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sesm.a.riai no brasil
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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA 'y
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Conselho Editorial:
Afonso Arinos de Mello Franco, Cândido Mendes de Almeida, Carlos Henrique
Cardim, Charles Sebastião Mayer, Geraldo Severo de Souza Ávila, João Ferreira,
José Maria Gonçalves de Almeida Jr., Octaciano Nogueira, Orlando Luiz de Souza
Fragoso Costa, Vamireh Chacon de Albuquerque Nascimento, Walter Costa Porto. &
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UNIVERSIDADE DE FORTALEZA
. BIBLIOTECA CENTRAL •
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ÍNDICE
Introdução 3
1 Preliminares 11
— O mercantilismo 12
— A «Meia Lua» 13
— A epopéia do cxpansionismo lusitano 14
— Portugal «versus» Castela 15
2 O Brasil Esquecido 18
— O Perigo francês 19
—t As donatárias 19
3 O Regime Sesmarial 21
4 O Brasil «Redescoberto» 23
5 — A Repartição da Conquista 24
6 — Em Tempos de El-Rei D. Fernando 26
7 A Primeira Lei de Sesmarias 27
8 Que Eram «Sesmarias» 30
9 — Enigma «Linguístico» 30
10 Transplantação Fatal 33
11 O Brasil e a Ordem de Cristo 35
12 O Padroado 38
13 O Erro do Sesmarismo Colonial 42
14 Desfecho Fatal 45
15 Latifúndio e Pequena Propriedade 48
16 Sístoles e Diástoles 52
17 Canavial e Latifúndio 53
18 O Pastoreio 57
19 Pecuária, Solução Fatal ..................... 65
20—0 Problema das Áreas, nas Sesmarias 66
21 — As Primeiras Limitações 67
22 — Os Dramas do Reino, no Século XVII .......... 69
23 — Política de Limitação das Sesmarias ............ 70
24 — Legislação Geral ..................... s.-. 74
25 Oscilando Entre Excessos 76
26 O Funcionamento do Sistema Sesmarial na Colónia
27 O Dízimo 78
28 — Luta pela «Imunidade» ...................... 80
29 — O Dízimo e as Ordens Religiosas 85
30 — Carta Régia Enigmática 91
31 Peculiaridades do Sesmarismo Colonial 93
— Aproveitamento 94
— Aproveitamento em prazo determinado 95
— Registro da Carta de Data 97
— Confirmação 98
— Imposição do foro 06
— Medição e demarcação -• 10
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UNIVíHSIOADE. 0E FORTALEZA
biblioteca CENTRAL
2 Costa porto
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I
INTRODUÇÃO
6 Costa Porto
8 Costa Porto
1 PRELIMINARES
«E asy segujmos nosso caminho por este mar de lomgo, ataa terça fei
ra doitavas de pascoa, que foram 21 dias dabril, que topamos alguús
synaes de terra... os quaes herã muyta camtidade dervas compridas, a que
os mareantes chamâ botelho e asy outras a que tam bem chamã rabo das-
no. E a quarta feira segujmte pola manhã topamos aves que chamã fura-
buchos e neste dia... ouvemos vista de terra, premeiramente dhum grande
monte muy alto e redondo e doutras serras mais baixas... e de terra chãa
com grandes arvoredos, ao qual monte o capitam pos o nome o Monte
Pascoal. E a terra — a Terra da Vera Cruz».
É assim, nesta narração singela, que Pero Vaz de Caminha, integrante
da frota de Pedrálvares Cabral, ou Gouveia, (1) dá conta a el-Rei D. Ma
nuel do descobrimento do Brasil.
Descobertas em abril de 1500, as terras do Brasil, entretanto, já per
tenciam a Portugal por força do Tratado de Tordesilhas, donde aquele
«paradoxo», bem apanhado por Messias Junqueira, fenômeno, de resto, de
fácil explicação, quando se analisa o expansionismo europeu, dos fins do
medievalismo.
Com a morte de Alexandre Severo, em 235 da era cristã, implantam-
se as raízes da «anarquia militar», cujo desfecho seria a ruína do Império
romano, talado pelas hordas bárbaras que, de toda parte, investiram con
tra o frágil e decadente arcabouço alicerçado pelas «águias» invencíveis; e,
sobre os escombros do vacilante poderio dos visigodos, godos, ostrogodos,
suevos, francos, alamanos, germanos, vândalos, etc., vão-se estruturando
os perfis dos chamados «Estados modernos», emergindo do magma incon-
solidado, os futuros reinos de França, Espanha, Portugal, as «repúblicas»
italianas — nem mais a velha tradição greco-romana da «polis» e da
«urbs», nem a «basiléia», do decadente império romano do Oriente.
Irrelevante, porém, o poder dos reis — meros «primi inter pares» —, o
que marca e evolução do organismo estatal é a força dos «barões feudais»,
muita vez mais poderosos do que os próprios monarcas.
(1) Pedrálvares. sentencia Assis Sintra: («Serdes Históricos», págs. 67-68), filho segundo
do ramo dos Cabrais, não tinha, quando descobriu o Brasil, direito ao apelido, exclusivo do
irmão morgado, cabendo-lhe, desta sorte, o cognome de Gouveia. E somente depois da morte
do herdeiro, em 1508, teria passado a usar o de Cabral. No comum, é verdade, encontramo-
lo, nos documentos da época, apelidado, apenas, Pedrálvares, ou Pedrálvares de Gouveia;
mas já na carta de 28 de agosto de 1501, comunicando aos reis Católicos o «adiamento» de
Vera Cruz, diz D. Manuel náo lhes haver escrito antes, porque «ainda não era vindo Pedro
Alvares Cabral, capitáo da frota que lá tinha enviado» (His. da Col. III, pág. 165). Quando,
portanto, descobriu o Brasil, Pedrálvares já usava o apelido de Cabral.
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12 Costa Porto
O mercantilismo
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1 UMIVCiXSí&ADÊ BE FORTALEZA
BIBLIOTECA CENTRAL I
14 Costa Porto
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O Sistema Sesmarial no Brasil 15
famoso é que irá surgir a legião dos bravos, cujo destemor permitiu a Portu
gal o lugar de pioneirismo, no esforço do «novos mundos ao mundo irão
mostrando».
O sonho do Infante e da gente de Sagres é revolucionário: em vez de
continuar percorrendo a velha rota do Mediterrâneo, sofrendo a concor
rência de italianos e de mouros, na busca das índias, investir contra o
«Mar Tenebroso», atingindo o Oriente, contornando a África — o «périplo
do sul» —, mercê do qual procura «empresas em que não encontrasse con
correntes mais antigos e já instalados»: a tentativa de buscar o Levante,
trilhando os «mares nunca dantes navegados» e em que, entre 1418 e 1433,
marujos lusitanos descobrem Porto Santo, a Madeira, os Açores e o Boja
dor, detendo-se, porém, diante do «nec plus ultra» — o Cabo Tormentório
—, em marcha lenta, calma, sem açodamentos, porque o Mediterrâneo
continuava permitindo largo intercurso com o Oriente.
Quando, entretanto, os turcos tomam Constantinopla, em 1453,
agrava-se a situação.
Também o «mar interior» se transforma em «mare clausum», a
Europa sofre a ameaça de asfixia, pela perda do comércio levantino, e
urge encontrar, sem mais tardanças, novo caminho para as índias,
reacendendo-se o antigo sonho do Infante e dos homens de Sagres — o do
«périplo africano».
E tão forte pec»'” a pressão do mercantilismo sustado que, em 1486,
Bartolomeu Dias dobra o Cabo das Tormentas — que D. João II ordena se
chame, a partir de então, «Cabo da Boa Esperança», porque, dizia, «agora
hei boa esperança de encontrar o caminho das índias».
E não se enganava: em 1497, Vasco da Gama, retomando-lhe a mar
cha, dobra, ainda uma vez, o Cabo Não, atinge Moçambique, Mombaça e
Melinde, e chega a Calecute em 1498, encontrando, assim, nova rota para
as índias, assegurando o êxito do «périplo africano», ou «do sul» — a idéia
de chegar ao Oriente, costeando o sul da África.
(2) Exatamerue pela influência exercida no mundo cristão, o Papado despertava as am
bições das Coroas curopéias do tempo, usual e muito forte a cabala dos Monarcas junto ao
Sacro Colégio, então pouco numeroso, raro o conclave, escreve Philip Hughes, que reunisse
«mais de vinte eleitores» — no sentido de eleger papas amigos, com quem pudessem contar em
vantagem própria.
A Espanha, até ali potência ainda frágil, pesaria pouco nestas disputas da Sé Romana,
mas. alcançada a etapa derradeira da unificação de Castela c Aragão e para evitar em
Pontífice hostil, como haviam sido Xisto IV (delia Rovere) e Inocêncio VIII, teria Fernando
de Aragão influído eficientemente junto ao conclave de 1499. conseguindo, inclusive pelo su
borno, eleger o Cardeal aragonês Rodrigo Borgia, Papa sob o nome de Alexandre VI, de
quem alcançaria — servindo-lhe de advogado e intermediário nas manobras, o Cardeal Car-
vajal — a série de bulas que, despojando Portugal dos privilégios de outros tempos, dava ao
Império de Castela o domínio do «mundo a descobrir».
I
í
18 Costa Porto
pelo dito senhor Rei de Portugal... indo pela parte do levante dentro da
dita raia para a parte do levante ou do norte ou do sul dele... e... tudo o
mais... que estão ou forem encontrados pelos ditos senhores Reis e Rainha
de Castela e Aragão... desde a dita raia... pela parte do poente... ou ao
norte sul dela... seja e fique e pertença aos ditos Reis e Rainha de Castela
e Aragão» (Ap. M. Linhares de Lacerda, Tratado das Terras do Brasil, I,
pág. 73).
A demarcação, efetiva e prática, dos domínios espanhóis e lusitanos,
resultante do «arreglo» de 1492, nunca foi levada a cabo, entravando-a vá
rias dificuldades, uma das quais o fato de se não haver estabelecido o pon
to donde começaria a contagem das 370 léguas, falando-se, genericamente,
nas «Ilhas do Cabo Verde», na verdade um arquipélago formado dc 14
ilhas, variando o termo final conforme se contasse de um ponto mais oci
dental ou mais oriental.
Interessados, de começo, no Oriente, região tida como mais rica e de
maiores perspectivas, os cosmógrafos portugueses calculavam a contagem
partindo das ilhas mais orientais, com o que prevaleceria a doutrina de
■ que «a raia ou linha direta», baixada após as 370 léguas, deveria traçar-se
mais ou menos de Marajó a Laguna e daí porque a divisão do Brasil em
1 capitanias, com o donatarialismo de 1534, incluía, como extremos, a «abra
de Diogo Leite», ao norte e a Ilha do Mel, nas alturas de Laguna, ao sul.
Mais tarde é que Portugal se vai interessar pelo Oeste, tentando
alargar os meridianos para, no mínimo, a foz do Prata, fonte de constan
tes dissídios de fronteiras com a Espanha, até que, afinal sem sentido a se
paração, na fase de 1580 a 1640, quando ocorreu a união de Portugal-
Castela, e tendo o bandeirismo extrapolado os limites vagos de Tordesi-
Ihas, os acordos de Madrid e de Santo Ildefonso resolveram, em definitivo,
o problema das fronteiras, triplicando o território brasileiro, na sua exten
são atual, diria fundadamente João Ribeiro, «uma dádiva» da diplomacia
lusitana.
t
O Sistema Sesmarial no Brasil 19
O perigo francês
O que, afinal, fez a Metrópole voltar as vistas para a Colónia foi a
ameaça gaulesa.
Francisco I, da França, ficara irritado pela parcialidade pontifícia,
que, doando o mundo a Portugal e à Espanha, deixara seu país fora da
herança, demonstrando o agastamento quando atalhava a interferência do
Embaixador de Carlos V, no sentido de impedir traficassem os navios fran
ceses cm águas americanas: «Est-ce déclarer la guerre et contrevenir à mon
amitié avec Sa Magesté, d’envoyer lá-bas mes navires? Le soleil luit pour
moi comme pour les autres; je voudrais bien voir la clause du testament
d'Adam qui m'exclut du partage du monde» (ib. 63).
E porque lhe não dessem ouvidos aos justos melindres, estimulava os
flibusteiros do Mar do Norte, outorgando-lhes cartas de corso e marca, em
tal desadoro que os mares americanos viviam coalhados de piratas france
ses, cuja presença, no Brasil, chegou a pôr em perigo o domínio lusitano.
Tendo-se agravado, depois de 1521, a insolência dos corsários de Hon-
fleur, Ruão e Dieppe, D. João III, enquanto ensaia utilizar remédios diplo
máticos, trata de enviar esquadras de defesa da costa — a primeira, em
1526, sob o comando de Cristovão Jaques, e a segunda, em 1530, capita
neada por Martim Afonso de Souza —, medidas, entretanto, precárias,
pois, apenas os navios regressavam ao Reino, o mar voltava a encher-se de
piratas, repetindo-se os encontros bélicos nos mares e litorais, acentuando
Fr. Luis de Souza que «asy crecião os odios e sendo os reis muyto amigos,
eram os vassalos enemicíssimos».
As donatárias
Muda, então, a Metrópole a orientação primitiva, conforme esclarece
el-Rei, na carta de 28 de setembro de 1530, a Martim Afonso: «Despois de
vossa partida, se praticou se seria de meu serviso povoar-se toda essa costa
I'
20 Costa Porto
PJI 29 de fevereiro de 1532: «Eu por muitas vezes lhe escrevi o que me parece
deste negócio. A verdade era dar, Senhor, as terras a vossos vassalos, que,
se tres anos hâ que V. A. as dera aos dois de que vos falei, a saber, o ir
mão do capitão da Ilha de São Miguel, que queria ir com dois mil mora
dores lá a povoar, e Cristovão Jaques, com mil, já agora houvera quatro
ou seis mil crianças nascidas e outros muitos da terra casados com os nos
sos e é certo que, após estes, houveram de ir muitos. E se vos estorvaram,
Senhor, por dizerem que enriqueceriam muito. Quando os vossos vassalos
forem ricos, os reinos não se perdem por isso, mas se ganham... porque,
quando houver sete ou oito povoações, estas serão abastantes para defende
rem aos da terra que não vendam o brasil a ninguém, e não o vendendo,
as naus não há de querer lá ir para voltar de vazio. Depois disso, aprovei
tarão a terra» (Ap. Varnhagen, Hist. Geral, I, pág. 143, nota III).
A fórmula defendida pelo Dr. Gouveia, e anunciada na carta a Mar-
tim Afonso, acabou vitoriosa, isto é, a divisão da terra em quinhões, doa
dos a vassalos que recebiam do Soberano «direitos majestáticos», da lingua
gem de João Ribeiro, tomando aos ombros a tarefa de povoar a conquista
e defendê-la contra a ameaça dos estrangeiros; em vez de esquadras passa
í geiras, ou de feitorias medíocres e ineficientes, a presença permanente de
autoridades para vigiar a terra, não permitindo o comércio dos france
ses com os indígenas, tirando aos piratas do Mar do Norte o único atrativo
realmente sedutor do Brasil — o contrabando de pau de tinta e outros pro
dutos, o íman que os atraía à região.
E de começo deu certo: explicando, em carta de abril de 1542, por
que se lhe fazia imperioso permanecer em Olinda, em vez de rumar para o
interior, à cata de ouro e metais, esclarecia Duarte Coelho precisava «dei-
O Sistema Sesmarial no Brasil 21
xar aqui a cousa fornecyda e a bom recado por todallas vyas, em especiall
por estes franceses que, se sentyrem nam estar na terra, corr>eterão a fazer
das suas riballdaryas, porque á quatorze dyas que aquy quiseram fazer o
que soyam a fazer, mas nam poderam» (Hist. da Col. III, pág. 314).
3 O REGIME SESMARIAL
juro e derdade, pera elle e todos seus filhos, netos e erdeiros... de sesenta
legoas de terra... da qual terra... lhe asy faço doaçam e mercê» etc: não se
tratava de domínio do solo, mas de «poderes políticos», de jurisdição, de
governos, o que nem sempre tem sido devidamente apreendido pelos
melhores mestres, como o egrégio Rodrigo Otávio, quando, árbitro na
pendência entre a Prefeitura do Distrito Federal e os Beneditinos, escrevia:
«a coroa, com a cessão aos donatários, pode-se dizer, deixou praticamente
de possuir na Colónia qualquer porção de terras; ela cedera tudo quanto
possuía e nada mais tinha para conceder», donde a estranheza de que «no
regimento aos seus governadores, vice-reis e capitães generais, nomeados
para a administração na Colónia», fizesse o Soberano questão de consignar
«as faculdades de conceder terras de sesmaria em nome da Coroa» (Rev.
do Inst. Hist. vol. 153, pág. 174).
Talvez a linguagem das cartas dos donatários responda por esta
concepção de que el-Rei cedera direitos dominiais sobre o solo, quando, na
verdade, se limitara a outorgar «poderes políticos», largos, sim, «direitos
majestáticos quase absolutos» mas, de nenhum modo, direitos sobre o solo,
como, de resto o ressalta Rocha Pombo, ao escrever: «quando se fala em
doação, parece, realmente, que se tratava de propriedade territorial. E
não é isso, entretanto, o que se fazia. Não era a terra que o Soberano da
va, mas o benefício, o usufruto dela somente. E tanto era assim que, na
própria carta de doação, concedia o Rei... um dado prazo de terras ao do
natário, e como propriedade plena, imediata e pessoal. O Capitão donatá
rio... era como um locotenentc do Rei... exerce direitos de soberania. Só
não é proprietário da terra: aufere, apenas, uns tantos proveitos do feudo
que lhe foi concedido» (Hist. do Brasil, I, 110).
22 Costa Porto
I
parte do que lyquydamente render para mym foro (forro) de todos os cus
tos o brasyll da capitania»; a faculdade de vender, cada ano, 24 peças de
escravos que «resgatarem e ouverem na dita terra»; dispensa dos «direytos
de sysas, emposições de saboaryas, trebutos de sall» (Hist. da Col. III. pág.
309) etc.
Como se vê, direitos de «príncipe», poderes políticos, não domínio real
do solo.
De relação à terra, a linguagem das cartas de doação não enseja mar
gem a dúvidas. As «sessenta léguas de largo ao longo da costa», doadas a
Duarte Coelho, por exemplo, se dividiam em duas partes: uma, de dez
léguas, pertencia ao donatário, que sobre ela exercia domínio pleno -
«lyvre, izemta», sujeita, apenas, ao dízimo à Ordem de Cristo-, podendo o
capitão, dentro em vinte anos da posse da capitania, separá-las onde qui
sesse, «não as tomando, porém, juntas sanam Repartydas em quatro ou
cynquo partes», mediando, entre cada uma, a distância de duas léguas;
quanto às cinqilenta restantes, devia o donatário distribuí-las entre os mo
radores e sobre elas não exerce o capitão nenhum domínio, donde dizer
antigo documento que o «donatário não he senhor absoluto das terras se-
nam cesmeiro e repartidor...e enquanto cesmeiro não he mais cesmeiro
que os outros cesmeiros, conforme a verba de sua daçam» (Tombo, 368-
369).
Afirmar-se, pois, como o faz Rodrigo Otávio, que, após o regime
donatarial, a Coroa «deixou praticamente de possuir na Colónia qualquer
porção de terras», e, tendo cedido «tudo quanto possuía, nada mais tinha
que conceder», não traduz a realidade histórica, pois o donatário não
recebe, como coisa sua, senão aquele nastro de dez léguas, seu património
individual, nalguns documentos denominado «reguengo».
O sentido etimológico de Reguengo, sem dúvida, é diverso - o que
pertence ao Rei — «regalengo, regaengo, reguengo» — enraizando-se sua
história, segundo o mostra Herculano — Opúsculos, V. pág. 173 e segs. — na
velha distinção romana entre bens do fisco — património do Imperador —
e bens do erário — património da «respublica», do Império, do Estado ro
mano.
O Sistema Sesmarial no Brasil 23
4 O BRASIL «REDESCOBERTO»
(3) O que. porém, nunca se nos deparou nos documentos do tempo foi aquela «condi
ção-, a que alude Almeida Prado (Pernambuco e as Capitanias do Norte. I, 29), «de qúe te
riam as capitanias, de dez em dez léguas dc frente para o mar, um nastro de dez quilómetros.
no mínimo, de largura, pertencente ao património real, do mesmo gênero dos «reguengos» da
Metrópole-. Esta área, reservada ao património do Rei ou da Coroa, nunca a encontramos
nas cartas, nem havia razão para tal; a carta de doação assegura ao donatário mero «poder
político-, de jurisdição, e não dc domínio, dc sorte que, apesar dos «poderes majestáticos* dos
capitães, o solo continuava pertencendo à Coroa.
I
24 Costa Porto
5 A REPARTIÇÃO DA CONQUISTA
t
O Sistema Sesmarial no Brasil 27
u
O Sistema Sesmarial no Brasil 29
alheo mays sem receo», ou «nam querem servir e usar doutros offycios»,
preferindo andar «vadios pela terra, e allguns se lançam a pedir esmolas,
nam querendo fazer outro serviço».
Daí a norma assim resumida por Fernão Lopes: «Todos os que erão
ou soyam a seer lavradores e os filhos e os netos de lavradores... fossem
constrangidos pera lavrar», enquanto se corrigia o êxodo rural, compelidos
a voltar aos campos os vadios, desocupados, mendigos, falsos religiosos,
salvo, quanto aos primeiros, «se ouvessem, de seu, valia de quinhentas li
bras que, naquelle tempo, valião cem dobras, que era grande somma de
dinheiro».
A lei de D. Fernando, fiel aos objetivos a que visava — resolver o proble
ma do abastecimento —, dizia respeito somente às «herdades que som pera
dar pam», cujo aproveitamento se ordenava rigidamente, a fim de fazer
face à crise alimentar do Reino. Em tempos de D. João I, porém, a situa
ção interna se agravara: feitas as pazes com Castela, o Mestre d'Avis inicia
o programa do espraiamento ao longo do «mar oceano», tomando Portu
gal a dianteira nos empreendimentos para a conquista das terras «de Ásia
e África», e, alistando-se nas frotas do Oriente, o lusitano deixa «o pátrio
ninho», e assim, além das «herdades que som pera dar pam», aparecem
despovoadas, igualmente, as cidades, falando-se genericamente em «casas,
pardieiros e bens e herdades que jazem em mortório e que já em outros
tempos foram... povoados, vilas, olivais e pumares», tudo o que, estando
inculto, devia ser redistribuído.
Não parece, entretanto, houvesse D. João I baixado normas de caráter
geral, mas, como dizem as Ordenações Afonsinas, «algumas vezes mandou
a muitos lugares e vilas de seus reinados se dessem as terras e herdades de
sesmaria ou de outra forma», isto é, determinou, para hipóteses concretas,
se aplicassem os princípios fixados no ordenamento de el-Rei D. Fernando.
E, na verdade, o que as Ordenações Afonsinas nos conservam a este
respeito é a solução de caso concreto, quando, atendendo ao apelo do povo
de Entremoz, el-Rei nomea, para sesmeiro da região, Álvaro Gonçalves, a
quem dá instruções especiais, calcadas nos princípios básicos do
disciplinamento de 1375.
Fiel à orientação firmada na lei de D. Fernando, a carta a Álvaro
Gonçalves faz do aproveitamento o problema fundamental: devia o
sesmeiro distribuir tudo quanto esteja «em mortório», de sorte que nada
fique inculto; mas, «antes que elle dê os ditos bens...mande lançar
pregões...que aqueles cujos ditos bens forem...que a ataa hum anno os vão
lavrar e aproveitar, ou os vendam ou os emprazem, ou arrendem ou os
dêem a foro, a taes pessoas que os lavrem e aproveitem»; se o senhorio não
atendesse a ordem — não lavrando nem os dando em foro —, mandava el-
Rei que o sesmeiro «os dê e possa dar de sesmaria a quaesquer pessoas que
elle entender que milhor e mays cedo poderem lavrar... para todo o sem
pre, como cousa sua, sem outro nenhum embargo que lhe sobre elle seja
posto». A mesma orientação de D. Fernando: lavra direta, arrendamento
compulsório ou confisco.
30 Costa Porto
9 - ENIGMA «LINGUÍSTICO»
32 Costa Porto
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I
cendo o sistema do «duunvirato» — dois cônsules, dois pretores, etc. —,
processo seguido pelos que copiaram os métodos objetivos dos romanos.
Com o correr dos tempos, aumentando os encargos e alargado o cam
po de atividades da administração — romana ou medieval — e também,
como lembra Otto, «auteto civium ambitiosorum numero», generalizou-se a
ampliação dos quadros dirigentes, surgindo colégios de três, quatro, cinco
e seis membros, vulgares então, os casos de regime de seis — o Sevirato —,
constituído deSexviri, ou Seviri — «scabini seu urbis consiliarii, ubi sex ad
id officium eliguntur».
Que, em Portugal houve o Sevirato mostram-no vários documentos
antigos, registrados na «Memória para a História da Legislação e Costumes
de Portugal», de Antônio Caitano do Amaral; e que os conselhos formados
por estes «scabini» se denominassem Sesmos deixa-o claro velho documento
lusitano — o foral de Penamacor —, onde se fala em «iudex qui consilium
vel Sesmum manufeirint» (Op. Cirne Lima).
Parece, assim, legítimo concluir: a) o problema da distribuição da ter
ra inculta e sem dono estava afeto a um «conselho»; b) este conselho se de
nominava Sesmo; c) a denominação de Sesmo, por sua vez, resultava do
fato de ser o conselho constituído de seis membros, os Sixviri, ou Seviri.
Esta uma explicação que Cirne Lima apresenta seu tanto
reticentemente, quando escreve: «Seis, acaso, seria, o número dos sesmeiros
reunidos em colégio administrativos? Seriam os Sesmeiros sobrevivência dos
Sexvirí ouSeviri municipais da era romana?«(Op. cit. pág. 16).
E prosseguindo: «a voz latina Sevir, traduzida para o gótico, e deste no
vamente para o latim vulgar, ter-se-la transformado na designação
Sesmarius, que Du Cange consigna?» É verdade que, depois de acentuar
que, segundo Heyne, a tradução literal de Sevir seria, em gótico, Sahs
Manna — como, no antigo alemão, seria Sesman, de acordo com Grimm
—, e que traduzindo os membros do Sevirato por Sahs manna, os godos te
O Sistema Sesmarial no Brasil 33
1
1612, reguladora do problema das terras do Rio Grande do Norte.
10 - TRANSPLANTAÇÃO FATAL
í* ■ que findou levando ao trono o Mestre d’Avís, sob o nome de D. João I, cujo
governo é um dos pontos altos na vida do pequenino Reino: o casamen-
O Sistema Sesmarial no Brasil 37
i
38 Costa Porto
12-0 PADROADO
Ao problema da «propagação da fé» acha-se ligado o instituto do Pa
droado, que, hoje, simples «reminiscência histórica», merece, entretanto,
análise ao menos sumária, pois constitui um dos aspectos mais peculiares
nas relações entre o Estado lusitano e a Igreja e relevantíssimo na vida do
Brasil Colonial.
O Sistema Sesmarial no Brasil 39
Esta, por exemplo, uma das grandes batalhas de Duarte Coelho com o
fisco lusitano e da qual saiu esmagado. Os regimentos de Antônio Cardoso
e dos Provedores inovaram o regime fiscal firmado nas cartas de doação e
nos forais, praticamente abolindo «as lyberdades e pryvilegyos» concedidos
aos moradores, e, ante o clamor geral, o donatário escrevera ao Soberano,
tomando ao assunto em abril de 1549, pedindo-lhe «veja minha carta e lhe
tome ho emtemto e achará que tudo he sustancya de seo serviço, sobre que
ando morrendo, que milhor me fora já hua morte que tantas sem acabar
de morrer». Porque, pondera, «as cousas destas calydades cá per fora tam
alongadas do Reino querem-se per outros meos e maneiras que nam as de
11a».
Tudo quanto se liberalizara lhe parecia razoável e adequado «pera
povoar terras novas e tão alomgadas do Reino», donde ponderar «não
comsymta V. A. 11a bulyrem em taes cousas, porque não hc tempo pera
com tal se bulyr mas pera mais acresentar as lyberdades e prevyleyos e não
pera os deminuir», o que «em tempo allgum nem em parte allguma se
nam deve fazer, quanto mays tam cedo a estas partes tam alomgadas do
Reyno», pois, com regalias e favores, «a gente quyeta estará a araygará na
terra e faram fazendas de que dobrado e tresdobrado proveyto terá V. A.»
O ouvidor Pero Borges, em carta de 7 de fevereiro de 1550, pinta-nos
quadro sombrio da Colónia, onde a imitação servil da vida jurídica do
Reino estava causando males imensos o vezo de copiar as normas da Me
trópole, fazendo o Brasil andar à matroca, parecendo «terra desamparada
de vossa justiça»: porque em Portugal havia ouvidores, também se criavam
ouvidorias na Colónia, e, rareando o elemento humano, guindavam-se aos
cargos homens como Francisco Romero, de Ilhéus — «pera cousas de
guerra acordado, experimentado e de bôo conselho», mas incapacitado
«pera ter mando na justiça, porque he ignorante», tendo sido, de resto,
«preso no Limoeiro... por culpas que commeteo no dito officio»; ou como
aquele estranho Juiz, «que non sabe leer nem escrever» e «dá muytas sen
tenças sem ordem nem justiça». Obedecendo aos preceitos rígidos das Or
denações, os donatários «faziam nomeações excissivas» para os cargos pú
blicos, e «nestes officios mettem degredados por cullpas de muita infamia e
desorelhados».
14 DESFECHO FATAL.
46 Costa Porto
l< surgia uma herdade inaproveitada, enxameavam lavradores que não ti
J
nham onde trabalhar, donde a repartição fazer-se em courelas modestas, a
!
O Sistema Sesmarial no Brasil 49
de sesmarias, he certo que se têm dado mais terras das que se têm desco
berto, porque os ornes as pedem com largueza e, como estão incultas, se
dão com liberalidade» (Ap. Ennes, op. cit. pág. 255).
Realmente, o que vemos, em toda parte, é esta liberalidade na con
cessão de sesmarias.
Em primeiro lugar, áreas imensas de quatro, cinco, dez, vinte léguas,
muitas vezes em quadra, isto é, 16, 100 e mais léguas, a sesmaria doada a
Brás Cubas, lembra Eduardo Zenha, abrangia parte dos atuais municípios
de Santos, Cubatão e São Bernardo do Campo, enquanto, no Nordeste.
foram freqiientes as concessões de terras, mais largas do que Estados de
nossos dias, como as da Casa da Torre, dos Guedes de Brito, de Sertão,
etc.
Além de receber, de uma vez, extensões imensas, seria usual, ainda,
repetirem-se as datas, contemplando-se o mesmo colono com sucessivas ses
marias, em épocas e lugares diferentes.
Pelo menos até o fim do século 17 não encontramos, nem na lei nem
na prática, nenhuma restrição: se os donatários somente podiam separar,
para si, dez léguas — vedando-se-lhes «tomar terra allgua de sesmarya pe
ra sy nem pera sua molher, nem pera o filho erdeiro», não podendo distri
buir com os outros filhos «mays terras da que teverem dada a qualquer ou
tra pessoa» — quanto aos colonos nunca houve restrição e os imensos lati
fúndios da Casa da Torre, da Casa da Ponte, da Casa do Sobrado, de João
Pais, de Vieira, etc., resultaram de sucessivas datas de terra. A partir de
1759 — mais ou menos, e talvez por força da carta régia de 20 de outubro
de 1753 — é que vamos encontrar, na Documentação Histórica, por exem
plo, a exigência de somente se concederem sesmarias a quem não houvesse
recebido outras anteriores, lendo-se cláusulas assim: «jurando os suplican
tes não possuírem sesmaria alguma», (Doc. Hist. 2, págs. 129, 138, 144,
etc.), ou juramentos deste teor: «Aos 16 de...perante mim aparecerão os
supplicantes... pessoas que reconheço pelas próprias de que se tratão... aos
quais dei juramento aos Santos Evangelhos.. .encarregando-lhes que juras
sem se tinhãm outra sesmaria ou havião alcançado fora da que preten-
dião...e de como assim o jurarão fiz este termo em que assinarão (ib. II,
129, 130, 138, 144, 148, etc.).
Mesmo, porém, depois vemos, na Documentação Histórica, muitos ca
sos de doações sucessivas: Francisco Falcão Enserabodes, por exemplo, re
cebe, em 1778, três léguas de terras, no rio Sebiró (ib.234) e mais uma lé
gua, em 1782 (pág. 266); Antônio Afonso de Carvalho recebe, em 1757,
uma sesmaria nas cabeceiras do Rio das Piranhas (ib. 154) e outra, no ria
cho Escurinho (pág. 158); ainda em 1804, João Batista da Silva recebe
duas sesmarias, em Bom Jardim (Doc. Hist. IV, págs. 12 e 13).
Além de receber muitas datas sucessivas, podia o colono alargar os
domínios fundiários por «aquisição derivada», comprando terras de tercei
ros, improcedente a lição de Lira Tavares de que a legislação «vedava o
trespasse por qualquer título, a pessoa alguma...sem prévia audiência do
Provedor-Mor, que submetia a consulta ao Governador» (Op. cit. pág. 12).
O Sistema Sesmarial no Brasil 51
16 - SÍSTOLES DE DIÁSTOLES
(4) Fiel à boa tradição romana — qujrkária, cm que o «dote» acompanhava, quase in
variavelmente, o casamento — à moça sem dote Flauto chamará «inlocabilis virgo» — o di
reito colonial, de certo como imposição dos costumes, tomara-lhe a constituição cousa rotinei
ra, freqilentes, nos antigos documentos, alusões ao dote cm favor de filhas casadeiras. embo
ra. muita vez, não passasse de simples promessa, Isabel Pais, por exemplo, fala em que «casa
da com Antônio Moreira cm dote nos deram ou prometeram uma terra em seiscentos mil
reis, a qual terra nunca teve efeito, pagando-sc, apenas, 90 mil reis, nos achamos enganados
c meo marido por amor de mim não demandou minha mãe» (Tombo, 99); a D. Garcia de
Freitas os pais entregam, em dote, uns chãos cm Olinda (ib. 103); Nuno de Barros de Lourei
ro «dá má vida» à esposa c a espanca, irritado porque «seu pai lhe não satisfez com o dote».
(Denunciaçõcs. pág. 185).
O Sistema Sesmarial no Brasil 53 ■
17 • CANAVIAL E LATIFÚNDIO
IL
H grande soma de canas plantadas» e «cedo acabaremos um grande engenho
e ando ordenando de começar outros», o que parece delatar que nenhum
engenho estava ainda moendo em Olinda.
Apesar de dizer o donatário que, na Capitania, tudo ia «bem e
melhor, a Deus louvores», a marcha do desenvolvimento da agro-indústria
do canavial se processava lenta, pois em 1551, em carta ao Soberano escla
rece havia em Pernambuco «cinco engenhos moentes e correntes» — a mé
dia de um engenho de dois em dois anos.
Não temos elementos positivos para saber quais estes «cinco
engenhos», e onde se localizavam, mas talvez se possam oferecer conjectu-
ras mais ou menos plausíveis, reveladoras de quanto a penetração fora
morosa, o lusitano, em 15 anos, não indo além da faixa entre Igarassu e
arredores de Olinda. O primeiro seria o do donatário, Engenho do
Salvador, localizado nas várzeas de Beberibe; o segundo, o de Jerônimo, de
invocação de N. Senhora da Ajuda, chamado também do Beberibe, ou
«Engenho Velho», que funcionou pouco tempo, trocando-se a cultura da
cana pela exploração de cal, e situados nos terrenos conhecidos como «For
no do Cal», onde, depois, funcionou a FOSFORITA Olinda; o terceiro se
ria, talvez, aquele engenho que Afonso Gonçalves começara a construir em
O PASTOREIO
í1
18
emjenhos e povoações delles se fazerem lomge das villas de que amde ser
favorecidos e ajudados», vigiasse Tomé de Sousa porque «daquy em diante
-i se façam mays perto das ditas villas que poder ser».
E tanto o Governador levou a sério a defesa dos moradores, vedando-
lhes a penetração que, nada obstante devotíssimo da Companhia de Jesus
— ou vindo, em quase tudo o Padre Nóbrega —, quando o Superior idea
lizou o plano de meter-se «polia terra a dentro fazer casas no sertão», não
o permitiu, comunicando a el-Rei «eu lho defendy de maneyra e com pala
vras com que se devem defender as taes obras, dizendo-lhe que asy como se
for V. A. alargando, se vão elles também», e surgerindo ao Soberano, para
evitar ficassem os jesuítas queixosos, «acuda loguo a ysso, porque não que
ria eu ter com homens tam vertuosos e tanto meus amigos deferença de
pareceres, porque sempre tenho ho meu por pyor e se não fora toda esta
costa contra esta hopenião, não ousava eu de lho impedir (Hist. da Col.
000, 366).
E el-Rei atendeu à sugestão, pois em carta de 1558, Antônio Blasquez
alude a que, desejando os jesuítas ir pregar no interior, os «estorvaram por
uma carta del-Rei, em que ordena ao Governador não deixe entrarem os
padres pela terra a dentro, dizendo que os poderão matar os índios»,
parecendo-lhe esta «a cousa mais fora do caminho do mundo», pois os
indígenas eram pacíficos (Cartas Avulsas, 181).
No caso pernambucano havia ainda a ameaça do estrangeiro,
! permanentemente trazendo a capitania de sobreaviso: quando,por exem
| plo, Duarte Coelho é instigado por el-Rei para devassar o Interior, o que
alega, entre outros motivos, é o perigo dos contrabandistas do Mar do
Norte, que «se sentyrem nam estar na terra, commetteram de fazer das
suas ribaldaryas, porque a catorze dyas que aquy quyseram fazer o que so-
yam a fazer, mas nam porderam».
O motivo, porém, que mais terá forçado esta prisão do colono à orla
litorânea foi aquela «economia colonialista», do conceito de Caio Prado.
■
O Sistema Sesmarial no Brasil 59
reiro que tem seus bois», como se lê em alguns lances das Denunciações
(pág. 342) — e profissão, de resto, bem rendosa, dizendo-se de um destes,
João Afonso, que «estava muito rico, que tinha dez mil cruzados em di
nheiro». (ib. 460).
Como resolver o problema dos carretos, transportando mercadorias
em carros de bois, a cinco, dez, vinte léguas de distância?
Por outro lado, também o solo não ajudava.
Os engenhos, lembra Capistrano, localizavam-se no litoral, «pela
maior fertilidade dos terrenos bem vestidos e pela abundância de lenha,
necessária às fornalhas, em um laborar que, às vezes, durava, dia e noite,
oito e nove meses» (Caminhos Antigos, 76), mesmo outras lavouras não
encontrando condições adequadas — terra fraca, em certos pontos castiga
da pela estiagem, pela irregularidade de chuvas, o que fazia da agricultura
um jogo, uma aventura. Logo ficou provado, acentua Capistrano. que «as
caatingas pouco remuneravam as lavouras, como então, mais do que hoje,
se praticava, simples latrocínio da terra, sem compensação alguma ofereci
da por parte do homem», e, forçado a descobrir caminho para aproveitar
o mediterrâneo, a solução foi o gado, o elemento que formou a outra civi
lização nordestina, o «outro nordeste», o da terra seca, da zona semi-árida,
do sertão.
Quase nada se sabe, de positivo, sobre as origens dos rebanhos
brasileiros. Quanto ao gado bovino, terá vindo das ilhas portuguesas, sen
do comum ensinar-se que D. Ana Pimentel — castelhana de nobre família
dos Maldonados, filha de Aryas Maldonado, regedor de Salamanca e Tala-
vera e esposa de Martim Afonso — foi quem mandou levar para São Vi
cente as primeiras sementes, espalhadas, depois, para as mais capitanias.
De relação, porém, ao Nordeste, seria muito mais cômodo vir o gado
diretamente das Ilhas e, pelo menos no tocante à Bahia, sabe-se que Tomé
de Sousa importou uma partida de Cabo Verde, conforme o testemunha a
. k ■'
carta de 18 de junho de 1551: «Este anno passado veo a esta cidade a ca
ravela Galga de V.A., com gado vacum que he a mayor nobreza e ffartura
que pode aver nestas partes e eu a mandy tornar a caregar a Cabo Verde
do mesmo gado...e hum anno ha que he partida daqui e non tenho nova
delia; se ella non he ariba...deve ser perdida que este anno passado—se
averá medo delle nestas partes, enquanto ouver memória de homens».
E sabe-se, igualmente, terem saído da Bahia, reses para outras partes
da Colónia, conforme o atesta a autorização do alvará régio de 10 de
dezembro de 1563, de que «do gado que Tomé de Tomé de Sousa...Tem
na capitania da Bahia, possa tirar... pera quaesquer outras... até a terça
parte do gado que ora tem de sua criação» etc. (Documentos para a Histó
ria do Açúcar, pág. 169).
Lfcf: Mas para Pernambuco é possível houvesse vindo gado bovino muito
’ai
íil’1 antes: o farol de Olinda, de 1537, já fala na «Várzea das Vacas», no «Cur
ral das Vacas», sinal, parece, de que haveria rebanhos na Capitania.
Ao longo do século 16, a pecuária também ficou amarrada ao litoral,
tanto porque ninguém ousava penetrar além de poucas léguas da costa, co
mo porque, de começo, o gado bovino constituiria aquela «retaguarda
E
O Sistema Sesmarial no Brasil 61
r
66 Costa Porto
I
li
O SlSTEM/V SESMARIAL NO BRASIL 67
21 - AS PRIMEIRAS LIMITAÇÕES
68 Costa Porto
I li ■
11 garto, meia légua quadrada; a Jerônimo Fragoso, outra, sem determinação
da área; outra finalmente, a D. Maria de Albuquerque» (Anais Pernambu
canos, II, 290).
I I
Ora, não há aí nenhuma «exorbitância», porque tais extensões eram
usuais na Colónia.
O certo, porém, é que el-Rei Felipe III — II de Portugal — , achou
a distribuição excessiva, ordenando ao governador D. Diogo de Menezes
procedesse a nova partilha, e, ante a omissão estranha do seu delegado,
baixou a carta régia de 28 de setembro de 1612, a fim de regularizar a si
tuação.
De saída, houvera abuso grave: os «sesmeiros» — é a primeira vez,
cremos, que em documento oficial aparece a palavra sesmeiros para signi
ficar o beneficiário das datas, e não o distribuidor, como no Reino — ha
viam recebido as terras com a obrigação de as «cultivarem e
beneficiarem», não tendo, porém, satisfeito esta exigência fundamental,
com o que, pondera o Monarca, «meo serviço e fazenda recebem perda».
Assim, a função primeira dos novos delegados régios — Alexandre de
Moura e o Ouvidor Garcia Tinoco — deveria voltar-se para regularizar es
te estado de coisas, cabendo-lhes, como medida liminar, citar os sesmeiros
para dizerem «da rezem que teveram pera nam cumprirem as obrygações
de suas doasões, e nam as dando soffycientes, se fará delias a dyta reparti-
çam», na qual deviam «guardar ygualdade», «tendo respeyto â pocebilidade de
cada hum e ao que elle poder cultivar», limitando ao máximo a extensão
das datas, pois «requerendo menos cantydade, poderam milhor cultivar e
beneficiar».
Dando ênfase especial ao aproveitamento, ordenava ainda el-Rei
fossem mantidas as doações anteriores, cujos sesmeiros tivessem feito
«benfeitorias de consideração, ainda que...fora do tempo», e, «informado
de que foy muyto exorbitante em cantydade de terras a repartiçam que
delias fez Jerônimo dalboquerque.. a seos filhos, e, demais, nam se terem
feito nellas benfeitorias no termo que lhes assynou», manda se faça revisão
nas doações, partindo-se «e as ditas terras pelo meyo ao direyto, ficando
aos filhos de jerônimo dalboquerque a metade que elles escolherem, com
as mesmas obrigações com que lhes foram dadas».
Finalmente — medida de caráter específico, somente erigida em regra
geral nos fins do século —. deviam os sesmeiros pedir confirmação das
datas a el-Rei.
Também para o Estado do Maranhão — criado em 1621, indepen
dente do resto da Colónia, denominado, genericamente. Estado do Brasil
—, parece houve legislação especial, possivelmente com limitação das áreas
das sesmarias.
1
ji
i ii
que experimentam os referidos moradores».
Ou porque temesse dar solução apressada, ou ante a pressão dos
sesmeiros, apoiados pelo governo da Bahia, a Metrópole cozinhou o pro
blema longo tempo, somente surgindo a primeira medida séria, no Reina
do de D. José I, quando praticamente Pombal passou a dirigir Portugal.
O Sistema Sesmarial no Brasil 73
74 Costa Porto
24 - LEGISLAÇÃO GERAL
í' ■ crevo».
A censura, entretanto, não parece de todo procedente. Na verdade,
■ I lendo-se, por exemplo, o Regimento de Tomé de Sousa, é fácil observar
que muita cousa é solução a dificuldades lembradas pelo donatário.
L la . E depois que, em 14 de julho de 1642, foi criado o Conselho
Ultramarino, melhorou muito a legislação sobre o Brasil, pois muitos dos
seus membros eram antigos dirigentes coloniais, conhecedores da realidade
e, via de regra, sensatos e objetivos.
Mas permaneciam de pé os vícios de origem, um dos quais a própria
estrutura do Estado, naquela fase de absolutismo régio. Na verdade, o
quadro jurídico constitucional do Estado brasileiro de hoje difere, total
mente, do então vigente na Colónia. Em primeiro lugar, a realidade esta-
O Sistema Sesmarial no Brasil 77
À
i 26 O FUNCIONAMENTO DO SISTEMA SESMARIAL
NA COLÓNIA.
27-0 DÍZIMO
haveremos com estes índios acerca dos dízimos», ajuntando que «até agora
lhe não temos dado disso notícia, mas dizem-me que os rendeiros lha co
I meçam a dar». (Cartas Avulsas, 292).
?)
Em outras palavras, os jesuítas agiam como se o indígena não estivesse
obrigado a pagar, mas os que arrendavam a cobrança procuravam receber
de toda gente, incluindo o selvagem.
Segundo acentua Serafim Leite, o problema fora, já posto pelo mesmo
Grã, em 1551: voltaria à carga, decerto por não haver tido a orientação
pedida, sendo a dúvida, afinal resolvida pelo alvará régio de 4 de janeiro
I de 1576, em que D. Sebastião, acolhendo a opinião dos canonistas e teólo
gos do tempo, adotou solução meio «salomônica»: os indígenas pagariam
os dízimos, mas, durante seis anos, em vez de a renda ir para o Reino, fi
caria na Colónia, para «as suas igrejas, confrarias e espritais».
O prazo da isenção — seis anos — terminaria em 1582, obtendo, po
rém, o Visitador Cristovâo de Gouveia fosse prorrogado por mais 15 anos.
o que, entretanto, criou novo problema: autorizada a prorrogação em 21
de agosto de 1587, os rendeiros naturalmente passaram a exigir o
’i pagamento, depois de esgotado o primeiro prazo de isenção — 1582 — e o
■í Colégio da Bahia achou mais razoável adiantar o dinheiro que seria cobra
' III Companhia ordenou se restituísse o dinheiro aos índios, os quais, entretanto,
conhecendo as dificuldades do Colégio — havia-se gasto em obras cerca de
7 mil cruzados—, abriram mão da devolução, o que foi aprovado pelo Pa
dre Geral em 1597 (Serafim Leite, História da Companhia, II, 89-90).
•
!i 'l4i
•ti
Esgotado o prazo da segunda isenção, também os indígenas passaram
a pagar o dízimo normalmente.
> 28 - LUTA PELA «IMUNIDADE»
Isenção geral, ou, antes, imunidade, esta não havia, pelo menos de
começo nunca a vemos alegada, a não ser a partir dos meados do século
17, quando aparecem certos grupos recusando-se ao pagamento do dízimo,
dizendo-se isentos: os «cavaleiros das três ordens» — os agraciados com as
comendas das Ordens lusitanas de Cristo, Avís e Santiago— e as ordens
religiosas— as «Religiões», da linguagem do tempo.
Para melhor compreender a marcha do litígio, é conveniente ter em
ti W
I vista como se processava a arrecadação dos dízimos.
O foral dos donatários, repetindo as cartas de doação, se limitava a
ii
Brandônio — sabe-se que, na Colónia, sobretudo nos primeiros tempos, a
moeda era vasqueira, de sorte que provavelmente o recolhimento se fazia,
ainda aí, In Natura, mas através dalgum produto de maior cotação e de
mercado mais certo, como o açúcar, em Pernambuco, o fumo. na Bahia,
o algodão, no Maranhão.
- fi
4l|
“ Hl
samente o contrário — «NSosSo isentos», etc.
Continua, assim, a recusa, havendo o Governador Sousa Freire, em
carta de 28 de setembro de 1667, repisado as instruções de 1557: o dízimo
era devido pelos cavaleiros e os senhores de engenho que entregassem os
açúcares, sem cobrança do dízimo, assumirão a responsabilidade da arre
cadação. pagando-os da própria fazenda (Doc. Hist. XIX, 60).
■
■ i
I
O Sistema Sesmarial no Brasil 85
Se o dissídio com «os cavaleiros das três Ordens» foi, parece, logo en
cerrado, outro, mais sério, repontaria, envolvendo as ordens religiosas, ou
religiões, como também se chamavam — problema de deslinde difícil, por
que, além de escassa, a documentação conhecida é confusa e tumultuada.
Visando a melhor sistematizar o estudo da matéria, tentemos fixar
í
algumas coordenadas gerais, partindo da preliminar de que, no primeiro I
século — no Reinado dos Avís, que terminou em 1580, com a volta à uni
dade ibérica — , não hâ sinais dc desentendimentos, fenômeno, de resto,
explicável: a colonização apenas gatinhava, a Coroa portuguesa — empe
nhada em proteger a fé, «emxalçar» a nossa santa fé católica, da lingua
gem de D. João III — , era a primeira em atrair evangelizadores, manten
do o culto, sustentando os «operários da vinha», dando-lhes toda a ajuda
material possível. Compreensível os dispensasse do dízimo pelo menos
fechasse os olhos à evasão das rendas — , tanto mais quanto o que, por
acaso, recebesse, acabaria devolvendo, na assistência direta aos homens da
Igreja. ■
Por maior, entretanto, que fosse, a ajuda do Trono não bastava para
atender às necessidades do apostolado e. desta sorte — olhos, embora,
voltados «para o Reino de Deus e sua glória» —, o clero, sobretudo
regular, cuidaria de formar seu património,
i preferentemente fundiário,
através das mais diversas maneiras de aquisição derivada ’ ' ’ i — terras
recebidas de sesmaria, compras, doações de fiéis —, nos usuais «legados
pios».
O costume era velho, muito generalizado no Reino, tendo, mesmo,
provocado medidas restritivas: levando em conta o fato de «os mosteiros e
as outras ordens» estarem comprando «tantas possessões, que se tornará em
grande dano», el-Rei D. Afonso, o Africano — cujo reinado se estendeu dc
1438 a 1481 —, acabou determinando, registra Antônio Caetano do Ama
ral, que «daqui em diante, nenhuma coisa de Religião não compre nenhu
ma possessão», o que, entretanto, resultaria barreira fragílima: de um lado
porque não impedia outros modos de aquisição e, de outro, deixava cômo
da válvula escapatória, na ressalva de que individualmente era lícito aos
religiosos adquirir — «não tolhemos a nenhum clérigo poder comprar pos-
<
4'1
ií;i
.1 Ml |
86 Costa Porto
li I •Tá’ foro, pensão ou tributo, Salvo o dízimo a Deus (pag. 237), o que se repete
noutra doação, em Guitá, (pág. 429), noutra cm Tapacorá (pág. 495). nas
'li t!
Piranhas (pág. 535) e outras que constam da Documentação Histórica Per
nambucana (1. págs. 238 e 302) e na Revista do Arquivo Público de Per
nambuco (págs. 67, 95 e 113).
E que não queriam pagar noutras aquisições, parece legítimo concluir
da carta régia de 27 de junho de 1711, em que D. João V aludia ao
«grande prejuízo que recebe a Fazenda Real em não pagarem dízimos as
Religiões desse Estado das fazendas que possuem Foro das dos dotes das
suas criações, adquiridas por compras, heranças ou outros semelhantes
títulos (Doc. Hist. Pern. 1.197).
O sentido do diploma régio, é certo se oferece um bocado obscuro,
, graças ao emprego da palavra Foro, que, nos documentos do tempo, se
I
<1; usava em três acepções distintas: ora como substantivo, significando a
quantia paga pelo enfiteuta, arrendatário, etc., ora como adjetivo, o mes
mo que Forro — isto é, «isento, não sujeito, alforriado —, e, finalmente,
como preposição, sinónimo de nos casos de «sucessão por qualquer via» —-
«compra, deixa, herança ou demanda».
Empenhados os reis de Portugal, como dizia D. João III, em «emxal-
■ r çar a nosa samta fee chrystã» na Conquista, converte do «os natrais da dita
terra, infiéis e idolatras», os Reis de Portugal, socorrendo-se do clero e das
ordens religiosas davam-lhe o máximo de ajuda material, outorgando-lhes
ri H regalias de toda natureza, levando em conta que, atenções voltadas para
i" 1 signo filipino, o que, entretanto, nâo aconteceu, influindo para o agrava
mento da crise o processo já referido, de arrecadação, efetuado por «ren
deiros»
Em determinada Capitania, por exemplo, o rendeiro dos dízimos,
avaliando a receita prevista em 10 mil cruzados, oferecera oito mil, bom
negócio para o Tesouro que receberia tudo de uma só vez, c sem mais ou
tras despesas. Na estimação global, entretanto, contara o rendeiro com a
‘I ’
contribuição de todos e se as ordens religiosas não pagavam, a arrecadação
) final cairia fatalmente, restando o risco de sofrer prejuízos
Daí porque, em compreensível linha cautelar, passaram os rendeiros a
exigir constasse, dos contratos, item expresso estabelecendo a obriga
toriedade do recolhimento por parte de todos, cabendo às autoridades ré
■ (*>
gias vigiar pelo seu cumprimento inflexível, e, reforçando-lhe a faculdade
h de compelir os recalcitrantes, a Provisão de 3 de abril de 1657 determinava
intentassem ação «para se cobrarem os dízimos dos religiosos como sempre
se fez», sinal de que as Religiões insistiam na tecla da isenção ou imunida
de. Não adiantaria muito a reiteração do preceito, tendo, em 1667, o ren
deiro da Bahia reclamado do Governador Alexandre de Sousa Freire, nos
termos da cláusula 13 do contrato, «que assim os religiosos.. .como os cava
leiros das três Ordens fossem requeridos pagassem todos os dízimos», donde
o alvará de 30 de setembro daquele ano, em que o delegado régio esclare
cia que «vistas as ordens de S.M., nenhuma pessoa estava isenta de pagar
dízimos, porquanto neste Estado é Fazenda Real» (Doc. Hist. XXII, pág.
78).
Toda esta insistência era como malhar em ferro frio, nada conseguin
do que as Ordens aceitassem a imposição, de modo que, em 1680. o Pro
vedor de Olinda João do Rego Barros, denunciava a el-Rei D. Pedro II
que beneditinos, carmelitas e jesuítas não pagavam dízimos de «engenhos e
mais lavouras de gado» — outrora de «pessoas seculares que os pagavam»
grande diminuição ao contrato», baixando o Mo
narca a carta régia ae 6 de setembro, determinando-lhe «cobreis os dízi
mos de terras e engenhos dos religiosos... porque conforme o direito os de
vem e assim está julgado e não consintais que a terra dada de sesmaria
deixe de o ser, por passar a religiosos que entraram nelas com seu encargo e
pensão e estando os dízimos do Brasil (destinados) à Ordem, os não podem
eles reter» (Doc. Hist. LXXXII, pág. 321).
A estas alturas, os rendeiros — de certo não querendo testilhas com o
clero, casta, então, privilegiadíssima, gozando de regalias imensas — te
riam adotado nova forma de precaver-se contra possíveis prejuízos e,
achando pouco a cláusula sujeitando rodos ao pagamento do dízimo, ar
ranjaram processo ainda mais seguro: do total a ser recolhido ao Tesouro
— a «mor quantia» oferecida quando da arrematação — seria deduzida a
quota relativa à contribuição das Ordens, até que se decidisse, em definiti-
vo, se a cobrança era, ou não, legítima.
É isso, pelo menos, que parece deduzir-se da carta régia de 30 de ja
neiro de 1683 — que figura no Tombo de São Bento de Olinda, pag. 169
— dirigida ao Provedor Francisco Lamberto: «Provedor-Mor de minha Fa-
O Sistema Sesmarial no Brasil 89
zenda do Estado do Brasil. Eu, o Príncipe, vos envio muito saudar. Por se
me haver reprezentado que no Estado do Brasil, e principalmente nessa Ci
dade da Bahia, se costumava, de annos a esta parte, arrematar o contrato
dos dízimos, com condição que as fazendas dos Religiozos.. eram isentas de
nam pagarem dízimos, a importância delles se abateria aos Contratadores
ao preço de seus contratos e pera nam serem executados, enquanto a ques-
tam se nam decidisse, alcançaram provisam e vinham a ter em sua mam do
preço dos mesmos contratos nam só a verdadeira estimaçam do que impor
tavam os dízimos dos Religiozos mas muito maiores quantias; além deste
prejuízo tinha a Fazenda Real outro maior na dilaçam, porque em caso
Que se julgasse que os Religiozos nam eram izentos, ficariam tam alcança
dos em tam grandes quantias que nam seria possível poderem pagar e ex
cederia a divida o valor das mesmas propriedades., me parece ordenar-
'os... que nam admitaes, daqui em deante, semelhante condiçam...(e) fa-
Çaes as arremataçoens sem ella, reservando os dízimos dos Religiozos pera
se cobrarem por conta da Fazenda Real.»
A partir de então, o problema não seria mais entre Religiões e Ren
deiros, mas entre Ordens Religiosas e a Fazenda que passava a exigir dire
tamente os dízimos dos contribuintes faltosos.
Nem assim, entretanto, as cousas se normalizaram. ■
I j;
I'! 90 Costa Porto
92 Costa Porto
i
Ornais grave, porém diz respeito ao sentido.
A maioria dos autores, na verdade, entende que a carta de 27 de ju
I nho é que Eliminou a proibição de as Ordens sucederem cm sesmarias, ou,
como escreve Felisbelo Freire, a «legislação estatuía a cláusula de nas
sesmarias não poderem suceder religiões, porém, à vista da resolução do
j Conselho Ultramarino se ordenou se tirasse semelhante condição». (Op.
cit. 138).
Em outras palavras, teria sido a carta régia dç 27 de junho dc 1711
que permitiu — o que dantes seria vedado — pudessem as Ordens religio
sas receber terras e bens.
1 A primeira interpretação, sem dúvida soa lógica e natural. na medida
em que atribui ao verbo Tirar sua significação mais comum — Eliminar,
Suprimir, Fazer Desaparecer, Cancelar, etc.
Assim, o raciocínio seria simples: havia, dantes, leis e normas impe
dindo que as religiões Sucedessem, a qualquer título e el-Rei determinou
fosse, dali em diante, Tirada, Retirada, Eliminada esta cláusula restritiva.
Realmente quando, em Portugal, as instituições religiosas começaram
a aumentar, desponderadamente, os patrimónios, houve medidas
coibitivas, visando, em especial, os chamados «bens de mão morta» —
intransmissíveis e inalienáveis -, um meio, inclusive, de conter a força do
clero, dos bispados, das abadias e mosteiros, muitas vezes ameaçando a se
gurança da Coroa, falando, por exemplo, uns Manuscritos do Mosteiro de
São Bento de Olinda no preceito das Ordenações filipinas que proibia
«Igrejas Ordens e Mosteiros do Reino reter bens de raiz por mais de ano e
dia sem licença Régia» (Rev. do Inst. Arqueológico, XXXVII pág. 63).
Mas, além de proibir Reter e não, propriamente, Suceder, o próprio
documento registra que as autoridades «nunca fizeram observar semelhante
lei, mas o contrário sempre praticaram, porque deram...compraram-sc,
venderam-se bens às Igrejas...e até o presente se pratica o mesmo e S.M.-
não o ignora...donde prudentemente se pode presumir que o dito senhor o
confirmou, porque sabe que os religiosos, principalmente monacais, não
podem subsistir sem património», de presumir, ainda, que a tal lei «foi só
feita para o Reino e não para as Conquistas» e, quando as atingisse, se po
dia «sem ofensa» considerar «prescrita, pelo não uso dilatado dc mais dc
dois séculos». E de fato, se havia proibição, como explicar o fato dc as
Religiões do Brasil terem tamanho património fundiário, situação, de resto,
que a Coroa legitimava, na hora em que, em lugar de tomar-lhes as terras,
cuidava de receber-lhe os frutos? E o elemento «histórico» mostra que o
»Se tire a condição», da carta de 27 dc junho de 1711, quer dizer Se estabe
leça, se determine, expressamente, a condição de as Ordens não poderem
suceder, a não ser sujeitando-se ao encargo de pagar dízimos.
Vinha, na verdade, o fisco sustentando penosa batalha com as Ordens
religiosas que não queriam pagar tributos sobre os bens que lhe adviessem
por outro título além da data de sesmaria, e que faz a Coroa? Determina
se amplie a fonte de evasão legal dos dízimos, autorizando-as, o que dantes
era vedado, a suceder sem nenhum controle, evidentemente um constra-
senso.
93 Ses
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94 Costa Porto
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I
Aproveitamento
A primeira condição fundamento de todo o sistema — é o
aproveitamento, a tônica da política de terras de el-Rei D. Fernando, a
distribuição do solo tendo como alvo o abastencimento da população e.
i deste modo, terra não explorada seria olhada como devoluta, podendo e
devendo ser outra vez quinhoada.
Na Colónia, a orientação é a mesma. Ainda o plano colonizador
constitui uma nebulosa, e quando D. Manuel doa a ilha de São João a Fer-
1 st
não de Noronha é visando ao aproveitamento — «pera nella lançar gado,
romper e aproveitar». Concedendo em 1530 faculdades a Martim Afonso
para distribuir terras no Brasil, permanece a regra do aproveitamento, e,
com tal vigor que, na carta de 20 de novembro, em trecho de cerca de 17
linhas, as palavras «aproveitar» e «aproveitamento» aparecem umas cinco
vezes.
E se as cartas de doação e forais dos donatários não falam, aberta
mente, em aproveitamento, contudo o pressupõem, sem sombra de
dúvidas, pois aludem às normas das Ordenações, onde o problema está
regulado com todas as letras, cabendo lembrar que, no intróito. el-Rei
aponta, como razão de sua política, o «muyto proveyto..,de se a dita terra
povoar e aproveytar».
No Regimento de Tomé de Sousa, o refrão é quase enfadonho —
«para se poder aproveitar», «que as queiram aproveitar», «segundo vos
parecer que poderá aproveitar», «dar de no para as aproveitarem», não
indo alguns aproveitar», «a quem as aproveite», «para melhor poderem
aproveitar», etc.
O Regimento dos Provedores, além de repisar a mesma tecla esta
belece a sanção, ordenando aos funcionários régios cuidassem de «saber se
as pessoas a que assim foram dadas as ditas sesmarias as aproveitaram... e
achando que as não aproveitaram, o mandarão notificar aos capitães para
eles as poderem dar a outras pessoas que as aproveitem e os ditos capitães-
serão obrigados de dar as ditas terras, pera que nam estem por aprovei
tar».
Desta linguagem nunca se afasta a Metrópole, sempre que disciplina
questões de sesmaria, claro o alvará de 8 de dezembro de 1590: «faço
saber...que pela informação que tenho do grande benefício e muito provei
to que se poderá conseguir a meus vassalos de se povoarem as terras do
Brasil, e querendo que os frutos e proveitos delas se lhe comuniquem, para
que com mais facilidade as queiram povoar e viver nelas, para as lavrar e
aproveitar, hei por bem...lhes sejam dadas terras de sesmarias, para nelas
plantarem seus mantimentos e fazerem roças de canaviais para sua susten
tação, etc.» (Doc. para a Historia do Açúcar, pág. 377).
Doando, em 17 de janeiro de 1552, terras a Simão da Gama, no estei-
ro de Pirajá, Tomé de Sousa acentua que a doação se entende tirando as
terras já concedidas, «aproveitando-as as pessoas cujas forem, porque
pedindo-as para as não aproveitarem por sua culpa, serão do dito Simão
da Gama» (Hist. Geral, I, 325, nota IV); a Provisão de 27 de outubro de
O Sistema Sesmarial no Brasil 95
li' posse... devendo não somente tomar posse, mas aproveitá-la e povoá-la em
termo de cinco anos... o que não fez donde se colhe que foi bem dada ao
dito Pedro Barroso por estar devoluta, passando o tempo da lei» (ib. 471).
Exceção à norma seria, à primeira vista, aquele rumoroso episódio das
terras de Mussurepe, adquiridas pelos beneditinos a Marta da Fonseca, em
1609. Tratava-se de sesmaria, em 1593, Diogo Vaz, marido de Marta:
comprando-lhe o sítio, o Mosteiro tratou de despojar o casal Baltasar Gon-
O Sistema Sesmarial no Brasil 97
1
sesmaria de terras e aguas que os capitães tiverem até ora cadas e ao dian
te derem e as pessoas.. .serão obrigadas a registrar as cartas das ditas ses
marias do dia que lhe forem dadas e num ano e, não as registrando no di
to tempo as perderão».
i
1 98 Costa Porto
Confirmação
-
O Sistema Sesmarial no Brasil 99
FUflUUÀ iiiHiAfc
UNIVERSIDADE DE FORIALEZA
1 BIBLIOTECA CENTRAL
104 Costa Porto
constituía faca
Tal argumento, entretanto, constituía faca de
de dois gumes: se os
dois gumes: !»;
apitães-Mores não tinham faculdade de distribuir sesmarias, nula seria a '■
ata passada pelo capital Freitas em favor do Padre Leite, mas nula, do ’ I
mesmo modo, aquela feita a Felipe Coelho, em 1664, também pelo capitão ■
Imposição do foro
cessão de terras» que lhes fiz (Doc. Hist. I. pág. 269, e 2, Pág 17). Ora, se
a «concessão» datava de janeiro de 1693 e a exigência lhe era «muito pos
terior», não podia datar de 1695.
i-l '
E toda a documentação da época aponta como sua origem a carta ré
gia de 20 de janeiro de 1699, segundo a qual «as pessoas a quem se derem,
no futuro sesmarias, se ponha, além da obrigação de pagar o dízimo à or
dem, e as mais costumadas, a de um foro, segundo a grandeza ou bondade
da terra» (Rev. do Inst., XXXVII, pág. 65, e Doc. Hist. Pernambucana, > .1
I. págs. 214, 218, 223, 226, 228, etc.). I
A carta régia de 20 de janeiro de 1699, impondo o ônus nào lhe
determinava o «quantum» a ser cobrado, estabelecendo como base o crité
rio, vago, da «grandeza ou bondade da terra», cabendo a fixação, ensina
J. Eduardo da Fonseca (Rev Forense, vol. .' 8, pág. 271), a «avaliadores es
colhidos pelas Câmaras do Distrito em que estavam situadas as terras», o
que não parece procedente, pelo menos quanto a Pernambuco, onde vive
mos arbitrados por uma «comissão» — a «Junta» ou «Junta das Missões» —
que tanto se alude na Documentação Histórica Pernambucana (Vol. I,
págs. 64, 69, 83, 87, etc.).
Esta «Junta das Missões», instituída na Bahia pela carta régia de 25 de
março de 1689, com o objetivo de propagar a fé — «o glorioso e principal
motivo que incitou o zelo dos senhores reis — para o descobrimento e con
quista de tão remotas e estranhas terras» (Documentos Históricos, vol.
LXVIII, pág. 227) , teria sido fundada também em Pernambuco, se
gundo Pereira da Costa (Anais Pernambucanos, IV, pág, 198), anterior-
mente à carta régia de 7 de março de 1681, que lhe deu, como função es
pecial, cuidar da catequese dos indígenas.
Na Documentação Histórica Pernambucana, fala-se, com freqílência,
em que sua fixação resultou da carta régia de 28 de setembro de 1700 (vol.
2, págs. 47, 213, 215, etc), mas talvez seja mais certa a lição de Pereira da
I
108 Costa Porto
Costa. (Anais, IV, pág. 468) de que a carta régia em tela apenas aprovara
o critério fixado pela «Junta»: pagariam seis mil réis por légua as sesmarias
num raio de 30 léguas de Olinda ou Recife, e quatro mil réis, aquelas
além deste limite, havendo, porém, exemplos vários que mostram não ter
sido muito rígido este critério, ora fixando-se dois c três mil réis por légua
e nem sempre se levando em conta a distância.
Não se pode dizer fosse muito pesado o teto de quatro e seis mil réis
por légua, embora, no tempo, o dinheiro valesse muito, tendo ainda o co
lono o ónus do dízimo sobre tudo quanto produzisse; mas o certo é que a
exigência trouxe grandes atropelos, ocorrendo casos de colonos que procu
ravam fraudar a exigência.
Lendo mal o autor de «Memória», ensinam alguns analistas que a
cobrança somente se tornou obrigatória depois de 1777, o que não tem
fundamento: a «Memória» trata do caso concreto da Bahia, onde houvera
confusão dos administradores, porque o governador Lencastrc dera à carta
régia «diferente inteligência» e os sucessores parece não tiveram conheci
mento dela, até que o governador Cunha Menezes, cm 1777, lhe exigiu o
cumpriemnto rígido, porque «vinha de governar Pernambuco, onde assim
se praticava».
De fato, em Pernambuco a cobrança de foro sempre foi rigorosa. Em
1714, por exemplo, um certo David de Albuquerque Saraiva, pedindo, de
sesmaria, «uns pedaços de terra em Água-Fria» — distribuindo, era certo,
«a um Felipe Cavalcanti, dos primeiros povoadores desta capitania — mas,
na prática, «res nullius», porque, de muito, abandonados, comprometia-
se a devolvê-los, de futuro, aos legítimos donos, se aparecessem, mas, do
mesmo ponderando seria «cousa rigorosa» devolver a data tendo pago a
pensão devida ao fisco, solicitava dispensa da contribuição que parecia ra
zoável. Mas o Procurador da Coroa opinou contrariamentc, observando,
zeloso das cousas do erário: «Eu já me acomodo com a promessa de resti
tuição quando parecerem donos, porém com fugir com o corpo e não pa
gar foro com isso não me acomodo.... e se o suplicante lhe parece outra
cousa atenda que principum placita iegis havent vigorem». (Doc. Hist. I,
pág. 199).
Embora encontremos, na Documentação Histórica Pernambucana, al
guns casos de dispensa de foro — e com a agravante de haverem as datas
sido aprovadas por el-Rei (ib., vol. 2, págs. 160, 170, 181) — , a regra é de
muita rigidez na cobrança. Alguns colonos, honestos, tendo difileudades de
pagar, abriam mão da data, como Inácio da Cunha, que «renunciou a
S.M. uma sesmaria recebida», «por não poder pagar o foro» (Doc. Hist.,
2, pág. 65); outros atrasavam demais o pagamento e acabavam perdendo o
solo, dado como devoluto (ib., 2, págs. 41, 65, etc.); outros, queriam ser
sabidos e, atrasando-se no pagamento, depois pediam a terra EX NO^O,
para enganar o fisco, nem sempre, porém, apanhando os fiscais descuida
dos: o senhor de engenho Laranjeiras, Capitão-Mor Domingos Bezerra, pe
dira uma data em 1732, levando 16 anos sem pagar o foro, e, quando, em
1748, torna a pedi-la de sesmaria, opina o escrivão: «Parece deve primeiro
satisfazer o que deve atrasado, para não fazer maior dívida», (ib., 2, pág.
65).
O Sistema Sesmarial no Brasil 109
da Coroa que a cobrança somente era devida após cinco anos da concessão L
das datas, manobras, entretanto, infrutíferas ante a vigilância dos Cérberos
oficiais, apressando-se a Procuradoria da Coroa a traçar a orientação
normativa de que o dito foro começará do dia da posse em diante» (Doc., j
Hist., II, pág. 25), enquanto a Junta das Missões decidia de modo taxati
vo: «As terras que se derem de sesmaria se principiará a pagar o foro delas
do dia em que for passada a carta de sesmaria em diante, à razão de qua
tro mil réis por légua, nas datas do sertão e de seis mil réis por légua, nas
que são chegadas à marinha, porquanto os cinco anos são somente por pe
È
na que se dá aos que não povoarem no decurso delas para se poderem dar
por devolutas a quem as pretender», conforme se lê em parecer de 1747»
(>b., 2, pág. 58).
Orientação de caráter geral, visando a «tirar o avulso em que estavam
de que se não devia pagar foro nos cinco anos da Ordenação», a norma
I
iI
da Junta nem sempre seria seguida inflexivelmente, algumas autoridades
mostrando-se suaves e levando cm conta que a incidência do tributo deve
ria alcançar aquelas terras «capazes de dar lucro e não carecerem de ses-
mariamento» (?), conforme se diz em parecer do tempo (ib., 2, pág. 59),
donde, aqui e ali, encontrarmos a concessão de prazos de mora — os
chamados «anos mortos» — , durante os quais ficava suspensa a cobrança.
Havendo motivos razoáveis — a critério da autoridade concedentc —,
fixava-se um período de carência: assim, por exemplo, o Coronel João
Cavalcanti de Albuquerque e outros pedem a D. Lourenço de Almeida uma
sesmaria «com a condição de não pagarem foro senão depois de passados
cinco anos que hão mister para queimarem, roçarem, põrem capazes de
pasto os ditos matos», o que lhes é deferido (Doc. Hist., I, pág. 209); outro
colono pede «seis anos mortos para pagar o foro... atendendo ao benefício
de que necessita» (ib., 89); outros pedem «alguns anos mortos em razão dos
trabalhos, despesa que necessariamente hão de fazer para sua cultura, si
tuação do gado e benefícios de águas de que o gado carece para sua con
servação»^., 129), do que discorda o Provedor, opinando devia o paga
mento «correr do dia da data e não com anos mortos» (ib., 131); outro,
pedindo umas marés, em que há de fazer «grandes entulhos sucaleo (?) e
alicerce profundo e para esse benefício é preciso o trabalho de seis anos»
— lembra que os seis anos «se devem dar mortos» (133), o que é deferido
110 Costa Porto
pelo governador (ib., 135); o capitão Antônio Biart pede terras para «edi
ficar engenho de fazer açúcar, dando-se cinco anos livres para poder culti
var» (ib., 211), mandando o governador começasse o pagamento «passado
três anos» (ib., 213).
Vigilantes na defesa dos interesses da Coroa, adotaram as autoridades,
pelo menos de Pernambuco, o processo acautelador de o sesmeiro apresen
tar fiador idóneo, que respondesse pelo pagamento, frequentes, nas cartas
da Documentação Histórica, exigências assim: «Dando fiança, corno se tem
assentado nesta praça» (Doc. Hist., II, 59): «deve dar fiança idónea nesta
praça», (ib., 66); «deve dar fiança idónea nesta praça a pagar no fim de
cada ano» (ib., 71): «precedendo fiança idónea, que é estilo dar-se para
pagamento do foro annual» (ib., 77); «deve dar fiança nesta Provedoria
aos foros que se vencerem, em que obrigue o fiador a pagar anualmente os
foros vencidos» (ib., I, 84); «não se entregando à parte sem constar ter
dado fiança idónea à satisfação das pensões que se forem vencendo» (142).
Deste foro, pago a el-Rei, há distinguir aquela contribuição que muito
sesmeiro cobrava de moradores, localizados em terras alheias, e causa dos
incidentes, no Piauí, com a Casa da Torre e Sertão: recebendo datas imen
sas. muito latifundiário costumava arrendá-las a precaristas que lhe paga
vam pensões altas, e muitos, não satisfeitos com a exploração, iam além,
cobrando arrendamento de terras que lhes não pertenciam. Em 1753, por
exemplo, Alexandre da Silva Carvalho, «morador no sertão do Ararobá,
nas cabeceiras do Moxotó», reclama ao governador Correia de Sá contra o
fato de, tendo descoberto e povoado três léguas naquelas paragens, havê-lo
o procurador da Casa da Torre obrigado «a passar-lhe papel de foro, que
com efeito lhe passou», o mesmo fazendo «os Padres da Madre Deus desta
vila do Recife», até que lhe veio ao conhecimento que a terra «não
pertence àquele nem a estes, mas a S.M.», pelo que lhes pedia de sesmaria
(Doc. Hist., II, pág. 82).
Medição e demarcação
32 - OS DIREITOS DE TERCEIROS
li
114 Costa Porto
114), adiantando, cquanto aos baianos, não haverem penetrado «seis léguas
' terra a dentro» (139).
Ora, pc"? — moradores
poucos ’ e sobrando terra, ninguém iria questionar so-
bre sesmaria,, t„. ’
todos sabiam o que já fora doado, tornando-se, por outro
lado, muito-- — _.l <saber
fácil ’ as terras distribuídas, através dos registos nos livros
competentes - em Pernambuco> no «Livro do Tombo e de datas de terras»
•nstitufdi
instituído por Duarte Coelho — e, depois de 1549, nos livros da Provedo-
ria.
Quando, a partir do século 17, começa a acentuar-se o povoamento,
as autoridades se mostram vigilantes, sendo frequentes, na Documentação
istonca, por exemplo, informações assim: «não se acha que estas terras,
e que os supplicantes fazem menção, serem (sic) dadas, como consta do ii. ■
livro das datas de sesmarias» (Doc. Hist., I, pág. XI); ou «revendo os livros i -
os registros das sesmarias e datas de terras... não consta estar registrada I
nenhuma com as confrontações que se declaram no requerimento»
1 ''^'Pág. 49); ou «de presente não há notícia de pessoa a quem perten
ça» (ib., 79); ou «não consta haja data das terras que se pedem» (ib.,93).
outras vezes, exige-se comprovação de que as terras não foram distri-
uídas: «o escrivão da Fazenda informa pelo livro das datas se estão dadas
as terras» (ib., 1,11); ou informem os capitães-mores «se estas terras estão se se
acham devolutas» (ib.29); ou «por se evitarem litígios e prejuízos de tercei
ros por não haverem (sic) hoje terras que não estejam dadas, principal
mente no lugar que os suplicantes requerem,» diz-se em 2 de julho de
h
1749, «parece-me justo que o capitão-mor do distrito informe.. .se há terras de
volutas no lugar requerido» (ib. 93), ressaltando-se, não raro, que a redistribui-
Ção somente poderia verificar-se, em caso de caducidade, pelo descumprimen-
f
to dalguma condição essencial: «não se podem dar por devolutas as terras que
fossem dadas a outrem, sem constar que as não aproveitam e ser findo o prazo
Que se deviam povoar na forma da lei», diz-se numa informação (ib., I, pág.
I
i i
16); «como as pessoas a quem foram dadas as terras...não procuraram confir !
mação de S. M... nem pagaram o foro.. .não se me oferece dúvida, em que se ha
jam por devolutar» (ib., 41).
Por vezes ocorria que o titular da sesmaria desistia da data, mas, neste
caso, o abandono devia ser comprovado de maneira positiva: Quando
Domingos Bezerra Cavalcanti pede umas terras em Santo Antão, justifica
estarem abandonadas, juntando «o traslado do termo de deixação que fez Ig-
nácio da Cunha das ditas terras» (ib., II, 30); quando Francisco Falcão Ensera-
bodes pede terras no rio Sebiró, apresenta declaração em que Jerônimo Salga
do, o sesmeiro anterior, desitira da concessão (ib., 235); noutra carta, alude-se
ao «bilhete que o suplicante apresentou», segundo o qual se mostrava «haver
delas desistido o dito Manuel Cavalcanti» (ib., 249).
diam à medida fixada —, valendo notar que, muita vez, nem o pedido
nem as cartas cuidavam de determinar o tamanho da terra doada, proble
ma, até os fins de 1600, de todo irrelevante.
Tomando-se o caso de Pernambuco, por exemplo, observa-se que as
primeiras doações foram feitas nos arredores de Olinda, pelas várzeas do
Beberibe e do Capibaribe, e, pela costa, rumo ao sul, para as bandas do
Cabo de Santo Agostinho abaixo, por onde se foi alastrando o canavial.
E distribuída uma sesmaria — de área nem sempre determinada —,
as datas subseqilentes tinham como ponto de partida a «testada» do solo
quinhoado, freqílentes, nas cartas, fixações assim: «quadro centas braças
de terra, onde são dadas a Gonçalo Mendes Leitam, pegado com o rio Ca
pibaribe, da banda do Loeste com terra de Melchior Fernandes Maguari e
da banda do sul com Gonçalo Mendes Leitão» (Tombo, 150); «quinhentas
braças de terra em quadra, na testada da terra de Gonçalo Mendes Lei
tão» (pág. 153); um pedaço de terra que está entre a Merueira pequena e
a Merueira grande (249); «umas terras desertas no sertão, por cima da ter
ra nova e de umas terras do Governador André Vital de Negreiros» (Doc.
Hist., I, pág. 8), etc. Assim, quem viesse depois começaria a contar a ocu
pação da última testada, cada um empurrando o mais recente e sem ne
nhum inconveniente, porque havia lugar demais para todos.
À medida, porém, que se foram alargando o povoamento e ocupação
do solo as autoridades começaram a vigiar melhor a distribuição, pelo re
a
ceio de doara terras já concedidas: daí uma série de medidas, todas visan
do à maior segurança do morador e ao respeito dos direitos de terceiros.
Nas cartas até o começo do século 18, antes de deferir um pedido, a
autoridade, via de regra, ouvia o Provedor e o Procurador da Coroa,
constituindo quase um chavão este despacho interlocutório — «informe o
Provedor da Fazenda, ouvindo ao Procurador da Coroa».
Provedores e Procuradores, entretanto, moravam nas sedes de gover
no, não lhes sendo fácil, assim, conhecer a situação das terras situadas pelo
Interior e daí porque, no século 18, começam a aparecer precauções
especiais, mandando-se como faz o Governador Pereira Tibão, em 1731,
«informe o Capitão-Mor...declarando a Capitania a que pertença estas ter
ras, se estão vagas» (Doc. Hist., II, pág. 9); ou «mandei que informasse os
Capitães-Mores do distrito, declarando se estas terras se acham devolutas e
sem cultura» (ib., pág. 29); ou «mandei...que o Capitão-Mor daqueles distritos
mandasse por editais públicos, nas portas das igrejas vizinhas, para que haven
do algumas pessoas que tenham datas ou sesmarias nas tais terras, as apresen
tassem» (ib., 34); ou «mandei...informar o Senado da Câmara de Olinda», e
como os camareiros, distantes, nada pudessem esclarecer, «mandei informar o
juizpedâneo do distrito» (ib., pág. 69).
Quando a penetração atingiu pontos afastados, tudo isso, que se vinha
fazendo de acordo com praxes , hábitos, «estilos», passou a constituir ma
téria legal: em informação de fevereiro de 1749, alude o escrivão da Fazen
da à «real ordem de 21 de março de 1744, na qual dispõe S.M. como se
devem dar terras de sesmarias», acrescentando o Provedor que «uma das
cláusulas com que S.M. ultimamente, pela sua real ordem de 21 de março
O Sistema Sesmarial no Brasil 121
das cartas dos donatários, em que, como na de Duarte Coelho se lê: «Item
prymeiramente o capitam da dita capitania e seus sucessores daram a
repartyram todas as terras delia desesmarya a quaesquer pessoas», etc.
«Todas as terras», diz o diploma régio, mas como força de expressão:
havia porções de solo indistribuíveis, insusceptíveis de apropriação de pri
vados, não, a princípio, por força de lei, mas de costumes, de praxes, de
normas inarticuladas, resultantes da própria mentalidade dominante, na
maneira de conceituar o primado do «social», do coletivo.
A própria legislação geral — as «ordenações» — abria uma exceção,
vedando distribuir o solo «reservado» e «coutado», hipótese, entretanto, pe
culiar ao Reino, onde permaneciam os resíduos e formas vestigiais do feu
dalismo e da organização político-social expressa em termos dc castelos, ci
dades, sedes episcopais e abadias: como mostra Herculano — possivelmen
te o melhor analista da evolução histórica da Península — , «um dos incen
tivos para atrair a população era convertê-los em asilo de culpados;».
Por outro lado, a legislação e os costumes atribuíam a domínios de
nobres e de eclesiásticos — castelos, abadias, mosteiros, <etc. — privilégios
largos — de couto e homizio — não entrando neles; «juridições nem
alçadas civis», de tal sorte que tais territórios se tornavam imunes ao po
der, civil, gozando de regalias imensas, que o lento fortalecimento do po
der real não logrou de todo liquidar.
Encontrando esta série de «direitos adquiridos», as Ordenações
respeitavam-nos e daí a regra de que terras «reservadas» e «coutadas» se
riam insusceptíveis de distribuição, mesmo quando inaproveitadas, porque
sua situação obedecia a princípios jurídicos especiais, um «ius singulare»,
fora das restrições do «ius commune».
Na Colónia, este quadro inexistia: vindo da luta contra o feudalismo,
não iria a Coroa galvanizá-lo na conquista americana, quando, na Europa,
o regime dos feudos entrara em declínio, apenas respeitadas as situações já
definitivamente estabelecidas e daí porque, não havendo, no Brasil, solo
«reservado» e «coutado», seria de concluir pudessem e devessem todas as
terras ser distribuídas entre os moradores, nos termos do mandamento am
plo das cartas e forais dos donatários.
A verdade, porém, é que havia porções de solo indistribuíveis, embora
a lei silenciasse a respeito.
Na repartição de sesmarias, por exemplo, observa-se ai linha inflexível
da mentalidade romana do respeito à «servidão de passagem»,
assegurando-se ao morador trânsito fácil, donde o cuidado cm conservar os
caminhos, as estradas, as praias, as margens dos rios navegáveis.
Estradas são cousas sagradas, públicas, insusceptíveis de apropriação,
os demarcadores parando, quando se lhes oferecia um caminho público —
«o caminho do carro», «onde se acabou a terra por amor de caminho do
carro» (Tombo, 30) —, e em todas as cartas o que logo se acentua é a
obrigação de «pelas ditas terras dar caminhos livres ao conselho para
fontes, pontes e pedreiras. (Doc. Hist., I, 5), linguagem que topamos inva
riavelmente nas datas: no pedido de 326 palmos de terra, nos Afogados, a
O Sistema Sesmarial no Brasil 123
Câmara do Recife sugere não se dêem mais de 150 palmos de fundo, «para
não prejudicar a servidão pública do rio que deve prevalecer à utilidade
particular» (ib. 2, pág. 90). É que margens do rio eram também
inapropriáveis: «se for à margem de algum rio caudaloso, que careça de
barco para se passar, ficará reservada de uma margem dele meia légua pa
ra serventia pública» (ib., 105).
A doação de terras, muita vez, é feita sob condição de se reservarem
áreas «para as Igrejas ou vilas, minas de metais, estradas públicas e
logradouros» (Doc. Hist., I, pág. 24).
Nos aglomerados humanos, os moradores precisavam ter franco o
acesso às matas, para tirar madeira e lenha, às fontes e pedreiras, às pon
tes sobre os rios, às praias, à terra para campáscuo, etc., e, assim, nas
cartas, recebendo o domínio pleno sobre a terra, sobre «todas as suas
águas, campos, matas, testadas, logradouros e mais úteis que nela se
acharem», ficava o morador sujeito a condição de «dar pelas ditas terras
caminhos livres ao Conselho para fontes, pontes e pedreiras» — caminhos,
evidentemente, destinados não ao Conselho, como pessoa moral, mas aos
moradores.
Para os aglomerados humanos, concentrados nas «povoações» e vilas,
predominava o empenho de reservar comodidades, áreas para utilização
em comum, expressivas, neste particular, as limitações constantes do foral
de Olinda, de 12 de março de 1537: a vila recebera área vasta — desde os
limites de Igarassu até o Capibaribe, o «Rio dos Cedros» (Anais, V. pág.
127) — muita coisa, entretanto, não constituindo propriamente património
do Conselho, mas «serventia» do povo — «as várzeas das vacas» e «do Be-
beribe» para serem utilizadas pelos «que não têm onde pastem seus gados»;
«a ribeira do mar dos Arrecifes dos Navios... tudo será para serviço da vil-
la e povo, reservado que se não pode dar a pessoa alguma», o mesmo suce
dendo com o trecho até o Rio Doce — chamado «Paratibe» — descendo
do «montinho até o Varadouro da Galeota», deveria ficar uma rua «para
serventia do povo, de que se possa servir de carros»; «todas as fontes e ri
beiros...são para o serviço do povo; fa-la-á o povo alimpar e corregir às
suas custas».
Talvez por força da lei de 21 de março de 1744 — «na qual dispõe
S.M. como se devem dar terras de sesmaria» —, limitara-se a área de
datas «nos caminhos de minas, ou margens de rios caudalosos, que necessi
tem de barca para se atravessar» (Doc. Hist., II, pág. 61) e em despacho
de 20 de junho de 1732, o Governador Tibão, concedendo uma sesmaria,
declara «ficam reservadas terras para Igrejas ou vilas, Minas de metais,
praias, estradas públicas e logradouros» (ib., pág. 24).
Restrições, essas, tendo em vista o interesse coletivo, do povo da co
munidade.
Outras vezes, proteção a determinados grupos, como foi o caso dos
silvícolas.
A tradição republicana da defesa das terras de indígenas tem raízes na
Colónia. No começo da colonização, o problema inexistia, porque o
124 Costa Porto
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(7) — «Aquellc rio do Extremo junto ao cabo de Santo Agostinho cm que assim a se fala
nflo é hoje conhecido pelo nome, mas devemos advertir que he o que agora se chama rio da
Jangada». «Há muitos poucos sujeitos nesta capitania que possam hoje dar notícias...do rio do
Extremo em que assima se fala. Para memória dos vindouros declaramos que o Rio do Extre
mo é aquele que hoje se chama Porto da Jangada», diz a Crónica do Mosteiro (Rev. do Inst.
XXXV, pags. 23 e 35).
O Sistema Sesmarial no Brasil 129
Pelo menos a partir dos fins do século 17, aparece outra limitação:
não se podiam distribuir «terras do interesse da Fazenda», divergindo os
autores quanto ao fundamento da restrição; para uns a carta régia de 12
de novembro de 1698 e segundo outros, a carta de 20 de janeiro de 1699
— confusão de fácil deslinde, atentando em que os dois diplomas tratam
de assuntos diversos, a carta de 1698 regulando, de modo especial, os cha
mados «terrenos de marinha», enquanto a de janeiro de 1699 trata, generi
camente, de quaisquer outras terras que interessem à Fazenda.
Terras de marinha
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132 Costa Porto
não fica aos moradores praia em que chegue ao menos uma embarcação
com mantimentos e mais víveres da suas roças»... e da Real Fazenda por
que «ficava tudo com total ruina», sugerindo se «devia impedir semelhan-
tes edifícios nas marinhas, por serem livres para o real serviço e uso co-
mum».
E, «porque os oficiais da Câmara querem pelas suas doações lhes seja
permitido o poderem dar chãos até o mar, e nessa forma passam aos
foreiros os seus aforamentos», lembrava a conveniência de resolver «se en
tre o mar e o edifício devia mediar marinha e a quantidade dela para as
sim se evitar as dúvidas que não só os ditos oficiais da Câmara, mas ainda
com os Governadores se lhe podiam mover».
Ouvido a respeito, o Governador Luis Va'hia, depois de interessantes
ponderações, sugere ,duas medidas: fechar os olhos ao passado -pois lhe
parecia inviável corrigir os erros acumulados— e «impedir com rigorosas
penas que daqui em diante ninguém se possa alargar um só palmo para o
mar, nem edificar nas praias... fazendo carga aos Governadores e ao Pro
vedor da Fazenda de toda a desordem que houver daqui em diante sobre
este particular», o que é aprovado pela carta régia de 10 de dezembro de
1725.
Nada, porém, dava jeito, continuando os incidentes: assim, em 1731,
a Câmara do Rio reclama a el-Rei porque alguns moradores queriam proi
bir «na distância do mar e praia que respeita à testada das suas terras não
lancem redes para pescar», donde resultavam «muitas vezes, contendas e
pendências», havendo o Monarca, em ordem régia de 10 de janeiro de
1732, ordenado ao Governador «não consintais se aproprie pessoa alguma
das praias e mar, por ser comum para todos os moradores».
A pouco e pouco se vão definindo as linhas mestras do disciplinamen-
to: o conceito de terras de marinha e o princípio de que regalia régia
escapavam à jurisdição das Câmaras, somente podendo ser dadas ou
aforadas mediante autorização do Monarca.
Em 1728, um morador solicita ao governador Tibão um terreno, tido
como devoluto «junto à ponte Boa Vista»: tratava-se, evidentemente, de
terras que deviam pertencer à Câmara, mas em praia que «fica coberta
com todas as marés cheias e se descobre de maré vazia, pelo qual se mostra
ser realengo», havendo, por isso, o delegado régio atendido à solicitação,
com a ressalva de o beneficiário largar o terreno, «sendo necessário para o
serviço de S.M. demolindo-se as benfeitorias... sem que à Fazenda Real fi
que a satisfação alguma» (Doc. Hist.,I, pág. 322 e segs).
Neste mesmo ano, outro incidente, também no Recife: uns moradores
haviam pedido autorização ao Senado da Câmara para construir casas na
Boa Vista, quando as autoridades militares o impediram, exigindo licença
do Governador e tendo Tibão solicitado informações à Câmara — estra
nhando houvesse sido dada licença sem pagamento do foro-, pois se trata
va de «praia coberta, logradouro público, reservado nas datas de
sesmaria»— responderam os camareiros teriam os antecessores dado autori
zação sem «notícia da qualidade do lugar», não sendo justo permitisse o
Governador a construção sem o pagamento do devido foro.
O Sistema Sesmarial no Brasil 133
38 - LEGISLAÇÃO DESORDENADA.
7
136 Costa Porto
I
normas anteriores, como a galvanizar aquele acervo de regras, cuja ina
daptação à Colónia o próprio Conselho proclamara com objetividade.
Nem, descendo à parte positiva, o alvará de 5 de outubro trouxe algu
ma coisa de prático, em termos de aperfeiçoar o sistema: ou introduz e re
nova ninharias, ou deriva para exigências teóricas, de si mesmas louváveis,
mas dificílimas de execução, dadas as circunstâncias do meio e do tempo.
I
Depois de traçar regras gerais — como a determinação da audiência li
das Câmaras locais, exigência imposta por «várias ordens» anteriores e cuja
omissão é apontada como «erro abusivo» — o alvará passava a regular,
com muita ênfase, o problema da demarcação das sesmarias, e com rigor
desusado.
Em primeiro lugar, dava efeito retroativo à medida — e com certo
1
fundamento, pois, argumenta, os antigos sesmeiros haviam recebido as ter
ras «com esta condição», e, assim, não havendo cumprido, se lhes devia Fjl
aplicar, «irremissivelmente», a pena de omisso, que alusivamente, se lhes
vinha dispensando.
E quanto às futuras datas, o rigor era maior. Até então, a demarca
ção figurava a modos de condição resolutiva: o sesmeiro ao receber as da
tas e registrá-la, entrava no pleno domínio da sesmaria, e se não a demar
casse, resolvia-se o domínio, a terra voltaria à Coroa, para nova distribui
ção, «devoluta»; Dagora em diante, o processo é diferente: antes de de
marcar, o sesmeiro não entrará na posse da terra, não poderá pedir confir
mação, a condição é suspensiva, somente ocorrendo a aquisição de l
domínio quando for satisfeita a exigência legal.
Até então, cabia aos Provedores, parece, se não efetuar, ao menos fis
calizar a demarcação, tarefa que o Alvará confere aos Ouvidores — «por
serem presentemente os que substituem os provedores». E como o
Provedor, via de regra, vivia nas sedes — sendo-lhe impossível, assim, fis
calizar o que se passava pelo interior — adota-se processo novo e realmente
i
■
138 Costa Porto
■
estava amparado pelo «zaimph» protetor do artigo 179, n.° XXII, da
Constituição de 25 de março de 1824, que declarava «garantido o direito
de propriedade em toda sua plenitude», ressalvada, apenas, a faculdade de
expropriação se o exigisse «o bem público legalmente venticaao», estancio,
assim, as três outras hipóteses que a lei procura regular, começando pelas
terras devolutas.
1
144 Costa Porto
43 - A PROCESSUALÍSTICA SESMARIAL
1
Mas é claro podia haver pedido verbal, ou a doação ser mesma espon
tânea: doando, em 1534, a Capitania de Pernambuco a Duarte Coelho,
diz el-Rei que o faz «de meo proprio moto... sem me elle pedir nem ou
trem por elle»: por que não distribuir sesmarias aos moradores, mesmo 4';|l 1I
quando não as solicitassem expressamente? E muita carta (Tombo, 31, 35,
244, 288) parece insinuar não precedera pedido, pelo menos escrito.
A menção do nome do requerente ou do beneficiário se tornava im
prescindível, pois a doação se fazia a pessoa determinada e, via de regra,
í
pressupunha certa fundamentação. Embora el-Rei mandasse fazer a i
distribuição a «quaesquer pessoas que seyam», contanto que fossem cris
tãos, a data valia espécie de paga a serviços prestados, cada colono procu
rando justificar a solicitação sob os mais variados motivos: uns simplesmen-
152 Costa Porto
te dizem «tem família», filhas para casar, têm gados, dispõem de meios
para cultivar a terra; outros lembram que, recebendo sesmarias, irão
produzir, aumentando as rendas régias, os dízimos, pagarão foro, etc: a
maioria recorda os serviços prestados ao Soberano, à Colónia, em lutas
contra indígenas, contra o estrangeiro, contra os negros aquilombados, tu
do «à custa de sua fazenda», com risco de vida, com derramamento de san
gue (Tombo, 152, 398, 403, etc); Bartolomeu Gomes Borba é isto que
alega: «tem servido a S.M. nestas guerras de Pernambuco até a feliz res
tauração, como é notório... e tendo muitos filhos e familiares, não possui
terras aonde os accomode» (Doc. Hist., 3); outro: « tem servido a S.M. co
mo he notório, vive muito pobremente» (ib., 6); ou «tem servido a S.M.
em as guerras da liberdade... e de presente servem seus filhos a todos os
rebates que se offerecem com suas armas e cabedaes» (ib., 10); as filhas de
Gomes Correia lembram os serviços prestados pelo pai e pelos irmãos; D.
Isabel, filha de Jerônimo, quando pede terras, costuma trazer a terreiros os
trabalhos do pai, «o primeiro povoador desta capitania».
A gama de serviços é a mais variada: informando um pedido do Dr.
Baltasar Pereira de Melo, o Procurador da Coroa aponta, entre os motivos
que justifiquem o deferimento, ser ele «letrado, graduado na Universidade
de Coimbra, advogado de muitos annos nos auditórios desta cidade e advo
gado de boa nota, assim nos termos judiciais como em discutir pontos de
direito, conciliando as leis e opiniões de direito com grande erudição e
melhor intelligencia para concordância delias» (Doc. Hist., 26).
Pedindo sesmarias, o colono costumava mencionar a residência, praxe
que, de certo, tinha raízes no Regimento de Tomé de Souza, onde vemos a
proibição de distribuir as terras da Bahia «pessoa allgua das que ora são
moradores nas outras capitanias», vedando-se, ainda, aos moradores de
uma capitania, pudessem passar para outra, sem licença do respectivo ca
pitão.
Nem custava nada dizer o colono onde morava, embora, no comum,
as alusões sejam muito vagas: «morador nesta capitania», «morador nesta
vila», etc.
Também seria usual mencionar «a situação geográfica da terra solici
tada», pois se pediam áreas determinadas, lugares certos, os quais, muitas
vezes, antes de pedidos legalmente, já vinham sendo ocupados por quem os
descobrira. Mas, sobretudo nos primeiros tempos, as referências são vagas,
esfumadas, imprecisas: «ao longo do Rio Capibaribe» (Tombo, 359), num
«ribeiro que corre entre muitas palmeiras» (ib., II), «entre o Rio Capiba
ribe e o Rio Parahiba» (ib., 18); «umas terras desertas no sertão, por cima
de terra nova» (Doc. Hist., I, 8); «alguns campos e água que forma um ri
beiro que corre por entre muitas palmeiras», etc. (ib., II).
«duas missas cada anno sempre hua em dia do dito Sancto e outra em dia
de Sam Joam Batista, por tenção delle... e de todos os seus herdeiros»
(Rev. Arquivo Público, ano II, IV, pág. 182).
44 - DEMARÇAÇÃO E POSSE
Via de regra mais ou menos assim: «Saibam quantos este público ins
trumento de ato de posse virem que, no anno do nascimento de Nosso
Senhor Jesus Christo, da era de 1663 annos...nesta villa... por baixo da
Igreja de Sam Bento da dita villa, onde eu, Tabbaliam ao diante nomeado
fui e sendo ahi, perante mym appareceram Manoel da Sylva Pinto...e por
elle me foy apresentada a carta de data atrás...requerendo-me que eu, em
virtude delia, lhe desse posse das terras conteudas em sua data, a qual to-
mey e com o dito Manoel da Sylva Pinto fui aonde chamão a gorita de
Joam de Albuquerque e nella gritei, em alta e intelligivel voz, dizendo(:)
ha pessoa ou pessoas que tenham embargos e esta posse que dou desta ter
ra a Manuel da Sylva Pinto(?) e logo o dito Manoel da Silva Pinto cavou
na terra e a lançou para o ar, dizendo, eu Taballiam, huma e repetidas
vezes(:) ha pessoa ou pessoas que tenham embargos a esta posse que dou a
Manoel da Sylva Pinto(?) e por nam me sair pessoa alguma o houve por em
possado e lhe dey a dita posse e logo fuy caminhando com o dito Manoel
da Sylva Pinto e testemunhas que prezentes estavam pela praya...dizendo
sempre pelas ditas prayas e logradouros della(:) ha pessoa ou pessoas que
tenham embargos e esta posse que dou... a Manoel da Sylva Pinto(?) e por
nam me sair pessoa alguma, cavando o dito Manoel da Sylva Pinto, e bo
tando terras pera o ar, o houve por empossado, quanto de direito, posso e
se requer: e logo eu Taballiam e testemunhas viramos da dita testada e
viemos correndo por a banda de dentro da trinxeira da dita praya por
todas as terras...e por ellas vim eu Taballiam gritando em alta voz(:)ha
pessoa ou pessoas que tenham embargos a esta posse que dou ao dito Ma
noel da Sylva Pinto(?) e por me nam sair pessoa alguma o houve por em
possado... e logo o dito Manoel da Sylva Pinto tomou uma enxada na
mam e cravou na terra e plantou árvores de frutos e romeyras e pacoveyras
e árvores de espinho, e as arrancou donde estavam, plantando-as à vista de
todos, dizendo eu Taballiam repetidas vêzes, em alta e intelligivel voz(:) ha
O Sistema Sesmarial no Brasil 157
pessoa ou pessoas que tenham embargos a esta posse que dou a Manoel da
Sylva Pinto de todas estas terras(?) e por me nam sair pessoa alguma o-
houve por empossado» (Tombo, 58).
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P839»
Cod: 10255 Rbq: 5847/86
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Natural de Canhotinho. ,no Estado de
Pernambuco, onde nasceu ern-43 de Junho £
dé 1909. Costa Porto bacharelou-se em Di
reito pela Faculdade de Direito do Recife
Jornalista, exerceu atividades de edito-
rlalista e colunista dos jornais «Folha da ?«.
Manhã», «Diário da Manhã». «Jornal Pe
queno», «Jornal do Comercio» e «Diário
de Pernambuco». Foi Diretor deste último
e superintendeu os Diários Associados.
Dirigiu a Televisão Universitária, de Per
nambuco.
No setor político, foi Deputado Federal V
na Constituinte de -16. pelo extinto PSD
Ministro da Agricultura no Governo Café
Filho, exerceu, depois, a Presidência do A
Banco do Nordeste do Brasil. Presidiu.
também, o Banco do Estado de Pernam •v ' *
buco — BANDEPE. J
Professor Universitário, ministra as
disciplinas de Direito Constitucional. Di
reito Romano e Teoria Geral do Estado na
Universidade Católica de Pernambuco,
Membro da Academia Pernambucana *
de Letras e do Instituto Arqueológico. His
tórico e Geográfico de Pernambuco, es
creveu as seguintos obras: «Pinheiro Ma
chado e Seu Tempo» <1950); «O Pastoreio
na Formação do Nordeste» (1950); «Os ex
Tempos de Kosa e Silva» (1970); «Estatu
to das Vilas do Brasil Colonial» (1970);
«Pequena História da Confederação do 0 Sistema
Equador» (1974); «Os Tempos de Dantas
Barreto» (1974); «A Propósito de Terras
Devolutas» (1975); «O Marquês de Olinda
e Seu Tempo» < 1976); «Doçura Amarga —
A Propósito de uma Crise na Agro Indus
tria Canavlelra do Século XVII» <1977);
«Os Tempos de Lima Cavalcanti» <1977);
«Duarte Coelho» <197H); «Os Tempos de
Gervãslo Pires» 1197H) e «Canhotinho
Notas sobre suas Origens e Evolução
Política» (1979).