazer mais fazendas e pagar a V. M. em dobro». As próprias autoridades
locais, por vezes, se mostravam transigentes: uma carta de 1716 manda
que o pagamento dos dízimos comece «depois de passados cinco anos»
(Doc. Hist. IV, pág. 45).
Problema de alguma complexidade foi criado pela situação dos
indígenas.
O dízimo destinava-se à propagação da fé, à sustentação do culto, en­
carado como dever do fiel, a quem cabia trabalhar pelo alargamento do
«reino de Cristo» na Terra. Pagão, o selvagem evidentemente não devia
contribuir com o dízimo; mas que dizer do indígena convertido, batizado,
integrado no rebanho de Igreja?
Claro que, na qualidade de cristão e «produtor», restava-lhe, aceitar a
norma geral, submetendo-se, como os demais cristãos, ao princípio unifor­
me.
Mas os jesuítas procuravam, por todos os meios, proteger o indígena,
inclusive tentando eximi-los da obrigação que a todos atingia. Tratava-se,
porém, de matéria religiosa, dever de consciência, e o Padre Grã, em carta
de 22 de setembro de 1562, pede ao Padre Torres «mande dizer como nos
i
!l ■ 9 80 Costa Porto

haveremos com estes índios acerca dos dízimos», ajuntando que «até agora
lhe não temos dado disso notícia, mas dizem-me que os rendeiros lha co­
I meçam a dar». (Cartas Avulsas, 292).
?)
Em outras palavras, os jesuítas agiam como se o indígena não estivesse
obrigado a pagar, mas os que arrendavam a cobrança procuravam receber
de toda gente, incluindo o selvagem.
Segundo acentua Serafim Leite, o problema fora, já posto pelo mesmo
Grã, em 1551: voltaria à carga, decerto por não haver tido a orientação
pedida, sendo a dúvida, afinal resolvida pelo alvará régio de 4 de janeiro
I de 1576, em que D. Sebastião, acolhendo a opinião dos canonistas e teólo­
gos do tempo, adotou solução meio «salomônica»: os indígenas pagariam
os dízimos, mas, durante seis anos, em vez de a renda ir para o Reino, fi­
caria na Colónia, para «as suas igrejas, confrarias e espritais».
O prazo da isenção — seis anos — terminaria em 1582, obtendo, po­
rém, o Visitador Cristovâo de Gouveia fosse prorrogado por mais 15 anos.
o que, entretanto, criou novo problema: autorizada a prorrogação em 21
de agosto de 1587, os rendeiros naturalmente passaram a exigir o
’i pagamento, depois de esgotado o primeiro prazo de isenção — 1582 — e o
■í Colégio da Bahia achou mais razoável adiantar o dinheiro que seria cobra­

□ do das aldeias paulatinamente, chegando, assim, a desembolsar 320 cruza­


dos, o montante da arrecadação dos indígenas entre 1582 e 1587.
Baixada a lei de prorrogação do prazo, o rendeiro devolveu a quantia
recebida — fenômeno normal de «repetitio indebiti» —, mas o Colégio en­
tendeu que, arcando com tanta despesa em favor das aldeias, poderia ficar
com a importância devolvida, a título de indenização. Gouveia concordou
com a fórmula, mas o padre Beliarte a repeliu, decerto olhando-a a modos
de «enriquecimento ilícito» — que podia escandalizar as consciências mais
I timoratas —, e, à base de sua informação contrária, o Geral de

' III Companhia ordenou se restituísse o dinheiro aos índios, os quais, entretanto,
conhecendo as dificuldades do Colégio — havia-se gasto em obras cerca de
7 mil cruzados—, abriram mão da devolução, o que foi aprovado pelo Pa­
dre Geral em 1597 (Serafim Leite, História da Companhia, II, 89-90).

!i 'l4i
•ti
Esgotado o prazo da segunda isenção, também os indígenas passaram
a pagar o dízimo normalmente.
> 28 - LUTA PELA «IMUNIDADE»
Isenção geral, ou, antes, imunidade, esta não havia, pelo menos de
começo nunca a vemos alegada, a não ser a partir dos meados do século
17, quando aparecem certos grupos recusando-se ao pagamento do dízimo,
dizendo-se isentos: os «cavaleiros das três ordens» — os agraciados com as
comendas das Ordens lusitanas de Cristo, Avís e Santiago— e as ordens
religiosas— as «Religiões», da linguagem do tempo.
Para melhor compreender a marcha do litígio, é conveniente ter em

ti W
I vista como se processava a arrecadação dos dízimos.
O foral dos donatários, repetindo as cartas de doação, se limitava a

I determinar o pagamento do dízimo — singelamente definido como «de dez... -


hum» — sem, entretanto, esclarecer como se efetuava a
O Sistema Sesmarial no Brasil 81

arrecadação, matéria regulada, com algum casuisticismo, no Regimento


dos Provedores, de 17 de dezembro de 1548, mas parcialmente,
disciplinando-se. apenas, o pagamento nas alfândegas — sobre mercadorias
importadas e exportadas e o caso concreto dos açúcares.
Rígidas as normas do Regimento dos Provedores: «todalas naaos na­
vios que... forem aas ditas terras do Brasil» deviam ir diretamente aonde
houvesse alfândegas, onde se faria a descarga das mercadorias para paga­
mento do dízimo devido, sob pena de perda das utilidades e degredo do
capitão, por cinco anos, para São Tomé; chegando ao porto, deviam os
comandantes notificar os oficiais régios para a visita de fiscalização, sendo
vistoriada a carga e conduzida à alfândega para conferimento; a descarga
somente se podia efetuar durante o dia, encerrando-se ao pôr do sol, per­
manecendo a bordo um guarda, para evitar desvios, a ninguém sendo líci­
to retirar nada de bordo sem o visto dos oficiais, sob pena de 50 cruzados
de multa e cadeia; os gêneros sujeitos ao tributo seriam dizimados, retiran­
do o almoxarife régio «um em dez», e «sendo a mercadoria que se di­
zimar tal de que se não possa na mesma cousa pagar... o Juiz e o almoxa­
rife a aforarão naquilo que valer, segundo os preços da terra e pelo dito
aforamento pagará o mercador a dizima a dinheiro e, não sendo o dito
mercador contente do tal aforamento, em tal caso avaliará a dita mercado­
ria e pela dita avaliação se tomará a dita dizima nas ditas cousas».
Quanto aos gêneros importados, pois, o processo era simples: o dízimo
se cobrava In Natura —«um em dez» — ou em dinheiro de contado, se
difícil receber em espécie, e com aquiescência do traficante.
Em seguida, dizimadas as mercadorias e recebidas as partes devidas a
el-Rei, como Grão-Mestre da Ordem de Cristo, procedia-se à venda em
pregão, «a quem pór elas mais der a dinheiro de contado».
O mesmo processo vigorava de relação às mercadorias mandadas da
Colónia para o Reino.
Mas o dízimo incidia sobre toda a produção colonial — agricultura ou
pecuária—, disciplinando o Regimento apenas a arrecadação do açúcar,
v------- —retirar o produto «da casa de
cuja taxação se fazia «na fonte», vedado
purgar... sem primeiro ser alealdado e pago o□ dízimo deles, sob pena de o
perder»; concluída a fabricação, o senhor de engenho devia comunicar à
autoridade competente «como
autonaaae competente «como temtem feito tamta soma de açúcar e que é já
alealdado... e lhe requererá que vá receber o dízimo», pago In Narura. «do
bom e mau igualmente na pilheira».
Isto, porém, na teoria; na prática, há duvidar se processe a arrecadação In
Xatura, salvo quanto àquelas mercadorias de fácil colocação e aci transporte,
como era o caso do açúcar, da pecuária bovina, dos algodões, etc. ão parece
razoável, na verdade, que os arrecadadores do dízimo saíssem pelas fazendas
recolhendo galinhas, sacos de milho, de farinha, recebendo peixes, ovos, quei
jos, peles, etc. Segundo se vê da exposição de Licurgo Santos i o, o Pr°P 1 ■■

rio da Fazenda Campo Seco anotava, religiosamente, tudo quanto pro °


seu feudo, para efeito de pagamento do dízimo, tantas rezes,
•mantimentos», tantas cargas de rapadura, tantas «meunças», etc.
i
i ii i i
Ml 3
b -f
d I 82 Costa Porto

Possivelmente a cobrança se efetuava de modo singelo: calculado o va­


lor da produção, sobre ele descontavam-se 10% — o dízimo. Se, por
exemplo, uma galinha custava 320 reis, quem possuísse cem deveria pagar
o dízimo sobre 32S000, ou 3S200, naturalmente em dinheiro de contado.
i' 1 Mas — em que pesem os exageros de Pyrard de Lavai e de

ii
Brandônio — sabe-se que, na Colónia, sobretudo nos primeiros tempos, a
moeda era vasqueira, de sorte que provavelmente o recolhimento se fazia,
ainda aí, In Natura, mas através dalgum produto de maior cotação e de
mercado mais certo, como o açúcar, em Pernambuco, o fumo. na Bahia,
o algodão, no Maranhão.

Que o açúcar servisse de «moeda» normal parece deduzir-se da carta


régia de l.° de dezembro de 1554, ejn que D. João III ordena ao Governa­
dor Geral D. Duarte da Costa: «Por ser informado que será meu serviço
arrendarem-se as rendas... mando a Antônio Cardoso que ordene de as fazer
' $ arrendar e... Hei por bem que se arrendem a açucares por na terra ainda agora
haver pouco dinheiro e parece que será melhor negócio... arrendando-se a açu­
,ií cares que a dinheiro» (Documentos para a História do Açúcar, 115). De certo
para ter base junto a possíveis contratantes do Reino, ordenara o Soberano in­
formassem o Governador e o Ouvidor «a soma de açúqueres que se por elas
(rendas) todas juntamente há de haverem cada um ano e quantas de cada capi­
tania», havendo o doutor Pero Borges esclarecido que, em São Vicente, se ar­
rendava a arroba de açúcar a 430 réis e em Porto Seguro a 300 réis, o que nãc
satisfaz ao Monarca, interessado em saber «quantas arrobas de açúqueres ago­
ra rende cada Capitania, que é o que cumpre saber-se (ib. 127), porque só «de­
pois de sabido se poderá arrendar cá no Reino a dinheiro» e, «enquanto se não
souber que as ditas rendas valem a açúqueres ou a dinheiro, se não pode cá tra­
tar de se arrendarem».

E que o dízimo se pagava em açúcar para mostrá-lo um trecho, não


muito claro, da carta de 20 de dezembro de 1546, em que Duarte Coelho
dá conta a el-Rei «do que pasa aserca dos dyzymos e dos direitos dos emje-
nhos», tendo-se processado autos, «em os quaes eu sahy com sentença que
pagassem todos em jerall o dyzymo em açuquer feito e purgado, segundo
huzo e costume nos reinos e senhorios de Portugall».
Cobrado In natura, por «aforamento», em dinheiro ou nalgum gênero
de mais valia, ocorria, de relação ao dízimo, como aos outros tributos de
modo geral, circunstância peculiar: ao contrário dos nossos dias,, o Estado,
via de regra não efetuava a cobrança diretamente, mas costumava
arrendá-la a terceiros, segundo preceito expresso do Regimento idos Prove-
dores, em que se fixam as normas reguladoras da matéria.
Em cada Provedoria, devia haver, entre outros, um «livro dos
arrendamentos com títulos apartados das remdas e direitos que nela tiver»
e «no mês de novembro de cada um ano, o dito Provedor mandará meter
em pregão as ditas remdas e direitos pera se arrematarem de janeiro se­
guinte em diante», adjudicando-se a arrecadação a quem oferecer «mor
quantia», mediante prestação de «fiança à décima parte».

O Sistema Sesmarial no Brasil 83

Desta sorte, a relação fiscal na Colónia não se processava, como em


nossos dias, entre o Estado e o contribuinte, mas de modo «triangular»: o
erário entendia-se com o arrematador e este, com os privados.
De si mesma, a posição do arrematante se oferecia seu tanto perigosa,
na verdade correndo o risco, pois, calculada a arrecadação, oferecia a
«mor contia» e fazia um jogo: se arrecadasse mais, ganhava dinheiro, mas
se houvesse queda da receita, arcava com os prejuízos.
Na prática, porém, estes riscos se tornavam raríssimos e eis porque
quase todos os rendeiros ganhavam pequenas fortunas no negócio: a «mor
contia» oferecida sempre ficava muito aquém da arrecadação efetiva e,
subrogando-se nos direitos da Fazenda real, o rendeiro tirava o couro dos
contribuintes, gozando de regalias vastas, mandando mesmo o Regimento
dos Provedores que, nos contratos, se fixassem «as lybardades que amde
aver pera arrecadar as ditas remdas».
A Coroa agia de relação aos contratantes com absoluta correção.
exigia-lhes o pagamento pontual do arrendamento — e muitos, caloteiros,
findavam na cadeia , mas lhes dava carta branca para defender seus in­
teresses: assim, uma provisão parece de 18 de dezembro de 1582 — au­
toriza Bento Dias de Santiago a designar funcionário de sua confiança,
•que assistia e entenda nas sahidas dos açucares... porquanto os escrivães
dos almazens que a isso têm obrigação, por terem outras ocupações a não
podem fazer com a continuação que se requer», enquanto o alvará de 25
de janeiro de 1583 determina aos escrivães das feitorias e alfândegas não
passem certidões dos despachos de açúcar sem prova de haverem sido pa­
gos os direitos do contratante (Doc. para a Hist. do Açúcar, págs. 313 e
315).
Sem dúvida tratava-se de um dos tributos mais fáceis de sonegar, pois,
se de respeito àquelas mercadorias exportadas ou importadas, o rigorismo
do regimento dos Provedores tornava quase impossível enganar o fisco ou
os rendeiros — porque tudo estava à vista, exposto à fiscalização, bem con­
trolado —, pelo interior, nas Fazendas, léguas e léguas distantes, como
apurar o que realmente se produziu e, portanto, quanto se devia recolher
de dízimo? !

A documentação recolhida por Licurgo Santos Filho, quanto à
Fazenda «Campo Seco», autoriza a admitir que, nesta matéria, Quase tudo
ficava dependendo da honestidade do produtor: os fazendeiros
f------------- de Campo
Seco, por exemplo, anualmente anotavam o total da produção, nos diver-
sos ramos de atividade —cercais, algodão, gado, etc. — e eles mesmos iam
separando as partes devidas aos dizimeiros, obrigado a confiar nas suas
declarações, mesmo porque, parece, efetuavam a cobrança trienalmente.
Seriam verdadeiras as anotações constantes dos livros dos fazendeiros?
Se não, como provar o contrário?
Em regra, deveriam ser exatas. Em primeiro lugar, porque os antigos
primavam pela honestidade em matéria de dinheiro, de ajuntar, no caso
em tela que «pagar dízimos» era um dos mandamentos da Igreja
importante questão de consciência, constituindo a sonegação não apenas
84 Costa Porto

crime mas «pecado» —, sujeito o infrator aos severos deveres de restitui­


ção, na linha teológica do «de iusti tia et iure», revelando lanços de visita-
i: ção do Santo Ofício em Pernambuco que, punidos pela lei civil, os sonega­
dores do dízimo também incidiam em penas canónicas: Francisco Mendes
— em depoimento corroborado por Gaspar Rodrigues — declara que «ren­
deiro dos dízimos de mandioca e meunças ...em os anos de 87 e 88, e por­
quanto em os ditos anos lhes não pagaram os dízimos Álvaro Fernandes...
Pedro Dias da Fonseca...e Antônio Gonçalves Manaia... foram monidos
por monitórios passados pelo Ouvidor da Vara Eclesiástica...e, por não sa­
I . tisfazerem, o dito ouvidor os mandou declarar excomungados» (ib. 173,
275).
Se, como ficou ressaltado, a relação fiscal na Colónia era «triangular»,
respondendo o rendeiro perante o fisco pelo pagamento de quantia certa
— enquanto corria o risco da arrecadação —, nada de espantar partissem
& dos arrematadores as primeiras reclamações contra os que se diziam isentos
ou imunes: tendo oferecido quantia global, abrangendo a contribuição de
r todos, se alguns se eximiam de pagar, seus prejuízos seriam fatais.
Ora, aí pela metade do século 17 começam a aparecer certos grupos
que se negavam a pagar o dízimo, julgando-se isentos ou imunes.
Em primeiro lugar, os cavaleiros das três ordens — Avís, Santiago e
de Cristo —, surgindo como pioneiro desta novidade, segundo lembra Pi-
zarro, o Capitão Clemente Nogueira, que, entretanto, se saiu muito mal,
pois acabou executado.
■ 4 Mas a moda pegou: em 1657, os contratantes de dízimos da Bahia
reclamam ao Governador Geral contra o fato de certos cavaleiros, fornece­
dores de canas a donos de fábrica — sob a alegação de «que, por seus pri­
vilégios não têm obrigação de pagar os dízimos» — tirarem os açúcares dos
engenhos, cujos proprietários «por respeito lhes entregam», esclarecendo a
autoridade, em carta de 9 de novembro de 1657, que tal prática ia de en­
contro a normas expressas, pois «estes privilégios alegados pelos cavaleiros
são limitados, e V. M., por suas Reais Ordens, tem esclarecido se cobre
!'i deles o dízimo», determinando, a partir de então, não entregassem os se­
nhores de engenho os açúcares sem dedução de dízimo, sob pena de o sa­
tisfazerem com a própria fazenda (Documentos Históricos, XIX, 265).
Tendo-se amiudado os incidentes, el-Rei, pelo alvará de 6 de agosto
i-,
de 1658, declarou, uma vez por todas, a inexistência desta isenção,
resultando, porém, a emenda pior: é que, segundo informa Pizarro, as có­

s pias do alvará traziam versões opostas, dizendo-se, no livro 7, do Regimen­


to da Capitania do Rio de Janeiro — «São isentos de pagar dízimos os cava­
leiros das três ordens» —, enquanto a do índice Cronológico rezava prcci-

- fi
4l|
“ Hl
samente o contrário — «NSosSo isentos», etc.
Continua, assim, a recusa, havendo o Governador Sousa Freire, em
carta de 28 de setembro de 1667, repisado as instruções de 1557: o dízimo
era devido pelos cavaleiros e os senhores de engenho que entregassem os
açúcares, sem cobrança do dízimo, assumirão a responsabilidade da arre­
cadação. pagando-os da própria fazenda (Doc. Hist. XIX, 60).


■ i
I
O Sistema Sesmarial no Brasil 85

Já a estas alturas, os rendeiros mais cautelosos estariam exigindo figu­


rassem nos contratos cláusulas garantidoras dos seus direitos: pelo menos,
os da Bahia, em setembro de 1667, reclamam a Sousa Freire o cumpri­
mento da cláusula 13 do contrato, «em que se lhes concedeu que assim os
religiosos, como os cavaleiros das três ordens, fossem requeridos de que pa­
gassem todos os dízimos», o que é atendido pelo Governador, com o alvará
de 30 do mesmo mês e ano (Doc. Hist. XXII, 78).
Nada mais encontramos na documentação do tempo referente à ques­
tão com os cavaleiros, parecendo legítimo deduzir que acabaram confor­
mados, sujeitando-se à norma geral.

29 O DÍZIMO E AS ORDENS RELIGIOSAS.

Se o dissídio com «os cavaleiros das três Ordens» foi, parece, logo en­
cerrado, outro, mais sério, repontaria, envolvendo as ordens religiosas, ou
religiões, como também se chamavam — problema de deslinde difícil, por­
que, além de escassa, a documentação conhecida é confusa e tumultuada.
Visando a melhor sistematizar o estudo da matéria, tentemos fixar
í
algumas coordenadas gerais, partindo da preliminar de que, no primeiro I

século — no Reinado dos Avís, que terminou em 1580, com a volta à uni­
dade ibérica — , não hâ sinais dc desentendimentos, fenômeno, de resto,
explicável: a colonização apenas gatinhava, a Coroa portuguesa — empe­
nhada em proteger a fé, «emxalçar» a nossa santa fé católica, da lingua­
gem de D. João III — , era a primeira em atrair evangelizadores, manten­
do o culto, sustentando os «operários da vinha», dando-lhes toda a ajuda
material possível. Compreensível os dispensasse do dízimo pelo menos
fechasse os olhos à evasão das rendas — , tanto mais quanto o que, por
acaso, recebesse, acabaria devolvendo, na assistência direta aos homens da
Igreja. ■

Por maior, entretanto, que fosse, a ajuda do Trono não bastava para
atender às necessidades do apostolado e. desta sorte — olhos, embora,
voltados «para o Reino de Deus e sua glória» —, o clero, sobretudo
regular, cuidaria de formar seu património,
i preferentemente fundiário,
através das mais diversas maneiras de aquisição derivada ’ ' ’ i — terras
recebidas de sesmaria, compras, doações de fiéis —, nos usuais «legados
pios».
O costume era velho, muito generalizado no Reino, tendo, mesmo,
provocado medidas restritivas: levando em conta o fato de «os mosteiros e
as outras ordens» estarem comprando «tantas possessões, que se tornará em
grande dano», el-Rei D. Afonso, o Africano — cujo reinado se estendeu dc
1438 a 1481 —, acabou determinando, registra Antônio Caetano do Ama­
ral, que «daqui em diante, nenhuma coisa de Religião não compre nenhu­
ma possessão», o que, entretanto, resultaria barreira fragílima: de um lado
porque não impedia outros modos de aquisição e, de outro, deixava cômo­
da válvula escapatória, na ressalva de que individualmente era lícito aos
religiosos adquirir — «não tolhemos a nenhum clérigo poder comprar pos-

<
4'1
ií;i
.1 Ml |
86 Costa Porto

sessões»: ora, fazendo votos de pobreza, impedido de possuir património


próprio, o que era do frade na verdade pertencia à Ordem, que, dc resto,
lhe sucedia «in totum,», em caso de morte...
Tais restrições, parece, terminaram abolidas — pelo menos seriam, na
prática, letra morta —, positivo que, já nos fins de 1500, as Religiões
da Colónia — Jesuítas, Beneditinos, Carmelitas, Franciscanos c, no século
XVII, Capuchinhos, Oratorianos, Recoletos, Mercedários, etc. possuíam
trimônio opulento — terras, engenhos, fazendas de criação — verificando-
se circunstância seu tanto estranha: conformando-se em pagar dízimos de
relação às terras recebidas de sesmaria, as Ordens religiosas recusavam-se a
pagar no caso de aquisição a outros títulos, alegando imunidades, concedi­
das pela Santa Sé.
Que as Religiões aceitavam o encargo quando se tratava de data de
sesmaria parece lícito inferir de lances do Tombo do Mosteiro dc São Ben­
to de Olinda: doando, por exemplo, umas terras em Traguipu, o Governa­
dor Francisco Barreto declara lhas concede «tudo forro, livre isento de
• ■ -

li I •Tá’ foro, pensão ou tributo, Salvo o dízimo a Deus (pag. 237), o que se repete
noutra doação, em Guitá, (pág. 429), noutra cm Tapacorá (pág. 495). nas
'li t!
Piranhas (pág. 535) e outras que constam da Documentação Histórica Per­
nambucana (1. págs. 238 e 302) e na Revista do Arquivo Público de Per­
nambuco (págs. 67, 95 e 113).
E que não queriam pagar noutras aquisições, parece legítimo concluir
da carta régia de 27 de junho de 1711, em que D. João V aludia ao
«grande prejuízo que recebe a Fazenda Real em não pagarem dízimos as
Religiões desse Estado das fazendas que possuem Foro das dos dotes das
suas criações, adquiridas por compras, heranças ou outros semelhantes
títulos (Doc. Hist. Pern. 1.197).
O sentido do diploma régio, é certo se oferece um bocado obscuro,
, graças ao emprego da palavra Foro, que, nos documentos do tempo, se

I
<1; usava em três acepções distintas: ora como substantivo, significando a
quantia paga pelo enfiteuta, arrendatário, etc., ora como adjetivo, o mes­
mo que Forro — isto é, «isento, não sujeito, alforriado —, e, finalmente,
como preposição, sinónimo de nos casos de «sucessão por qualquer via» —-
«compra, deixa, herança ou demanda».
Empenhados os reis de Portugal, como dizia D. João III, em «emxal-

■ r çar a nosa samta fee chrystã» na Conquista, converte do «os natrais da dita
terra, infiéis e idolatras», os Reis de Portugal, socorrendo-se do clero e das
ordens religiosas davam-lhe o máximo de ajuda material, outorgando-lhes
ri H regalias de toda natureza, levando em conta que, atenções voltadas para

[■ «o Reino de Deus e sua glória», teriam de viver na terra e, dedicados ao


altar, imperioso lhe seria «viver do altar». Por maior que fosse, porém a
ajuda do erário, findava insuficiente e, assim, os evangelizadores cuidariam
de reunir bens terrenos, ora adquirindo fazendas e engenhos, ora receben­
do doações de pribados — os tão usuais «legados pios», as «verbas testa-
mentarias», simples ou onerosas -, em troca de missas, ofícios, etc., além
dc concessões feitas pelos donatários, capitães-mores e governadores.
i

O Sistema Sesmarial no Brasil 87

Este costume, aliás, era antigo no Reino, redundando em abusos e ex­


cessos tais que, el-Rei D. Afonso, o Africano, levando em conta que os
Mosteiros e as outras «ordens do Reino» vinham reunindo «tantas Possessões
que se tornara em grande dano», determinou que «daqui em diante ne­
nhuma cousa de Religião compre nenyuma possessão» barreira, entretanto,
duplamente inoperante: de um lado porque ficava permitida a aquisição
quando feita individualmente — «não tolhemos a nenhum clérigo poder
comprar possessão e fazerem delas o que quiserem» — apenas, assim, ca­ i
muflando a lei, pois fazendo voto de pobreza os gens do religioso pertencia
à ordem — e, de outro, porque se deixava a faculdade de aquisição por ou­
tros títulos de doação, herança, etc.
O fato positivo é este: pelos mais variados tipos de aquisição, as Or­
dens Religiosas acabariam acumulando imenso património fundiário — o
que ensejaria reação do erário, desfalcado das rendas usuais, porque, repe­
1
1
timos, conformados em pagar o dízimo quando se tratava de terras dadas
de sesmaria, entendiam as Religiões estavam isentas nos outros casos.
Difícil determinar quando começou a atuar, possível talvez admitir
houvesse começado nos fins de 1500, tendo-se em exceto, salvo, com exce­
ção de, etc.
No caso em tela. Foro quer dizer, parece, «exceto», salvo, aludindo o
Monarca ao fato de as Ordens quererem pagar dízimos senão sobre as fa­
zendas dos «dotes de suas criações», isto é, recebidas de sesmaria, como
ajuda ao programa da propagação da fé.
Se esta maneira de proceder datava do Reinado dos Avís, a Coroa, in­
sistamos, ou aceitava o fato, ou cruzava os braços, linha de transigência
que se modificaria depois de 1580, quando ocorreu a volta à «unidade ibé­
rica». Também a tradição de Castela era a extrema religiosidade dos seus
reis — que chegariam, mesmo a ter o título expressivo de «reis católicos»,
conhecido o quase fanatismo de Felipe II, levando a extremos o apego à
Igreja de Roma, de que seriam exemplos suas lutas contra a Inglaterra e
os Países Baixos.
Quando, porém, se tratava de «dinheiro» os Felipes seriam de voraci­
dade desdobrada, de recordar, por exemplo, a carta régia de 22 de março
de 1634, em que Felipe IV, aprovando as sugestões de D. Diogo de Olivei­
ra, res'gorava ordens no sentido de os religiosos não poderem alargar os
patrimónios, que vinham crescendo «com muito excesso», diminuindo o da
Coroa, «em notório dano da República».
Dentro desta linha severa de defesa dos interesses do Erário, vamos en­
contrar o primeiro passo, conhecido, da luta, sempre crescendo: a carta de
30 de julho de 1614, divulgada no ensaio Os Dízimos Eclesiásticos do
Brasil, de D. Oscar de Oliveira, Arcebispo de Mariana, em que o Monarca
da Espanha estranhava «a falta de observância do que havia sido determi­
nado nos antecedentes reinados para os religiosos do Brasil e Ilhas paga­ z-1
rem dízimos das Fazendas que possuem».
Com a restauração de 1640, seria de acreditar prevalecesse a posição
transigente da tradição lusitana dos Avís, em vez da rigidez granítica do
ih í 88 Costa Porto

i" 1 signo filipino, o que, entretanto, nâo aconteceu, influindo para o agrava­
mento da crise o processo já referido, de arrecadação, efetuado por «ren­
deiros»
Em determinada Capitania, por exemplo, o rendeiro dos dízimos,
avaliando a receita prevista em 10 mil cruzados, oferecera oito mil, bom
negócio para o Tesouro que receberia tudo de uma só vez, c sem mais ou­
tras despesas. Na estimação global, entretanto, contara o rendeiro com a
‘I ’
contribuição de todos e se as ordens religiosas não pagavam, a arrecadação
) final cairia fatalmente, restando o risco de sofrer prejuízos
Daí porque, em compreensível linha cautelar, passaram os rendeiros a
exigir constasse, dos contratos, item expresso estabelecendo a obriga­
toriedade do recolhimento por parte de todos, cabendo às autoridades ré­
■ (*>
gias vigiar pelo seu cumprimento inflexível, e, reforçando-lhe a faculdade
h de compelir os recalcitrantes, a Provisão de 3 de abril de 1657 determinava
intentassem ação «para se cobrarem os dízimos dos religiosos como sempre
se fez», sinal de que as Religiões insistiam na tecla da isenção ou imunida­
de. Não adiantaria muito a reiteração do preceito, tendo, em 1667, o ren­
deiro da Bahia reclamado do Governador Alexandre de Sousa Freire, nos
termos da cláusula 13 do contrato, «que assim os religiosos.. .como os cava­
leiros das três Ordens fossem requeridos pagassem todos os dízimos», donde
o alvará de 30 de setembro daquele ano, em que o delegado régio esclare­
cia que «vistas as ordens de S.M., nenhuma pessoa estava isenta de pagar
dízimos, porquanto neste Estado é Fazenda Real» (Doc. Hist. XXII, pág.
78).
Toda esta insistência era como malhar em ferro frio, nada conseguin­
do que as Ordens aceitassem a imposição, de modo que, em 1680. o Pro­
vedor de Olinda João do Rego Barros, denunciava a el-Rei D. Pedro II
que beneditinos, carmelitas e jesuítas não pagavam dízimos de «engenhos e
mais lavouras de gado» — outrora de «pessoas seculares que os pagavam»
grande diminuição ao contrato», baixando o Mo­
narca a carta régia ae 6 de setembro, determinando-lhe «cobreis os dízi­
mos de terras e engenhos dos religiosos... porque conforme o direito os de­
vem e assim está julgado e não consintais que a terra dada de sesmaria
deixe de o ser, por passar a religiosos que entraram nelas com seu encargo e
pensão e estando os dízimos do Brasil (destinados) à Ordem, os não podem
eles reter» (Doc. Hist. LXXXII, pág. 321).
A estas alturas, os rendeiros — de certo não querendo testilhas com o
clero, casta, então, privilegiadíssima, gozando de regalias imensas — te­
riam adotado nova forma de precaver-se contra possíveis prejuízos e,
achando pouco a cláusula sujeitando rodos ao pagamento do dízimo, ar­
ranjaram processo ainda mais seguro: do total a ser recolhido ao Tesouro
— a «mor quantia» oferecida quando da arrematação — seria deduzida a
quota relativa à contribuição das Ordens, até que se decidisse, em definiti-
vo, se a cobrança era, ou não, legítima.
É isso, pelo menos, que parece deduzir-se da carta régia de 30 de ja­
neiro de 1683 — que figura no Tombo de São Bento de Olinda, pag. 169
— dirigida ao Provedor Francisco Lamberto: «Provedor-Mor de minha Fa-
O Sistema Sesmarial no Brasil 89

zenda do Estado do Brasil. Eu, o Príncipe, vos envio muito saudar. Por se
me haver reprezentado que no Estado do Brasil, e principalmente nessa Ci­
dade da Bahia, se costumava, de annos a esta parte, arrematar o contrato
dos dízimos, com condição que as fazendas dos Religiozos.. eram isentas de
nam pagarem dízimos, a importância delles se abateria aos Contratadores
ao preço de seus contratos e pera nam serem executados, enquanto a ques-
tam se nam decidisse, alcançaram provisam e vinham a ter em sua mam do
preço dos mesmos contratos nam só a verdadeira estimaçam do que impor­
tavam os dízimos dos Religiozos mas muito maiores quantias; além deste
prejuízo tinha a Fazenda Real outro maior na dilaçam, porque em caso
Que se julgasse que os Religiozos nam eram izentos, ficariam tam alcança­
dos em tam grandes quantias que nam seria possível poderem pagar e ex­
cederia a divida o valor das mesmas propriedades., me parece ordenar-
'os... que nam admitaes, daqui em deante, semelhante condiçam...(e) fa-
Çaes as arremataçoens sem ella, reservando os dízimos dos Religiozos pera
se cobrarem por conta da Fazenda Real.»
A partir de então, o problema não seria mais entre Religiões e Ren­
deiros, mas entre Ordens Religiosas e a Fazenda que passava a exigir dire­
tamente os dízimos dos contribuintes faltosos.
Nem assim, entretanto, as cousas se normalizaram. ■

Conforme comunicação do Provedor Lamberto em carta de 25 de ju­


nho do mesmo ano, as Religiões saíram a campo, alegando «se lhes deviam I
guardar as cartas substaterias (substatórias?) que alcançaram para não se­
rem executadas pelos dízimos de suas fazendas, quando, pela dita condição,
pertence (sic) aos contratadores, enquanto se não determinasse se os de-
Çiam pagar ou não», o que levou el-Rei a determinar, pela carta de 17 de -i
janeiro de 1685: «hei por bem e mando ao dito Provedor cobre
executivamente os dízimos de todas as fazendas que possuem os religiosos,
0 Que não entenderá com os que já trazem pleito (e) estão em ju :lí
declaração que, vindo eles com alguns embargos, os remeta... — e os Juízos dos
Feitos da Coroa para se determinar em como for de justiça» (Tombo,
171).
Registrando estas providências de el-Rei, o Tombo de São Bento ajun­
ta, sob o título Lembrança — possivelmente algum subsídio aos defensores
do Mosteiro em juízo —-, esta observação: «fez o senhor Rey D. Sebastiam
huma petiçam ao Pontífice que concedesse todos os nossos breves do bullá-
rio a Congegraçam do nosso Padre Sam Bento de Portugall e com effeito,
° Pontífice passou dous Breves que serven de Cancellos, entre os quais fica
incluso por corpo o bullario em que concedeo tudo o que o Rey pedia».
Aí está, possivelmente, o segredo de toda a pendência: os religiosos se
julgavam isentos do pagamento com escoras em privilégios concedidos pela
Santa Sé.
Pelo menos de relação aos jesuítas, lembra D. Oscar de Oliveira,
concedera-lhe Paulo III, pela bula «Licet Debitum», de 18 de outubro de
1549, isenção dos dízimos, privilégio confirmado por Pio IV, na exponi
novis. de 19 de agosto de 1561, enquanto na pastoraJis officii, de 1578,
j

I j;
I'! 90 Costa Porto

I? Gregório XIII derrogava o Capítulo da Nuper,


clarava estariam sujeitos ao dízimo os bens de
em que Inocêncio III de­
religiosos que, obtidos de
terceiros, o vinham pagando.
Inadmissível desse a Santa Sé tratamento privilegiado somente aos
Jesuítas, parece lícito concluir gozariam todos de iguais favores.
E interessante documento da época, transcrito no Tombo de São Ben­
to, pág. 179, é isto exatamente que alega: além de gozar de isenção, se se
conformassem a suportar qualquer gravame fiscal, incorreriam em pena de
excomunhão. Vejamos os tópicos principais: «Dizem o Padre Dom Abade
do Mosteiro de São Bento e o Padre Prior de Nossa Senhora do Carmo e o
Padre Reitor da Companhia de Jesus e os mais religiosos todos desta Vila
de Olinda que os seus mosteiros estão livres e isentos por privilégios c bulas
■ ;
*•< que têm dos Sumos Pontífices de toda imposição, ação, subsídios e outro,
qualquer gravame e porquanto em todos estes anos passados os contratado­
res...lhes não levaram em conta mais que parte deles, quebrando-se nisto a
ti imunidade eclesiástica...e consentindo eles nestres tributos incorrem cm pe­
na de excomunhão maior... pedem a Vossas Mercês mandem que os ditos
ri mosteiros sejam totalmentc livres e isentos de pagar todo gênero de tribu­
tos», etc.
Pelo menos de relação aos beneditinos, a batalha continuou e. parece,
levando o Trono a pior, perdendo as ações em juízos, constando do Tom­
bo do Mosteiro, esta curiosa observação: «No Cartório...temos huma alle-
gaçam doutissima do direito que temos para os nam pagarmos».
É pena desconheçamos esta «alegação doutíssima» que, de certo, des­
velaria muita cousa em torno do rumoroso «affaire», permitindo ao analis­
ta apreciar os fundamentos da recusa, de certo, repetimos, argumentos es­
corados em bulas e favores papais.
A verdade é que D. Pedro findou recuando, pelo menos em parte: de
Jl fato, depois dos arrebatamentos anteriores —quando mandara promover a
execução das dívidas — , adota linha mais comedida da carta de 9 de abril
de 1693, determinando ao Governador de Pernambuco, Caetano de Melo e
Castro: «Sou servido resolver que, no cazo que nam tenhaes procedido a
sequestro nos bens das Religioens, que suspendaes a execuçam quanto ao
sequestro athe nova ordem e que se de fato estiver já feito, que se os Reli-
giozos derem o rol dos bens que possuem e os títulos por onde lhe entra­
ram, lhe lavanteis o sequestro, athe que cu tome rezolução com as mais
■J Religioens, porém que nam dando os roes, e estando o sequestro feito, se
lhe nam levante de nenhuma maneira» (Tombo, 173).
Continuariam, de certo, as ações de cobrança executiva, mas, no fun­
do, em pura perda de tempo, pois, se perdessem — o que de resto, parece
não vinha acontecendo — os devedores não teriam os bens sequestrados,
valendo, assim, o princípio do «onde não há, el-Rei o perde», devendo,
ainda, ser levantado algum seqiiestro por acaso efetuado se as Ordens
apresentassem o rol dos bens e os títulos «por onde lhe entraram», exigên­
cia, esta última, seu tanto esquisita, salvo se também a Coroa admitia a
distinção entre aquisição de sesmaria ou sucessão a qualquer outro título.
O Sistema Sesmarial no Brasil 91

30 — CARTA RÉGIA ENIGMÁTICA.

A decisão de D. Pedro, meio inócua, flor de laranja, mandando


prosseguir as execuções, mas sustando os sequestros dos bens dos devedores,
deixava em aberto a questão, continuando o debate — o fisco a exigir o
pagamento, as Ordens recusando-sc a pagar, com base em privilégios pa­
pais, e eternizando-sc a pendência, teria ocorrido a D. João V que suce­
deu a D. Pedro II - em dezembro de 1706. cortar o mal pela raiz,« ad
futurum», na resolução de que dava conta ao Governador de Pernambuco,
em carta de 27 de junho de 1711: «Fclix José Machado e Mendonça. Eu el-
Rei vos envio muito saudar. Fazendo-se-me presente o grande prejuízo que
recebe a fazenda real em não pagarem dízimos as Religiões desse estado
das fazendas que possuem, foro dos dotes das suas creações (,) adqueridas
por compras, heranças ou outros semelhantes títulos, e convir à averigua­
ção desta matéria por ser de tanta importância. Fui servido mandar orde­
nar ao Provedor de Minha Fazenda desse Estado faça citar perante o Pro­
vedor mor delia aos religiosos que possuem terras e recusão pagar delias
dízimos, offereccndo libello contra cada uma das Religiões e que, havendo
sentença contra a fazenda real, appelle para o juizo da coroa desta Côrte.
Para evitar o dano futuro, me parece ordenar que, nas concessões e
mercês de terras que fizerdes aos moradores deste Estado, se tire a condi­
ção de nellas não succederem religiões por nenhum título e acontecendo a
elles possuindo-os (?) seja com o encargo de nellas de aeverem e pagarem
dízimos, como se fossem possuídos por seculares, e faltando a isso se
haverão por devolutas e se darão a quem as denunciar. E no caso que se
deixe a qualquer Religião algumas terras ou bem de raiz, hei por bem que
as não possão possuir sem licença Minha e vos ordeno que assim o açaís
observar e mandeis publicar neste Estado», etc. (Doc. Hist. I, págs. 197-
198).
Muito clara se nos afigura esta carta régia.
Vinham as Ordens Religiosas alegando isenção de dízimos, com bases
em bulários, e, talvez, concessões régias especiais e, quando o fisco as exe­
cutava, obtinham cartas «substatórias» — espécies de «mandado de segu­
rança» com efeito suspensivo — , causando sérios prejuízos à Coroa, assim
«para evitar dano futuro», traça el-Rei novo disciplinamento. dagora em
diante, as Ordens Religiosas não podem suceder, isto é, não podem a qui
rir terras a nenhum título — compra, herança, doação, permuta demanda
— e, se, por acaso, vierem a fazê-lo, será com a condição, expressa, e i
carem sujeitas ao pagamento dos dízimos, «como se fossem possui as por
seculares e faltando a isso, se haverão as terras por devolutas»,
Poucos documentos sobre sesmarias, entretanto, têm oferecido margem
a tanta confusão, a começar pela sua data, apontada, na P°cuJP5.nt®^0
Histórica Pernambucana, como 27 de junho (I págs. 198, 203, , ,
etc.), ou 21 de junho (pág. 230), ou 17 de junho, (208, 210 212, 214.
218, etc.), ou 17 de janeiro (págs. 223, 224, de 1711) e até 27 de jun o e
1719 (pág. 252), parecendo, entretanto, como a mais provável, de 27 de
junho de 1711, por força de resolução do Conselho Ultramarino e
I

92 Costa Porto

i
Ornais grave, porém diz respeito ao sentido.
A maioria dos autores, na verdade, entende que a carta de 27 de ju­
I nho é que Eliminou a proibição de as Ordens sucederem cm sesmarias, ou,
como escreve Felisbelo Freire, a «legislação estatuía a cláusula de nas
sesmarias não poderem suceder religiões, porém, à vista da resolução do
j Conselho Ultramarino se ordenou se tirasse semelhante condição». (Op.
cit. 138).
Em outras palavras, teria sido a carta régia dç 27 de junho dc 1711
que permitiu — o que dantes seria vedado — pudessem as Ordens religio­
sas receber terras e bens.
1 A primeira interpretação, sem dúvida soa lógica e natural. na medida
em que atribui ao verbo Tirar sua significação mais comum — Eliminar,
Suprimir, Fazer Desaparecer, Cancelar, etc.
Assim, o raciocínio seria simples: havia, dantes, leis e normas impe­
dindo que as religiões Sucedessem, a qualquer título e el-Rei determinou
fosse, dali em diante, Tirada, Retirada, Eliminada esta cláusula restritiva.
Realmente quando, em Portugal, as instituições religiosas começaram
a aumentar, desponderadamente, os patrimónios, houve medidas
coibitivas, visando, em especial, os chamados «bens de mão morta» —
intransmissíveis e inalienáveis -, um meio, inclusive, de conter a força do
clero, dos bispados, das abadias e mosteiros, muitas vezes ameaçando a se­
gurança da Coroa, falando, por exemplo, uns Manuscritos do Mosteiro de
São Bento de Olinda no preceito das Ordenações filipinas que proibia
«Igrejas Ordens e Mosteiros do Reino reter bens de raiz por mais de ano e
dia sem licença Régia» (Rev. do Inst. Arqueológico, XXXVII pág. 63).
Mas, além de proibir Reter e não, propriamente, Suceder, o próprio
documento registra que as autoridades «nunca fizeram observar semelhante
lei, mas o contrário sempre praticaram, porque deram...compraram-sc,
venderam-se bens às Igrejas...e até o presente se pratica o mesmo e S.M.-
não o ignora...donde prudentemente se pode presumir que o dito senhor o
confirmou, porque sabe que os religiosos, principalmente monacais, não
podem subsistir sem património», de presumir, ainda, que a tal lei «foi só
feita para o Reino e não para as Conquistas» e, quando as atingisse, se po­
dia «sem ofensa» considerar «prescrita, pelo não uso dilatado dc mais dc
dois séculos». E de fato, se havia proibição, como explicar o fato dc as
Religiões do Brasil terem tamanho património fundiário, situação, de resto,
que a Coroa legitimava, na hora em que, em lugar de tomar-lhes as terras,
cuidava de receber-lhe os frutos? E o elemento «histórico» mostra que o
»Se tire a condição», da carta de 27 dc junho de 1711, quer dizer Se estabe­
leça, se determine, expressamente, a condição de as Ordens não poderem
suceder, a não ser sujeitando-se ao encargo de pagar dízimos.
Vinha, na verdade, o fisco sustentando penosa batalha com as Ordens
religiosas que não queriam pagar tributos sobre os bens que lhe adviessem
por outro título além da data de sesmaria, e que faz a Coroa? Determina
se amplie a fonte de evasão legal dos dízimos, autorizando-as, o que dantes
era vedado, a suceder sem nenhum controle, evidentemente um constra-
senso.
93 Ses
° Sistema

O sentido da c ----- regia,


carta - • desta sorte, é este: a partir de então, nas
^«ssões de datas de sesm°aHa. ----- , “d“eviam'
i as autoridades deixar bem clara a
condição de que «as religiões não sucedem por nenhum título», e sude-
cendo, através de compra. herança, legado, doação em vida ou «mortis
causa» -, deveria ser pago o dízimo, «como se fossem possuídas por
de^^^5” S°b de caducidade da concessão, havendo-se as terras «por
outas». E existe tira-teimas final e decisivo — este argumento factual
Que liquida :a questão em definitivo: a partir da carta régia de 27 de junho
de 1711, as
,. ' caitas de doação invariavelmente incluem a cláusula — a
terra ,deterrninada por D. João V — de que «não sucederão nas ditas
ras religiões por nenhum título e, acontecendo que sucedam nelas e
possuin o as, seja com o encargo de delas deverem e pagarem dízimos,
como se fossem possuídas por seculares, e faltando-se a isso, haver por
j6'???35, forma da Ordem de S.M. por carta de 27 de junho do anno
e 1» (Doc. Hist. I, pág. 203). Esta linguagem é invariável em Iodas
as cartas de datas que, desde 1715, figuram da Documentação Histórica
Pernambucana (Vol. I. págs. 213,214, 218, 221, 223, 225, etc.).
E ainda mais claramente algumas do volume 2.° com a condição «de
não passarem a religiosos por nenhum título » (pág. 15); «que não
passarão nunca a religiosos, salvo com a obrigação de pagarem o foro» (ib.
), «de não passar a religiosos...e passando será com mesmos encargos,
precedendo licença deS.M.» (pág. 42).
De resto, a proibição de Ordem religiosa suceder somente foi suspensa
muito depois, pelo decreto de 16 de setembro de 1817, em que D. João
VI, «tendo consideração aos serviços que as Ordens Religiosas têm feito aos
meus reinos e domínios, tanto à Religião como ao Estados», e
considerando que, devendo permanecer como vassalos úteis, é necessário
que tenhão bens e rendimentos para sua subsistência, resolve «haver-lhe
por dispensados as leis...que exigem licença régia para possuírem bens de
raiz e as mesmas leis ...e proibição de adquirir, herdar ou suceder».

31 - PECULIARIDADES DO SESMARIALISMO COLONIAL.

A análise da concessão de terras mostra que as sesmarias brasileiras se


revestiam de notas especiais, obedecendo sua distribuição a praxes mais ou
menos definidas. . ,
A primeira destas notas já foi apontada: o solo se quinhoava gratuita-
mente — pelo menos até 1699 -, sujeito o sesmeiro apenas ao pagamento
do dízimo sobre os frutos obtidos.
Outra característica importante: embora digam as cartas que a terra é
doada «deste dia para sempre», podendo o sesmeiro «dela e em ela fazer o
que bem aprouver», a concessão se fazia, entretanto, condicionalmente. De
‘havia em regra?condição suspensiva: dado o solo, era-o eni
certo, não havia, em regra,
nã° «semel data, sempre data» -, mas «condições resolutivas>», isto
definitivo —
exigências, cujo inadimplemento provocava a caducidade da
6, sujeitas a
doação.
m • cláusulas, por outro lado, não foram sempre as mesmas: surw.
Taís ciaus fácil aCompanhar-lhes a evolução ao longo dos anos.
ram a pouco e yvu ,
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94 Costa Porto

I
Aproveitamento
A primeira condição fundamento de todo o sistema — é o
aproveitamento, a tônica da política de terras de el-Rei D. Fernando, a
distribuição do solo tendo como alvo o abastencimento da população e.
i deste modo, terra não explorada seria olhada como devoluta, podendo e
devendo ser outra vez quinhoada.
Na Colónia, a orientação é a mesma. Ainda o plano colonizador
constitui uma nebulosa, e quando D. Manuel doa a ilha de São João a Fer-
1 st
não de Noronha é visando ao aproveitamento — «pera nella lançar gado,
romper e aproveitar». Concedendo em 1530 faculdades a Martim Afonso
para distribuir terras no Brasil, permanece a regra do aproveitamento, e,
com tal vigor que, na carta de 20 de novembro, em trecho de cerca de 17
linhas, as palavras «aproveitar» e «aproveitamento» aparecem umas cinco
vezes.
E se as cartas de doação e forais dos donatários não falam, aberta­
mente, em aproveitamento, contudo o pressupõem, sem sombra de
dúvidas, pois aludem às normas das Ordenações, onde o problema está
regulado com todas as letras, cabendo lembrar que, no intróito. el-Rei
aponta, como razão de sua política, o «muyto proveyto..,de se a dita terra
povoar e aproveytar».
No Regimento de Tomé de Sousa, o refrão é quase enfadonho —
«para se poder aproveitar», «que as queiram aproveitar», «segundo vos
parecer que poderá aproveitar», «dar de no para as aproveitarem», não
indo alguns aproveitar», «a quem as aproveite», «para melhor poderem
aproveitar», etc.
O Regimento dos Provedores, além de repisar a mesma tecla esta­
belece a sanção, ordenando aos funcionários régios cuidassem de «saber se
as pessoas a que assim foram dadas as ditas sesmarias as aproveitaram... e
achando que as não aproveitaram, o mandarão notificar aos capitães para
eles as poderem dar a outras pessoas que as aproveitem e os ditos capitães-
serão obrigados de dar as ditas terras, pera que nam estem por aprovei­
tar».
Desta linguagem nunca se afasta a Metrópole, sempre que disciplina
questões de sesmaria, claro o alvará de 8 de dezembro de 1590: «faço
saber...que pela informação que tenho do grande benefício e muito provei­
to que se poderá conseguir a meus vassalos de se povoarem as terras do
Brasil, e querendo que os frutos e proveitos delas se lhe comuniquem, para
que com mais facilidade as queiram povoar e viver nelas, para as lavrar e
aproveitar, hei por bem...lhes sejam dadas terras de sesmarias, para nelas
plantarem seus mantimentos e fazerem roças de canaviais para sua susten­
tação, etc.» (Doc. para a Historia do Açúcar, pág. 377).
Doando, em 17 de janeiro de 1552, terras a Simão da Gama, no estei-
ro de Pirajá, Tomé de Sousa acentua que a doação se entende tirando as
terras já concedidas, «aproveitando-as as pessoas cujas forem, porque
pedindo-as para as não aproveitarem por sua culpa, serão do dito Simão
da Gama» (Hist. Geral, I, 325, nota IV); a Provisão de 27 de outubro de
O Sistema Sesmarial no Brasil 95

I 1571 ordena a Cristóvão de Barros «considerasse devolutas e distribuísse as


terras que dentro de um ano não fossem aproveitadas» (ib. pag. 441), co­
nhecida a atitude ousada da Câmara da Bahia, opondo-se a que d. Vio-
lante de Távora — mãe do onipotente Conde da Castanheira — e seus
herdeiros tomassem posse da Ilha de Itaparica, porque não a haviam ex-
piorado como o determinava a lei (ib. 304).

Aproveitamento em prazo determinado


E não somente o aproveitamento, mas em prazo determinado, cujo
máximo as Ordenações fixavam em cinco anos, e sempre válido, se outro
menor não fosse estabelecido.
É de se não acreditar houvesse um Procurador da Coroa afirmado, em
1702, não ter notícia de «ordem geral que declare tempo certo para
povoar as terras de sesmaria» (Ap. Joffily, Notas sobre a Paraíba, 234, no-
la IV), pois não há tema em que mais se insista, claro o preceito das
Ordenações: «e em qualquer caso que os sesmeiros dêem sesmarias, assi­
nem sempre tempo aos que as derem, ao mais de cinco anos e daí para
baixo, que as lavrem e aproveitem... E se as pessoas... as não aproveita­
rem... ossesmeiros... dêem as terras... a outros que as aproveitem».
Sem dúvida, o problema do aproveitamento não foi olhado com tanto
rigor nos primeiros tempos, fenómeno natural e explicável. Em primeiro
lugar, segundo já foi acentuado, o sesmarialismo brasileiro tinha como
objetivo imediato menos o abastecimento da população — inexistente —
do que o povoamento da Colónia, e, deste modo, o aproveitamento era,
antes, simbólico, mais um «ato de presença», do que a cultura efetiva da
terra.
Além disso, sobrando solo, não seria comum cuidasse o morador de
argúir a caducidade das datas não exploradas, quando mais cômodo se
fazia obter novas porções, abundando tanto terra sem dono em toda parte.
Mas o sesmeiro não ignorava o risco de infringir o disciplinamento e,
quando motivos de força maior o impediam de satisfazer as exigências
legais, muita vez se apressava cm pedir prorrogação do prazo, ou dispensa
da autoridade competente, no sentido de legalizar a situação. D. Duarte
da Costa doara ao filho. D. Álvaro, em 16 de janeiro de 1557, «quatro lé­
guas de costa, pouco mais ou menos», «na barra do Rio de Peroassu... até a
barra do rio Jaguaribe», e, em 1562 o sesmeiro pede a el-Rei confirmação
- na verdade mais uma revalidação — «sem embargo de não residir nel-
las todos os tres annos como era obriguado e de as não aproveitar nos cin­
co annos, conforme dita carta», rogando ao Soberano «lhe reformasse o
tempo dos ditos anos», o que obtém pelo alvará de 12 de maiço de 1562
(Documento para a História do Açúcar, 161).
Os jesuítas haviam recebido umas terras na Bahia, e porque não as
houvessem aproveitado, estavam, de certo, ameaçados de perdê-las, tendo
recorrido ao Soberano, que, na carta régia de 11 de novembro de 1567,
ordena ao Governador: «Eu, Eu, el-Rei... vos encomendo que não consintais
96 Costa Porto

que as terras e roças e quaisquer outras propriedades...dadas aos ditos pa­


í \> dres... sejam por nenhum modo tiradas e lhes confirmeis, em meu nome,
as datas e doações...posto que nellas não tenham feito até ora benfeitorias,
sem embargo do que...foi ordenado por minhas ordenações» (ib. 213).
1:> 1 Tendo obtido, em 1584, uma data para as bandas de Maciapc, Diogo
Vaz se dirige ao loco-tenente, Pedro Homem de Castro, explicando não a
pudera aproveitar, porque fora impedido pela pressão dos negros angolas
levantados e pelo indígena, consignando «a protestação de as não perder e
de as tomar a povoar e aproveitar como estiverem de paz e protesta de se
) lhe não correr o tempo» (Tombo, 338).
Muita vez, o próprio colono, não podendo cumprir a exigência, corria
a abrir mão da data: João de Bastos Soares, pedindo sesmarias a César
Menezes, pondera que as terras haviam sido dadas a Manuel Cavalcanti de
Albuquerque, o qual «por não poder cultivá-las, delas desistira, como se
mostra do bilhete incluso» (Doc. Hist. 2, pág. 248).
Sobretudo no primeiro século, havendo terras em demasia, ninguém
ligava muito importância ao aproveitamento, as autoridades não sabiam
de nada ou fechavam os olhos, e o sesmeiro, muita vez. passava anos e
anos sem cuidar do solo, aguardando oportunidade, sem medo de comisso.
que seria raro.
Mas surgisse alguma demanda e as justiças se mostravami severas:
sesmaria não aproveitada era sesmaria cuja concessão icaducara
irremediavelmente, como se vê de alguns episódios conservados no Tombo
do Mosteiro de São Bento de Olinda. Em 1576, por exemplo, Gaspar Pires
recebera uma data que, não aproveitada no prazo de lei, fora, em 1623,
redistribuída a Pedro Barroso, de cujos herdeiros a houveram os benediti­
nos. Em 1698, porém, o Capitão Antônio Borges Lobo lhes reivindica o
domínio, alegando havê-las adquirido aos herdeiros de Gaspar, o primeiro
beneficiário: em sentença, mantida pela Relação da Bahia, o Ouvidor Sá
de Mendonça dá ganho de causa ao Mosteiro, baseado em que, não haven­
do Gaspar aproveitado a sesmaria «dentro do prazo fixado e consignado ,
ficaria a terra devoluta , podendo-se dar, como se deu, a Pedro Barroso»
(Tombo, 699).
Também André de Albuquerque recebera umas terras em Goitá, as
quais, inaproveitadas no termo da lei, haviam sido redistribuídas a Pedro
Barroso, de cujos herdeiros as compraram os beneditinos de Olinda. E
quando as netas do primeiro donatário foram a juízo, em ação reivindica-
tória, a Justiça lhes repeliu a pretensão, considerando caduca a data a
André, «ainda por mais antiga», «porquanto se nam colhe que tomasse

li' posse... devendo não somente tomar posse, mas aproveitá-la e povoá-la em
termo de cinco anos... o que não fez donde se colhe que foi bem dada ao
dito Pedro Barroso por estar devoluta, passando o tempo da lei» (ib. 471).
Exceção à norma seria, à primeira vista, aquele rumoroso episódio das
terras de Mussurepe, adquiridas pelos beneditinos a Marta da Fonseca, em
1609. Tratava-se de sesmaria, em 1593, Diogo Vaz, marido de Marta:
comprando-lhe o sítio, o Mosteiro tratou de despojar o casal Baltasar Gon-
O Sistema Sesmarial no Brasil 97

çalves e Maria Rabela — apontados como «precários e simples colonos» da


'endedora —, mas eles foram a juízo, dizendo-se senhores legítimos de
Part.e,da terra, comprada a Gabriel d'Amil, a quem fora dada de sesmaria
em 1568,
—, nove anos, portanto, antes da doação a João Batista.
Ora, se d Amil recebera a terra em 1568, nula seria a data a João
Batista em 1577, pois «prior in tempore, potior in iure»;
nula a arrematação dc Diogo Vaz. nula a venda aos beneditinos, em
1609. Assim, o esforço do Mosteiro consistiu em mostrar, em longo «arra­
zoado» (Tombo, págs. 365 e segs.), que a doação a d'Amil — nula, por
vários motivos — caducara «pelo incomisso de não haver nunca usado de­
la. nem fazer benfeitoria alguma, nem a povoar, nem tomar posse... antes a
la,
deixou pro derclicta té o anno de 609» (ib. 369). A questão se arrastou
uns vinte anos na primeira instância, pois somente em 17 de novembro de
1629 o Ouvidor Soares de Almeida profere sentença final (Tombo, pág.
671) considerada, pelo autor da «Crónica do Mosteiro», contrária aos
religiosos, como a delatar que a prova de inaproveitamento no prazo legal
em nada influíra.
Não conhecemos, porém, o desfecho da questão: veio, logo a seguir, a
invasão holandesa, perderam-se os papéis dos arquivos do cartório, esclare­
cendo a Crónica do Mosteiro que os beneditinos encaminharam a Matias
de Albuquerque um protesto, no Arraial do Bom Jesus, a fim de interrom­
per a prescrição, pois iam correr à Relação da Bahia.
E nada mais consta a respeito.
A leitura, porém, da sentença do Ouvidor Almeida autoriza a con­
cluir que a autoridade judiciária não entrara no mérito e apenas se apega­
ra a questões de fato: Baltasar provara haver comprado uma parte a Mar­
ta Fonseca e a sentença reconhece aos autores — os beneditinos — o direi­
to à terra adquirida em 1609, mas «com a declaração de que se encherão
f
delas depois de os reus serem inteirados das ditas sortes que possuem»
(Tombo, pág. 572).
Podia haver, repitamos, transigência e fechar de olhos diante da ses­
maria não aproveitada no prazo, mas nunca a exigência foi dispensada,
constituindo, mesmo, o ponto mais saliente do sistema.

Registro da Carta de Data


Segunda exigência essencial: o registro da carta.
Em Pernambuco, Duarte Coelho instituíra um serviço de registro, mas
de caráter meramente administrativo, para controle das distribuições, den­
tro do espírito de ordem, de disciplina e de método que o caracterizam
nada, porém, de essencial, como passou a ser depois do Regimento dos
Provedores, um de cujos itens dizia: «os ditos provedores cada hum em sua
provedoria fará fazer um livro...em que se registrarão todas as cartas de

1
sesmaria de terras e aguas que os capitães tiverem até ora cadas e ao dian­
te derem e as pessoas.. .serão obrigadas a registrar as cartas das ditas ses­
marias do dia que lhe forem dadas e num ano e, não as registrando no di­
to tempo as perderão».
i

1 98 Costa Porto

O registio na Provedoria não oferecia dificuldades.


í Mesmo quando se intensifica a penetração e os pedidos de terras
ocorrem no Interior, o despacho será proferido pela autoridade, na sede
da capitania, e quem se encarrega de encaminhar a solicitação, trata,
igualmente, de obter o registro subsequente, sendo usual nas cartas de da-
tas, ler-se este final: «a qual (carta) se registrará nos livros destas
capitanias e nas mais que tocar».
O registro tinha, ainda, outra importância relevante: permitir à auto­
ridade saber, de antemão, se as terras estavam mesmo desocupadas, sem
dono, a fim de assegurar os direitos de terceiros a quem, por acaso,
houvessem .sido dadas, lendo-se, nos antigos documentários, coisas assim:
«o Escrivão da Fazenda me informe, pelo livro de datas, se estão dadas as
terras de que os suplicantes fazem menção» (Doc. Hist. I, pág. II).
Ao pedido da data seguia-se normalmente o registro, não sendo raro,
entretanto, procrastinar-se a própria legalização da sesmaria.
Muita vez o colono começava simplesmente ocupando a terra, ali
realizava melhoramentos, iniciava o aproveitamento, e somente depois tra­
tava de enviar o pedido, processo, todavia, perigoso, porque se outro, mais
esperto, ou por simples acaso, solicitava a mesma área, podiam surgir
inconvenientes fatais: simultâneos os pedidos, o posseiro levava vantagem,
principalmente depois da legislação de 1753, em que el-Rei determinou se
desse preferência «aos que tiverem roteado e cultivado os sítios», mesmo
em se tratando de rendeiros, pelo princípio de que as sesmarias foram da-
das para exploração e não para se darem de renda (Doc. Hist. II, pág.
163).
Mas, pelo menos antes de 1753, o dono da terra seria quem a
ocupasse legalmente, através da carta de data, do registro e da
confirmação, donde encontrarem-se apelos no sentido de se determinar a
1: expulsão dos que as estavam ocupando indevidamente «intruzamen-
I te...contra as ordens de S. M.» (Doc. Hist. I, pág. 68).
Depois de janeiro de 1699, havia casos em que o colono, recebendo a
carta, não a registava por astúcia, tentando fugir ao pagamento do foro,
segundo se adverte em parecer de 1739: alguns colonos não haviam efetua­
do o pagamento do foro — «que parece que por esse efeito de o não
pagarem tiveram caução de não registrarem a carta de sesmaria nos livros
das datas» (Doc. Hist., 2.°, pág. 41).
Em casos assim, se alguém pedisse a terra, recebê-la-ia, como «devolu­
ta».

Confirmação

Quando inaugura o sistema donatarial, D. João III determina aos ca­


pitães distribuam as terras da Colónia «de sesmaria» e, uma vez passada a
carta de data, o colono entrava imediatamente na posse e domínio da
terra, domínio, é certo, resolúvel, se, no prazo de lei, não cumprisse a
exigência, fundamental, do «aproveitamento».

-
O Sistema Sesmarial no Brasil 99

Depois de 1549, com o Regimento dos Provedores, devia o morador,


para adquirir o domínio, registar a data nos livros da Provedoria e, desta
forma, terra distribuída pela autoridade competente, aproveitada no termo
legal, e registrada, passava a constituir património do colono, na plenitude
do «uti, frui et abuti», característicos da propriedade.
Em fins do século 17, porém, nova exigência essencial: as datas
detiam ser confirmadas por el-Rei.
■ Confirmação, como medida de caráter geral, data dos fins de 1600,
mas casos de «confirmação» em hipóteses concretas encontramos antes,
com alcance especial, o primeiro dos quais nas terras da Bahia.
Na verdade, nomeando Tomé de Souza Governador Geral do Brasil,
-—-se o
ordena-se o Soberano, no 1Regimento
Soberano, no .„ de 17 de dezembro de 1548, edifique
•uma fortaleza e povoação grande e forte em um lugar conveniente»,
assinalando-lhe, comocomo «termo
«termo ee limite, seis léguas para cada parte»,
outorgando-lhe faculdade de distribuir «as terras que estiverem dentro do
■to termo», de acordo com o foral e as normas das Ordenações: quanto às
terras situadas além do referido termo, até o São Francisco, deveria o
Governador <
----- examinar os pedidos e escrever ao Monarca «para vos eu niss
mandar o que houver por bem que façais».
Não conhecemos nenhuma determinação régia a respeito de tais
terras, mas o certo é que os Governadores passaram a distribuí-las de ses­
maria na forma do costume, sendo norma, entretanto, nestes casos pedi­
rem os beneficiários a confirmação régia: pelo menos, uma sesmaria dada
a D. Álvaro da Costa é confirmada pelo alvará de 12 de março de 1562; a
de Francisco Toscano, pela carta régia de 20 de maio de 1564; a de Egas
Moniz, pela carta régia de 10 de novembro de 1565; a dos jesuítas, pela
carta régia de 11 de novembro de 1567; a de Simão da Gama, pela carta
de 27 de março de 1570, segundo se lê nos Documentos para a História do
Açúcar.
Também quando, pela carta régia de 28 de setembro de 1612, el-Rel
Católico procurou corrigir os excessos de Jerônimo de Albuquerque, no R10
Grande do Norte, uma das exigências impostas, nas novas distribuições, to"
a da confirmação régia, medida causadora de muitos atropelos, confor^
o ressalta Alexandre de Moura, em exposição de 17 de junho de 16 a
«sendo os moradores tão pobres, não lhe é possível satisfazerem com c
condição, porque nao têm com que mandar requerer confirmação; e a
os mais deles; sao gente de pouca qualidade, nem conhecem ningueI^Jc.
quem se reco em, nem sâQ conhecidos>) sugere seja a confirmaçá0' àe-
fenda aos g „h *es gerais que, mais em contato com o meio, P ões
riam, se p1 r em pouco tem e com majs clareza as inforró3
necessárias»- r
E ^hu^outra rnStO da Colónia, os governadores distribuíam f^raS
«sem nc ^csrna ordern c^endência», no Estado do Maranhão, qua1^
deu esta e reparti-ia’ Se Ordenou aos governadores «não pudessem
ditas ter v m n _ senão com obrigação de se pedir depois con
ção dela5 c°mo se lê em representação do Governador
100 Costa Porto

Parente Maciel — «por cuja causa os moradores, havendo-as de vir a con­


firmar, as não querem aceitar, o que fica sendo em grande prejuízo e au­
mento daquella Província e Rendas Reais», donde a sugestão de autorizar
el-Rei os governadores a repartir as terras «na forma que se faz no Brasil»
— recorde-se que, a esta época, o Estado do Maranhão constituía unidade
autónoma, separada do resto da Colónia, chamada «Estado do Brasil» —
«pelo menos até duas léguas... sem obrigação da dita confirmação».
Ainda casos de confirmação encontramos quanto a Pernambuco, mas
para resolver situação especial, criada por força da ocupação flamenga.
A inauguração do governo geral, decorrência do fracasso das capita­
nias, foi golpe de morte no regime donatarial, representando, praticamen-
te, a liquidação do poder dos donatários, pois Tomé de Sousa é enviado
como «governador da Bahia e das outras capitanias da costa».
De certo, Duarte Coelho terá reclamado a el-Rei, na defesa de seus
direitos — tanto mais quanto Pernambuco andava bem — e D. João IV
ter-lhe-ia aceito as justas ponderações, pois, em carta de 24 de novembro
de 1550, o donatário alude a uma correspondência, em que cl-Rci lhe
comunicava havia por bem «estar como estava e guardar-me minhas doa­
ções e cá não se entenda em mim o que tinham mandado a Tomé de Sousa,
nem ele venha cá nem entenda em minha juridição».
E uma carta do Governador Geral confirma esta situação, esclarecen­
do não ter ido a Pernambuco, por haver recebido ordens do Soberano não
o fizesse, enquanto S. M. lho não mandasse expressamente.
Assegurada a automia da Nova Lusitânia, o processo de distribuição
de terras permaneceu inalterado, mantida a faculdade outorgada aos
capitães donatários, como o ressalta interessante documento dos «Manus­
critos da Ordem Beneditina do Mosteiro de São Bento de Olinda» (Revista
do Instituto Arqueológico, vol. XXXVII, 59 e segs.) sob o título — «Examina-
se a origem das confirmações das cartas de Cismarias nesta Capitania desde o
princípio de sua fundação»: «Duarte Coelho distribuiu terras sem mais outra
declaração que a de que ficariam obrigados a pagar o dízimo à Ordem de N. S.
Jesus Cristo», e morto o capitão, D. Beatriz, que passou a dirigir Pernambuco
em nome do filho, e os demais donatários e loco-tenentes «em nada diversifica­
ram a formalidade das Cismarias, e nunca as obrigaram a alguma confirma­
ção».
Mas, «depois de serem os holandeses expulsos desta terra, julgou o
Monarca não ser conveniente conservar nesta Capitania donatário, com o
fundamento de não poder um Senhor particular defender a terra de
invasão de inimigos e por este motivo foi S. M. servido ordenar, no ano de
1655, se agregassem a sua Real Coroa estas Capitanias, transmutando-se
em património seu. Fiz dar execução a Ordem e o Mestre de
Campo...Francisco Barreto, pelo Ouvidor e Auditor geral (Luiz Marques
Romano) que, com efeito, dela tomou posse em 15 de julho de 1655».
Medida, de resto, que não constitui surpresa: prisioneiro na batalha de
Mata Redonda, Heitor de La Calce informava, segundo registra Laet, não
tinha Duarte de Albuquerque autoridade na direção da luta e, segundo a
O Sistema Sesmarial no Brasil 101

opinião geral, «se o Rei se apoderasse da terra, havia de tomar-lhe a pro­


priedade, dando-lhe em compensação alguma cousa em Portugal» (Hist.
Geral II, pág. 327, nota 124).
Segundo Pereira da Costa (Anais Pernambucanos, III, pág. 388), el-
Rei, informado de que
q-j o Conde de Vimioso «exercia alguns atos de juris-
como «administrador da fazenda de Duarte de
dição na capitania»,, como
Albuquerque, seu sogro, ordenou, pela Carta régia de 4 de novembro de
1654, a Francisco Barreto 'restituísse à Coroa a posse que, em seu nome,
havia tomado quando ganhou a capitania aos holandeses’, declarando nu­
lo tudo quando houvesse sido praticado em nome do donatário».
A lição, entretanto, comporta ligeiros retoques.
Nascido em Lisboa, a 22 de outubro de 1591, Duarte de Albuquerque
Coelho, sucedendo ao pai. Jorge, na donataria duartina, governou-a sem-
Pte, através de ioco-tenentes, entre os quais o irmão, Matias de Albuquer­
que, sendo possível tenha vindo ao Brasil, pela primeira vez. na esquadra
que, em 1624 zarpou de Lisboa para defender a Bahia dos holandeses, tor­
nando à Colónia em 1631, na esquadra de Oquendo, desta vez tentando a
reconquista da capitania, demorando-se, ao lado das forças luso-hispano-
pemambucanas. até 1638, quando voltou à iVIetrópole.
Sobrevindo a Restauração de 1640, enquanto Matias abraçava a causa
da liberdade pátria, Duarte colocou-se ao lado da Espanha e, com a
vitória dos nacionalistas, foi-lhe tomada a Capitania, que passou à filha, D.
Maria Margarida de Castro e Albuquerque, casada com D. Miguel de Por­
tugal, 6.° Conde de Vimioso.
Desta sorte, o marido da donatária agia em nome da esposa e não do
wgro, como diz Pereira da Costa.
Não se conformaram, entretanto, os donatários com a espoliação e,
através do famoso advogado, Dr. Manuel Álvares Pegas, o Conde foi a
juízo, obtendo «várias sentenças contra a Coroa» — esta, por sua vez, as ia em­
bargando, arrastando-sc a pendência até 1716, quando o último donatário, o
sétimo Conde Vimioso, entrou em acordo com o d rono, abrindo mão de Per­
nambuco, a troco de 80 mil cruzados e outras compensações.
Ora, diz o documento do Mosteiro, enquanto corria o pleito, «os pro­
curadores bastantes do Conde de Vimioso, D. Miguel de Portugal, passa­
vam algumas cartas de sesmarias para mostrar a posse que conservavam
nas terras, desta capitania, e o mesmo faziam os Governadores del-Rei»,
até que, por fim. «informado da operação que faziam os loco-tenentes do ■

Conde», o Soberano «mandou a seus governadores no ano de 1699, a


forma e circuntâncias com que podiam dar a carta de sesmaria», pondera
o autor dos «Manuscritos» que, em argumentação meio ininteligível -
porque a cópia da Revista apresenta várias lacunas - ajunta: «não sei se
nesta ordem (de 1699) teria princípio a Li lei de serem elas (as sesmarias)
confirmadas por el-Rci, eu duvido; porque ainda então não...no...nesta
capitania c sobre este assunto pendiam os litígios».
Em outras palavras, não acreditava o autor tivesse a ordem de
confirmação aparecido enquanto se discutia a posse da Capitania e, sim,
102 Costa Porto

depois de 1716, quando ficou fora de dúvida o domínio da Coroa sobre


Pernambuco: a partir de então, el-Rei «como seu legítimo Senhor», é que
devia dar as cartas de sesmaria e se, «em benefício dos povos, deu esta co­
missão a seus governadores, foi debaixo da condição de serem elas confir­
madas dentro de um ano e dia todas as datas de terra.
O argumento não parece convincente.
A confirmação teria surgido exatamente na fase cm que se discutia o
domínio, como meio de forçar o morador a reconhecer a autoridade régia:
Sesmaria não confirmada por el-Rei seria sesmaria sem valor, e
naturalmente o Monarca negaria confirmação às cartas passadas em nome
do donatário, obrigando, assim o colono a não lhe aceitar a jurisdição na
Capitania.
Fala o autor dos «Manuscritos» em que El-Rei, em 1699, mandara aos
governadores «a forma e circunstância com que podiam dar a carta de ses­
maria» (Rev., vol. XXXVII, pág. 62) e em seguida, na pág. 64, publica o
seguinte documento, com título cheio de falhas: «A forma ...consta, como
se haviam de. passar as cartas de sismaria, que Sua Magestade.. .endo por
ordem exp... ou... copiada no livro 1? dos Registros das Ordens Reaes»:
«Fui servido resolver que as pessoas que tiverem terras de sesmarias, ainda
que de muitas léguas, se as tiverem povoado e cultivado por si, ou seus fei­
tores, colonos ou enfiteutas, que com estas tais pessoas se não entenda, pois
cumprindo as obrigações do contrato por sua parte, se lhes deve cumprir
por minha; porém se as taes pessoas não tiverem cultivado e povoado parte
de suas datas ou toda, denunciando qualquer do povo a tal parte, ou sítio,
e descobrindo-o, hei por bem se lhe conceda, mostrando o citado que a
tem por Sesmaria, que está inculta e desaproveitada, o que se decidirá bre­
ve e sumariamente, com a declaração que tal sitio ou parte denunciada
não exceda a quantia de tres léguas de comprimento e um de largo, ou
légua e meia em quadra, e excedendo esta quantia se dará esta ao denun­
ciante e o mais a quem parecer, guardando-se a limitação em todo, com
'k quem repartir; e que as pessoas... a quem se derem no futuro sesmarias, se
ponha, alem da obrigação de pagar dízimos à Ordem de Cristo e as mais
costumadas, a de um foro, segundo a grandeza ou bondade da terra, com
a declaração, porém, que sendo terras convenientes a meu serviço, se não
darão e ficarão para a Fazenda Real. E as sesmarias legitimamente pos­
suídas, faltando os possuidores, SENDO (?) seus sucessores obrigados a con­
firmação por Mim. Nesta conformidade ordeno façais executar esta minha
resolução, com data de 20 de janeiro de 1697», o que deve ser erro de có­
pia: 1697, em vez de 1699.
Trata-se, a toda evidência, da carta régia de 20 de janeiro de 1699,
um dos mais importantes diplomas sobre o disciplinamento sesmarial, pois
J regula vários ângulos do sistema.
A cópia do Mosteiro de São Bento está visivelmente incompleta, fal­
tando pelo menos o começo, possível, entretanto, de reconstituir-sc: nor­
mas anteriores teriam limitado o máximo de léguas para cada data, e a
carta de 20 de janeiro de 1699 de certo modo garantia os direitos legiti­
mamente adqueridos de antigos sesmeiros.
O Sistema Sesmarial no Brasil 103 ■

Suponha-se, na verdade, houvessem alguns colonos recebido, antes,


“terras de Sesmarias, ainda que de muitas léguas»: «se as tiverem povoado
e cultivado», estabelece el-Rei que as restrições não os atingiriam — «com
estas tais pessoas não se entenda» o critério de limitações, pois as terras
lhes haviam sido dadas com a condição do aproveitamento em prazo certo
e, «cumprindo as obrigações do contrato por sua parte, se lhes deve cum­
prir por minha».
Tratando-se, porém, de colonos que «não tiverem cultivado e povoado
a parte de suas datas ou toda», é claro haviam perdido o direito âs datas,
caídas em comissão, e neste caso, determina el-Rei sejam consideradas in-
cultas e «devolutas», e, como tais, redistribuídas com quem o denunciasse, ■I á
desde que não ultrapasse «a quantia de tres léguas por uma... ou légua e
meia em quadra». fc
Lendo-se atentamente o preceito final da carta de 20 de janeiro de
1699, talvez seja lícito concluir que a exigência da confirmação, vinha de ih
epoca mais recuada, havendo-se-lhe, apenas, ampliado o alcance: lei ante­
rior — talvez de 1697 ou 1698 — teria ordenado a confirmação das novas
datas e, em janeiro de 1600, se vai além, estendendo o preceito aos suces­
ir
sores em datas já distribuídas.
E que a exigência da confirmação é anterior a janeiro de 1699 prova-
o o fato de que dando ao Coronel Leonel de Abreu e Lima uma sesmaria
para as bandas de Ararobã, em 30 de maio de 1698, Caitano de Melo e :■

Castro lhe impõe, entre as condições costumeiras, a de «requerer a confir­ I


mação por S. M. em termo de dois anos, na forma que novamente foi
servido mandar por suas Reaes Ordens» (Doc. Hist. I, pág. 62): o advérbio
novamente, não tinha, na linguagem do tempo, o sentido de repetição — i'
cousa que sucede outra vez — mas fato ocorrido fazia pouco, equivalente a
recentemente; assim, falando, em maio de 1698, de ordens mandadas no­
vamente, alude o governador a normas baixadas em começos de 1698 ou
fins de 1697, 1
A carta de 20 de janeiro de 1699 fala, apenas, na exigência de pedir i
confirmação, sem lhe apontar prazo, enquanto o autor dos «Manuscritos
do Mosteiro de São Bento» registra a condição de serem confirmadas as da­
tas — «dentro de um ano e dia...» (Rev., vol. XXXVII, pág. 63).
Na prática, o prazo variava: como regra, dois anos, o que mais fre-
qílentemente aparece na Doc. Hist. I, págs. 62, 65, 67. 72, etc.: outras ve­
zes, apenas se alude à exigência da confirmação, sem lhe fixar prazos (ib.
pãgs. 170 a 240); noutras, não se alude à confirmação (págs. 299, 302,
304); em casos raros, o prazo é arbitrário: «dentro de um ano» (pág. 319);
ou «dentro de tres anos» (págs. 142, 146, 153, 181, 216, 218).
O pedido de confirmação foi um dos maiores entraves à legalização do
regime fundiário colonial.
Sem dúvida, como observa Brandónio. nos Diálogos, não havia «mo­
rador tão desamparado que não tenha no Reino algum parente ou amigo
a quem possa mandar seus papeis» (pág. 70), o que facilitaria bastante o
despacho.

FUflUUÀ iiiHiAfc
UNIVERSIDADE DE FORIALEZA
1 BIBLIOTECA CENTRAL
104 Costa Porto

Mas estas facilidades poderiam existir no começo, quando, vindo-se a


povoar a Colónia, cada reinol podia deixar na Corte um conhecido ou
amigo, o que, ainda assim, não seria tão usual, pois muitos migravam das
províncias e o despacho se verificava em Lisboa.
Depois do século 18, intenso o movimento povoador, o formalismo da
burocracia lisboeta teria representado obstáculo severo, donde muito colo­
no deixar de pedir a confirmação, o que valia dizer, não adquirira o
domínio do solo, passando a prevalecer, já daí, a praxe da mera ocupação,
da simples posse.
Muitas vezes, a falta de legalização decorria de manobra do colono, a
fim de evitar novos ónus: quando, na verdade, se introduziu a exigência do
foro, aparecem casos como aquele lembrado em parecer de 1739 — «as
pessoas a quem foram dadas as terras...não procuraram confirmação de S.
M...nem até o presente pagaram foro que parece que por esse efeito de o
não pagarem tiveram sempre caução de não registrarem a carta de sesma­
ria (Doc. Hist. 2.°, pág. 4.°), o que não deixava de ser perigoso, porque
se outro morador pedia a terra e lhe legalizava o domínio, o simples ocu­
pante era alijado do local, pois a mera ocupação não gerava o domínio.
Ao lado da confirmação régia, havia outra, a que vemos várias alusões
nas fontes e cuja explicação se torna fácil.
A faculdade de distribuir sesmarias foi, originalmente, atribuição dos
donatários, c, depois de 1549, dos governadores gerais, residente em Salva­
dor, muitos, depois de Diogo Botelho, adotando a praxe de morar em
Olinda, sempre a pretexto de melhor dirigir a conquista do Norte, mas
possivelmente por tirarem mais proveito ou por estarem mais perto do Rei­
no, que disso não saberei dar a causa certa, como acentua Brandônio
(Diálogos, I, 68).
Embora o alvará de 21 de fevereiro de 1621 — baixado, parece, por
instância do quarto donatário — houvesse proibido este costume, mandan­
do aos governadores residissem habitualmente na Bahia, a praxe conti­
nuou, e, de qualquer modo, morando em Olinda ou em Salvador, daí é
que se despachavam os pedidos, em centralização exacerbada, conflitante
com as necessidades da Colónia.
Mas, à medida que se foi alargando o povoamento, surgiram, nas
sedes das regiões ocupadas — Aracaju, Paraíba, Natal, Fortaleza —
autoridades locais, os «capitães-mores», ós quais passaram a distribuir
terras de sesmaria em nome de el-Rei, costume registrado nos Diálogos, que
o apontam como norma geral, tudo, entretanto, fazendo acreditar nascesse
esta prática de direito costumeiro, como o frisa o autor da «Memória sobre
as sesmarias da Bahia».
Nenhuma norma, porém, encontramos vedando a distribuição de ses­
marias pelos capitães-mores, praxe usual, como o mostra a Documentação
Histórica Pernambucana, a cada passo.
Em fins, porém, do século 17, topamos com um episódio que revela
haver-se posto em dúvida a liceidade, e, mesmo, a legalidade, do
processo (Doc. Hist. I, págs. 55 e segs.): em 1664, o Capitão-Mor do Ceará
I1
I ■■

O Sistema Sesmarial no Brasil 105

rande, Diogo de Albuquerque, doara umas terras a Felipe Coelho, cujos


erdeiros a vinham ocupando havia mais de 34 anos, quando o novo
apitão-Mor. Joâo de Freitas da Cunha, as redistribuiu ao Padre João Lei­
te e Aguiar, motivando o protesto dos herdeiros de Coelho, contra a doa­
Ila !
ção posterior, à base da alegação sumária de que «os capitães-mores não
Podem dar terras nenhumas». :■

constituía faca
Tal argumento, entretanto, constituía faca de
de dois gumes: se os
dois gumes: !»;
apitães-Mores não tinham faculdade de distribuir sesmarias, nula seria a '■

ata passada pelo capital Freitas em favor do Padre Leite, mas nula, do ’ I
mesmo modo, aquela feita a Felipe Coelho, em 1664, também pelo capitão ■

Diogo de Albuquerque. E daí a tática, hábil, dos reclamantes: de certo


Pensando, como aquele colono que, em 1759, lembrava mandar S. M. «se !! j
passem sesmarias aos que tiverem roteado e cultivado os ditos sítios» (Doc.
lst- 2, pág. 163), não pedem, propriamente, reconhecimento da data,
mas solicitam a sesmaria ex novo, recorrendo «à piedade» do governador,
a quem solicitam lhas dê em definitivo.
O Procurador da Coroa não parece ter apanhado bem o problema,
pois opina contra a concessão feita ao Padre Leite à base de argumento di-
'erso: não se podem dar por devolutas terras que fossem dadas a outrem,
sem constar que as não aproveitaram e ser findo o tempo que se deviam
povoar» donde, «constando que os suplicantes estão de posse e têm povoa­
do, devem ser repostos em a posse da dita terra.
O Governador, entretanto, percebeu, ao exato, a pretensão dos
interessados: entendendo que a doação ao Padre Leite fora nula — em fa­
ce de «não ter o Capitão-Mor do Ceará faculdade para dar sesmaria» —, o
íí
que, evidentemente, também anulava a doação ao pai dos suplicantes — e $
ainda levando em conta a informação do próprio Capitão-Mor Freitas da
Cunha de que procedera «menos bem informado...não lhe constando te­
nham há tantos anos possuidores», e, também, atendendo a que « as or­
dens de S.M. são no sentido de distribuirem-se as terras devolutas e incul­
tas e não as possuídas e cultivadas», e uma vez que os suplicantes vinham !
ocupando e cultivando as terras havia mais de 34 anos — ignora as conces­
sões anteriores, fazendo nova distribuição, dando a sesmaria Ex Novo, aos
suplicantes.
Embora, porém, o Governador explicitamente proclame que os
•Capitães Mores não podem distribuir sesmarias», nunca, nem antes nem .
epois, deixaram eles de fazê-lo, mas. nestes casos, prevalecia a norma de
pedirem os sesmeiros confirmação do Governador: Numa sesmaria de
1702, no Ceará, vem a Cláusula de perdir-se confirmação do Governador,
•pois lhes foram concedidas... pelo Capitão-Mor» (Doc. Hist. IV, pág.
•19); ou «não bastante o dito sesmeiro haver pedido confirmação...por lhe
ter sido dada pelo Capitão-Mor» (ib. 120); ou, ainda mais expressamente,
•Para poder requerer confirmação a S.M....é necessário que seja primeiro
aprovado por V.S.» (ib. I, pág. 196). Praxe, de resto, expressamente procla­
mada em informação oficial de 1749; el-Rei mandava que as terras dos
I almares fossem dadas pelo «Mestre de Campo General do Estado do Bra­
sil... e ao depois do seu tempo para cá as davam os capitães-mores», com
informação dos Provedores» (Doc. Hist. 2.°, pág. 74 ).
106 Costa Porto

Imposição do foro

Outra exigência que data dos fins do século 17 — da carta régia de


20 de janeiro de 1699 — é a imposição do foro sobre as terras dadas de
sesmaria.
Na pureza originária do sistema, as sesmarias se distribuíam «lyvre-
mente, sem foro nem dereyto algum», salvo tratando-se de terras tributá­
rias, cujos senhorios nenhuma culpa tinham na incultura, clara, neste pon­
to, a norma das Ordenações: « e por mais favor da lavoura em geral, de­
terminamos que onde quer que se derem quaisquer cousas de sesmaria, se
as terras estiverem forem isentas, se dêem sesmaria isentas, e se forem tributá­
rias, com o tributo delas se dêem e não lhe ponham outro tributo».
Ora, terras de «nenhuns senhorios», apenas sujeitas à jurisdição espiri­
tual da Ordem de Cristo, a distribuição do solo colonial sempre se fez sem
nenhum tributo, exceção do dízimo, que, de resto incidia menos sobre a
terra do que sobre os frutos.
Nos fins do século 17, porém — e, talvez, em grande parte, levado
pelas aperturas do erário —, el-Rei D. Pedro II introduz modificação de
vulto no sistema: as terras de sesmaria pagariam um foro, tendo em vista
sua qualidade e bondade.

A medida não surgiu, entretanto, sem reação dos juristas do tempo.


Discípulos de Bãrtolo de Saxoferrato, o grande mestre de Bolonha, o Dr.
João de Aregas — o Dr. João de Regras, ou «lohannis a Regulis», decreta-
lista de D. João I —. criara em Portugal, opulenta escola de juristas, entre
os quais iria repontar Jorge Cabedo, um dos compiladores das Ordenações
Filipinas, cujos preceitos — repetindo as normas das Afonsinas e Manueli­
nas — firmavam a gratuidade das datas. Ora, comentando o texto do or­
denamento reinol, dizia Cabedelo cm conceitos inatacáveis: «Ex quo fit
quod nullus dominus terrarum, nex Magistri Ordinum, nec alii nobiles,
seu comendatores, possunt sibi agros hos proprios facere... .sed dari debent
de sesmaria absque ulla pensione», pelo que as terras do Brasil, «per capi-
taneos de sesmaria dantur absque ulla pensione et in donationibus iubetur
per regem et decimae pertinent ad Regem, tanquam Magistrum praedicti Or-
dinis».
E à objeção quem no caso brasileiro, o Grão-Mestrado da Ordem se
confundira com a realeza —provisoriamente, com D. Manuel e permanen­
temente desde D. João III — retrucava Cabedo: «Nec obstat si quis dicat
quot Magisteria Ordinum fuerunt unita regiae Coronae et, ob id, agros
hos debere censeri bona regis....nom sequitur; imo tunc maiori ratione ad
Rempublican pertinent, cui Rex in omnibus consulere vuk et ipse Rex....
iubet Magistris Ordinum ut ita se gerant in his agris desertis ut ipse Rex
facit....Secundo....etsi Magisteria Ordinum sint unita Regiae Coronae non
sunt unita ut Rex illa habeant tanquam Rex, sed tanquam administrator
Ordinum Militarium constitutus a Sede Apostólica... ita in una persona
Regis considerari debet duplex dignitas, Regalis et altera Magistri».
O Sistema Sesmarial no Brasil 107

Fácil, porém, encontrar fórmula de, juridicamente, «legalizar» a


vontade dos monarcas absolutos: ante a reação dós juristas puros, foi o ca­
so submetido ao Conselho Ultramarino, onde as opiniões divergiam, haven­
do, porém, o Desembargo do Paço decidido que «a Ordenação não se apli­
cava ao Brasil», e que «podia S.M. revogá-la»; e assim, sem bulhas nem
matinadas, entrou em vigor o preceito que mandava cobrar foro das ses­
marias coloniais.
Repetindo a lição do autor da «Memórias sobre as sesmarias da Ba­
hia», é comum ensinarem os mestres ter o novo encargo surgido com carta
de 27 de dezembro de 1695, o que é, de todo infundado: em 1702, Leo­ li I
nardo de Sá pede ao Governador Mascarenhas de Lencastro confirmação
de uma data no Rio Guaçuraçu, no Ceará Grande, sem foro, porque, alega,
recebeu em 1967, «em que nam havia tributo nem pensão, como consta das
certidões dos Padres Companhia» (Doc. Hist. I, pág. 80).
E ainda mais convincente: resolvido, em carta de janeiro de 1698, o
caso das terras dos Palmares, quando as autoridades coloniais pretenderam
cobrá-lo dos sesmeiros, ordenou el-Rei, em carta de setembro de 1699, não
era cabível o pagamento, «em razão», dizia, «de ser muito posterior à con­ '•I !

cessão de terras» que lhes fiz (Doc. Hist. I. pág. 269, e 2, Pág 17). Ora, se
a «concessão» datava de janeiro de 1693 e a exigência lhe era «muito pos­
terior», não podia datar de 1695.
i-l '
E toda a documentação da época aponta como sua origem a carta ré­
gia de 20 de janeiro de 1699, segundo a qual «as pessoas a quem se derem,
no futuro sesmarias, se ponha, além da obrigação de pagar o dízimo à or­
dem, e as mais costumadas, a de um foro, segundo a grandeza ou bondade
da terra» (Rev. do Inst., XXXVII, pág. 65, e Doc. Hist. Pernambucana, > .1
I. págs. 214, 218, 223, 226, 228, etc.). I
A carta régia de 20 de janeiro de 1699, impondo o ônus nào lhe
determinava o «quantum» a ser cobrado, estabelecendo como base o crité­
rio, vago, da «grandeza ou bondade da terra», cabendo a fixação, ensina
J. Eduardo da Fonseca (Rev Forense, vol. .' 8, pág. 271), a «avaliadores es­
colhidos pelas Câmaras do Distrito em que estavam situadas as terras», o
que não parece procedente, pelo menos quanto a Pernambuco, onde vive­
mos arbitrados por uma «comissão» — a «Junta» ou «Junta das Missões» —
que tanto se alude na Documentação Histórica Pernambucana (Vol. I,
págs. 64, 69, 83, 87, etc.).
Esta «Junta das Missões», instituída na Bahia pela carta régia de 25 de
março de 1689, com o objetivo de propagar a fé — «o glorioso e principal
motivo que incitou o zelo dos senhores reis — para o descobrimento e con­
quista de tão remotas e estranhas terras» (Documentos Históricos, vol.
LXVIII, pág. 227) , teria sido fundada também em Pernambuco, se­
gundo Pereira da Costa (Anais Pernambucanos, IV, pág, 198), anterior-
mente à carta régia de 7 de março de 1681, que lhe deu, como função es­
pecial, cuidar da catequese dos indígenas.
Na Documentação Histórica Pernambucana, fala-se, com freqílência,
em que sua fixação resultou da carta régia de 28 de setembro de 1700 (vol.
2, págs. 47, 213, 215, etc), mas talvez seja mais certa a lição de Pereira da

I
108 Costa Porto

Costa. (Anais, IV, pág. 468) de que a carta régia em tela apenas aprovara
o critério fixado pela «Junta»: pagariam seis mil réis por légua as sesmarias
num raio de 30 léguas de Olinda ou Recife, e quatro mil réis, aquelas
além deste limite, havendo, porém, exemplos vários que mostram não ter
sido muito rígido este critério, ora fixando-se dois c três mil réis por légua
e nem sempre se levando em conta a distância.
Não se pode dizer fosse muito pesado o teto de quatro e seis mil réis
por légua, embora, no tempo, o dinheiro valesse muito, tendo ainda o co­
lono o ónus do dízimo sobre tudo quanto produzisse; mas o certo é que a
exigência trouxe grandes atropelos, ocorrendo casos de colonos que procu­
ravam fraudar a exigência.
Lendo mal o autor de «Memória», ensinam alguns analistas que a
cobrança somente se tornou obrigatória depois de 1777, o que não tem
fundamento: a «Memória» trata do caso concreto da Bahia, onde houvera
confusão dos administradores, porque o governador Lencastrc dera à carta
régia «diferente inteligência» e os sucessores parece não tiveram conheci­
mento dela, até que o governador Cunha Menezes, cm 1777, lhe exigiu o
cumpriemnto rígido, porque «vinha de governar Pernambuco, onde assim
se praticava».
De fato, em Pernambuco a cobrança de foro sempre foi rigorosa. Em
1714, por exemplo, um certo David de Albuquerque Saraiva, pedindo, de
sesmaria, «uns pedaços de terra em Água-Fria» — distribuindo, era certo,
«a um Felipe Cavalcanti, dos primeiros povoadores desta capitania — mas,
na prática, «res nullius», porque, de muito, abandonados, comprometia-
se a devolvê-los, de futuro, aos legítimos donos, se aparecessem, mas, do
mesmo ponderando seria «cousa rigorosa» devolver a data tendo pago a
pensão devida ao fisco, solicitava dispensa da contribuição que parecia ra­
zoável. Mas o Procurador da Coroa opinou contrariamentc, observando,
zeloso das cousas do erário: «Eu já me acomodo com a promessa de resti­
tuição quando parecerem donos, porém com fugir com o corpo e não pa­
gar foro com isso não me acomodo.... e se o suplicante lhe parece outra
cousa atenda que principum placita iegis havent vigorem». (Doc. Hist. I,
pág. 199).
Embora encontremos, na Documentação Histórica Pernambucana, al­
guns casos de dispensa de foro — e com a agravante de haverem as datas
sido aprovadas por el-Rei (ib., vol. 2, págs. 160, 170, 181) — , a regra é de
muita rigidez na cobrança. Alguns colonos, honestos, tendo difileudades de
pagar, abriam mão da data, como Inácio da Cunha, que «renunciou a
S.M. uma sesmaria recebida», «por não poder pagar o foro» (Doc. Hist.,
2, pág. 65); outros atrasavam demais o pagamento e acabavam perdendo o
solo, dado como devoluto (ib., 2, págs. 41, 65, etc.); outros, queriam ser
sabidos e, atrasando-se no pagamento, depois pediam a terra EX NO^O,
para enganar o fisco, nem sempre, porém, apanhando os fiscais descuida­
dos: o senhor de engenho Laranjeiras, Capitão-Mor Domingos Bezerra, pe­
dira uma data em 1732, levando 16 anos sem pagar o foro, e, quando, em
1748, torna a pedi-la de sesmaria, opina o escrivão: «Parece deve primeiro
satisfazer o que deve atrasado, para não fazer maior dívida», (ib., 2, pág.
65).
O Sistema Sesmarial no Brasil 109

A leitura da documentação colonial patenteia a luta incessante das


autoridades régias e dos moradores, aquelas defendendo os interesses do
erário e estes procurando tudo quanto era expediente para evitar o paga­
mento. Em parecer de 1742, o Procurador da Coroa opinava devia certo
■suplicante» assinar a petição e reconhecer seu sinal, ou juntar procuração
sua, para constar que ele, e não outrem em seu nome, «pede as terras... e
se não poder excusar, com este pretexto, como já tem acontecido, de pa­
gar o foro» (Doc. Hist., II, pág. 47). Outros, recebendo a data, não proce­
1
diam ao registro e ao pedido de confirmação, visando, quando nada, a
atrasar o pagamento, como o de uns moradores afirma o Procurador, em
parecer de 1739 (ib., pág. 41). Outros se faziam de inocentes e porque a
lei estipulava o prazo de cinco anos para aproveitamento da sesmaria, ten­ I •
tavam «atirar o barro à parede», empenhados em convencer os delegados I’ _

da Coroa que a cobrança somente era devida após cinco anos da concessão L
das datas, manobras, entretanto, infrutíferas ante a vigilância dos Cérberos
oficiais, apressando-se a Procuradoria da Coroa a traçar a orientação
normativa de que o dito foro começará do dia da posse em diante» (Doc., j
Hist., II, pág. 25), enquanto a Junta das Missões decidia de modo taxati­
vo: «As terras que se derem de sesmaria se principiará a pagar o foro delas
do dia em que for passada a carta de sesmaria em diante, à razão de qua­
tro mil réis por légua, nas datas do sertão e de seis mil réis por légua, nas
que são chegadas à marinha, porquanto os cinco anos são somente por pe­
È
na que se dá aos que não povoarem no decurso delas para se poderem dar
por devolutas a quem as pretender», conforme se lê em parecer de 1747»
(>b., 2, pág. 58).
Orientação de caráter geral, visando a «tirar o avulso em que estavam
de que se não devia pagar foro nos cinco anos da Ordenação», a norma
I
iI
da Junta nem sempre seria seguida inflexivelmente, algumas autoridades
mostrando-se suaves e levando cm conta que a incidência do tributo deve­
ria alcançar aquelas terras «capazes de dar lucro e não carecerem de ses-
mariamento» (?), conforme se diz em parecer do tempo (ib., 2, pág. 59),
donde, aqui e ali, encontrarmos a concessão de prazos de mora — os
chamados «anos mortos» — , durante os quais ficava suspensa a cobrança.
Havendo motivos razoáveis — a critério da autoridade concedentc —,
fixava-se um período de carência: assim, por exemplo, o Coronel João
Cavalcanti de Albuquerque e outros pedem a D. Lourenço de Almeida uma
sesmaria «com a condição de não pagarem foro senão depois de passados
cinco anos que hão mister para queimarem, roçarem, põrem capazes de
pasto os ditos matos», o que lhes é deferido (Doc. Hist., I, pág. 209); outro
colono pede «seis anos mortos para pagar o foro... atendendo ao benefício
de que necessita» (ib., 89); outros pedem «alguns anos mortos em razão dos
trabalhos, despesa que necessariamente hão de fazer para sua cultura, si­
tuação do gado e benefícios de águas de que o gado carece para sua con­
servação»^., 129), do que discorda o Provedor, opinando devia o paga­
mento «correr do dia da data e não com anos mortos» (ib., 131); outro,
pedindo umas marés, em que há de fazer «grandes entulhos sucaleo (?) e
alicerce profundo e para esse benefício é preciso o trabalho de seis anos»
— lembra que os seis anos «se devem dar mortos» (133), o que é deferido
110 Costa Porto

pelo governador (ib., 135); o capitão Antônio Biart pede terras para «edi­
ficar engenho de fazer açúcar, dando-se cinco anos livres para poder culti­
var» (ib., 211), mandando o governador começasse o pagamento «passado
três anos» (ib., 213).
Vigilantes na defesa dos interesses da Coroa, adotaram as autoridades,
pelo menos de Pernambuco, o processo acautelador de o sesmeiro apresen­
tar fiador idóneo, que respondesse pelo pagamento, frequentes, nas cartas
da Documentação Histórica, exigências assim: «Dando fiança, corno se tem
assentado nesta praça» (Doc. Hist., II, 59): «deve dar fiança idónea nesta
praça», (ib., 66); «deve dar fiança idónea nesta praça a pagar no fim de
cada ano» (ib., 71): «precedendo fiança idónea, que é estilo dar-se para
pagamento do foro annual» (ib., 77); «deve dar fiança nesta Provedoria
aos foros que se vencerem, em que obrigue o fiador a pagar anualmente os
foros vencidos» (ib., I, 84); «não se entregando à parte sem constar ter
dado fiança idónea à satisfação das pensões que se forem vencendo» (142).
Deste foro, pago a el-Rei, há distinguir aquela contribuição que muito
sesmeiro cobrava de moradores, localizados em terras alheias, e causa dos
incidentes, no Piauí, com a Casa da Torre e Sertão: recebendo datas imen­
sas. muito latifundiário costumava arrendá-las a precaristas que lhe paga­
vam pensões altas, e muitos, não satisfeitos com a exploração, iam além,
cobrando arrendamento de terras que lhes não pertenciam. Em 1753, por
exemplo, Alexandre da Silva Carvalho, «morador no sertão do Ararobá,
nas cabeceiras do Moxotó», reclama ao governador Correia de Sá contra o
fato de, tendo descoberto e povoado três léguas naquelas paragens, havê-lo
o procurador da Casa da Torre obrigado «a passar-lhe papel de foro, que
com efeito lhe passou», o mesmo fazendo «os Padres da Madre Deus desta
vila do Recife», até que lhe veio ao conhecimento que a terra «não
pertence àquele nem a estes, mas a S.M.», pelo que lhes pedia de sesmaria
(Doc. Hist., II, pág. 82).

Medição e demarcação

Outra exigência, a que o alvará de 5 de outubro de 1795 emprestará


relevo predominante, é a da medição e demarcação das sesmarias, noções
de si mesmas entrelaçadas, pois, em geral, terra medida é terra
demarcada, e, na prática, a demarcação quase sempre importava a medi­
ção.
Medição e demarcação aparecem desde os primeiros tempos da
Colónia, encontrando-se, por exemplo, no Tombo de São Bento, elementos
que lhe atestam a praxe, ora dizendo-se «e mando que seja demarcada no
dito lugar» (pág. 134), ora registrando-sc que a sesmaria «foi demarcada,
paga a taxa de 300 réis» (págs. 36 e 46), ora apontando-se demarcadores
oficiais, como Aleixo Gonçalves, Manuel Alvares, em 1584, Garpar Varela,
em 1588(págs. 30e37).
Tal praxe, entretanto, não parece resultasse de exigências legais rígi­
das, como condição essencial, cujo inadimplemerto, importasse caducida­
de, sendo mais, fruto de costumes, de «estilos», no interesse do próprio co-
!
O Sistema Sesmarial no Brasil 111 i-
lono, a quem importava saber o que possuía. Em alguns casos, a carta de
sesmaria já valia, de si mesma, uma demarcação, pois, embora não deter­
minando expressamente a área, de tal modo lhe fixava as confrontações
que ninguém tinha dúvidas quanto à delimitação, como ocorre, por exem­
I
plo, naquela sesmaria dada, em 1556, por D. Beatriz a Diogo Lopes, no i,
1 aradouro: a «terra que estaa da banda de bayxo do caminho que vay
i pera o Varadouro, a qual terra se demarca de maneyra seguinte: partindo
do outeiro que está sobre o Varadouro, onde se faz huma casa, onde está
um marco de pedra... irá correndo pelo camynho abayxo, direyto ao oitei-
ro que está sobre o Varadouro, onde se faz huma casa, onde está um mar­
co de pedra... irá correndo pelo camynho abayxo, direto ao oiti que está
ao passo onde mataram o Varela, e dah irá corrende ao sudoeste athe en-
trestar nos mangues e Rio Beberibe e dali irão ao rio asima athe o Vara- I-
douro» (Tombo, 32).
i'
Em nossos dias não tem nenhum sentido esta alusão ao «passo onde
mataram o Varela», mas, para os contemporâneos, devia ser local conheci­
do de todos, de sorte que ninguém ignorava as divisas da sesmaria
Em outros casos, porém a carta apontava delimitações tão vagas e im­
precisas que os próprios contemporâneos encontravam dificuldades para ■
saber, ao exato, as extremas da terra, como ocorria de respeito àquela ses­
maria doada ao almoxarife Vasco Lucena, no Jaguaribe: partia «da feiti­
çaria dos índios», até «onde se mete o ryo...Ayamá e daí athe a riba de
casa velha que foi ue Christovão índio e outra casa que foi de um índio
que se cha Aberama, onde estão huns cajus muito grandes», etc. (Tom­ : ■

bo, 288). Os limites constavam de marcos artificiais, fáceis de desaparecer,


e da dificuldade de determiná-los é prova o cuidado dos herdeiros do al­ ■

moxarife, que, precisando demarcar a data, para saber a parte de cada i


um, «pedem ao loco-tenente do donatário determine aos demarcadores «se
informem de pessoas antigas», pois «pode haver algumas dúvidas... por se­
rem (as divisas, nomes) de língua dos gentios e taperas e outros lugares»
(ib.301). <•-
Em outras cartas não havia confrontação nenhuma, falando-se
apenas, em «dez léguas, ficando o outeiro...da Boa Vista em meio da dita
terra» (Doc. Hist., I, 9); ou «dez léguas de terra, confrontando com as 1
terras de Manuel da Costa Tinoco e testada de Domingos Roiz, sendo pião
o ribeiro... fazendo da largura comprimento e do comprimento, largura
(ib-, II) ou do poço de Itanhenga para cima pera uma banda e outra do
rio, pondo comprimento na largura e largura no comprimento» (ib., etc.).
Nos primeiros tempos — poucos os moradores, sobrando terra,
havendo espaço para acomodar toda gente — nem sempre o sesmeiro
cuidava de delimitar as datas: distribuídas as primeiras sesmarias, as
seguintes começavam a contar-se das «testadas» do solo já quinhoado, e as­
sim sucessivamente, cada um avançando rumo às terras não doadas, quase
à moda romana dos «agri arcifinales», o antigo sesmeiro afastando os ex­
tremos — «arcere fines» — , empurrando para frente quem viesse depois.
Possivelmente o problema da medição e demarcação se foi tornando
rígido à medida que, nos fins do século 17, se acentuou e alargou o povoa-
112 Costa Porto

mento: aumentando o afluxo de reinóis em demanda da Colónia, apare­


cendo, dia a dia, gente pretendendo terras de sesmaria, repontou, simultâ­
nea, a política de restrição das datas, a fim de que «fique lugar de accomo-
darem outros pretendentes de igual merecimento.'» (Doc. Hist.,I, pág.
161), lícito concluir que a exigência da medição e da demarcação resultou
i
das normas restritivas das áreas e daquelas referentes ao foro
Dantes, não se fazia muita questão de medir e demarcar as terras por­
que o problema do tamanho das datas se oferecia, na prática, irrelevante,
pouco importanto que, recebendo duas léguas, o morador se apossasse de
três, pois, se houvesse pedido três, tê-las-ia recebido do mesmo modo; mas
no instante em que a lei limitava a extensão do solo doado, importava
determinar-lhe a extensão exata, pois, do contrário, a restrição seria facil­
mente burlada, fraudada, sofismada: fixado o teto máximo, o sesmeiro iria
ocupar muito mais, como acentuariam os camareiros do Recife, em pare­
cer de 1753 — «por serviço do dito senhor e deste Conselho» — era con­
veniente que os que tomam terras de sesmaria fossem «obrigados
a... demarcá-las dentro de cinco anos...porque mostra a experiência que al­
guns pedem duas léguas e debaixo da concepção delas, dominam mais. em
fraude do Conselho» (Doc. Hist., 2, pág. 123).
Por outro lado, a carta régia de 20 de janeiro de 1699 impusera às
sesmarias o foro, cobrado por légua, tornando-se, assim, imperioso saber
ao exato o número de léguas, para se poder determinar a contribuição de­
vida a el-Rei, conforme acentuava o Procurador da Coroa, em parecer de
1701: «o supplicante se demarcará dentro em um anno, tanto por evitar
dúvidas com os hereos, como por ser assim necessário para saber-se o foro
que se deve pagar a S.M» (Doc., I, págs. 66-67)
Mesmo, porém, depois das leis que impuseram o ónus do foro e das
restrições de áreas, a exigência da demarcação e da medição não figura nas
cartas de data até os primeiros anos do século 18: Documentação Histórica
Pernambucana, por exemplo, começamos a encontrá-la, esporadicamente,
a partir de 1728 (vol. 2, pág. 20) como fruto, dirá um parecer de 1758, de
norma legal baixada em 1754 — «da qual requererá confirmação régia e
demarcação, na conformidade da real ordem de 20 de outubro de 1753»
(Doc. Hist., 2, pág. 213).
Não quer dizer, porém, que demarcação e medição somente tivessem
começado depois de 1753: vinham de mais longe, talvez como praxe, como
costume, aparecendo usualmente depois de 1734, pelo menos
Mas então, insistamos, menos como medida de caráter geral, por for­
ça de lei, do que tendo em vista circunstâncias especiais: Quando, por
exemplo, se discutia a questão das terras do Palmares, o Procurador da
Fazenda, em parecer dos fins de 1600, opina pela distribuição do solo
entre os soldados de Domingos Jorge Velho, com as «obrigações costuma­
das» e mais a de se demarcarem, «para que depois não haja dúvidas nas
extremas que agora, sendo as terras incultas, se desfarão com pouca con­
trovérsia, o que não será depois de aproveitadas, como nas que o são mos­
trou a experiência» (Ap. Ennes, op. cit, 312).
-
li’

O Sistema Sesmarial no Brasil 113

Já por aí se vê que, nos fins do século 17, a demarcação não figurava


entre «as obrigações costumadas» tendo sido sugerida como medida espe­
cial, para caso concreto.
Adotada como praxe, como «estilo», como norma costumeira, a de­
marcação se foi generalizando e em 1753 se teria tomado objeto de lei ex­
pressa: lei, parece, ditada para o caso do Piauí, mas, em seguida, com
aplicação geral a toda a Colónia.
0 alvará de 5 de outubro de 1795 faz da demarcação matéria funda­
mental, acentuando tratar-se de medida imposta por «várias ordens» ante­
riores, sempre descumpridas. Nem podia ser de outro modo: muito fácil
ordenar a medição e a demarcação, no papel; na prática, como executar o
preceito?
Aquelas demarcações, que encontramos nos primeiros dois séculos, di­
ziam respeito a terras do litoral, perto da sede do governo, zona já delimi­
tada por si mesma, pois não havia muito terreno vazio, desocupado, incul-
to. Mas quando o povoamento penetrou pelo interior, quem iria, por
exemplo, medir e demarcar aquela sesmaria do Padre Francisco Ferreira,
•■i:
Vigário de Rodelas, situada «entre a Serra da Borborema e Rio do Jajeu...
principiando a tal data em a ponte de um serrote chamado das gameleiras
pela parte do nascente e se ha de estender para o poente tudo aquilo que
secostuma dar a dous sesmeiros» (Doc. Hist., pág. 34)?
Ou aquelas «sortes de terras entre o Panema e o riacho do Moxiló» (I,
37)?
Ou aquela sesmaria «no sertão do Ararobá... no lugar chamado a barra
da chata no rio do Una» (ib., 101)?
E todo o rigor do alvará de 5 de outubro de 1795 findou em nada:
um ano depois, o alvará de 10 de dezembro de 1796 suspendia «sine die»,
3 exigência, alegando grande motivo que teria sido o mesmo, em todos os
tempos, a impedir-lhe a execuç. a carência de «geómetras»...

32 - OS DIREITOS DE TERCEIROS

Entre os problemas mais sérios no funcionamento do sistema figura o


dos direito de terceiros».
A doação de terras de sesmaria, vale sempre repisar, se fazia sob con­
dição, pouco importando digam as cartas que o sesmeiro receberá a terra
«deste dia pera todo o sempre» linguagem usual nos velhos documentos, o
que daria a impressão de doação definitiva, ato perfeito e acabado.
Na verdade, porém, a concessão ficava subordinada a condição, obri­
gado o sesmeiro a aproveitar a gleba em prazo determinado, registrar a car­
ta, pedir confirmação de el-Rei, pagar um foro; mais tarde, demarcar,
etc., e faltando qualquer uma destas exigências, a doação caducava, ficava
sem efeito, «nullius momenti» — «faltando-se a isso, dar-se-ão (as terras)
como devolutas», segundo se lê em muitas cartas.

li
114 Costa Porto

Mas estas condições eram «resolutivas» — vale dizer, insatisfeitas, o


domínio se resolvia, desaparecia, deixava de existir, enquanto, cumpridas,
asseguravam o direito do sesmeiro à terra, e domínio que começava ex
tunc, isto é, da época da doação, e não ex nunc, isto é, do momento em
que foram cumpridas as exigências essenciais: recebida a data e preenchi­
das as condições resolutivas essenciais, o sesmeiro adquirir o domínio pleno
e definitivo da terra, da qual não podia mais ser despojado, salvo no caso
especialíssimo de ser, depois, o sítio necessário «para o serviço de S. M.,
igrejas, ou minas de metais» quando lhe seria tirado «sem remuneração al­
guma» (Doc. Hist. 2, pág. 49) ou «sem que porisso lhe fique obrigada a fa­
zenda real a satisfação alguma» (ib., 36).
Quando isto ocorria, porém, seria normal receber o sesmeiro compen­
sação noutra parte, «enchendo-se» de área equivalente, dada nas mesmas
condições.
Dominava, assim, esta regra: recebendo a data e satisfazendo as exi­
gências legais, o morador entrava no pleno domínio da terra e toda nova
doação teria de respeitar-lhe os direitos inauferíveis e sagrados.
De tal modo o princípio do respeito aos direitos de terceiros figurava
como «essencial» ao sistema que nos primeiros tempos, aparece, nas cartas,
como premissa inarticulada, pressuposto inarredável, intuito, elemento
«natural», a ponto de não ser preciso declará-lo: as cartas de datas, na ver­
dade, recordam, muitas vezes, certas exigências, mas não aludem, de mo­
do categórico, ao direito de terceiros, quando muito esclarecendo que a
concessão diz respeito a terras não quinhoadas.
Assim na carta a João de Sabanda, em 1542, limita-se Duarte Coelho
a dizer que a sesmaria será «no dito lugar, não sendo dada, e, sendo dada,
ao longo do rio» (Tombo, 151); a Gomes Correia: «no lugar do nascimento
do rio, não sendo dada, e, sendo dada no dito lugar, correrá adiante,
onde não for dada» (ib., 153); a D. Isabel: «no lugar onde faz menção...e
não for dada, não prejudicando a terceiros» (250); a João Batista, «sendo
caso que aonde pede não haja nenhuma terra, então tomará na derradeira
dádiva que até hoje não for dada» (ib., 345).
Outras vezes, a linguagem se mostra mais positiva: assim, no Regi­
mento de Tomé de Sousa manda-lhe el-Rei distribua de sesmaria «as ter­
ras...às pessoas quevo-los pedirem, não sendo já dadas»; doando, pelo al­
vará de 12 de março de 1562, umas terras a D. Álvaro da Costa, esclarece
el-Rei que «isto se entenderá não sendo as ditas terras...dadas a outras pes­
soas» (Documentos para a História do Açúcar, 162); doando, pela carta
régia de 23 de janeiro de 1973, uma sesmaria ao Governador Luis de Bri­
to, frisa o Soberano...«isto não sendo terras de que tenha feito mercê a ou­
tra alguma pessoa» (ib., 251).
De resto, não havia, então, porque cuidar mais detidamentc do
problema que, na prática, inexistia: a população se condensava na costa e,
antecipando as observações de Fr. Vicente e do autor dos «Diálogos», o
«Livro que da Rezão do Estado do Brasil», de 1612, já falava em que os
brancos viviam «ao longo da costa, mas hóspedes que povoadores» (pág.
í» ’

O Sistema Sesmarial no Brasil 115

114), adiantando, cquanto aos baianos, não haverem penetrado «seis léguas
' terra a dentro» (139).
Ora, pc"? — moradores
poucos ’ e sobrando terra, ninguém iria questionar so-
bre sesmaria,, t„. ’
todos sabiam o que já fora doado, tornando-se, por outro
lado, muito-- — _.l <saber
fácil ’ as terras distribuídas, através dos registos nos livros
competentes - em Pernambuco> no «Livro do Tombo e de datas de terras»
•nstitufdi
instituído por Duarte Coelho — e, depois de 1549, nos livros da Provedo-
ria.
Quando, a partir do século 17, começa a acentuar-se o povoamento,
as autoridades se mostram vigilantes, sendo frequentes, na Documentação
istonca, por exemplo, informações assim: «não se acha que estas terras,
e que os supplicantes fazem menção, serem (sic) dadas, como consta do ii. ■
livro das datas de sesmarias» (Doc. Hist., I, pág. XI); ou «revendo os livros i -
os registros das sesmarias e datas de terras... não consta estar registrada I
nenhuma com as confrontações que se declaram no requerimento»
1 ''^'Pág. 49); ou «de presente não há notícia de pessoa a quem perten­
ça» (ib., 79); ou «não consta haja data das terras que se pedem» (ib.,93).
outras vezes, exige-se comprovação de que as terras não foram distri-
uídas: «o escrivão da Fazenda informa pelo livro das datas se estão dadas
as terras» (ib., 1,11); ou informem os capitães-mores «se estas terras estão se se
acham devolutas» (ib.29); ou «por se evitarem litígios e prejuízos de tercei­
ros por não haverem (sic) hoje terras que não estejam dadas, principal­
mente no lugar que os suplicantes requerem,» diz-se em 2 de julho de
h
1749, «parece-me justo que o capitão-mor do distrito informe.. .se há terras de­
volutas no lugar requerido» (ib. 93), ressaltando-se, não raro, que a redistribui-
Ção somente poderia verificar-se, em caso de caducidade, pelo descumprimen-
f
to dalguma condição essencial: «não se podem dar por devolutas as terras que
fossem dadas a outrem, sem constar que as não aproveitam e ser findo o prazo
Que se deviam povoar na forma da lei», diz-se numa informação (ib., I, pág.
I
i i
16); «como as pessoas a quem foram dadas as terras...não procuraram confir­ !
mação de S. M... nem pagaram o foro.. .não se me oferece dúvida, em que se ha­
jam por devolutar» (ib., 41).

Por vezes ocorria que o titular da sesmaria desistia da data, mas, neste
caso, o abandono devia ser comprovado de maneira positiva: Quando
Domingos Bezerra Cavalcanti pede umas terras em Santo Antão, justifica
estarem abandonadas, juntando «o traslado do termo de deixação que fez Ig-
nácio da Cunha das ditas terras» (ib., II, 30); quando Francisco Falcão Ensera-
bodes pede terras no rio Sebiró, apresenta declaração em que Jerônimo Salga­
do, o sesmeiro anterior, desitira da concessão (ib., 235); noutra carta, alude-se
ao «bilhete que o suplicante apresentou», segundo o qual se mostrava «haver
delas desistido o dito Manuel Cavalcanti» (ib., 249).

Nos começos do século 18, sobretudo tratando-se de terras mais dis­


tantes, a concessão de sesmaria se cerca de formalidades mais objetivas,
determinando-se investigação mais acurada, através das Câmaras locais,
dos capitães-mores das vilas ou comarcas, freqilente lerem-se coisas assim:
116 Costa Porto

«mandei, por meu despacho, que o Capitão-Mor daquele distrito mandasse


pôr editais públicos e nas portas das Igrejas vizinhas para que, havendo
algumas pessoas que tenham datas ou sesmarias nas tais terras, as
apresentasse» (Doc. Hist., 2, pág. 34); ou «como da informação dos oficiais
da Camara... consta estarem devolutas as terras...se lhes deve conceder de
sesmaria» (ib., pág. 80); ou é fato «público e notório» não haverem as ter­
ras sido distribuídas (ib., 102); ou «mandamos afixar Edital na Matriz de
L Santo Antão da Mata e nos consta...que o edital estivera afixado nove dias
e que neles não fora pessoa alguma com dúvida, embargo ou contradição»
(ib., 144); ou «procedessem a editais, examinando se havia terceiro preju­
dicado» (ib., 165, etc.).
I
33 O CASO DOS PALMARES
Da importância- atribuída aos «direitos de terceiros» temos comprovação
eloqílente nos episódios das terras dos Palmares.
A vinda de escravos africanos para a Colónia é possível se tenha
iniciado com o regime donatarial e a fundação dos primeiros engenhos do
litoral, cujo desenvolvimento de tal modo forçou a importação do negro
que, nos fins do século 16, segundo os cálculos de Rio Branco, seu núme­
ro, em Pernambuco, seria igual ao de brancos e indígenas reunidos: para
oito mil brancos, dois mil índios mansos e dez mil negros da África (Hist.
Geral, 2, pág. 7, nota I).
Via de regra, o negro se mostrou acomodado, suportando o diabo nas
senzalas e nos eitos, mas não largando os engenhos e fazendas: com medo
do desconhecido, medo de bicho brabo, medo de índio, que gostava de
quebrar a cabeça de moleque perdido nas matas, segundo registra Pyrad
du Lavai.
r Alguns, porém, mais afoitos, acabaram largando-se pelo interior:
«fugidos ao rigor do cativeiro e fábricas dos engenhos», entregando-se ao
saque, à pilhagem, aos assassínios, fenômeno já usual nos fins do século 16,
pois, no Regimento de Francisco Giraldes, de 1588, alude el-Rei a que nas
costas nordestinas, «andam alguns negros de Guiné e Angola levantados»,
ordenando ao Governador se esforce «pelos haver à mão» (Doc. para a
Hist. do Açúcar, pág. 359).
Em 1591, justificando-se de não haver aproveitado uma sesmaria para
as bandas de Mussurepe, aponta Diogo Vaz, como causa maior, a presença
do «gentio inimigo» e de «angolas levantados», aludindo a «negros» de
Guiné que por tantas vezes o acometeram (Tombo, 338). Por sua vez, o
«Livro que dá Rezão do Estado», 1612, acentua que os índicos, «mimosos
e pouco práticos no uso de nossa obediência», costumavam, quando casti­
gados, fugir para as brenhas, «juntando-se com negros de Guiné» (ib.,
113).
Uma das mais famosas concentrações de negros fugidos foi a região da
Serra da Barriga, nas Alagoas, aproveitando os elementos naturais de defe­
sa contra a ação das autoridades — «pela aspereza das terras, falta de ca­
minhos» — que, mais do que tudo, os fortificavam.
O Sistema Sesmarial no Brasil 117

Quando começou a quilombo de Palmares não é possível determinar:


em 1694, o Governador Melo e Castro faia em que os negros ali se haviam
acastelado «há cento e tantos anos», enquanto Fernão Carrilho diz datava
a concentração de «há perto ou mais de cem anos», o que invalida a li­
ção do «notável escritor» — certamente Rocha Pita — citado por Pereira
da Costa, de que o ensardinhamento nos Palmares teria começado depois
de 1630, quando ali se reuniram uns 40 negros, aproveitando a
invasão holandesa.
Sua origem é mais recuada: já o «Livro que dá Rezão ao Estado» fala
num sítio «a 30 léguas do sertão», localizado «entre umas serras que se
chama Palmares, ao qual ordinariamente se recolhem, fugindo ao trabalho,
os escravos desta Capitania» (Pernambuco) (ib., 191), sabendo-se que uma
das tarefas do governador Diogo de Menezes, a partir de 1602, foi a tenta­
tiva de debelar o núcleo dos Palmares (Fr. Vicente, Hist. do Brasil, Prole-
gômenos de Capistrano, pág. 253).
A guerra holandesa terá servido para alargar o número de fugitivos,
cuja perigosidade, depois de ter despertado a atenção do flamengo — que
contra eles enviou duas expedições, em 1644 —, constituiu a preocupação
dos governadores lusitanos, um dos quais, Souto Maior, sem meios de levar
a empresa a bom termo, findou pedindo ajuda do Coronel Domingos Jorge
Velho, chefe de aguerrido troço de paulista, afeitos às lutas pelos sertões
do Piauí e que dali desceram para dirigir a luta contra a famosa «Tróia
Negra».
O convénio firmado entre Souto Maior e os paulistas incluía várias
cláusulas, entre as quais aquela em que o Governador se comprometia a
dar-lhes as terras ocupadas pelos negros: firmado em 3 de março de 1687,
ratificado e retificado por Montebelo, em 3L de — dezembro — 1691, foi o
------------ de
acordo aprovado por El-Rei, mas, no tocante à doação de terras, com a
seguinte ressalva, constante de parecer do Procurador da Coroa de que: «as
sesmarias se hão de dar com as cláusulas costumadas», centre as quais, na­
turalmente, o respeito a direitos de terceiros.
Vencidos os negros, quando os paulistas pediram o cumprimento da
condição, ao ... tomarem conhecimento
< da cláusula restritiva, não se confor­
maram, enviando a el-Rei, através do Procurador, Bento de Sorrel Cami-
glio, longo memorial, em que investem, de modo especial, contra os tais
«direitos de terceiros».
Se, dizem os reclamantes, quando firmaram o convénio, «se lhes
houvera proposto esta condição de clausulas acostumadas, eles não
haveriam despovoado aquelas que eles já tinham conquistadas com muito
trabalho...por estoutras com condições que podem cauzar embaraços»,
mesmo porque «se lhes houvera de passar sesmarias com essa cláusula, isso
não será dar-lhes terras aonde habitem pacificamente senão ocasião
pertetua de as conquistar segunda vez com mais risco ...porquanto nessa
Paragem do palmar não há palmo de terra que não tenha hum pretendido
dono», pelo «se não me dá» de quem as concedeu, não procurando «saber
como e adonde, se se deram ou não, se têm haveres e outras circunstân­
cias» (Ap. Ennes, As Guerras dos Palmares, 219).
118 Costa Porto

De resto, acrescentam, o problema de examinar direitos de terceiros


acabava sem objeto, servindo, apenas, para demorar a solução, pois,
mesmo houvesse donos das terras, «todos eles têm, pela lei das mesmas ses­
marias, perdido o direito de as possuir, pois deixarão de as povoar no tem­
po prefixo».
Chamado a opinar, o Procurador fá-lo com muito senso c
objetividade: critica o modo de distribuir sesmarias — acentuando que «é
certo...se tem dado mais terras das que se têm descoberto, porque os ho­
mens as pedem com largueza e, como estão incultas, e inhabitadas, se dão
com liberalidade, e os donatários não cumprem a condicão de se povoarem
no termo da lei» — mas, quanto ao mérito, entende não há como abrir
mão do respeito aos direitos de terceiros — mas àqueles direitos de quem-
«tiver sua data cultivada e povoada no termo da lei» —, repelindo, assim,
a pretensão dos paulistas, pois atendê-los com a amplitude pleiteada, seria
«obras com eles o que eles mesmos accusam nos outros a quem estão dadas»
visto como «é impossível que as povoem no termo da lei».
Pelo alvará de 12 de março de 1695, el-Rei procura resolver a
pendência, ordenando sejam as terras distribuídas com todos quantos aju­
daram na guerra —«precedendo sempre os paulistas» — devendo a distri­
buição ser feita pelo Governador, com assistência do Ouvidor, obedecidas
as normas costumeiras, sobretudo o respeito aos direitos dos anteriores do­
nos, inclusive dos que, tendo recebido sesmarias, e tendo-as cultivado, aca­
baram abandonando o local tangidos pela ameaça dos quilombos.
Domingos Jorge repele a solução, insistindo pelo cumprimento, puro e
simples, do convénio de 1684: acreditavam os paulistas, eis a síntese do seu
protesto, que, terminada a luta, «pelos seus merecimentos se lhes concede­
riam terras que, sem eles, não se negam a todos aquelas pessoas, as quais.
para as alcançar, não lhes custa mais que pedi-las». Acrescia que, na ver­
dade, tais «direitos de terceiros» não tinham nenhum sentido: os supostos
titulares haviam perdido as datas, pelas não haver cultivado, como ordena­
va a lei, não valendo alegar não o fizeram porque tiveram de largar a ter­
ra, ante a ameaça dos negros, pois se eles negros nunca as ocupariam nem
haveriam feito nelas seus covis, e, se os angolas ali se haviam estabelecido
tranqililamente, foi, exatamente, porque encontraram as terras «despovoa­
das e incultas».
Voltando a opinar, o Procurador da Fazenda o faz com o costume do
equilíbrio: a cláusula do «respeito aos direitos de terceiros» lhe parecia jus­
ta, porque, ao distribuir favores — e mesmo quando «passam de graças e
contratos» — sempre se entende que o Príncipe não pretende prejudicar
direitos adquiridos, tornando-se necessário, entretanto, examinar cada si­
tuação, para saber até onde tais direitos devem prevalecer: a) os que, rece­
bidas as terras, não as cultivaram no tempo hábil, não tinham nenhum di­
reito adquirido, pois a concessão fora condicional, caducando pelo inadim-
plemento da condição; b) sesmarias doadas, mas não confirmadas por el-
Rei, podiam, igualmente, ser declaradas sem efeito e, no caso concreto,
convinha o fossem, nenhum direito restando aos primitivos sesmeiros; c)
nos casos de «doação imódica de terras», a concessão devia considerar nu-
I

O Sistema Sesmarial no Brasil 119

la, pois seria impossível satisfazer a condição fundamental — aproveita­


mento em prazo determinado; d) os sesmeiros que não aproveitaram a ter­
ra, porque os negros o haviam impedido, poderiam ter as doações tornadas
sem efeito, mesmo não lhes cabendo culpa do inaproveitamento, levando-
se em conta que o bem público deve primar sobre o interesse particular; e)
quanto às datas «moderadas», cujos sesmeiros haviam aproveitado em par­
te ou em todo, abandonando-as por causa da pressão dos quilombos, seus ti­
tulares deviam ser repostos na posse, pois «por eles não esteve continuar a
cultura ou conservá-la».
Finalmente, insiste em que, pedindo toda a região — cerca de 1060
léguas de terras --, pleiteavam os paulistas área imoderada que, a toda
evidência, não poderiam explorar, ocupando «tanta imensidade de terra
no termo da lei».
A obra de Ennes não esclarece como findou a pendência, liquidada,
cremos, pela seguinte carta régia de 28 de janeiro de 1698: «Caitano de
!
Melo de Castro, amigo. Eu, El-Rei, vos envio muito saudar. Havendo visto
o que aqui se me apresentou por parte dos paulistas sobre a forma que se
deu (sic) as sesmarias. ..e atendendo às razões que se me offereceram e pro­
puseram a favor do Mestre de Campo Domingos Jorge Velho. Me pareceu
i'
mandar-vos declarar que, no sitio que ele nomear, se lhe deem seis léguas
de terra de sesmaria em quadro, e aos Capitães de Infantaria a cada um
duas léguas em quadro, e aos Alferes, a cada um, duas léguas em quadro,
c. a cada Sargento, uma légua em quadro...com declaração que a
repartição destas terras se entenda se tanto couber no sitio dos Palmares...
e quando não caiba no tal sítio, se diminuirá o menos que for possível...e
fazendo que as terras que se partirem se lhes deem com efeito e os metam
de posse, sem embargo de qualquer direito que outras pessoas, por antece­
dentes sesmarias, pretendam os quaes poderão requerer perante vós ou a
quem tocar, para que examinem seus títulos, (e) se tiverem direito, os
acomodem em outras terras equivalentes (Doc. Hist., I, pág. 232).
Somente neste caso foram postos à margem, parcialmente, direitos de
terceiros — direitos, de resto, discutíveis — mas se tratava de situação ex-
cepcional e, ainda assim, os primitivos titulares foram ressarcidos noutras
terras.

34 - AUDIÊNCIA DAS CÂMARAS

Ao longo do século 16, arrastando-se o povoamento, moroso, em


diminuta faixa costeira, tudo perto das sedes de governo, o problema da
distribuição do solo não oferecia dificuldades, nem dava margem a inci­
dentes: pequena a população, todos sabiam o que havia sido distribuído,
principalmente porque, depois do Governo Geral, as datas seriam registra­
das obrigatoriamente nos livros das Provedorias, sob pena de caducidade.
Quando, entretanto, a penetração se foi alongando, seria natural
surgissem complicações, envolvendo, de modo especial, «direitos de tercei­
ros»; é que sesmarias dadas longe da costa, no «sertão», nos confins das
capitanias, dificilmente seriam demarcadas — raro, mesmo, correspon-
120 Costa Porto

diam à medida fixada —, valendo notar que, muita vez, nem o pedido
nem as cartas cuidavam de determinar o tamanho da terra doada, proble­
ma, até os fins de 1600, de todo irrelevante.
Tomando-se o caso de Pernambuco, por exemplo, observa-se que as
primeiras doações foram feitas nos arredores de Olinda, pelas várzeas do
Beberibe e do Capibaribe, e, pela costa, rumo ao sul, para as bandas do
Cabo de Santo Agostinho abaixo, por onde se foi alastrando o canavial.
E distribuída uma sesmaria — de área nem sempre determinada —,
as datas subseqilentes tinham como ponto de partida a «testada» do solo
quinhoado, freqílentes, nas cartas, fixações assim: «quadro centas braças
de terra, onde são dadas a Gonçalo Mendes Leitam, pegado com o rio Ca­
pibaribe, da banda do Loeste com terra de Melchior Fernandes Maguari e
da banda do sul com Gonçalo Mendes Leitão» (Tombo, 150); «quinhentas
braças de terra em quadra, na testada da terra de Gonçalo Mendes Lei­
tão» (pág. 153); um pedaço de terra que está entre a Merueira pequena e
a Merueira grande (249); «umas terras desertas no sertão, por cima da ter­
ra nova e de umas terras do Governador André Vital de Negreiros» (Doc.
Hist., I, pág. 8), etc. Assim, quem viesse depois começaria a contar a ocu­
pação da última testada, cada um empurrando o mais recente e sem ne­
nhum inconveniente, porque havia lugar demais para todos.
À medida, porém, que se foram alargando o povoamento e ocupação
do solo as autoridades começaram a vigiar melhor a distribuição, pelo re­

a
ceio de doara terras já concedidas: daí uma série de medidas, todas visan­
do à maior segurança do morador e ao respeito dos direitos de terceiros.
Nas cartas até o começo do século 18, antes de deferir um pedido, a
autoridade, via de regra, ouvia o Provedor e o Procurador da Coroa,
constituindo quase um chavão este despacho interlocutório — «informe o
Provedor da Fazenda, ouvindo ao Procurador da Coroa».
Provedores e Procuradores, entretanto, moravam nas sedes de gover­
no, não lhes sendo fácil, assim, conhecer a situação das terras situadas pelo
Interior e daí porque, no século 18, começam a aparecer precauções
especiais, mandando-se como faz o Governador Pereira Tibão, em 1731,
«informe o Capitão-Mor...declarando a Capitania a que pertença estas ter­
ras, se estão vagas» (Doc. Hist., II, pág. 9); ou «mandei que informasse os
Capitães-Mores do distrito, declarando se estas terras se acham devolutas e
sem cultura» (ib., pág. 29); ou «mandei...que o Capitão-Mor daqueles distritos
mandasse por editais públicos, nas portas das igrejas vizinhas, para que haven­
do algumas pessoas que tenham datas ou sesmarias nas tais terras, as apresen­
tassem» (ib., 34); ou «mandei...informar o Senado da Câmara de Olinda», e
como os camareiros, distantes, nada pudessem esclarecer, «mandei informar o
juizpedâneo do distrito» (ib., pág. 69).
Quando a penetração atingiu pontos afastados, tudo isso, que se vinha
fazendo de acordo com praxes , hábitos, «estilos», passou a constituir ma­
téria legal: em informação de fevereiro de 1749, alude o escrivão da Fazen­
da à «real ordem de 21 de março de 1744, na qual dispõe S.M. como se
devem dar terras de sesmarias», acrescentando o Provedor que «uma das
cláusulas com que S.M. ultimamente, pela sua real ordem de 21 de março
O Sistema Sesmarial no Brasil 121

dle 1744, ordena se concedam sesmarias é que sejam ouvidas as Câmaras


d los sítios a que pertencem as ditas terras» (Doc. Hist., II, pág. 61), o que
*** repete depois, com ligeiro adendo: «por ordem de S.M. de 21 de março
díie 1744...é o dito senhor servido determinar que para se concederem ses-
nniarias de terras, nos sertões desta capitania, sejam ouvidas as câmaras dos
dHistritos a que pertencem» (ib., pág. 92).
Embora se tratasse de exigência que dificultava a distribuição — bu­
rocratizando e emperrando a concessão de datas, a audiência das Câmaras
como, antes, o dos capitães-mores ou dos juízes pedâneos —, revelava raro
ssenso de objetividade e realismo: ninguém melhor do que aquelas pessoas
• moradoras no local, ou nas vizinhanças, conhecia a situação das terras —
:se haviam sido dadas, se o beneficiário as estava cultivando como mandava
■a lei, o que tinha importância fundamental no processo sesmarial.
Doar solo já quinhoado podia, com frequência, suscitar questões e daí
a prudência dos concedentes, que procuram deixar tudo muito esclarecido:
em 1732, por exemplo, Domingos Bezerra Cavalcanti pede terras «nas tes­
tadas do engenho das Laranjeiras e mata de Santo Antão», havendo o Go-
'emador Tibão ordenado ao capitão-mor daquele distrito informassem se
se tratava de terras devolutas: «segundo o narrado na petição», e em face
dos esclarecimentos prestados, concluiu o Procurador da Fazenda que as
teferidas terras haviam sido «dadas a outrem que as não cultivou», e, neste
easo, opina declare o pretendente «sabendo, a quem foi este a quem se de­
ram ou quem sejam seus herdeiros para... se mandarem citar em suas pes­
soas para que venham alegar as razões que tiveram» e, ignorados os dona­
tários primitivos, «deve preceder citaçao
citação por editais de 30 dias na forma da
mesma lei» (Doc. Hist., 2, pág. 29).
E porque o que interessava era haver segurança, muitas vezes se recor­
ria a processos mais sumários, porém convincentes: em 1749, o Governador
de Pernambuco concedeu uma sesmaria a uns moradores, com apoio em
■assignado» de moradores idóneos que atestam saberem, de ciência própia,
haver terras sem dono, em condições, portanto, de serem distribuídas (ib.,

35 LIMITES À APROPRIAÇÃO PRIVADA.

A audiência das Câmaras — e também dos capitães-mores, de juízes


pedâneos, por vezes o pronunciamento de pessoas idóneas —, visando em
primeiro lugar a esclarecer se as terras estavam inaproveitadas, ou se, da­
das de sesmaria, o morador não as havia cultivado no termo da lei,
tomando-se «devolutas» — trazia a terreiro, ao mesmo tempo, outro ângu­
lo relevante da prática do sistema — e de porções do solo que se não
podiam distribuir.
É que a simples leitura das cartas de doação e dos forais, bem como
da legislação esparsa, até começos do século 18, pode gerar, no observador
a idéia de que todas as terras da Conquista podiam ser dadas de sesmaria,
o que, entretanto, não é verdadeiro, em que pese aquele preceito amplo
122 Costa Porto

das cartas dos donatários, em que, como na de Duarte Coelho se lê: «Item
prymeiramente o capitam da dita capitania e seus sucessores daram a
repartyram todas as terras delia desesmarya a quaesquer pessoas», etc.
«Todas as terras», diz o diploma régio, mas como força de expressão:
havia porções de solo indistribuíveis, insusceptíveis de apropriação de pri­
vados, não, a princípio, por força de lei, mas de costumes, de praxes, de
normas inarticuladas, resultantes da própria mentalidade dominante, na
maneira de conceituar o primado do «social», do coletivo.
A própria legislação geral — as «ordenações» — abria uma exceção,
vedando distribuir o solo «reservado» e «coutado», hipótese, entretanto, pe­
culiar ao Reino, onde permaneciam os resíduos e formas vestigiais do feu­
dalismo e da organização político-social expressa em termos dc castelos, ci­
dades, sedes episcopais e abadias: como mostra Herculano — possivelmen­
te o melhor analista da evolução histórica da Península — , «um dos incen­
tivos para atrair a população era convertê-los em asilo de culpados;».
Por outro lado, a legislação e os costumes atribuíam a domínios de
nobres e de eclesiásticos — castelos, abadias, mosteiros, <etc. — privilégios
largos — de couto e homizio — não entrando neles; «juridições nem
alçadas civis», de tal sorte que tais territórios se tornavam imunes ao po­
der, civil, gozando de regalias imensas, que o lento fortalecimento do po­
der real não logrou de todo liquidar.
Encontrando esta série de «direitos adquiridos», as Ordenações
respeitavam-nos e daí a regra de que terras «reservadas» e «coutadas» se­
riam insusceptíveis de distribuição, mesmo quando inaproveitadas, porque
sua situação obedecia a princípios jurídicos especiais, um «ius singulare»,
fora das restrições do «ius commune».
Na Colónia, este quadro inexistia: vindo da luta contra o feudalismo,
não iria a Coroa galvanizá-lo na conquista americana, quando, na Europa,
o regime dos feudos entrara em declínio, apenas respeitadas as situações já
definitivamente estabelecidas e daí porque, não havendo, no Brasil, solo
«reservado» e «coutado», seria de concluir pudessem e devessem todas as
terras ser distribuídas entre os moradores, nos termos do mandamento am­
plo das cartas e forais dos donatários.
A verdade, porém, é que havia porções de solo indistribuíveis, embora
a lei silenciasse a respeito.
Na repartição de sesmarias, por exemplo, observa-se ai linha inflexível
da mentalidade romana do respeito à «servidão de passagem»,
assegurando-se ao morador trânsito fácil, donde o cuidado cm conservar os
caminhos, as estradas, as praias, as margens dos rios navegáveis.
Estradas são cousas sagradas, públicas, insusceptíveis de apropriação,
os demarcadores parando, quando se lhes oferecia um caminho público —
«o caminho do carro», «onde se acabou a terra por amor de caminho do
carro» (Tombo, 30) —, e em todas as cartas o que logo se acentua é a
obrigação de «pelas ditas terras dar caminhos livres ao conselho para
fontes, pontes e pedreiras. (Doc. Hist., I, 5), linguagem que topamos inva­
riavelmente nas datas: no pedido de 326 palmos de terra, nos Afogados, a
O Sistema Sesmarial no Brasil 123

Câmara do Recife sugere não se dêem mais de 150 palmos de fundo, «para
não prejudicar a servidão pública do rio que deve prevalecer à utilidade
particular» (ib. 2, pág. 90). É que margens do rio eram também
inapropriáveis: «se for à margem de algum rio caudaloso, que careça de
barco para se passar, ficará reservada de uma margem dele meia légua pa­
ra serventia pública» (ib., 105).
A doação de terras, muita vez, é feita sob condição de se reservarem
áreas «para as Igrejas ou vilas, minas de metais, estradas públicas e
logradouros» (Doc. Hist., I, pág. 24).
Nos aglomerados humanos, os moradores precisavam ter franco o
acesso às matas, para tirar madeira e lenha, às fontes e pedreiras, às pon­
tes sobre os rios, às praias, à terra para campáscuo, etc., e, assim, nas
cartas, recebendo o domínio pleno sobre a terra, sobre «todas as suas
águas, campos, matas, testadas, logradouros e mais úteis que nela se
acharem», ficava o morador sujeito a condição de «dar pelas ditas terras
caminhos livres ao Conselho para fontes, pontes e pedreiras» — caminhos,
evidentemente, destinados não ao Conselho, como pessoa moral, mas aos
moradores.
Para os aglomerados humanos, concentrados nas «povoações» e vilas,
predominava o empenho de reservar comodidades, áreas para utilização
em comum, expressivas, neste particular, as limitações constantes do foral
de Olinda, de 12 de março de 1537: a vila recebera área vasta — desde os
limites de Igarassu até o Capibaribe, o «Rio dos Cedros» (Anais, V. pág.
127) — muita coisa, entretanto, não constituindo propriamente património
do Conselho, mas «serventia» do povo — «as várzeas das vacas» e «do Be-
beribe» para serem utilizadas pelos «que não têm onde pastem seus gados»;
«a ribeira do mar dos Arrecifes dos Navios... tudo será para serviço da vil-
la e povo, reservado que se não pode dar a pessoa alguma», o mesmo suce­
dendo com o trecho até o Rio Doce — chamado «Paratibe» — descendo
do «montinho até o Varadouro da Galeota», deveria ficar uma rua «para
serventia do povo, de que se possa servir de carros»; «todas as fontes e ri­
beiros...são para o serviço do povo; fa-la-á o povo alimpar e corregir às
suas custas».
Talvez por força da lei de 21 de março de 1744 — «na qual dispõe
S.M. como se devem dar terras de sesmaria» —, limitara-se a área de
datas «nos caminhos de minas, ou margens de rios caudalosos, que necessi­
tem de barca para se atravessar» (Doc. Hist., II, pág. 61) e em despacho
de 20 de junho de 1732, o Governador Tibão, concedendo uma sesmaria,
declara «ficam reservadas terras para Igrejas ou vilas, Minas de metais,
praias, estradas públicas e logradouros» (ib., pág. 24).
Restrições, essas, tendo em vista o interesse coletivo, do povo da co­
munidade.
Outras vezes, proteção a determinados grupos, como foi o caso dos
silvícolas.
A tradição republicana da defesa das terras de indígenas tem raízes na
Colónia. No começo da colonização, o problema inexistia, porque o
124 Costa Porto

selvagem, em gerai nómade, não fazia agricultura, vivia mudando de pou­


so, a maioria em luta com o branco, que, tomando pé na conquista, lhe
arrebatava o solo para ele sem nenhum alcance e maior utilidade prática.
À medida, poreríi, que o índio se foi domesticando e convertendo —
graças, principalmente, à catequese dos jesuítas —, surgiu a política de
«aldeá-los», deixando-os em povoações exclusivas, com terreno suficiente
para cultivar a terra, para viver à maneira do colonizador, em sociedade
organizada. Já no Regimento de Tomé de Sousa, traçava D. João III as
linhas iniciais da política oficial de relação ao selvagem: contra os
Tupinambás, responsáveis pela morte do primeiro donatário, devia agir
«com muyto riguor», para servir de exemplo às tribus amigas, que estavam
«esperando pera ver o castigue que se dá aos que primeiro fizerem os ditos
danos»; quanto, porém, aos índios amigos, devia atraí-los, tratá-los bem,
dar-lhes terras onde se acomodassem, e «não possam fazer o que não de­
vem», adotada, porém, a cautela de «confiar, desconfiando», porque «não
é rezão que vos fieis deles tanto que se possa seguir algum mor recado».
A fim de evitar que, em contacto com os índios pagãos, lhes copias­
sem os maus costumes, manda o Soberano que «os que forem cristãos mo­
rem juntos, perto das povoações das ditas capitanias, para que conversem
com os cristãos e não com os gentios», e mais tarde, o alvará de 21 de
agosto de 1578 ordena ao Governador Geral reparta os indígenas, descidos
do sertão, «em aldeias junto às ditas fazendas», dando-lhes terras «para
comodamente fazerem suas lavouras e se manterem (Doc. para a Hist. do
Açúcar, 321), o que se repete no Regimento de Giraldes, de 1588.
Tomando aos jesuítas o controle da catequese do indígena, Pombal
teria adotado política ainda mais rígida em defesa dos aldeamentos, que se
deveriam localizar o mais possível perto das povoações de brancos, dando-
se-lhes preferência na distribuição do solo, como o insinua um processo de
fins de 1759: havendo um morador pedido terras «no sertão de Panema»,
o Sargento-Mor, Jerônimo Mendes de Pais, respondendo à indagação sobre
se o terreno interessava aos indígenas, esclarece que, segundo colhera dos
índios de Águas Belas, estava o sítio pedido «em tal distância que julgo
não ser de utilidade alguma», devendo-se, todavia, ressaltar a condição
«que ordinariamente se costuma expressar em semelhantes datas», isto é,
«sem prejuízo de terceiro, pela qual condição especialmente se entendem
os índios, como senhores originais, como o tem declarado S. M.» (Doc.
Hist., 2, pág. 166).
Ainda em favor dos indivíduos, isolados ou em grupos, é outra medi­
da, de 1753: entre cada sesmaria deve mediar uma légua de terra «para
logradouro de hereos e confinantes», como se diz em parecer do tempo
(Doc. Hist., 2, pág 222).
Tal exigência, na fase em que o povoamento se tornara intenso, soa
estranho, sobretudo porque não se fazia distinção das zonas: e se, no ser­
tão, sua aplicação rigorosa não traria muito incómodo, tornava-se, entre­
tanto, pesada no litoral, já quase saturado de moradores, onde, pois, dei­
xar tanta terra sem apropriação individual de certo acarretaria
desvantagens práticas.
O Sistema Sesmarial no Brasil 125

E algumas autoridades sentiam o desaso da medida, procurando


amenizar-lhe o rigor: quando, em 1770, em pedido de terras em Ipojuca,
o escrivão lembra a exigência legal, o Procurador da Coroa opina com
muito bom senso: «quanto à légua que deve mediar para logradouro, acho i
que esta só se deve conceder em partes mais remotas e de menos povoação,
onde há muito mais campos devolutos e de menos valor; nos lugares,
porém, próximos a esta praça, onde as terras mais valem e são mais povoa­
das, deve-se esta aproveitar melhor, nem também há por aqui tanta neces­
sidade de haver a dita légua para logradouros, como há no sertão, porque
cá não criam gados, os quais por lá se criam para logradouros dos quais é
que S. M. prudentemente achou ser precisa a dita légua, e para separação |
de uns e outros hereos de todas as sesmarias próximas a esta praça parece
que basta mediar meio quarto de uma légua» (Doc. His., 2, pág. 212).
De resto, parece que a exigência demorou pouco: comum nas cartas
até 1776, daí em diante não a vemos mais na Documentação Histórica, si­
nal, talvez, de ter entrado em desuso, ou sido abolida expressamente.

■>

36 AS TERRAS DAS VILAS

Entre as faculdades atribuídas aos capitães-donatários figurava a de


que «possam fazer vilas todas e quaisquer povoações que...lhes a eles
parecer que o devem ser»...«ao longo da costa...e dos rios que se navega­
rem», mediando, quanto às localizadas «pelo sertão», um «espaço de seis
léguas de uma a outra, para que se possam ficar ao menos três léguas de *
terra de termo a cada uma das ditas vilas», no fundo a implantação do
«municipalismo», herdado da melhor tradição romana e, mais tarde, de
Península Ibérica.
Ao contrário do mundo oriental, dominado pela tônica da Brasiléia,
— territórios imensos servindo de fulcro material ao Estado —, os
romanos, neste ponto copiando o modelo da Polis grega, fazem da URBS
— Roma — o embasamento da vida estatal. Fundamentalmente, o que
conta, nas origens, é o velho Septimontium, é a URBS Quadrata, o minús­
culo aglomerado romúleo e, mesmo quando se opera o espraiamento pelo
vale do Pó, na conquista do «solo itálico», prevalece a marca não apenas
da «latinidade», mas do «romanidade»; afinal, senhora do mundo conheci­
do — na República, no Principado e no Império, a organização romana
lembra uma «constelação» de núcleos, com maior ou menor individualiza­
ção, tendo como cabeça e centro de convergência a Cidade, a exemplo da I 1
Grécia, fenômeno, de resto, usual na época: falando da Cidade Antiga, na « !
verdade Fustel de Coulanges o que nos conta é a história do Estado i
Antigo...
Os maiores e mais inteligentes «povos imperialistas» de todos os
tempos, os romanos, antes de tudo Sabiam ser imperialistas-, conquistando
novas terras, ditando aos moradores as condições do «mais forte», eram de
habilidade extrema no tratamento aos vencidos, a quem permitiam conser­
var os costumes, língua, credos, etc., reconhecendo-lhes certa «autonomia»
126 Costa Porto

— «autogoverno», «autodeterminação» —, concedendo-lhes, em maior ou


menor amplitude, os direitos de «cidadania», procurando, assim, amenizar
a sujeição.
E, dentro nesta linha sutil de envolvimento, não seria raro outorgarem
às comunidades submetidas ao jugo romano o cobiçado título de
Municipia, que traduzindo, em si mesmo, «mais um conjunto de obriga­
ções e encargos — de Munus — lhes proporcionava, entretanto, vantagens
sobre tudo «políticas», de vulto, tendo «governo próprio», local «compos-
sui» a Cúria, ou Ordo Decurionum — decalque, embora tosco e acham-
boado, do Senado de Roma.
Sem dúvida, a «despotéia» desbordada do absolutismo dos Césares
acabaria erosando o papel destas Cúrias, que. nos fins do Império, não
passam de instituições quase simbólicas, letra morta, sem conteúdo nem
substância íntima.
Viria, porém, seguir a invasão dos bárbaros que, acarretando o esfa­
celamento do vasto Império construído pelas imbatíveis «águias romanas»,
iria modificar a estrutura européia, com o surgimento de vários «reinos»
dos quais resultariam os Estados independentes de nossos dias.
Em regra, quando ocorre o choque de duas civilizações, de duas «cul­
turas», de dois grupos que se digladiam e entredevoram, se o mais forte,
materialmente, domina o mais frágil, acabará, se ma is atrasado
socialmente, recebendo-lhe a influência hipertrofiadora. Desta sorte, as-
sim, como Roma, abatendo a Grécia, findou deixando-se influir pela «cul­
tura» helénica, também os bárbaros acabariam liquidando o poderio roma­
no, copiando-lhe o direito, a língua, os costumes, a «política», e, daí, per­
manecer, na quadra ainda magmática e larvar da formação dos novos Es­
tados dos conquistadores, a praxe do municipalismo.
Aniquilado, porém, o absolutismo cesáreo, a vida das novas realidades
estatais européias assinalará paisagem peculiar e dantes ignorada: os reis
ou Príncipes, da linguagem de Maquiavel, exercem poderes limitadíssimos,
pois a força verdadeira e eficiente quem a possui são alguns potentados do
tempo — os barões dos castelos feudais, os Bispos, os abades e Priores de
Mosteiros — uma galáxia vastíssima de ilhas estanques, autónomas, quase
«soberanas», funcionando os Monarcas a modos de «prisioneiros de Zen-
da», figurando, quando muito, como «primi inter pares».
O comando, desapoderado, dos onipotentes barões e prelados, se
constituía um freio à autoridade dos tronos, pesava, de modo especial, so­
bre as comunidades européias da época, atuando como elemento libertici-
da das garantias individuais, sufocadas sob o tecto de chumbo da despotéia
feudal e daí o esforço da população asfixiada em fugir à manopla constri­
tora. agrupando-se em núcleos urbanos — as Cidades —, cujos habitantes
— os Burgueses, moradores do Burgos medievais — poderiam respirar, de­
safogados, pois ali morria o domínio inaturável da opressão dos castelos.
Iniciada, afinal, a batalha das Monarquias no sentido de firmar a «so­
berania interna», esmagando a empáfia do feudalismo, seria comum, então,
cuidarem os Monarcas — buscando acaudilhar aliados e amigos — de libe-
O Sistema Sesmarial no Brasil 127

ralizar o título de Cidade a estes núcleos que se multiplicavam acentuando-


se a marcha «munipalista» romana, agora com uma tônica singular: se,
dantes, o município traduzia idéia de encargos, deveres, obrigações Munus
agora a cidade — «oásis da liberdade —, significava mais um elenco de re­
galias e privilégios, um dos quais o autogoverno, administração própria, a
revitalização do espírito local.
Depois, entretanto, de haver, com respaldo na cidade, ou Município,
esbarrondado os alicerces do feudalismo, a realeza, sempre em ascensão,
acaba voltando-se contra as «cidades», assinalando o século 15 o pleno
prestígio dos tronos, quando Luís XI, da França, consegue esmagar Car­
los, o Temerário — vencido e morto na batalha de Nancy, de 6 de janeiro
de 1477.
E a partir de então, o que vemos é a consolidação da Coroa, o
absolutismo régio, com Carlos V, na Espanha e Áustria, com Francisco I,
na França, com Frederico, o Grande, na Alemanha, com Catarina II, na
Rússia, e na Inglaterra com Cromwell, o «terror dos reis», mas, de ne­
nhum modo, um restaurador da vida dos municípios.
Surgia, desta sorte, a terceira etapa na marcha da evolução estatal: e
vez da «cidade», como no mundo antigo, ou dos «feudos», como na Idade
Média, o fundamento do Estado passa a ser a «nação».
Portugal, erigido em Reino autónomo quando, depois de vencer os
castelhanos em Campo de Ourique, D. Afonso Henriques foi aclamado rei
em 1140, seguirá a mesma linha dos mais reinos europeus.
Para fazer face ao espanhol e alijar o sarraceno do continente, o trono
levará muito tempo apoiando-se na força do feudalismo, cujo declínio, en­
tretanto, fomenta, fomentando a reação dos «burgueses» contra os castelos,
estimulando a formação e a autonomia dos municípios; mas, uma vez
afastada a ameaça dos barões feudais, volta-se contra a vida municipal, a
pouco e pouco amesquinhada ante a crescente hipertrofia dos monarcas
absolutos, de sorte que, no século 16, quando se começa a colonizar o Bra­
sil, a idéia de município aparece diluída, esfumada, adelgaçada e enfra­
quecida: permanecem, é certo, a denominação, o sistema, o processo «mu-
nicipalista», mas tudp quase como abstração, pois a realidade onímoda e
onicompreensiva pode-se dizer é a autoridade absoluta e hipertrofiadora da
Coroa.
Transplantadas para a Conquista as praxes metropolitanas, também
no Brasil vigora o sistema municipalista, aqui, igualmente, fenômeno
fundamentalmente urbano — vários moradores reunidos em casario com
certa contiguidade e sentido de conjunto — e cujas manifestações práticas
e materiais seriam a povoação, a vila e a cidade, cada uma com mecanis­
mo peculiar.
A «povoação», na Colónia, se apresenta como fenômeno espontâneo,
fato material de se agruparem algumas famílias em residências — fogos —
com certa contiguidade e unidade formal, mas sem nenhuma interferência
do Estado. O que forma a povoação, são os moradores e mais nada.
128 Costa Porto

Já as vilas aparecem como fruto da ação do poder público, criação li­


bérrima dos donatários, nos termos claros das cartas de doação: «outrosy
me praz que o dito capitam governador e seus sobçesores posam per sy fa­
zer vilas todas e quaesquer povoações que...lhe a elles parecer que o
deuem ser, as quaes se chamaram villas... e teram termo e jurdyçam lybar-
dades e jnsinjas de villas segundo foro e costume de meus Reynos», etc.
Naturalmente a vila supunha, em regra, a preexistência da
«povoação», mas não havia nenhuma exigência legal a que o donatário se
devesse prender no exercício de suas faculdades amplas: quando, em 1593.
Jorge de Albuquerque doou umas terras aos beneditinos de Olinda, para as
bandas do «rio do Estremo» (7), na escritura de doação estabeleceu que to­
da.. .povoação de cem moradores para sima hey por que se chame vila...
mas nam se chamará villa enquanto não tiver feyto mosteiro» (Tombo, 25)
— exigências, entretanto, de arbítrio do capitão, livre para elevar povoa­
ções a vilas, de acordo com os princípios expressos das cartas de doação.
A criação de uma cidade oferecia maiores dificuldades.
Na tradição romano-ibérica, a cidade reclamava terras próprias, não
tributárias, e como, na Colónia o solo estava sujeito à jurisdição espiritual
da Ordem de Cristo, seria imprescindível ato de el-Rei ou do Papa, que­
brando os vínculos que lhe submetiam a área da sede ao controle da
Milícia, o que ocorria, por exemplo, quando se criava uma diocese, pois,
«nobres de primeira grandeza», os Bispos somente podiam residir em terras
alodiais.
Livres para elevar a vilas «quaisquer povoações», os donatários, ao fa-
zêlo, deviam assinar-lhes um «termo» área de jurisdição —, costumando
conceder-lhe, ainda, um património fundiário, geralmente concretizado no
«foral».
O «foral», na antiga linguagem, tinha três sentidos principais: o «foral
dos municípios», espécie de carta constitucional, em que se fixavam os di­
reitos e privilégios dos moradores — tipo que não conhecemos na Colónia;
o foral dos donatários, mas uma espécie de código tributário», determinan­
do os «direitos, foros e trebutos e cousas que se na dita terra hão de pagar
asy do que a mym e à coroa de meus rcgnos pertencerem como do que
pertencerem ao dito capitam», como se diz no de Duarte Coelho; final­
mente, o «foral das vilas» — mais uma escritura de doação de terras e de
que é exemplo sugestivo o de Olinda, de 12 de março de 1537.
Esta porção de solo — «que chamamos aqui terras do Conselho e, por
outro nome, rossio da Vila», como se lê num documento da Câmara de
Paulo (Ap. Enes, dois paulistas insignes, pág. 206) — não podia, destinada

(7) — «Aquellc rio do Extremo junto ao cabo de Santo Agostinho cm que assim a se fala
nflo é hoje conhecido pelo nome, mas devemos advertir que he o que agora se chama rio da
Jangada». «Há muitos poucos sujeitos nesta capitania que possam hoje dar notícias...do rio do
Extremo em que assima se fala. Para memória dos vindouros declaramos que o Rio do Extre­
mo é aquele que hoje se chama Porto da Jangada», diz a Crónica do Mosteiro (Rev. do Inst.
XXXV, pags. 23 e 35).
O Sistema Sesmarial no Brasil 129

que era ao uso comum, ser distribuída de sesmaria, ou a qualquer outro


título, figurando como «bem público», do Código Civil; e quando alguma
autoridade, desavisadamente, procurava cedê-las a privados, surgiam re­
clamações, como ocorreu em São Paulo, enfatizando os camareiros não era
possível a doação, com base no livro LV, título 43, § 10 das Ordenações,
«por ser em prejuízo notável do comum proveito».
Em regra, o Senado da Câmara da Vila separava o património fun­
diário em duas partes: uma aforada ou dada em enfiteuse, proporcionando
recursos financeiros à administração local, e outra insusceptível de apro­
priação privada porque considerada «de utilidade pública, em proveito co­
mum da vila, para madeira, lenha, canas e cipós, onde todos mandam
buscar como mato destinado ao bem comum».
De resto, esta preocupação pelo «bem comum» seria uma constante na
mentalidade do tempo, indo além da área de propriedade direta das Vilas,
usual, nas cartas de data, a ressalva de que, recebendo o solo de sesmaria
ficava o morador «obrigado a dar, pelas ditas terras, caminhos livres ao
Conselho para fontes, pontes e pedreiras».
E tamanha a importância atribuída ao urbanismo que, surgindo uma
vila em terras de particulares, deviam estes ceder a área necessária, sendo
compensado com faixa equivalente noutro lugar, imposição, esclarece o
autor da «Memória sobre as sesmarias da Bahia, da carta régia de 19 de
maio de 1792, mas, ao menos como praxe, vindo de tempo mais recuado:
de fato, confirmando uma data, declarava el-Rei, em 1719, que «se for
servido mandar fundar no distrito dela alguma vila, o poderei fazer» (Doc.
Hist., 1.253).

37 TERRAS DO INTERESSE DA COROA.

Pelo menos a partir dos fins do século 17, aparece outra limitação:
não se podiam distribuir «terras do interesse da Fazenda», divergindo os
autores quanto ao fundamento da restrição; para uns a carta régia de 12
de novembro de 1698 e segundo outros, a carta de 20 de janeiro de 1699
— confusão de fácil deslinde, atentando em que os dois diplomas tratam
de assuntos diversos, a carta de 1698 regulando, de modo especial, os cha­
mados «terrenos de marinha», enquanto a de janeiro de 1699 trata, generi­
camente, de quaisquer outras terras que interessem à Fazenda.

Terras de marinha

O caso das «terras de marinha» começa a agravar-se em meados do


século 17 e sua história pode resumir-se em poucas palavras. Nos começos
do povoamento, sobrando em toda parte terra firme — aproveitável em la­
voura ou para edificações, — evidentemente ninguém iria pedir o solo vizi­
nho do mar, alagadiço, coberto pela maré, imprestável para agricultura, e
reclamando, para construção, serviços pesados de aterro, de drenagem, de
consolidação.
130 Costa Porto

Por outro lado, as primeiras vilas e povoações não se instalavam perto


demais das praias: vizinhas do mar, sem dúvida — por força do sentido co­
lonialista da economia do tempo em que se produzia para exportar,
dominando tudo o «sentido atlântico» de nossa formação, presa a Colónia
ao fascínio da Metrópole, donde lhe vinha tudo —, mas longe dos embar­
cadouros e da costa o suficiente para evitar os ataques de piratas e flibus­
teiros, que rondavam o litoral.
Nos primeiros tempos, não vemos pedidos de terras na praia, mas ma­
rés, cuja utilidade, entretanto, se afirmava sob outros ângulos: cobertas de
vegetação típica — os «mangues» — parecidos, lembra Cardim, «com sal­
gueiros ou sinceiros» — e com muitas variedades, apontadas em Gabriel
Soares — forneciam lenha para fogões e fornalhas, madeira para constru­
ções, enquanto a casca alimentava multidão de crustáceos — o siri, o ca­
ranguejo — o melhor complemento da dieta da gente pobre, e esta diversi­
dade de utilizações desde cedo provocou frequentes conflitos, reclamando
os donos de engenhos contra a dizimação levada a cabo pelos moradores
na extração da lenha e da madeira para casos e fogões, e, reclamando, so­
bretudo, a população pobre contra os donos de cortumes que retiravam as
cascas dos «mangues», ricas em tanino, para a indústria rudimentar dos
curtumes, pois, sem casca, a vegetação definhava, diminuindo, assim a
fauna dos crustáceos, de que se alimentavam.
A fim de garantir a utilização que mais lhes interessava, alguns mora­
dores começaram a pedir as terras de mangues que se lhes distribuíam não
de sesmaria, mas em aforamento, através das Câmaras locais: é que, em
regra, tais áreas se localizavam em terrenos doados às primitivas vilas,
como sucedia no Recife, por exemplo, cujos mangues — quando nada até
o Rio dos Cedros, o Capibaribe —, faziam parte do património outorgado a
Olinda no foral de 1537.

E quando estranhos se queriam utilizar da fartura da flora nativa,


surgiam os incidentes. Um deles, o primeiro que conhecemos, ocorreu em
1677, com a Companhia de Jesus, que obteve, do administrador eclesiásti­
co do Rio de Janeiro a proibição, sob pena de excomunhão, continuassem
os moradores explorando uns mangues, de que se dizia senhora e possuido­
ra, e «dos quais se fazem madeiras para casas e se provia de lenha toda es­
sa cidade e alguns engenhos que ficam à beira do mar e também os navios
para suas viagens», o que levou a Câmara a oficiar a el-Rei, pedindo pro­
vidências, havendo o Soberano, pela carta de 4 de outubro de 1678, orde­
nado ao Governador Lobo assegurasse aos moradores «a posse em que es­
tão de cortarem os mangues», levando em conta que «estes são de minha
regalia, por nascerem em salgado, onde só chega o mar com a enchente».
Dois aspectos relevantes subjazem na carta de 1678: o que se deve
entender por «terreno de marinha» — «o salgado onde só chega o mar
com a enchente» — e quem tinha faculdade para distribuí-los — «são de
minha regalia», somente a Coroa tendo poderes para dar-lhes destino.
I

di

O Sistema Sesmarial no Brasil 131

Até então, é possível prevalecesse como norma aquele princípio que


vemos consignado num pedido dos Religiosos de N. S. do Carmo do Reci­
fe, de fevereiro de 1694: «que o salgado seja dos possuidores das terras», e,
desta sorte, quem recebesse o solo firme possuiria também os mangues, o
trecho «onde a maré descobre» (Doc. Hist. I. pág. 36).
Nos fins do século 17, porém, começa a tomar corpo, como orienta­
ção geral, a norma seguida de relação aos mangues do Rio de Janeiro,
reclamados pelos jesuítas: «regalia real», somente podiam ser distribuídos
de sesmaria mediante autorização do Soberano.
Data, parece, de 1698, o primeiro disciplinamento geral da matéria.
Em carta de 31 de janeiro, el-Rei indagara do Provedor da Bahia se «junto
à marinha e às praias da cidade havia alguns sítios dados de aforamento
.«■
pelos oficiais de Câmara, ou de sesmaria pelos governadores», mandando
informasse «os donos que se podia seguir à defesa da praça» e, natural­
mente ante informação positiva manda, em carta de 22 de março, se escla­
reça «se os foreiros fizeram edifícios com faculdade do governador ou afo­
ramento da Câmara: proibindo se façam novas concessões, principalmente
«seguindo-se delas prejuízos ao bem público».

Com certeza, as informações prestadas diriam o que vinha sendo nor­


ma: tanto os governadores davam terras de sesmaria, como as Câmaras lo­
cais as arrendavam, fato tanto mais normal quanto nada havia regulando a
espécie. E terá sido então que el-Rei baixou a carta régia de 12 de novembro de
1698, firmando o princípio definitivo: terras de marinha constituíram regalia
do trono e somente podiam ser distribuídas mediante autorização do Soberano.

Os abusos, entretanto, continuavam, talvez pelo desconhecimento da


carta de novembro de 1698 e, em 20 de maio de 1710, o Provedor da Fa­
zenda do Rio de Janeiro representou ao Soberano contra as muitas edifica­
ções privadas, nas marinhas e praias da Cidade, adiantando que, tendo
notificado aos interessados as demolissem ou assinassem termo de
responsabilidade— isentando a Fazenda de qualquer indenização se o ser­
viço público exigisse— recorreram as partes ao Senado da Câmara,
havendo-lhe os camareiros enviado «um precatório, para que não impedis­
se o fabricarem-se as ditas casas porquanto era data sua».
Embora entendesse que «as sesmarias nunca deviam compreender a
marinha, que sempre devia estar desimpedida para qualquer incidente do
serviço» de el-Rei— O Provedor esclarece haver suspendido a ordem «para
evitar contendas», submetendo o caso à decisão superior. Pede, então, o
Soberano informações ao Governador Castro Morais, nada, porém, se ha­
vendo resolvido, pois, em carta de 14 de agosto de 1724— quase treze anos
depois— o novo Procurador retoma o velho problema.
Ao assumir o posto, «achara que alguns moradores, que possuem ca­
1J 1
sas da banda do mar, tratando do seu acrescentamento, as avançaram tan­
to a ele que totalmente deixaram as praias sem marinha, não só em pre­
juízo do bem público, mas da Real Fazenda» : «do bem público, porque

j' •
D
l ,
/ ■
132 Costa Porto

não fica aos moradores praia em que chegue ao menos uma embarcação
com mantimentos e mais víveres da suas roças»... e da Real Fazenda por­
que «ficava tudo com total ruina», sugerindo se «devia impedir semelhan-
tes edifícios nas marinhas, por serem livres para o real serviço e uso co-
mum».
E, «porque os oficiais da Câmara querem pelas suas doações lhes seja
permitido o poderem dar chãos até o mar, e nessa forma passam aos
foreiros os seus aforamentos», lembrava a conveniência de resolver «se en­
tre o mar e o edifício devia mediar marinha e a quantidade dela para as­
sim se evitar as dúvidas que não só os ditos oficiais da Câmara, mas ainda
com os Governadores se lhe podiam mover».
Ouvido a respeito, o Governador Luis Va'hia, depois de interessantes
ponderações, sugere ,duas medidas: fechar os olhos ao passado -pois lhe
parecia inviável corrigir os erros acumulados— e «impedir com rigorosas
penas que daqui em diante ninguém se possa alargar um só palmo para o
mar, nem edificar nas praias... fazendo carga aos Governadores e ao Pro­
vedor da Fazenda de toda a desordem que houver daqui em diante sobre
este particular», o que é aprovado pela carta régia de 10 de dezembro de
1725.
Nada, porém, dava jeito, continuando os incidentes: assim, em 1731,
a Câmara do Rio reclama a el-Rei porque alguns moradores queriam proi­
bir «na distância do mar e praia que respeita à testada das suas terras não
lancem redes para pescar», donde resultavam «muitas vezes, contendas e
pendências», havendo o Monarca, em ordem régia de 10 de janeiro de
1732, ordenado ao Governador «não consintais se aproprie pessoa alguma
das praias e mar, por ser comum para todos os moradores».
A pouco e pouco se vão definindo as linhas mestras do disciplinamen-
to: o conceito de terras de marinha e o princípio de que regalia régia
escapavam à jurisdição das Câmaras, somente podendo ser dadas ou
aforadas mediante autorização do Monarca.
Em 1728, um morador solicita ao governador Tibão um terreno, tido
como devoluto «junto à ponte Boa Vista»: tratava-se, evidentemente, de
terras que deviam pertencer à Câmara, mas em praia que «fica coberta
com todas as marés cheias e se descobre de maré vazia, pelo qual se mostra
ser realengo», havendo, por isso, o delegado régio atendido à solicitação,
com a ressalva de o beneficiário largar o terreno, «sendo necessário para o
serviço de S.M. demolindo-se as benfeitorias... sem que à Fazenda Real fi­
que a satisfação alguma» (Doc. Hist.,I, pág. 322 e segs).
Neste mesmo ano, outro incidente, também no Recife: uns moradores
haviam pedido autorização ao Senado da Câmara para construir casas na
Boa Vista, quando as autoridades militares o impediram, exigindo licença
do Governador e tendo Tibão solicitado informações à Câmara — estra­
nhando houvesse sido dada licença sem pagamento do foro-, pois se trata­
va de «praia coberta, logradouro público, reservado nas datas de
sesmaria»— responderam os camareiros teriam os antecessores dado autori­
zação sem «notícia da qualidade do lugar», não sendo justo permitisse o
Governador a construção sem o pagamento do devido foro.
O Sistema Sesmarial no Brasil 133

A questão, entretanto, se agrava. Alegando os interessados haverem


aforado o terreno ao «procurador de um herdeiro do Morgado», não sendo
razoável, assim, pagassem dois foros, levanta o Procurador da Coroa ques­
tão relevante: «por informação que tomara, achara que o lugar... foi aon­
de o rio entrava e cobria a maré», havendo os moradores feito «entulho a
sua custa e trabalho», donde parecer-lhe «terra realenga», ponto de vista
sustentado, também, pelo Provedor, e pelo Ouvidor: «as tais casas se come­
çaram a edificar nas areias que sempre serviu (sic) de luxo (ou lixo?) as
marés... e com a indústria, trabalho e entulho dos edificantes se aterra­
ram... e, era sem dúvida não pertencer esta área a Câmara desta vila nem
a outro terceiro», sendo património da Coroa e, como tal, podendo ser da­
do de sesmaria.
A regra será, então, esta: «praia... coberta d'agua», maré, terra «en­
tulhada», tudo é realengo, «do direito real», não podendo ser aforado pe­
las Câmaras, somente concedendo-se por autorização de el-Rei, ou, como o
diz o aviso régio de 18 de novembro de 1818, «oque toca à agua do mar e
acresce sobre ela é da Coroa«, estabelecido que da «linha dágua para
dentro, sempre são reservadas 15 braças pela borda do mar para o serviço
público, nem entrarão em propriedade alguma dos confinantes com a ma­
rinha e tudo quanto alegarem para se apropriar do terreno é abuso e ina-
tendível».
E uma série de ordens, instruções, avisos, decretos,etc., procura fixar,
exclarecer, definir tudo quanto, considerado «de marinha», pertence à
Coroa— agora à Coroa brasileira, não podendo ser objeto de domínio
sobre elas», como acentua a Resolução de 12 de abril de 1824: « a única
proprietária das marinhas» é a Nação, resume o aviso de 7 de julho
de 1829.
Regulamentando a lei de 15 de novembro de 1831- que determinava
fossem postos à disposição das Câmaras Municipais «terrenos de Marinhas
que estas reclamarem do Ministro da Fazenda ou dos Presidentes das
províncias, para logradouros públicos; Nicolau Vergueiro baixou as instru­
ções, de 14 de novembro do ano seguinte, importando ao caso o artigo 4:
«Hão de considerar-se terrenos de Marinhas todos os que, banhados pelas
águas do mar, ou dos rios navegáveis, vão até a distância de 15 braças cra-
veiras para a parte da terra» — dava-se à «braça craveira», a extensão de dez
palmos — «contadas estas desde os pontos a que chega a preamar média».

Em lenta elaboração, o problema das «terras de marinha», foi, afinal,


disciplinado, casuisticamente, na República, estando em vigor, no momen­
to, o Decreto-lei 9.760, de 1946, que «dispõe sobre os bens imóveis da
União», regulando «as terras de marinha, devolutas e bens da União.

Terras do «interesse » da Coroa

A carta régia de 12 de novembro de 1698 não proíbe, propriamente


a distribuição das terras de «marinha»: apenas condiciona-lhes a utiliza­
ção, por privados, ao interesse geral e, considerando as «marinhas» regalia
134 Costa Porto

régia, firma a regra de que sua distribuição ou arrendamento dependem


de expressa autorização do Soberano.
Já a carta de 20 de janeiro de 1699 vai além: depois de fixar normas
quanto à área das sesmarias e de sujeitá-las a um foro, acrescenta o precei­
to novo de que. «sendo terras convenientes ao meu serviço, se não darão e
ficarão para a Fazenda Real».
Assim, a carta de 1698 trata, especificamente das terras de «mari-
nha», enquanto a de 20 de janeiro de 1699 tem alcance mais geral.
Mas o princípio fixado na carta de 1699 — «convenientes ao meu
serviço» — era vago e impreciso, não se esclarecendo que critérios presi­
diam à determinação da conveniência, nem o júiz desta determinação: um
lanço fugidio da Documentação Histórica alude à «paragem proibida na
Junta» (vol. I, pág. 144), não se sabendo se se tratava da velha «junta das
Missões», ou dalgum conselho, muito usual, constituído do Governador, do
Provedor, do Ouvidor e do Procurador da Fazenda.
Que terras seriam estas, do interesse do serviço «régio»? Ignoramos.
De modo geral, parece se consideravam tais as terras de índios, os ca­
minhos para minas, as margens dos rios navegáveis, e, possivelmente,
matas com madeira de lei, caminhos, estradas públicas, frequentemente
denominadas «realengas» — de uso de todos confundidas as noções do co­
letivo com o interesse real.
E um critério negativo encontramos na Documentação Histórica, em
parecer de 1716: «à vista do que se tem examinado, não são as terras
daquele sertão convenientes para o serviço real por ficarem em parte muito
remota desta praça, mais de 150 léguas, donde não resulta utilidade à fa­
zenda real em aproveitá-la».

38 - LEGISLAÇÃO DESORDENADA.

Se até 1695, mais ou menos, a Metrópole deixou o funcionamento do


sistema sesmarial quase limitado às prescrições genéricas das Ordenações,
os fins do século 17 marcam fase de intensa movimentação legislativa, pro­
curando regular ângulos diversos de sua aplicação, abandando as normas,
todas padecendo do velho mal de, em vez de codificação geral, Se baixa­
rem determinações para casos concretos, para regiões determinadas, fixan­
do, não raro, futilidades, deixando de lado os aspectos básicos e funda­
mentais.
Entre 1695 e 1698, ao que parece, surgem as primeiras leis limitando
as extensões das datas; de 1698, parece ser a lei que manda sejam as
doações confirmadas por cl-Rei e a que regula, em caráter geral, o caso
das terras de marinha; de 1699, é a carta régia, de 20 de janeiro, que im­
pôs a exigência do foro e proibiu a distribuição de terras conveniente ao
serviço régio; de 1700, a carta régia que, pelo menos, aprovou a fixação
do foro — seis mil réis por légua, nas datas a 30 léguas da costa, e quatro
nas mais distantes; de 1711 é a importante carta régia a Felix José
Machado, determinando conste, nas novas datas, não poderem as religiões
O Sistema Sesmarial no Brasil 135

suceder e, «sucedendo será com a cláusula de ficaram sujeitas a todos os


tributos, como se fossem possuídos por seculares» (ib., I, pág. 197); em
1713, fala-se em que, «na forma das ordens de S.M. não se podem dar
mais que duas léguas a cada pessoa e essas ordinárias e contínuas» (pág.
216), o que não impede, entretanto, doações de sesmarias mais largas
(págs. 224, 225, 229, etc.); em pedido de 1714 (Doc. Hist., I, pág. 196) se
alude a que «para poder requerer confirmação de S.M...» é necessário que
as doações feitas pelos Capitães-Mores sejam aprovadas pelos governadores,
na forma das novas ordens do dito senhor; a partir de 1732, são frequen­
i
tes, nas datas, cláusulas de que «sendo necessárias as ditas terras para o
serviço de S.M., fundação de vilas, Igrejas, ou minas de metais, lhes serão
tiradas sem que por isso lhe fique obrigada a fazenda real a remuneração
alguma, reservando também as praias» (Doc. Hist., 2, pág. 25); legislação
muito citada é a ordem régia de 21 de março de 1744, «na qual dispõe r
S.M. como se devem dar terras de sesmarias» (Doc. Hist., 2, pág. 61); e
que, entre outras exigências, determina «sejam ouvidas as Câmaras dos
sítios a que pertencem as ditas terras» (ib., págs. 61, 66 e 92). | ■

Em 1758, a Câmara da Vila das Alagoas, opinando sobre um pedido


de terras nos Palmares, pondera que, «por serviço do dito senhor e bem
deste conselho, era conveniente que os que tomam terras de sesmaria fos­
sem obrigações a situá-las e demarcá-las...porque mostra a experiência que
alguns pedem duas léguas e debaixo da concepção deles domina mais a
fraude dos conselhos» (ib., 123); e em 1776 passa-se uma carta «declaran­
I
do as cláusulas respectivas a demarcar, povoar e cultivar na forma que ter­
mina a ordenação do reino» (pág. 131).
í
Tal linguagem deixaria margem a acreditar-se que, até então, nada
havia, de específico, no tocante à demarcação; mas em 1757 um parecer
opinava se desse sesmaria «com condição de se demarcar...em observância
da ordem de S.M. de 19 de maio de 1703 (ib., pág. 155), o que se repete
às páginas 170, 174, enquanto noutro parecer se aponta a exigência da de­
marcação» na conformidade da Real ordem de 20 de outubro de 1753
(págs. 213, 218, 233, 236, 242, etc.), o que parece mais fundado.

Tudo, entretanto, se concilia bem: a demarcação seria providência


ordenada por «várias leis», como o diz o alvará de 5 de outubro de 1795;
difícil de cumprir, sucessivos preceitos lhe renovavam a exigência, tudo em
vão, porque o problema encontrava embaraços nas condições do meio e do
tempo.
A partir de 1759, começamos a encontrar exigência dantes
desconhecida: «jurando os suplicantes não possuirem sesmaria alguma»
1
(Doc. Hist., 2, págs. 129, 138, 144, 148, etc.), não se esclarecendo, entre­
tanto, se resultava de alguma norma régia. i
Nas cartas depois de 1760 aparece exigência nova: «deixando a légua
de permeio para logradouro na forma da ordens de S.M. (págs. 130, 142
146, 149, etc.), medida expressamente atribuída à Real ordem de 20 dó
outubro de 1753 (ib., págs. 222, 225, etc.).

7
136 Costa Porto

39 - O ALVARÁ DE 5 DE OUTUBRO DE 1795


Afinal, já muito tarde, o Conselho Ultramarino se lembrou de sugerir
medidas corretivas: alarmado com «os abusos, irregularidades, e desordens
que têm grassado estão e vão grassando em todo o Estado do Brasil, sobre
a matéria das sesmarias, a mais importante, a mais útil e a mais conve­
niente aos comuns interesses», da Fazenda e dos moradores, encaminha a
D. Maria I exposição, apontando meios para resolver o problema.
No sentir dos conselheiros régios, a causa maior dos males estava em
se ter processado a distribuição de terras «sem regimento próprio ou
particular quanto às suas datas, antes, pelo contrário, tem sido, até aqui,
concedidas por uma sumaria e abreviada regulação, extraída das cartas
dos antigos e primeiros donatários», as quais «não tratam, nem podiam
tratar naquele tempo, plena e decisivamente sobre esta matéria», e daí, co­
mo solução, haver-se baixado o alvará de 5 de outubro de 1795,
apontando como «regimento para por ele se processarem e regularem as
cartas de medição e demarcação das sesmarias».
No comum, registra-se o alvará de 5 de outubro, como baixado por
D. Maria I, lição, entretanto, que não é de todo exata. D. Maria, é verda­
de, subira ao trono, sucedendo a D. José I, falecido a 24 de fevereiro de
1777, exercendo um dos mais atribulados governos: perde, em sete anos, a
mãe, o esposo e o primogénito, suporta as crises da Revolução francesa e
de Napoleão e, pouco a pouco, vai enfraquecendo das faculdades mentais,
acabando louca, lembrando Rodolfo Garcia uma décima, então vulgar en­
tre o povo, e atribuída ao marquês de Penalva, que bem define a confusão
em seu reinado: «o negócio se propõe, duvida el-Rei nosso Senhor, atrapa­
lha o confessor, Angeja a pagar se opõe; nada a Rainha dispõe, Martinho
marra esturrado, Aires não passa de honrado e o Visconde, em conchusão,
pede nova informação, fica o negócio empatado.»
O que, parece, mais concorreu para a demência da Soberana foram
dramas de consciência, provocados pelo confessor, D. José Maria de Melo,
Bispo de Algarve, o qual — aparentemente com as nobres famílias de
Aveiro, Távora e Atouguia, vítimas dos ódios de Pombal — vivia alarman­
do a Rainha, ameaçando-a com «as penas do inferno, se não corrigisse os
erros cometidos por'D. José e sob a influência direta de Sebastião José de
Carvalho».
Pretendia o Confessor, de modo especial, reabilitasse D. Maria a
memória dos sacrificados à «vesânia pombalina», restituindo aos herdeiros
as fortunas confiscadas, solução que os juristas e magistrados sustentavam
ser ilegal e impraticável, importando, ainda, se concretizada, infâmia à
memória do velho Monarca. Entre o amor filial e o pavor do inferno, a
Rainha se debate, torturada por escrúpulos, sofrimentos morais e dramas
de consciência.
Para tratar da enferma, veio da Inglaterra o Dr. Wills, médico da
família real britânica e famoso especialista em doenças mentais, mas em
vão, pois a situação da Soberana se agravou, e de tal modo que, pelo De-
O Sistema Sesmarial no Brasil 137

ereto de 10 de fevereiro de 1792, D. João foi chamado a governar, na qua­


lidade de herdeiro e, afinal, por decreto de 15 de julho de 1799, assume o
poder, como Regente.
Em 1795, portanto, D. Maria estava afastada do poder, exercido por
D. João, na qualidade de herdeiro do trono, cabendo-lhe, deste modo, a
responsabilidade do alvará de 5 de outubro, como assinala Lira Tavares.
Muito generoso se nos afigura J. Eduardo da Fonseca ao acentuar
que, «no consenso da história», o alvará de 5 de outubro é tido como «um
dos padrões da sabedoria jurídica do tempo». A impressão que nos fica de
sua leitura é bem outra: diploma derramado, difuso, confuso,
contraditório, aéreo, vago, com todos os defeitos da legislação colonial, um
dos padrões do desazo com que então se legislava.
Logo de saída, uma contradição. De acordo com a exposição do k
Conselho Ultramarino, todo o mal do funcionamento do sistema estava na
carência de «regulamentação própri», gerando a impressão de que se iria
elaborar codificação nova, fazendo-se tabula rasa do que existia: pois o
que determina o artigo l.° é «ponham na mais iridefectível observação «as

I
normas anteriores, como a galvanizar aquele acervo de regras, cuja ina­
daptação à Colónia o próprio Conselho proclamara com objetividade.
Nem, descendo à parte positiva, o alvará de 5 de outubro trouxe algu­
ma coisa de prático, em termos de aperfeiçoar o sistema: ou introduz e re­
nova ninharias, ou deriva para exigências teóricas, de si mesmas louváveis,
mas dificílimas de execução, dadas as circunstâncias do meio e do tempo.
I
Depois de traçar regras gerais — como a determinação da audiência li
das Câmaras locais, exigência imposta por «várias ordens» anteriores e cuja
omissão é apontada como «erro abusivo» — o alvará passava a regular,
com muita ênfase, o problema da demarcação das sesmarias, e com rigor
desusado.
Em primeiro lugar, dava efeito retroativo à medida — e com certo
1
fundamento, pois, argumenta, os antigos sesmeiros haviam recebido as ter­
ras «com esta condição», e, assim, não havendo cumprido, se lhes devia Fjl
aplicar, «irremissivelmente», a pena de omisso, que alusivamente, se lhes
vinha dispensando.
E quanto às futuras datas, o rigor era maior. Até então, a demarca­
ção figurava a modos de condição resolutiva: o sesmeiro ao receber as da­
tas e registrá-la, entrava no pleno domínio da sesmaria, e se não a demar­
casse, resolvia-se o domínio, a terra voltaria à Coroa, para nova distribui­
ção, «devoluta»; Dagora em diante, o processo é diferente: antes de de­
marcar, o sesmeiro não entrará na posse da terra, não poderá pedir confir­
mação, a condição é suspensiva, somente ocorrendo a aquisição de l
domínio quando for satisfeita a exigência legal.
Até então, cabia aos Provedores, parece, se não efetuar, ao menos fis­
calizar a demarcação, tarefa que o Alvará confere aos Ouvidores — «por
serem presentemente os que substituem os provedores». E como o
Provedor, via de regra, vivia nas sedes — sendo-lhe impossível, assim, fis­
calizar o que se passava pelo interior — adota-se processo novo e realmente

i

138 Costa Porto

prático: cada Câmara enviaria ao governador lista tríplice de «letrados


com carta de formatura», residentes no local, dos quais seria escolhido «o
mais idoso» para supervisionar a demarcação.
Preceito curioso, que na verdade, preferindo um cidadão, bastaria
mandar-lhe o nome, acompanhado de dois, menos idosos...
Como, porém, nem sempre seria possível — talves mesmo não ocorres-
se, senão excepcionalmente — encontrar, pelo interior — «três letrados
com carta de formatura» — manda o alvará, nestes casos, seja a tarefa
afeta aos juízes ordinários.
Em seguida, retomando velhas normas, baixadas desde 1695, o alvará
trata do problema da limitação das sesmarias. Não julgando justo «se
franqueiem e liberalizem em grande quantidade as datas de sesmaria,
principalmente quanto às terras mais próximas às capitais», fixa, como te­
to máximo, uma légua de terra, limitação «comum, geral, extensiva a to­
das as capitanias... a fim de que resulte o maior número de sesmaria que
façam mais vantajosos os efeitos e fins da mesma cultura», colimando-se,
também, «o maior e não menos útil benefício público de reparo e conserto
das estradas, ao qual são já e ficam sendo, de futuro, obrigados os
sobreditos sesmeiros, cada um nas respectivas testadas».
O teto de uma légua, entretanto, dizia respeito às terras «confinantes
com as estradas e rios navegáveis», vizinhas aos centros urbanos, prevale­
cendo, quanto às mais, as normas até então vigentes; e, mesmo no primei­
ro caso, ficava lícito distribuir sesmarias maiores, «se, por falta de morado­
res, não hajam (sic) pessoa ou pessoas que possam e queiram povoar as di­
tas terras...porque, em tal caso, fica sendo inútil aquela providência, tão
somente ditada quanto às terras e lugares onde houver maior número de
moradores que, em concurso de outros, pretendam terras dessa natureza».
Ainda uma vez, tudo muito bonito, muito certo, mas muito teórico.
A limitação das áreas soava uma necessidade, dado que aumentara
consideravelmente o número de moradores; mas como assegurar-lhe o
cumprimento?
As autoridades continuavam ultrapassando as limitações legais e quan­
do se agarravam, inflexíveis, aos preceitos normativos, quem garantiria
que o colono não se apoderava de mais terras do que lhe fora dado?
Sem medição, adiantava pouco restringir as datas, porque a
experiência mostrava, como dizem certa vez os camareiros das Alagoas,
que «alguns pedem duas léguas e debaixo da concepção delas dominam
maisem fraude dos conselhos» (Doc. Hist., II, pág. 123).
Muita medição se fazia mesmo à base do «cachimbo», como o registra a
informação dada a Ulisses Lins, pois, na verdade, não havia na Colónia,
nem mesmo perto do litoral, quem se incumbisse da cerimónia demarcató-
ria.
E a própria Metrópole teve de recuar; um ano depois, o alvará de 10
de dezembro de 1796 suspende, «sine die», a execução do dia 5 de outubro,
tendo em vista «os embaraços e inconvenientes que podem resultar da (sua)
imediata execc.ção...seja porque, nas circunstâncias atuais não é o momen-
r

O Sistema Sesmarial no Brasil 139

to mais próprio para dar um seguro estabelecimento às vastas propriedades


de meus vassalos nas províncias do Brasil, seja pela falta de geómetras que
possam fixar medições seguras...seja, finalmente, pelos muitos processos e
causas que poderiam excitar-se, querendo por em execução tão saudáveis
princípios.. .sem primeiro haver preparado tudo o que é indispensável para
que eles tenham uma inteira e útil realização».
Falhara, mais uma vez, o esforço disciplinador da Metrópole,
prosseguindo o-tumulto de uma legislação superada e fora das realidades,
não ajudando a moldura nova resultante da mudança da Família Real pa­ 4
ra o Brasil, D. João VI com as atenções voltadas para problemas de maior
alcance — a política externa lusitana — de sorte que nenhum passo se re­
gistra no tocante ao sesmarialismo.
Na Regência, porém do Princípe D. Pedro, fato muito mais de ordem
pessoal provocaria o impacto, na fórmula drástica de. à semelhança de ÍL
Alexandre, contar-se em vez de deslindar, o «nó górdio».
A 8 de julho de 1822, um morador do Rio de Janeiro — Manuel José
dos Reis — dirigiu apelo ao Regente, rogando-lhe «ser conservado na posse 1.
das terras em que vive há mais de 20 anos com sua numerosa família de
filhos e netos, não sendo jamais as ditas terras compreendidas na medição
de algumas sesmarias que se tenha (sic) concedido anteriormente». E, nada
obstante o Parecer do Procurador da Coroa e Fazenda — de que «não é
competente este meio», devendo o interessado requerer «por sesmarias as
terras de que trata», D. Pedro baixou a Resolução de 17 de julho,
determinando: «Fique o suplicante na posse das terras que tem cultivado e
Suspendam-se todas as Sesmarias futuras até a convocação da Assembléia
Geral e Legislativa ».

40 - A LEI 601, DE 18 DE AGOSTO DE 1850

A tumultuada estrutura fundiária nacional não escapou à acuidade da 11


geração que construiu a Independência e as «Lembranças e
Apontamentos», da autoria de José de Bonifácio, oferecidos, de parte de
São Paulo, aos deputados às Cortes Constituintes de Lisboa — um dos
itens cuidava, exatamente, da urgência de «uma nova legislação sobre as
chamadas sesmarias», desnudando as falhas do sistema e apontando os cor­ I
retivos.
Fruto de seu funcionamento desordenado, o sesmarialismo brasileiro
sofrera fundas distorções, donde a conclusão de que, em vez «de aumentar
a agricultura, como se pretendia», na verdade havia «estreitado e dificulta­
do a povoação progressiva e unida».
Na prática, realmente, o que se via eram «sesmarias de 6, 8 e mais
léguas quadradas, possuídas por homens sem cabedais e sem escravos, que
não só não as cultivam mas nem sequer as vendem e repartem, por quem
melhor as saiba aproveitar, originando-se, daqui, que as Povoações do Ser­
tão se acham muito espalhadas e isoladas, por causa dos imensos terrenos
de permeio, que se não podem repartir e cultivar, por serem de sesmaria,
seguindo-se também viver a gente do campo dispersa e como feras no meio ■
140 Costa Porto

das brenhas e matos, com sumo prejuízo da administração da Justiça e da


Civilização do País».
Levando em conta esta situação de fato, sugeria-se que, na esteira do
«espírito da lei do Sr. D. Fernando sobre a matéria, que serviu de fonte ao
que está determinado na Ordenação», se baixasse disciplinamento específi­
co, estabelecendo «mais ou menos», o seguinte:
«l.°) Que todas as terras dadas por sesmaria e não...cultivadas, en­
trem, outra vez, na massa dos bens nacionais, deixando-se somente aos
donos das terras meia légua quadrada, quando muito, com a condição de
começarem logo a cultivá-las em tempo determinado, que parece justo».
«2.°) Que os que têm feito suas terras, só por mera posse e não por
título legal, as hajam de perder, exceto o terreno que já tiverem cultivado
e mais 400 jeiras acadêmicas para poderem estender sua cultura,
determinando-se, para isso, tempo prefixo».
“3.“) Que todas as terras que reverterem, por este modo, à Nação e
de todas as outras que estiverem vagas, não se deem mais sesmarias gratui­
tas, 'salvo nos casos especiais’ali, a seguir estabelecidos».

«5?) Que em todas as vendas que se fizerem e sesmarias que se derem,


se porá a condição que os donos e sesmeiros deixem a sexta parte do
terreno, que nunca poderá ser derrubada e queimada sem que se façam
novas plantações de bosques para que nunca faltem as lenhas e madeiras
necessárias».
«6?) Que de três em três léguas se deixe, pelo menos, uma légua intac-
ta para se criarem novas vilas e povações e quaisquer outros estabeleci­
mentos de utilidade pública».
As Cortes portuguesas, dominadas pela tônica do político e pelo
programa, desvairado, da «recolonização», não teriam empenho, nem mes­
mo tempo, de cuidar do problema, logo, entretanto, agitado quando, reu­
nida a Assembléia Constituinte Brasileira, a 3 de maio de 1823, já na ses­
são de 14 de julho, Nicolau Campos Vergueiro, deputado paulista, apre­
sentou a seguinte indicação:
«l.°) Que se suspendam as datas de sesmarias.
2.°) Que a Comissão de Agricultura proponha um projeto de lei sobre
as terras públicas, contendo providências para o pretérito e regras para o
futuro».
Aprovada na sessão de 29, para debates, a indicação Vergueiro foi en­
caminhada à Comissão de Agricultura — com o adendo de «recomendação
ao governo reforçasse as ordens dadas anteriormente a este respeito».
O ambiente, entretanto, não seria dos mais propícios, entrando o País
no perigoso «tapis reoulant» de crises em série — dissolução da
Constituinte, Revolução do Equador, Guerra da Cisplatina, e, dia a dia
mais fundos os vales entre o Imperador e a Nação, seguir-se-ão a Abdica­
ção, a Regência, a Maioridade, tudo gerando o clima do «politique d'a-
bord», relegado o mais a plano secundário. Mesmo depois da Maioridade,
O Sistema Sesmarial no Brasil 141

quase toda a década de 1840 escorre, mediocremente, nas lutas partidárias


pela tomado do poder, somente repontando certo desafogo com a ascen-
ção do Gabinete de 29 de setembro de 1848, presidido pelo então Visconde
de Olinda; e foi exatamente sob este grande ministério — àquelas alturas
presidido por Costa Carvalho, Marquês de Monte Alegre — que o Con­
gresso — à base de um projeto, de 1835, dePaulino de Sousa, futuro Uru­
guai — aprovou a Lei 601, de 18 de agosto de 1850, ao tempo — e mesmo
ainda hoje — um dos melhores, se não o melhor, disciplinamento do nosso
problema fundiário.
O alcance da Lei 601 aparece, claro, na ementa — «dispõe sobre as
terras devolutas do Império e acerca das que são possuídas por título de
sesmaria, sem preenchimento das condições legais, bem como por simples
título de posse mansa e pacífica; e determina que, medidas e demarcadas I
as primeiras, sejam elas cedidas a título oneroso, assim para empresas par­
ticulares, como para o estabelecimento de colónias nacionais e estrangei­
ras, autorizado o Governo a promover a Colonização estrangeira na forma
que se declara».
Deixando à margem o problema da colonização — que, específico, e
u
dos mais relevantes, merece estudo, também específico — tentemos uma
visão global da maneira como o disciplinamento de 1850 regulou a moldu­
ra fundiária rural do País.
Houvesse o sesmarialismo colonial funcionado de acordo com as inten­
ções de D. João III, quando, em 1534, o implantou no mundo luso-
americano, o solo brasileiro se desdobraria em três planos básicos: a) ter­
ras dadas de sesmarias, cujos beneficiários, havendo satisfeito todas as exi­
gências legais, seriam donos legítimos, integrando-os no património e sobre
os quais exerciam a plenitude das faculdades atribuídas ao domínio — o
«ius utendi, fruendi et abutendi»; b) porções destinadas a algum uso do
poder estatal — o Império, as Províncias e os municípios — ou «bens pú­
blicos», da classificação do Código Civil; c) finalmente, terras que, não
tendo sido distribuídas, pertenciam «ad rempublicam», na hipótese em te­
la, ao Trono, ao Governo Imperial, a quem cabia dar-lhe a destinação
conveniente.
Na maneira, porém, como se processou, na prática, a ocupação do so­
lo, o quadro real findaria diferente. O que assegurava ao colono o domínio
da terra, insistamos, era a carta de doação, outorgada pela autoridade
competente, completada, de começo, pelo aproveitamento em determinado
prazo, e, depois, pelo registro nos livros da Provedoria, pela confirmação
régia, pagamento do foro e, finalmente, medição e demarcação.
Ora, no primeiro século, circunscrito o movimento povoador à estreita
faixa litorânea, vizinha às sedes dos governos donatariais, era muito fácil
legalizar-se a situação, pois não custava nada encaminhar o pedido às au­
toridades e tomar posse das datas, via de regra não muito distantes.
À medida, porém, que, ocupada a orla costeira, a penetração se foi
alargando pelo interior mais afastado, e aumentando as exigências legais,
passaria a generalizar-se a praxe de substituir o domínio pela simples
posse, usual, ainda, moldura mais complexa e aguda — o conflito entre o
142 Costa Porto

domínio e a posse. É que recebendo tratos imensos pelo interior, muitos


sesmeiros, residentes nos centros urbanos do litoral, sedes das Capitanias,
não se dariam ao esforço penoso de ir povoá-los, salvo através da proposta,
costumando arrendar largas porções aos retardatários, carentes de terra, e
— o que depois se tornaria usual —, encontrando áreas desocupadas, o
colono largando-se para o «Sertão ia se apossando do que lhe parecia sem
dono, freqilentes assim os casos de posse — questão de fato — sem o
domínio, situação «de direito».
Mesmo nas hipóteses de concessão de sesmarias, se a regra seria
primeiro pedir a terra e depois tomar a posse, real ou simbólica, haveria,
não raro, o expediente inverso — apossar-se e depois área da legalização,
obtendo-lhe o domínio: o caso, por exemplo, do Coronel Abreu c Lima
que, informado, dizia, da existência de uma «travessia de terras
montúdias, despovoadas por serem montúdias, que foi a causa por que
nunca se povoarem», ocupou «um campo a que os índios chamavam Ara-
robá ou Carassa, nele fez um curral e pôs cruzes e para ele fez caminhos
de gente a pé» — e somente depois, em 1698, pediu doar de sesmaria ao
Governador Melo e Castro (Doc. Hist. 11, pág. 60).
Ou o do Capitão Gil Ribeiro, que, depois de «descobrir um riacho»
no Ceará Grande, o ocupou «com seus gados», pedindo-o, a seguir de
' sesmaria (ib., 86). Ou o do Capitão Atanásio Silveira, que solicita um área
no São Francisco, onde «levantou um engenho de fazer açúcar...em que vi­
ve com a família», pretendendo «fazer um hospital (hospedaria) para
agasalho dos passageiros que vão e vêm dos sertões» (ib., 151), enquanto
outro sertanista pede uma gleba «que tem povoada há dezessete anos, fa­
zendo pastos para gados, onde já tem um curral, com casas de telhas e ár­
vores de espinho, em cujo sítio já teve um molinote» (ib., 250).
Não deixava de ser arriscado. Como, no sesmarialismo, a simples
posse não assegurava garantia, restava o perigo de, após viver anos e anos
na terra, ser o posseiro desalojado por quem a obtivesse de sesmaria: em
1702, por exemplo, Leonardo Bezerra Cavalcanti e Cosme Monteiro pe­
dem «umas terras na ribeira do Assu» — «capazes de serem aproveitadas»
e «não dadas a pessoa alguma», embora ocupadas «por pessoas que as es­
tão possuindo sem data nem sesmaria, intrusamente, contra as ordens de
S.M.», solicitando, ainda, que «as pessoas que sem título e data de sesma­
ria as ocuparem lhe não encontrem a posse e medição» e «se possam expul­
sar e lançar fora delas os gados que nelas se acharem e criarem» (Doc.
Hist., I, 68).
Casos destes viu-os, com freqilência, Saint-Hilaire, em suas viagens
pelo interior: «os pobres, que não podem ter títulos, se estabelecem nos
terrenos que sabem não terem dono; plantam, constroem pequenas casas,
criam galinhas, e, quando menos esperam, aparecem-lhes um homem rico,
com o título que recebeu na véspera, expulsa-os e aproveita o fruto de seu
trabalho».
Ao longo do século 16, quando eram poucas as exigências na
distribuição do solo — a carta de data e o seu registro —, a penetração
arrastando-se no litoral, perto das sedes de governo — o sistema teria
O Sistema Sesmarial no Brasil 143

funcionado normalmente, a posse confundida com o domínio; sobretudo,


porém, a partir dos fins do século 17, amontoando-se as exigências de le­
galização da ocupação do solo, raros seriam os casos de domínio legal,
quase tudo processando-se em termos de simples posse, sem escoras no dis-
ciplinamento e, mesmo, em conflito desenganado com o ordenamento
jurídico vigente.
O que se teria agravado depois da Resolução de 17 de julho de 1822,
em que o Regente determinou a suspensão das datas de sesmaria —
embora continuassem as concessões em casos esporádicos e especiais: se o
Governo imperial nem dava nem vendia terras, o jeito seria ocupá-las de
fato, fenômeno tanto mais fácil quanto, pelo sertão, no oeste, no norte, na
imensa área do antigo Brasil espanhol, resultante do «arreglo» de Tordesi-
Ihas, não havia quem exercesse fiscalização, de notar que, ainda hoje, o
problema permanece tumultuado, usual, em pleno século 19, a praxe dos
«grilos», dos «caxixes». da invasão abusiva de terras públicas, cuja correção
tem resistido até à interferência das Forças Armadas...

41-0 QUADRO FUNDIÁRIO BRASILEIRO DE 1850

Quando, em 1850, o Congresso votou a Lei 601, de 18 de setembro, a


melhoria fundiária se desdobrava em cinco grupos básicos:
I — terras «apiicadas a algum uso público nacional, provincial ou
municipal» — os chamados «bens públicos» da linguagem do futuro
Código Çivil —, «de uso comum do povo» — estradas, ruas, praças —, de
uso especial — edifícios ou terrenos aplicados a serviço ou estabelecimento
do Império, das Províncias, dos municípios — e «dominicais», que integra­
vam o património estatal;
II — porções de solos dadas de sesmarias, cujos beneficiários, tendo
satisfeito as condições legais, lhes haviam adquirido o domínio pleno e de­
finitivo, tornando-se «sesmeiros legítimos»;
III — áreas distribuídas de sesmaria, cujos titulares, não tendo
cumprido as condições essenciais, não lhes haviam adquirido o domínio,
figurando como «sesmeiros irregulares» ou «não legítimos»;
IV — solo simplesmente ocupado, mera situação de «fato», não
passando o morador de mero «posseiro»; e, finalmente,
V — tudo o mais não enquadrado nas hipóteses anteriores é
considerado como «terras devolutas».
Quanto ao solo aplicado «a algum uso público», ou «bens públicos»,
não havia o que disciplinar, o mesmo ocorrendo de relação àquele
distribuído legalmente: o sesmeiro — legítimo «senhor e possuidor» — !


estava amparado pelo «zaimph» protetor do artigo 179, n.° XXII, da
Constituição de 25 de março de 1824, que declarava «garantido o direito
de propriedade em toda sua plenitude», ressalvada, apenas, a faculdade de
expropriação se o exigisse «o bem público legalmente venticaao», estancio,
assim, as três outras hipóteses que a lei procura regular, começando pelas
terras devolutas.

1
144 Costa Porto

Ao tratar de terras devolutas, a Lei 601 não primaria pela melhor


técnica, nem mesmo pela correção gramatical. É que, particípio passado
do verbo Devolver, «devoluto», ou «devolvido», é aquilo que se devolveu,
que voltou à situação anterior, que retornou ao dono, etc.
As terras da Colónia, insistamos, pertenciam à Coroa — à Nação, «ad
rempublicam» — e, mandando-as distribuir, el-Rei impunha condições
que, insatisfeitas acarretavam a caducidade, quando, então, retornavam,
voltavam, eram restituídas, devolvidas, ou devolutas ao património régio.
Concedendo umas terras a D. Manuel Lebrian e outros, em agosto de
1695, o Governador Caetano de Melo e Castro lhes impõe a condição de as
povoarem «no termo de cinco anos, aliás se darão por devolutas» (Doc.
Hist., I, 48); «pela lei, estão devolutas as terras pretendidas, por passarem
cinco anos que não foram aproveitadas», lê-se num parecer (ib., 193) «e
não o cumprindo assim, se dará por devoluta» diz-se numa carta (ib., 218).

Este, insistamos, o sentido originário de terra devoluta: aquela que,


dada de sesmaria, e descumprida qualquer condição essencial, voltava à
Coroa, para ser, novamente, distribuída.
A semântica, porém, operaria ligeira modificação do sentido
originário: como a terra devoluta, era aquela que dada, não fora explora­
da, aproveitada, cultivada, passou-se a eencarar, apenas o fato material do
inaproveitamento, da ociosidade, e, assim, o solo desocupado, vago, sem
apropriação foi sendo chamado «terra devoluta», linguagem frequente nas
cartas de doação.
Na Documentação Histórica Pernambucana, por exemplo, tanto
moradores quanto autoridades regias falam em «terras devolutas por se
não haverem dado a pessoa alguma» (pág. 63), «sem senhor ou pessoa que
a domine», «despovoadas, desaproveitadas, em matos maninhos», pouco im­
portando houvesse sido distribuída ou não: terra sem apropriação, ociosa,
não aplicada a alguma destinação específica — dos privados ou do Poder
Público — era chamada devoluta.
Acolhendo o que a praxe vulgarizara, a lei 601 fixa, agora em termos
legais, o conceito de terras devolutas alinhadas em quatro grupos: «l.° —
as que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial
ou municipal; 2.° — as que não se acharem no domínio particular, por
qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias, e outras con­
cessões do Governo, não incursas em comisso por falta de cumprimento das
condições de medição, confirmação e cultura; 3.° — as que não se acha­
rem dadas por sesmarias e outras concessões do Governo, que, apesar de
incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei; 4.° — as que não se
acharem ocupadas por posses que, apesar de não se fundarem em título le­
gal, forem legitimadas por esta lei ».
Estabelecido o quadro geral das terras devolutas, vinha o seu
disciplinamento: pondo termo à linha paternalista inaugurada em 1534, o
artigo l.° proibia sua aquisição «por outro título que não seja o de com­
pra», excetuada apenas a faixa de «dez léguas nos limites do Império com
Países estrangeiros», onde poderiam ser concedidas gratuitamente, no pro-
O Sistema Sesmarial no Brasil 145

pósito, inarticulado, de promover o povoamento das fronteiras, problema


ligado à segurança nacional. E contra quem se apossasse de terras devolu­
tas — nelas derrubando matos e pondo fogo — triplo castigo: despejo,
com perda das benfeitorias, prisão de dois a seis meses, com multa de cem
mil réis, e satisfação do dano causado.»
Restava, agora, estabelecer ordem no caos fundiário, resultante da
apropriação irregular, do solo, no caso daqueles moradores que, tendo re­
cebido terras de sesmaria, haviam deixado de cumprir alguma cláusula es­
sencial — verificando-se, assim, a caducidade da concessão — ou do
rurícola que simplesmente ocupara a gleba, como posseiro — e, portanto,
precarista.
Fenômeno, repitamos, então muito usual, quase regra, principalmente
nas regiões do Norte e do Oeste, longe do litoral, a única área
efetivamente distribuída conforme o figurino legal.

De relação a estes — sesmeiros irregulares ou meros posseiros —,


poderia a lei, se o quisesse, proceder com frieza a sem condescendência:
ocupantes do solo ao arrepio do ordenamento e, mesmo, contra normas le­
gais expressas, não se praticaria nenhuma injustiça, nenhum abuso, ne­
nhuma ofensa à lei tomando-se-lhes o que possuíam irregularmente, consi­
derando, tudo, Terra Devoluta, do património nacional para redistribui-
ção futura atravá; de venda. Seria, porém, um horror, uma calamidade,
atirar tanta gente ao olho da rua, tangê-la de suas atividades normais, ca­
bendo copiar a sabedoria romana, na fuga à extralimitação da juridicida-
de, no «summum ius, summa iniuria».
Legalmente inatacável, a solução seria, entretanto, desaconselhável à
luz da mora, da eqilidade , do interesse social e humano. Benigna, clarivi­
dente, a Lei 601 adota linha harmonizadora, conciliando os interesses em
jogo — os do morador, que não perdia a terra, e os do Estado, que teria
ajudado a facilitar o que mais convinha à Nação e à comunidade: o
■-
povoamento, a exploração do solo, a criação de riquezas, a realização do
bem individual e comum.
Acompanhemos o modo como a Lei 601 procurava corrigir aquelas
situações anómalas, demonstração do alto senso de realismo, equilíbrio e
bom senso dos velhos estadistas de D. Pedro II.
Quanto aos sesmeiros «irregulares» — que receberam sesmarias, mas
não cumpriram alguma das exigências essenciais —, adota-se o sistema da
«revalidação», firmando o artigo IV a norma de que «serão revalidadas as
sesmarias e outras concessões...que se acharem cultivadas, ou com
princípios de cultura e morada habitual do respectivo sesmeiro...embora
não tenha sido cumprida qualquer das outras condições com que foram
concedidas».
Quanto aos simples posseiros — que se limitaram a ocupar o solo sem
nenhuma outra formalidade — deriva-se para a «legitimação», dizendo o
artigo V: «serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por
ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem
cultivadas ou com princípios de cultura e morada habitual».
146 Costa Porto

Porque a Legitimação constituía favor mais liberal do que a simples


Revalidação, os §§ do artigo V lhe dedicam disciplinamento mais deta­
lhado: o posseiro terá legitimada a área realmente «aproveitada», ou «ne­
cessária para pastagem dos animais», sendo-lhe, ainda, reconhecido o
direito sobre «outro tanto mais de terreno devoluto...contíguo», desde que
não exceda «uma sesmaria.. .igual às últimas concedidas» no local.
Se por exemplo, na Comarca, a extensão das sesmarias fosse de uma
légua, o posseiro, que cultivasse 1500 braças, teria direito a mais de 1500,
do terreno devoluto vizinho, pois a soma das duas sortes não vai além de
três mil braças, uma légua.
Havia, porém, casos singulares de «posses em circunstâncias de serem
legitimadas», mas exercidas «em sesmarias...não incursas em comisso ou
revalidadas por esta lei», isto é, casos de moradores que, meros posseiros,
exploravam terras dadas de sesmaria a outros, com situação regularizada.
Legitimar tais posses importava conflito, prejudicando o sesmeiro
regular ou revalidado, cujos direitos, amparados pelo art. IV, deviam pre­
valecer, mesmo porque sua posição repontava menos abusiva. O art. V §
2.° regula este caso, esclarecendo que estas posses não serão legitimadas,
assegurando-se apenas ao ocupante, «o direito à indenização pelas benfei­
torias», salvo ocorrendo uma destas três hipóteses: se a posse houvesse sido
«declarada boa por sentença passada em julgado», ou estabelecida antes
da demarcação e não perturbada por cinco anos, ou, ainda, depois da de­
marcação, e não perturbada durante dez anos.
De acordo com o art. IV, «os campos de uso comum dos moradores
de uma ou mais freguesias, municípios ou comarcas seriam conservados em
toda a extensão de suas divisas», continuando a prestar o mesmo uso co­
mum, «enquanto por lei se não dispuser o contrário».

42 - A SITUAÇÃO DO POSSEIRO DA LEI 601.


A Lei 601, pode-se dizer, visava a proteger o simples posseiro e o
sesmeiro irregular, elevando-lhes a situação de fato à categoria de situação
jurídica, dando-lhes meio de adquirir o domínio pleno da terra, pela legi­
timação da posse ou revalidação da data.
Mas esta liberalidade não era absoluta, estabelecendo-se certas
condições. Assim, mandando o artigo 7 que «o governo marcará os prazos
dentro dos quais deverão ser medidas as terras adquiridas por posses ou
por sesmarias, ou outras concessões», estabelecia o artigo 8: «os possuidores
que deixarem de proceder à medição nos prazos marcados serão reputados
caídos em comisso e perderão, por isso, o direito que tenham a serem
preenchidos das terras concedidas por seus títulos ou por favor da presente
lei, conservando-o somente para serem mantidos na posse do terreno que
ocuparem com efetiva cultura, havendo-se por devoluto o que se achar in­
culto».
Daí porque não nos parece procedente a lição do douto Messias
Junqueira de que a Lei 601 se mostra «muitíssimo mais liberal», pois, em­
bora considere em comisso quem não medir o solo ocupado, assegura ao
O Sistema Sesmarial no Brasil 147

sesmeiro irregular «o direito sobre a área efetivamente cultivada e habita­


da», ao simples sesmeiro «o direito sobre a área efetivamente cultivada e !
habitada», e ao simples posseiro «o direito à área ocupada com cultura
efetiva e morada habitual».
O que, na verdade, a Lei 601 estabelece é diverso: os sesmeiros e os
posseiros, que procederam à medição, terão a data revalidada e a posse
legitimada, isto é, adquirem o domínio pleno e legal sobre a terra ocupa­
da; mas, se não realizarem a medição, conservarão, apenas, o direito de
ser «mantidos na posse do terreno que ocuparem com efetiva cultura».
Muito claro: o que o artigo 8 lhes assegura é a manutenção da posse e
não o «direito à área ocupada».
De certo, esta posse não resultava irrelevante.
O direito à manutenção, na verdade, valia contra terceiros, tanto
í
mais quanto, depois de 1822 — definitivamente, depois da Lei 601 —,
ninguém podia receber terras de sesmaria, e quem lhes viesse disputar a
terra teria de apresentar título mais robusto, o que não seria fácil.
Depois, o artigo 9 mandava ao governo procedesse à demarcação das
terras devolutas, respeitados, porém, «os limites das concessões e posses que
se acharem nas circunstâncias dos artigos 4 e 5». Finalmente, defendidos
contra ataques de terceiros, mercê dos interditos «retinendae et
reciperandae possessionis», de certo militariam, em seu favor, os benefícios da
posse «ad usucapionem», isto é, decorridos os prazos prescricionais, adquiri­
ram o domínio pleno da terra.
A desvantagem maior desta situação de fato talvez fosse esta: sem
medição o morador não obteria aquele título exigido pelo artigo XI, e sem
o qual não poderia hipotecar ou alimentar a terra.
Na origem — talvez até os fins do século 17 —, o processo normal,
habitual, comum de ocupar o solo rural, adquirindo-lhe o domínio, era a
concessão de sesmaria, surgindo depois, e generalizando-se, a praxe da
simples posse, afigurando-se-nos, entretanto, discutível a doutrina de que
esta «pode, com o correr dos tempos, vir a ser considerada como modo
legítimo de domínio, paralelamente a princípio, e, após, em substituição,
ao nosso desvirtuado regime de sesmarias».
Rigorosamente a posse não seria «modo legítimo de aquisição de
domínio», servindo, apenas, de fundamento às ações de usucapião, na for­
ma fixada em lei.
E mesmo depois da Lei 601, as posses mansas e pacíficas são apenas
legitimadas, facultando-se aos posseiros, ou antes obrigandõ-os, a «tirar os
títulos dos terrenos», nos termos do artigo 11.
Daí parecer-nos correta a doutrina do Supremo, no acórdão de 22 de
maio de 1907, redação de Epitácio Pessoa, quando acentuava estes dois
ponto fundamentais: l.° — «Os possuidores de terras...não tinham a
propriedade dessas terras, eram simples posseiros como a lei os chamava; o
laço jurídico que os prendia à terra era, unicamente, a posse». 2.° — A
Lei 601 «preferiu adotar um regime de Transação, pelo qual se compro­
metia a reconhecer o direito de todos os posseiros que, nos prazos dados,
legitimassem suas posses».
148 Costa Porto

Combatendo a doutrina do acórdão, ressalta-lhe Cirne Lima a


«manifesta incongruência», indagando: «de fato, que direitos o legislador
de 1850 poderia reconhecer aos posseiros, se estes nenhum direito tinham,
se não a posse? Que transação poderia haver, por outro lado, se a transa­
ção — efeito, embora, de concessões mútuas — é, antes de tudo, um
recíproco reconhecimento de direitos?»
Não logramos, data vénia, vislumbrar a «incongruência» apontada. O
que, na verdade, o acórdão põe em relevo são dois «momentos» diversos —
antes e depois da Lei 601: Antes, o posseiro estava numa situação de fato,
ocupava o solo, mas sobre ele não exercia o domínio legal, que somente
lhe advirá pela legitimidade do título — a carta de data, preenchidas as
exigências legais; depois da Lei 601, o cumprimento de exigência essencial a
medição e demarcação — transformará a «posse» em «domínio», dando-
lhe, o que não tinha dantes, Direito à terra.
Mas «que direitos», pergunta Cirne Lima, o legislador de 1850
poderia reconhecer aos posseiros, «se estes não tinham nenhum direito, se
não a posse?»
Atente-se, porém, no sentido da lição do acórdão. Não se trata de re­
conhecer um «direito preexistente» — que esse, de fato, não havia —, mas
um direito ex novo, que vai susrgir, exatamente do instante em que se
procede à demarcação, como é o caso de quem adquire um imóvel por
compra ou doação: dantes, não tinha nenhum direito sobre ele, mas, de­
pois da transmissão e do registro no Cartório de Imóveis, passa a exercer
um direito que, no caso, a lei lhe reconhece.
Quanto à palavra «transação», trata-se, a toda evidência, de vocábulo
que, na linguagem do acórdão, não tem o rigorismo da técnica jurídica —
não traduzindo a idéia de «recíproco reconhecimento de direitos» —, mas
a atitude de quem «cede», de quem chega a um acordo: desde que o mo­
rador meça as terras, a lei «transige», reconhecendo-lhe o domínio, sem as
formalidades outras exigidas para aquisição do senhorio do solo.

Nem nos parece segura a lição de Cirne Lima de que «demais, ao


contrário do que o acórdão diz, as posses com cultura efetiva não estavam
sujeitas a legitimação, reconhecida, como era pela lei, independente de
qualquer formalidade, o direito dos posseiros, posto que somente para se­
rem mantidos na posse do terreno que ocuparem com efetiva cultura,
havendo-se por devoluto o que se achar inculto».
Todo o engano reside aí.
A leitura do artigo não admite nenhuma dúvida. A posse com cultura
efetiva estava sujeita a uma exigência — medição e demarcação —, a fim
de ser reconhecida como situação jurídica, não tendo fundamento, desta
sorte, a doutrina de que a legitimação se processava «independente de
qualquer formalidade»; havia formalidades essenciais — medição e demar­
cação —, sem as quais o posseiro ou o sesmeiro irregular não adquiriam o
domínio da terra, não seriam donos, apenas ficavam com o direito de ser
«mantidos na posse».
i
I
O Sistema Sesmarial no Brasil 149 h
Somente a medição elevava a posse a domínio, por uma transigência,
uma tolerância, uma liberalidade, uma «transação» da Lei 601.
Três anos e meio após a promulgação da Lei 601, o governo imperial
baixou-lhe competente regulamento — 30 de janeiro de 1854: peça mui­
to bem elaborada, disciplinando os vários ângulos do problema: mas na
verdade quase tudo ficou reduzido ao papel, mais uma «ilusão gráfica»,
sem nenhuma ressonância na vida prática.
Vedada, desde então, a concessão das terras de sesmaria, continua­
i
vam, entretanto, os abusos de simples ocupação, não sabendo o poder pú­
blico o que, de fato, possuía, continuando quase a mesma balbúrdia de
outrora no tocante à falta de delimitação do solo ocupado por privados,
seja através de cartas de datas — regularizadas ou não —, seja através de
mera ocupação, porque as normas referentes à demarcação permanece­
riam sem sentido, dado que nunca houve meios de conseguir demarcadores
para proceder às delimitações determinadas no artigo 14 da Lei 601.
E, de qualquer modo, o que não lograria nenhuma norma tardia seria
consertar os erros cometidos em longo passado de mais de 300 anos de
confusão, tumulto e desordens. Tudo quanto o sistema sesmarial podia
produzir de nefasto, prejudicial e desastroso estava consumado, restando,
quando muito, evitar os males quanto ao futuro, enquanto, de respeito ao
que se distribuíra — praticamente todo o litoral —, não havia mais remé­
dio, herdando o Brasil republicano os vícios da Colónia e do Império, indi- çq
ferentes os governos diante do drama do problema fundiário brasileiro,
grave, agudo, melindroso e cujos efeitos danosos já agora constituem um
dos ângulos fundamentais da vida nacional em nossos dias, e cuja maior
manifestação tem sido o drama do latifúndio e o tormentoso problema do I'
acesso à terra.

43 - A PROCESSUALÍSTICA SESMARIAL

O primeiro diploma legal que, na Colónia, disciplinou o processo ses­


marial foram as cartas de doação das capitanias e os forais dos donatários,
dizendo-se, como no de Duarte Coelho: «item prymeiramente o capitam da
dita capitania e seus sobçessores daram e repartyram todas as terras delia
de sesmarya a quaesquer pessoas de qualquer calydade e condyçam que se-
yam, contanto que seyam christãos, lyvremente, sem foro nem direito
algum, somente o dízimo que seram obrigados de pagarem a hordem de
mestrado de Noso Senhor Jhesu Christo... as quaes sesmaryas daram na for­
ma e maneira que se conthem em minhas Ordenações».
Mas as Ordenações não ofereciam «processualística» ordenada quanto ■

à distribuição, limitando-se a fixar princípios gerais, vagos, seu tanto esfu­


mados, regras quanto à distribuição, mas não o modo de efetuá-la.
O certo, porém, é que, desde os primeiros anos, encontramos uma
ii
espécie de rotina, uma «chapa», quase um formulário mais ou menos uni­
forme, em que se iam introduzindo as exigências novas, pouco variando os
termos das cartas, vazadas em linguagem de certo modo idêntica, ou ao
menos assemelhada.
150 Costa Porto

Vejamos dois exemplos: um do século 16, quando apenas se iniciava a


distribuição, c outro dos começos do século 18, quando havia quase 200
anos se vinham doando terras na Colónia.
O primeiro, uma carta passada em 1542, por Duarte Coelho: «Duarte
Coelho, Capitam, e Governador destas terras da Nova Lusitania, etc. Faço
saber a quantos esta minha carta de doação virem que a mim me apraz e
hey por bem de dar e doar deste dia pera sempre a Joam de Sabanda. mo­
rador nesta minha villa de Olinda, a terra que está no vale da Merueira
termo desta villa... a qual terra...dou ao dito Joam de Sabanda, pera elle e
pera sua molher e filhos e netos e herdeiros e pera todas as pessoas que
delles descenderem, deste dia pera todo o sempre... a qual terra elle dito
I Joam de Sabanda..e todos os que delle descenderem delia se poderam lo­
grar e aproveitar e poderem fazer delia o que lhes-bem vier, como de cou­
sa sua própria, livre, izenta, a qual terra lhe dou forra, livre e izenta, sem
nunca em tempo algum 'pagar nenhum foro, nem tributo, nem direito al-
gum, somente o dízimo a Deus... e lhe mandey dar esta carta de doaçam
por mim assinada scllada do meo sello e mande que se registe no livro do
Tombo».
Ou estoutra, de 1729.
«Dom Lourenço de Almeida, etc, etc. Faço saber aos que esta carta
de doação de sesmaria virem que Manuel Fernandes de Mello e Florentina
Ferreira de Mello me representarão a petição cujo theor é o seguinte: Sr.
Governador. Dizem... que elles tem seos gados e não têm terras em que os
possão accomodar e sabem que no rio Ceará mirim elle acima ha terras
devolutas e nellas podem accomodar seos gados e mais criações o que he
tudo bem da Real Fazenda de S.M.... a que não serve hajão terras
devolutas... pedem a V.S. lhe dê de sesmaria uma legoa de comprido e
uma de largo... E.R.M. Informe o Provedor da Fazenda Real, ouvindo o
dr. Procurador delia. Haja vista o doutor Procurador da Fazenda... Obser­
vando as ordens reaes que nesta matéria já e a forma da lei, não se me of-
ferece duvidas... Sr. Governador. Ordena S.M.... por sua real carta de 20
dc janeiro de 1699... a forma em que se deve de novo conceder as datas de
sesmaria e declara que, além de pagar-se o dízimo à Ordem de Christo e
satisfazer-se as demais obrigações costumadas, se lhe ponha um foro, se­
gundo a grandeza ou bondade da terra, com a declaração de que, sendo
convenientes para seo real serviço, se não darão e ficarão pera a Fazenda
Real e por carta de... junho de 1711 ordena que não succedão nas terras
Religiões por nenhum título e acontecendo, pagarão os dízimos como se
fossem possuídas por seculares e faltando a isso se haverão por devolutas...
À vista do que se tem examinado... não se me offerecc duvida em se dar
as cláusulas e condições expressas nas ordens acima declaradas... E
havendo respeito ao que S.M. me concede... hei por bem fazer-lhe mercê e
dar ao suplicante, como pela presente dou, de sesmaria, em nome de
S.M.», etc.
Lira Tavares (op. cit., pág. 12) resume, em síntese aceitável, o proces­
so de distribuição de terras de sesmaria: «os pretendentes as solicitavam
X por petição, mencionando o nome de requerente, lugar onde residiam, si-
O Sistema Sesmarial no Brasil 151

tuação geográfica da terra pedida, sua extensão, limites. Depois da infor­


mação do Provedor da Fazenda Real, da Câmara do Município... e do
Procurador da Coroa, subia a petição a despacho do Capitão-Mor, que re­
solvia sobre a concessão».
Falando do despacho final dos «capitães-mores», é visível que o autor
se deixou levar pelas cartas relativas à Paraíba, onde realmente — como
era praxe também no Ceará, no Rio Grande do Norte, em Sergipe, etc. a
distribuição de datas estava afeta àquelas autoridades.
Mas em regra quem assinava as cartas eram os donatários e depois os
Governadores Gerais, em seguida os diversos governadores.
Na pendência em torno das terras compradas a Marta Fonseca, em
Maciape, e disputadas por Baltasar Gonçalves, o Procurador do Mosteiro
de São Bento faz um cavalo de batalha do problema do formalismo.
Alegava Baltasar haver comprado as terras a Gabriel d'Amil, que as hou­
vera de sesmaria, conforme carta passada pelo donatário em 1568, e um
dos argumentos do arrazoado dos religiosos é de que tal carta era nula,
porque não fora baixada de acordo com a norma das Ordenações, segundo
a qual as sesmarias deviam ser passadas «por escrivam que para isso tenha
autoridade». Desta sorte — «e porque o donatário não he snr. absoluto das
terras senam cesmeiro e repartidor» e «enquanto cesmeiro não he mais ces-
meiro que os outros cesmeiros» —, «não podia_dar terras por Alvarás ou car­
tas particulares», vedando-se-lhe «dar terras por si» (Tombo, 369).
A alegação, porém, se nos afigura irrelevante. Em regra as cartas de­
viam ser lavradas «por um escrivão que havia próprio para isso», conforme
observa o autor das «Memórias sobre as sesmarias da Bahia», mas se algum
governador ou donatário redigisse, ele mesmo, o documento, nem por isso
se haveria de falar em nulidade: também em nossos dias, não seria normal
um Presidente da República, um governador, um prefeito, datilografem,
eles próprios, os atos ou decretos, pois, para isso, existem burocratas espe­
ciais: mas se algum o fizesse, nem por isso se iria sustentar a nulidade do
ato...
No comum, a concessão de terras se fazia mediante pedido do preten­
dente, e pedido escrito, sendo usual, nas cartas, lerem-se preâmbulos as­
sim: «faço saber que a mim me enviou dizer por sua petição Fulano de tal»
etc. (Tombo, 134, 150, 153, etc.).

1
Mas é claro podia haver pedido verbal, ou a doação ser mesma espon­
tânea: doando, em 1534, a Capitania de Pernambuco a Duarte Coelho,
diz el-Rei que o faz «de meo proprio moto... sem me elle pedir nem ou­
trem por elle»: por que não distribuir sesmarias aos moradores, mesmo 4';|l 1I
quando não as solicitassem expressamente? E muita carta (Tombo, 31, 35,
244, 288) parece insinuar não precedera pedido, pelo menos escrito.
A menção do nome do requerente ou do beneficiário se tornava im­
prescindível, pois a doação se fazia a pessoa determinada e, via de regra,
í
pressupunha certa fundamentação. Embora el-Rei mandasse fazer a i
distribuição a «quaesquer pessoas que seyam», contanto que fossem cris­
tãos, a data valia espécie de paga a serviços prestados, cada colono procu­
rando justificar a solicitação sob os mais variados motivos: uns simplesmen-
152 Costa Porto

te dizem «tem família», filhas para casar, têm gados, dispõem de meios
para cultivar a terra; outros lembram que, recebendo sesmarias, irão
produzir, aumentando as rendas régias, os dízimos, pagarão foro, etc: a
maioria recorda os serviços prestados ao Soberano, à Colónia, em lutas
contra indígenas, contra o estrangeiro, contra os negros aquilombados, tu­
do «à custa de sua fazenda», com risco de vida, com derramamento de san­
gue (Tombo, 152, 398, 403, etc); Bartolomeu Gomes Borba é isto que
alega: «tem servido a S.M. nestas guerras de Pernambuco até a feliz res­
tauração, como é notório... e tendo muitos filhos e familiares, não possui
terras aonde os accomode» (Doc. Hist., 3); outro: « tem servido a S.M. co­
mo he notório, vive muito pobremente» (ib., 6); ou «tem servido a S.M.
em as guerras da liberdade... e de presente servem seus filhos a todos os
rebates que se offerecem com suas armas e cabedaes» (ib., 10); as filhas de
Gomes Correia lembram os serviços prestados pelo pai e pelos irmãos; D.
Isabel, filha de Jerônimo, quando pede terras, costuma trazer a terreiros os
trabalhos do pai, «o primeiro povoador desta capitania».
A gama de serviços é a mais variada: informando um pedido do Dr.
Baltasar Pereira de Melo, o Procurador da Coroa aponta, entre os motivos
que justifiquem o deferimento, ser ele «letrado, graduado na Universidade
de Coimbra, advogado de muitos annos nos auditórios desta cidade e advo­
gado de boa nota, assim nos termos judiciais como em discutir pontos de
direito, conciliando as leis e opiniões de direito com grande erudição e
melhor intelligencia para concordância delias» (Doc. Hist., 26).
Pedindo sesmarias, o colono costumava mencionar a residência, praxe
que, de certo, tinha raízes no Regimento de Tomé de Souza, onde vemos a
proibição de distribuir as terras da Bahia «pessoa allgua das que ora são
moradores nas outras capitanias», vedando-se, ainda, aos moradores de
uma capitania, pudessem passar para outra, sem licença do respectivo ca­
pitão.
Nem custava nada dizer o colono onde morava, embora, no comum,
as alusões sejam muito vagas: «morador nesta capitania», «morador nesta
vila», etc.
Também seria usual mencionar «a situação geográfica da terra solici­
tada», pois se pediam áreas determinadas, lugares certos, os quais, muitas
vezes, antes de pedidos legalmente, já vinham sendo ocupados por quem os
descobrira. Mas, sobretudo nos primeiros tempos, as referências são vagas,
esfumadas, imprecisas: «ao longo do Rio Capibaribe» (Tombo, 359), num
«ribeiro que corre entre muitas palmeiras» (ib., II), «entre o Rio Capiba­
ribe e o Rio Parahiba» (ib., 18); «umas terras desertas no sertão, por cima
de terra nova» (Doc. Hist., I, 8); «alguns campos e água que forma um ri­
beiro que corre por entre muitas palmeiras», etc. (ib., II).

Comum, igualmente, apontar a área pedida e, quando não o fazem os


moradores, a autoridade costuma determiná-la na carta; mas não são raros
os pedidos vagos quanto à extensão das datas: «não sabe ele suplicante as
léguas que há», donde pedir-se muita vez, «o que houver», incluindo as so­
bras, «o que for achado», etc.
O Sistema Sesmarial no Brasil 153

Depois de 1699, o problema da extensão se tornou rigoroso: as


doações ficavam, desde então, sujeitas a um foro, cobrado por légua, e as­ ?!
sim toda carta deveria fixar a área, para se saber quanto devia o sesmeiro
pagar a el-Rei, dizendo-se num parecer: «deve faze-la medir, para declarar
de certo a sua extensão... para que assim se lhe possa impor o foro que de­
ve pagar» (Doc. Hist., 2, pág. 145).
O mesmo quanto aos limites, que ora aparecem bem determinados, i
apontando-se lindes naturais — rios, montes, etc. —, outras vezes se per­ ■i
dem em tom impreciso, indefinido, embora claros para os homens do tem­
po: D. Beatriz doa umas terras, que se limitam pelo «paço onde mataram
o Varela», a sesmaria de Vasco de Lucena, em Jaguaribe, tinha como um
dos limites «as feitiçarias dos índios»; «por cima da terra nova»; no citio do
Voltrin», etc.
j
De passagem, seria curioso examinar que lugar era este, tantas vezes
lembrado na Documentação Histórica, em se tratando de terras em Olin-
da: possivelmente alguma sesmaria doada a um conhecido francês dos
meados do século 17 — Jean Voltrin —, que teve parte saliente nas lutas
da Restauração.
Quando a Corte lusitana mandou, para dirigir a luta contra os fla­
mengos, o Mestre de Campo Francisco Barreto, o navio em que viajava
caiu em poder do inimigo, sendo o comandante preso e conduzido para o
Recife, logrando, porém, fugir à prisão, graças à proteção de Francisco de
Brá, filho do seu carcereiro, ajudado, na empresa, por Voltrin, a quem D.
João IV, em 3 de dezembro de 1652, concedeu o título de «cidadão
português», por haver «auxiliado a fuga daquele general, residir ha muito
no Reino e conquistas, e procedendo com grande... zelo do serviço
português, particularmente no Recife, onde favorecia a todos», segundo
recorda Rodolfo Garcia (Nota à História Geral, III, pág. 74).
Voltrin — «que faleceu na praça do Recife com seu testamento apro­
vado em os vinte e seis do mês de novembro de 1684» (Tombo, 206) —
possuía bens no Recife e Olinda: a «Crónica do Mosteiro de São Bento»
alude a umas casas «que foram do Voltrin», «no canto da Rua dos Tanuei-
ros») (Rev. XXXV, pág. 77); uma demarcação das terras de N.S. do Mon­
te alude à «Alagoa chamada Agua de Voltrin» (Revista XXXVII, pág.
162).
Como o «sítio do Fragoso» eram terras pertencentes a Pedro Fragoso,
apontado, por um documento do Mosteiro, como «morador nos limites das
ditas terras» (De N.S. do Monte), «homem que disse ser de idade de oi­
tenta e cinco annos» (ib., 161), o sítio do «Voltrin» seria, sem dúvida,
pertencente ao francês.
E não seria o «citio do Voltrin» aquele local, de Olinda, hoje conheci­
do como os «Bultrins»?
Tal denominação não nos parece ligada à tribo dos «bultrins» que, se­
gundo Basílio de Magalhães (Expansão Geográfica, pág. 246 — nota),
ocupavam «o sertão paraibano e terras limítrofes», pois não consta houves­
sem estes indígenas ocupado o litoral olindense.
154 Costa Porto

Legítimo se nos afigura admitir seja «Bultrins» corrutela de «Voltrin»,


aportuguesado na linguagem popular, como ocorreu com o «Van der Ley»,
aportuguesados Vanderlei, com> o inglês Vhital, em Vital, com
Schomberg, em Xumbergas ou Uxumbergs — nome dado ao governador
Mendonça Furtado —, com o inglês Koster, em Costa, com o forte Bruyn,
construído «em honra da esposa do general Teodoro Waerdenburgh» (Anais
Pernambucanos, 2, pág. 571) e aportuguesado em «forte do Brum».
Talvez Voltrin passasse a Bultrin e Bultrins, nome que se generalizou.
As informações do Procurador da Coroa, do Provedor, dos escrivães,
às vezes dos Capitães-Mores, devem ter começado depois de 1549 com o
Governo Geral, e se tornaram depois indispensáveis para efeito de saber se
se tratava de «terras devolutas», de terras que, do «interesse» da Fazenda,
não podiam ser distribuídas, para cobrança de foro, etc.
O alvará de 15 de outubro de 1795 dispensou a audiência dos Procu­
radores e Provedores, passando a tarefa ao chanceler da «Junta» criada por
um alvará de 1760.
Pelo menos em Pernambuco, enquanto se manteve o sistema
donatarial, quem distribui terras são os donatários, sem audiência de mais
ninguém.
A faculdade de dar sesmarias se olhava quase como poder pessoal do
donatário, que ele delegava tanto a prepostos e loco-tenentes, como a
«procuradores», agindo, neste caso, em nome do capitão, frequentes as car­
tas assinadas pelos substitutos dos capitães, como D. Beatriz, nas muitas
vezes em que ficou à testa de Nova Luzitânia, Jerônimo de Albuquerque,
Felipe Cavalcanti, Manuel Mascarenhas, Pedro Homem de Castro, Matias
de Albuquerque, etc, todos loco-tenentes dos donatários.
Em outras cartas, D. Beatriz, por exemplo, se assina, não como
«capitôa», mas como «procuradora» do seu filho. Em 1610, na menoridade
de Duarte de Albuquerque Coelho, quarto donatário, quem governa a
Capitania é Alexandre de Moura, mas uma sesmaria dada aos Beneditinos,
em Paripueira, é feita por Francisco de Gouveia, «como tutor» do
donatário impúbere (Tombo, 524).
Mesmo tendo representantes na Capitania, às vezes o donatário assina­
va datas de longe: o caso de Jorge, que, em 1593, de Lisboa, distribui ter­
ras ao Mosteiro de São Bento, é verdade que terras do «seu reguengo».
A competência para distribuir terras de sesmaria, originariamente dos
donatários e seus loco-tenentes, passou depois para o Governador Geral,
com sede em Salvador, pelo menos até 1602, quando Diogo Botelho tomou
posse em Olinda.
A presença da autoridade régia em Olinda nasceu de diversas causas:
«por tirarem mais proveito, ou por estarem mais perto do Reino», como se
insinua nos Diálogos, mas, também, por insistência da população, que
apelava para os governadores, como sucedeu com D. Diogo de Menezes, a
fim de pôr cobro a abusos dos representantes do donatário, como Manuel
Mascarenhas Homem.
O Sistema Sesmarial no Brasil 155

D. Francisco, esse quase se mudou para Pernambuco, a pretexto de


«mais perto atender à guerra contra os franceses do Maranhão».
Naturalmente, esta prática trazia atritos com as autoridades locais, e o
quarto donatário protestou junto ao soberano espanhol, que, pelo alvará
de 21 de fevereiro de 1621, proibiu aos governadores deixassem a Bahia
sem autorização especial do Monarca.
Restaurado Pernambuco em 1654, D. João IV anexou-lhe as terras à
Coroa e passou a designar governadores para a antiga capitania: Francisco
Barreto, de 1654 a 1657; André Vidal, até janeiro de 1661; Brito Freire,
até março de 1664, Mendonça Furtado, o Xumbergas, até agosto de 1666,
quando foi deposto pelo povo; Vidal, interinamente, até junho de 1667: D.
Pedro de Almeida, até abril de 1678; Sousa Castro, até janeiro de 1682:
D. João de Sousa , até maio de 1685; Souto Maior, até junho de 88; Fer-
não Cabral, que faleceu em seguida, em setembro do mesmo ano; o Bispo
D. Matias, interinamente até maio de 1689; Câmara Coutinho, até junho
de 1690. Antônio Felix Machado da Silva e Castro, Marquês de Montebe
lo, até junho de 1693; Caitano de Melo e Castro, até abril de 1699; Masca-
renhas de Lencastre, até novembro de 1703; Castro Morais, até junho de
1707; Sebastião de Castro e Caídas, até novembro de 1710, quando fugiu
para a Bahia, com a eclosão da Guerra dos Mascates; D. Manuel Alvares
da Costa, até outubro de 1711, quando assumiu Felix José Machado, etc.
Enquanto isso, nas «capitanias de el-Rei», isto é, aquelas povoadas «à
custa de sua fazenda», como a Paraíba, e nas mais «para a parte do Norte», no-/''
meava el-Rei administradores locais — os «Capitães-Mores» — que Brande
nio, nos Diálogos», aponta como «sesmeiros per S.M., repartindo cada um n
capitania sob sua jurisdição» as terras de sesmaria. \
A crer-se em Brandônio, concedera el-Rei, aos capitães-mores, a fa­
culdade de distribuir terras de sesmaria, mas já ficou acentuado que, nos
fins do século 17, estes poderes foram postos em dúvida, dizendo-se em um
documento do tempo que «os Capitães-Mores não podiam dar terras ne­
nhumas,» afirmação, entretanto desmentida pela prática de cada dia.
Mero «sesmeiro e repartidor», a autoridade — régia ou local — não é
dona da terra, e, se não há nenhuma norma expressa que obrigue a distri­
buir sesmarias — além daquele princípio imperativo das cartas: «daram
e repartyram» —, o certo é que não conhecemos um caso de indeferimen­
to, quando enquadrado o pedido nas normas legais.
E no exercício desta faculdade — que soava mais como um dever—, o
concedente não podia pretender nenhuma recompensa pessoal, pois agia
como simples encarregado da distribuição.
Às vezes, porém, topamos com algum distribuidor sabido, que
procura auferir proventos das datas: Francisco Coelho de Carvalho, por
exemplo, Capitão-Mor da Paraíba, doa, em 1611, uns chãos aos
beneditinos, com a obrigação de lhe ser cedido «o altar colateral da parte
da Epistolla pera nelle por a imagem de Sam Mamede Mártir», o que ain­
da seria admissível, mas ainda com a cláusula de celebrarem os religiosos
156 Costa Porto

«duas missas cada anno sempre hua em dia do dito Sancto e outra em dia
de Sam Joam Batista, por tenção delle... e de todos os seus herdeiros»
(Rev. Arquivo Público, ano II, IV, pág. 182).

44 - DEMARÇAÇÃO E POSSE

Passada a carta de data, o sesmeiro devia, depois de 1549, registrá-la, sob


pena de caducidade, nos livros da Provedoria, sendo praxe, em Pernambuco,
registrá-la também no livro do Tombo das datas e demarcações, criado por
Duarte Coelho, fazendo-se mister, depois de 1698, pedir confirmação régia.
Mas antes da confirmação — condição resolutiva —, vinha a posse e, a
princípio como praxe, depois como exigência legal rígida — embora raro
cumprida — , a cerimónia da demarção.

A posse se processava com aquele formalismo casuístico do velho


direito romano, complicada, bulhenta, cheia de ranço medieval, em que a
forma era tudo.

Via de regra mais ou menos assim: «Saibam quantos este público ins­
trumento de ato de posse virem que, no anno do nascimento de Nosso
Senhor Jesus Christo, da era de 1663 annos...nesta villa... por baixo da
Igreja de Sam Bento da dita villa, onde eu, Tabbaliam ao diante nomeado
fui e sendo ahi, perante mym appareceram Manoel da Sylva Pinto...e por
elle me foy apresentada a carta de data atrás...requerendo-me que eu, em
virtude delia, lhe desse posse das terras conteudas em sua data, a qual to-
mey e com o dito Manoel da Sylva Pinto fui aonde chamão a gorita de
Joam de Albuquerque e nella gritei, em alta e intelligivel voz, dizendo(:)
ha pessoa ou pessoas que tenham embargos e esta posse que dou desta ter­
ra a Manuel da Sylva Pinto(?) e logo o dito Manoel da Silva Pinto cavou
na terra e a lançou para o ar, dizendo, eu Taballiam, huma e repetidas
vezes(:) ha pessoa ou pessoas que tenham embargos a esta posse que dou a
Manoel da Sylva Pinto(?) e por nam me sair pessoa alguma o houve por em­
possado e lhe dey a dita posse e logo fuy caminhando com o dito Manoel
da Sylva Pinto e testemunhas que prezentes estavam pela praya...dizendo
sempre pelas ditas prayas e logradouros della(:) ha pessoa ou pessoas que
tenham embargos e esta posse que dou... a Manoel da Sylva Pinto(?) e por
nam me sair pessoa alguma, cavando o dito Manoel da Sylva Pinto, e bo­
tando terras pera o ar, o houve por empossado, quanto de direito, posso e
se requer: e logo eu Taballiam e testemunhas viramos da dita testada e
viemos correndo por a banda de dentro da trinxeira da dita praya por
todas as terras...e por ellas vim eu Taballiam gritando em alta voz(:)ha
pessoa ou pessoas que tenham embargos a esta posse que dou ao dito Ma­
noel da Sylva Pinto(?) e por me nam sair pessoa alguma o houve por em­
possado... e logo o dito Manoel da Sylva Pinto tomou uma enxada na
mam e cravou na terra e plantou árvores de frutos e romeyras e pacoveyras
e árvores de espinho, e as arrancou donde estavam, plantando-as à vista de
todos, dizendo eu Taballiam repetidas vêzes, em alta e intelligivel voz(:) ha
O Sistema Sesmarial no Brasil 157

pessoa ou pessoas que tenham embargos a esta posse que dou a Manoel da
Sylva Pinto de todas estas terras(?) e por me nam sair pessoa alguma o-
houve por empossado» (Tombo, 58).

Exemplo de uma demarcação:


«Tomamos a dita carta e lemos e conforme a ella, fomos ao camynho
que vay para o Recife e perto desta villa de Olinda, onde antigamente se
chamava o caminho onde mataram o Varella e sendo lâ, se pôs o dito de-
marcador perto de hum oity onde meteo hum marco de pedra...e do dito
marco foy...pelo rumo do Noroeste, onde metteo dois marcos...e dali ao
marco que metteo perto do oity...e foi correndo pelo sudoeste...e metteo
outro marco de pedra...e dalli se tornou ao caminho do carro... onde se
acabou a dita terra por amor do caminho do carro e logo metteo outro
marco de pedra...e mays bayxo metteo outro marco...à qual demarcaçam
o dito Manuel Alves houve por demarcada, feita e acabada» (Tombo, 30).
Tomando posse da terra, tratasse o colono de aproveità-la, no prazo
fixado na carta — máximo de cinco anos, segundo o preceito das Ordena­
ções — , porque o não aproveitamento importava caducidade da data e
redistribuição do solo, tido como devoluto.
Aproveitamento, repitamos, mais «simbólico», quase meramente
intencional, bastando uma espécie de «animus domini», atitude de
comportar-se como senhor da terra, exercendo sobre ela a plenitude do
1 domínio. A utilização efetiva, essa se ia fazendo a pouco e pouco, mesmo
porque nem mesmo nos casos de engenho, seria possível ocupar, material­
mente, as áreas das sesmarias, léguas e léguas perdidas na imensidão da
Colónia virgem.
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Guarde o Cupom de sua última


devolução e/ou renovação

O atraso na devolução gera multa

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Cod: 10255 Rbq: 5847/86

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Natural de Canhotinho. ,no Estado de
Pernambuco, onde nasceu ern-43 de Junho £
dé 1909. Costa Porto bacharelou-se em Di­
reito pela Faculdade de Direito do Recife
Jornalista, exerceu atividades de edito-
rlalista e colunista dos jornais «Folha da ?«.
Manhã», «Diário da Manhã». «Jornal Pe­
queno», «Jornal do Comercio» e «Diário
de Pernambuco». Foi Diretor deste último
e superintendeu os Diários Associados.
Dirigiu a Televisão Universitária, de Per­
nambuco.
No setor político, foi Deputado Federal V
na Constituinte de -16. pelo extinto PSD
Ministro da Agricultura no Governo Café
Filho, exerceu, depois, a Presidência do A
Banco do Nordeste do Brasil. Presidiu.
também, o Banco do Estado de Pernam­ •v ' *
buco — BANDEPE. J
Professor Universitário, ministra as
disciplinas de Direito Constitucional. Di­
reito Romano e Teoria Geral do Estado na
Universidade Católica de Pernambuco,
Membro da Academia Pernambucana *
de Letras e do Instituto Arqueológico. His­
tórico e Geográfico de Pernambuco, es­
creveu as seguintos obras: «Pinheiro Ma­
chado e Seu Tempo» <1950); «O Pastoreio
na Formação do Nordeste» (1950); «Os ex
Tempos de Kosa e Silva» (1970); «Estatu­
to das Vilas do Brasil Colonial» (1970);
«Pequena História da Confederação do 0 Sistema
Equador» (1974); «Os Tempos de Dantas
Barreto» (1974); «A Propósito de Terras
Devolutas» (1975); «O Marquês de Olinda
e Seu Tempo» < 1976); «Doçura Amarga —
A Propósito de uma Crise na Agro Indus­
tria Canavlelra do Século XVII» <1977);
«Os Tempos de Lima Cavalcanti» <1977);
«Duarte Coelho» <197H); «Os Tempos de
Gervãslo Pires» 1197H) e «Canhotinho
Notas sobre suas Origens e Evolução
Política» (1979).

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