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A educação na ética kantiana

Mário Nogueira de Oliveira


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

Este artigo trata da antropologia moral de Kant na qual estão


inseridas as suas considerações sobre educação. Tal como a éti-
ca kantiana é tratada costumeiramente, não apreendemos o valor
de sua parte empírica, muitas vezes negada. Tal parte empírica
consiste nesta antropologia moral que nos capacita para acolher
em nossa vontade, pela via da educação, especificamente pelo
que Kant chama de “didática ética”, as leis morais em seus prin-
cípios assim como para assegurarmos sua eficácia no nosso
mundo social. Uma vez que Kant afirma que “o homem, afetado
por tantas inclinações, é na verdade capaz de conceber a idéia
de uma razão pura prática, mas não é tão facilmente dotado da
força necessária para a tornar eficaz in concreto no seu compor-
tamento” devemos implementar nossas máximas de comporta-
mento pela educação e pelo cultivo do nosso espírito. O que nos
levará às teses de uma virtude ensinada ao jovem que, posterior-
mente, aprenderá a fazer uso da sua liberdade. Este estudo divi-
de-se em seis pequenos itens, a saber, uma breve introdução, um
estudo acerca da antropologia moral, a questão da educação
dentro desta antropologia, uma breve análise da obra Sobre a
pedagogia na qual privilegiamos os estágios da educação, tal
como vistos por Kant, e a importante questão da formação do
caráter e, finalmente, uma breve conclusão.

Palavras-chave:

Filosofia da Educação — Ética kantiana — Antropologia moral —


Didática ética.

Correspondência:
Mário Nogueira de Oliveira
Rua Maestro Francisco Braga, 76
apto. 202
22041-070 – Rio de Janeiro – RJ
e-mail: mario.nog@uol.com.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 447-460, set./dez. 2004 447
Education in Kantian ethics

Mário Nogueira de Oliveira


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Abstract

This article deals with Kant’s moral anthropology, in which his


considerations about education are included. Kant’s ethics is
routinely treated in such way that we fail to grasp its empirical
part, many times denied. Such empirical part consists of this
moral anthropology that enables us to embrace in our will,
through education, and specifically through what Kant calls the
“ethics didactics”, the moral laws in their principles, and also to
ensure their efficacy in our social world. Given that Kant says that
“man, influenced by some many inclinations, is actually capable
of conceiving the idea of a practical pure reason, but he is not
so easily endowed with the strength needed to effect it in con-
creto in his behavior”, we must implement our tenets of behavior
through education and through the cultivation of our spirit. That
will lead us to the theses of a virtue taught to the young who
later will learn to make use of his freedom. This text is divided
into six short parts, namely: a brief introduction, a study about
moral anthropology, the issue of education within that
anthropology, a brief analysis of Kant’s On Pedagogy (Über
Pädagogik), in which we focus on the stages of education as
seen by Kant and on the important issue of character formation,
and finally a short conclusion.

Keywords

Philosophy of education – Kantian ethics – Moral anthropology –


Ethical didactics.

Contact:
Mário Nogueira de Oliveira
Rua Maestro Francisco Braga, 76
apto. 202
22041-070 – Rio de Janeiro – RJ
e-mail: mario.nog@uol.com.br

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Durante anos, lemos e discutimos sobre O argumento de que os últimos escri-
as dificuldades de teorias éticas serem aplica- tos de Kant são frutos de um período de seni-
das em um contexto como o nosso, de grande lidade e mais a grande repercussão que as obras
desigualdade social e econômica. Nosso con- anteriores à década de 1780 tiveram, e têm até
trato social instituiu-se diferentemente daque- hoje, quase que nos limitaram a uma interpre-
les de países que possuem uma grande classe tação majoritária do pensamento ético de Kant
média e um grau de exclusão social muito mais segundo a qual sua grande característica seria
reduzido. Fomos cidadãos desiguais desde a uma ética purificada de tudo que pudesse advir
primeira hora. dos estudos sobre antropologia, psicologia,
A maior parte dessas teorias não trata biologia, história, ou qualquer estudo de cunho
daquilo que poderia ser elucidativo para tornar empírico. Entretanto, como um representante
nosso contexto apto a suas aplicações uma vez do Iluminismo, Kant nunca buscou negar o
que elas já pressupõem sociedades com orga- lugar essencial, na ética, de um estudo empírico
nização diferente da nossa. Isso nos leva a do homem. Ele criticou prontamente outros
buscar fontes de estudo que respondam pela moralistas que ignoraram a natureza humana,
preparação de um “terreno” tão desigual, para como outros assim também o criticaram. Na
que se instaure aqui uma vida com ética. passagem 244 de Eine Vorlesung über Ethik (AK
Neste estudo, dividido em seis itens, XXVII), podemos ler:
pudemos consignar que Kant, o filósofo que
provavelmente mais deixou herdeiros no cam- Alguém pode, realmente, considerar a filo-
po do pensamento ético, possui uma obra de sofia prática mesmo sem a antropologia, ou
valor inestimável sobre a formação e a educa- sem o conhecimento sobre o agente, mas
ção dos homens para que se tornem capazes de isto é meramente especulativo, ou uma
desejar e buscar dignidade e respeito igual para idéia. Assim, o ser humano deve pelo me-
todos. Trata-se, notadamente, de uma parte nos ser estudado apropriadamente. De ou-
fundamental para nós que tem sido muitas tro modo, a filosofia moral torna-se repeti-
vezes negligenciada, felizmente com algumas ções de regras que todos já conhecem,
exceções. 1 Dentre estas, Zingano mostra que a além de tornar-se excessivamente tediosa e
porção relegada ao esquecimento da obra as pregações nos púlpitos tornam-se vazias
kantiana deve ser meritória de muita atenção: em seu conteúdo, se o pregador não ob-
serva simultaneamente a humanidade. 2
A obra dos anos [17]90, por sua vez, é de-
saprovada em nome de uma hipótese de
A antropologia moral na ética
enfraquecimento mental que ela somente
kantiana
deveria provar. Nossa tese aponta uma in-
terpretação em que A religião dentro dos li-
A porção “esquecida” da sua ética abor-
mites da simples razão (1793), a Metafísica
da exatamente estudos acerca da natureza
dos costumes (1797) e o Conflito das fa-
humana e da história naquilo que importa para
culdades (de 1798, ainda que escrito ante-
sua aplicabilidade e, portanto, traz para o de-
riormente, e com partes bastante desiguais)
bate da moral os dados empíricos que muitos
desenvolvem temas do sistema crítico com
pertinência e profundidade, que, aliás, sig-
1. Podemos mencionar aqui dois importantes estudos: a quarta parte do
nificam a retomada, na perspectiva de uma segundo capítulo de História e esperança em Kant, de Menezes (2000) e
natureza humana, da própria formulação o artigo de La Taille, A educação moral: Kant e Piaget (1996).
2. Não possuímos ainda uma edição em português deste texto (Preleção
deste sistema crítico durante os anos sobre Ética), por isto mantivemos a paginação oficial da Academia de Ciên-
[17]80. (1989, p. 15-16) cias Göttingen. Tradução do autor do artigo.

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dos seus seguidores excluíam, ao mesmo tem- tuem sua teoria, ensinando-nos sobre a antro-
po em que muitos críticos lhe censuravam a pologia moral e uma sua parte, a saber, a edu-
ausência. cação como condição de possibilidade para
Em anos muito recentes pudemos con- uma vida ética. Entretanto, mesmo antes de nos
tar com alguns trabalhos extensos, que come- determos em tais obras, encontramos nos seus
çam a ser debatidos entre os interessados na trabalhos mais estudados apontamentos sobre
ética de Kant, e que apontam equívocos na o que mais tarde ele complementaria nos tex-
visão majoritária e propiciam interpretações tos considerados “menores”, mesmo para a
mais condizentes com o conjunto inteiro da questão da moral.
obra do grande filósofo (Cf. Munzel, 1999; Na Crítica da razão pura, obra seminal
Louden, 2000, Banham, 2003). Wood, por da filosofia crítica de Kant, já é possível consta-
exemplo, ao tratar inicialmente a crítica de tar sua preocupação com as questões referentes
Hegel a Kant, descreve com maestria a questão: à educação. Questões que vão ser imensamente
caras a ele e que serão retomadas muitas vezes
Reconheci, desde o começo, que as críticas em sua obra, especialmente nos escritos sobre
de Hegel ao princípio da moralidade de esse tema, como veremos adiante. Nela lemos
Kant não alcançavam êxito totalmente por- sobre os efeitos nocivos e a desordem que uma
que, como a maior parte dos leitores de má educação ou que a falta de cultivo em um
Kant, Hegel fixava sua atenção exclusiva- homem são capazes de introduzir na sociedade.
mente na Fórmula da Lei Universal, igno- Em uma passagem, Kant nos ensina o que é
rando outras formulações que são elabora- filosofar, aprender e pensar com autonomia:
ções mais apropriadas do princípio. Tam-
bém comecei a perceber que nas questões Aquele que aprendeu especialmente um sis-
mais profundas que separavam os dois filó- tema de filosofia, por exemplo, o de Wolff,
sofos, a posição de Kant está baseada em mesmo que tivesse na cabeça todos os
uma teoria da natureza humana e da histó- princípios, explicações e demonstrações,
ria mais particular, cuja importância para a assim como a divisão de toda a doutrina e
ética de Kant raramente foi apreciada. Em pudesse, de certa maneira, contar todas as
alguns aspectos esta teoria antecipava a partes desse sistema pelos dedos, não tem
própria filosofia da história de Hegel, mas senão um conhecimento histórico completo
ela também fornece uma instigante explica- da filosofia wolffiana. Sabe e ajuíza apenas
ção para a notória visão de Kant de que as segundo o que lhe foi dado. Contestai-lhe
inclinações naturais são um “contrapeso” à uma definição, e ele não saberá onde bus-
razão moral (Kant, 1988) ao invés de ser car outra. Formou-se segundo uma razão
(como pensava Hegel) uma expressão da alheia, mas a faculdade de imitar não é a
razão. (...) Reconheci que junto com a ên- faculdade de invenção, isto é, o conheci-
fase exagerada na Formula da Lei Universal, mento não resultou nele da razão e embora
a negligência acerca da teoria empírica da seja, sem dúvida, objetivamente racional, é,
natureza humana e da história são respon- contudo, subjetivamente, apenas histórico.
sáveis pelos maiores equívocos sobre o Compreendeu bem e reteve bem, isto é,
pensamento ético de Kant que permanecem aprendeu bem e é assim a máscara de um
tanto com seus seguidores quanto com homem vivo. Os conhecimentos da razão,
seus críticos (1999, p XIII). 3 que o são objetivamente (isto é, que origi-
nariamente podem apenas resultar da pró-
Nos seus escritos de ética, Kant vai
mostrar claramente as duas partes que consti- 3. Tradução do autor.

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pria razão do homem), só podem também que um homem ainda inculto possa tornar-se
usar este nome, subjetivamente, quando fo- receptivo ao interesse moral puro. Ao tratar da
rem hauridos nas fontes gerais da razão, Metodologia da Razão Pura Prática, Kant afir-
donde pode também resultar a crítica e ma que esta constitui
mesmo a rejeição do que se aprendeu, isto
é, quando forem extraídos os princípios. o modo como se pode proporcionar, às leis
(1989, p. 659-601 [A836-7 B864-5]). da razão prática pura, acesso ao ânimo
humano, de modo a provocar uma influên-
É também evidente que Kant, ainda cia sobre as máximas do mesmo, isto é,
nessa obra, elabora argumentos fortes o sufi- como se pode tornar a razão objetivamente
ciente para que outras interpretações pudessem prática também subjetivamente prática.
ser construídas, incluindo as interpretações ma- (2002, p 239. [AK 269])
joritárias e mais popularizadas. Ele escreve tam-
bém que a metafísica “não é senão o inventário Ainda aí, Kant abre o caminho para
de tudo que possuímos através da razão pura, suas obras que versam sobre a ética aplicada,
arrumado sistematicamente (...) e sozinha cons- como a Metafísica dos Costumes, especialmente
titui propriamente o que nós podemos chamar na sua porção intitulada “Doutrina da virtude”
filosofia, no sentido restrito do termo” (p. 662 [A e Sobre a pedagogia, anotando que quis refe-
554-5 B582]). Entretanto, em outros momentos, rir-se somente às máximas mais gerais da “dou-
por mais paradoxal que pareça, esta não é ab- trina do método” acerca de uma cultura e exer-
solutamente a visão de Kant. Em muitos lugares cícios morais. E conclui assegurando que sua
ele adere a uma concepção mais tradicional de segunda Crítica “é apenas um exercício preli-
filosofia, afirmando simplesmente: “toda filoso- minar” e que a multiplicidade dos deveres re-
fia é tanto o conhecimento da razão pura, ou o quer ainda determinações particulares para
conhecimento obtido pela razão a partir de cada espécie deles, algo que implica ainda uma
princípios empíricos. A primeira é chamada de vasta tarefa posterior (2002, p.254 [AK 287]).
filosofia pura, a segunda de filosofia empírica” Em um opúsculo um pouco anterior à
(1989, p. 663 Cf. Kant, 1988, p. 85 [BA 87-88]). segunda Crítica, Kant elabora uma passagem que
Na Lógica, Kant também nos certifica de uma muito elucida sua concepção de educar para o
visão da filosofia que não abre mão de dados pensar autônomo. Nesse texto, Kant escreve:
empíricos, como os da antropologia:
Pensar por si mesmo significa procurar em
O domínio da Filosofia deixa-se reduzir às se- si próprio (isto é, na sua própria razão) a
guintes questões: 1) O que posso saber? 2) O suprema pedra de toque da verdade; e a
que devo fazer? 3) O que me é lícito esperar? máxima de pensar sempre por si mesmo é a
4) O que é o homem? À primeira questão res- Ilustração. Não lhe incumbem tantas coisas
ponde a Metafísica; à segunda, a Moral; à ter- como imaginam os que situam a ilustração
ceira, a Religião; e à quarta, a Antropologia. nos conhecimentos; pois ela é antes um
Mas, ao fundo, poderíamos atribuir todas es- princípio negativo no uso da sua faculdade
sas à Antropologia, porque as três primeiras de conhecer e, muitas vezes, quem é exces-
questões remetem à última. (1998, p. 31 sivamente rico de conhecimentos é muito
[AK25]) menos esclarecido no uso dos mesmos.
Servir-se da própria razão, quer apenas di-
Na Crítica da razão prática, Kant reto- zer que, em tudo o que se deve aceitar, se
ma a questão do ensino e da educação ao tra- faz a si mesmo esta pergunta: será possível
tar das instruções preparatórias necessárias para transformar em princípio universal do uso

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da razão aquele pelo qual se admite algo, vando-as exclusivamente de princípios a
ou também a regra que se segue do que se priori denomina-se filosofia pura. Essa,
admite? Qualquer um pode realizar consigo quando é simplesmente formal, chama-se
mesmo semelhante exame e bem depressa Lógica; porém se se limita a determinados
verá, neste escrutínio, desaparecerem a su- objetos do entendimento, recebe então o
perstição e o devaneio, mesmo se está mui- nome de Metafísica.
to longe de possuir os conhecimentos para Dessa forma, surge a idéia de uma dupla
a ambos refutar com razões objetivas. Com Metafísica, uma metafísica da Natureza e uma
efeito, serve-se apenas da máxima da auto- Metafísica dos Costumes. A Física terá, pois,
conservação da razão. É, pois, fácil instituir sua parte empírica, mas também uma parte
a ilustração em sujeitos individuais por racional; da mesma forma a Ética, se bem que
meio da educação; importa apenas come- nesta a parte empírica se poderia chamar es-
çar cedo e habituar os jovens espíritos a pecialmente antropologia prática, enquanto a
esta reflexão. Mas esclarecer uma época é parte racional seria a Moral propriamente
muito enfadonho, pois depara-se com mui- dita. (Kant, 1988, p. 13 [BA III – IV])
tos obstáculos exteriores que, em parte,
proíbem e, em parte, dificultam aquele tipo Ele vai adiante ressaltando o caráter
de educação. (Kant, 1995, p. 55 [A 330]) imprescindível da antropologia prática para nos
tornar aptos para aplicar a moral propriamen-
Buscamos encontrar, nesses textos, te dita através da nossa faculdade de julgar,
apontamentos sobre a educação porque, como que, por sua vez, é aprimorada pela experiên-
já afirmamos, ela é parte crucial da sua ética. cia. Precisarmos da antropologia prática para
Esta se divide entre a ética propriamente dita e que sejamos capazes de acolher em nossa von-
a antropologia prática ou moral. Nosso objeti- tade, pela via da educação e do exercício, as
vo é nos fixarmos na segunda, uma vez que ela leis morais em seus princípios e também asse-
institui-se pelo direito e pela educação. Aqui, gurarmos sua eficácia, seja pelo aprendizado
privilegiamos a educação. pela via da didática ética, seja pela força exter-
É necessário entendermos a primeira na do direito. Uma vez que Kant assegura que,
divisão. Kant assim escreveu no Prefácio da
Fundamentação da metafísica dos costumes: o homem, afetado por tantas inclinações, é
na verdade capaz de conceber a idéia de
Tanto a filosofia natural quanto a filosofia uma razão pura prática, mas não é tão fa-
moral podem cada qual ter a sua parte cilmente dotado da força necessária para a
empírica, pois aquela tem de determinar as tornar eficaz in concreto no seu comporta-
leis da natureza como objeto da experiên- mento. (1988, p. 27-8 [BA IX, X 389])
cia, e esta, as da vontade do homem en-
quanto é afetada pela natureza; as primei- Devemos, então, como homens que
ras, considerando-as como leis segundo as tantas vezes somos vencidos pelas inclinações
quais tudo acontece, a segunda, como leis que menos almejamos, fortalecer nossas máxi-
segundo as quais tudo deve acontecer, mas de comportamento, nossa subjetividade,
mas ponderando também as condições pe- pelo cultivo do nosso espírito e com tudo o que
las quais com freqüência não acontece o faz parte da educação .
que devia acontecer. Na Introdução à Metafísica dos costu-
Pode-se chamar empírica toda a filosofia mes, Kant volta a esclarecer sobre a função e
que se baseia em princípios da experiência; especificidade da antropologia prática, agora
mas a que apresenta as suas teorias deri- chamada de antropologia moral. Kant lhe cha-

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ma de “o outro membro da divisão da filoso- contrada nas seções de Methodenlehre (Doutrina
fia prática” (2003, p. 59 [417]) e ressalta que do método) da Crítica da razão prática e de A
ela se ocupa do desenvolvimento, da difusão e metafísica dos costumes. Considerações arquite-
do fortalecimento dos princípios morais, tanto tônicas assim como práticas acadêmicas do seu
na educação escolar quanto na instrução do tempo levaram Kant a dividir suas três críticas em
povo. A antropologia moral, também chamada Elementarlehre (Doutrina dos elementos) e
de antropologia prática, é “indispensável”, mas Methodenlehre (Doutrina do método), e a segun-
não deve preceder uma metafísica dos costu- da metade da Metafísica dos costumes (Doutrina
mes ou ser a esta mesclada. Seu lugar é para- da virtude) é dividida de modo semelhante. Vá-
lelo, mas orientada pelos preceitos dados a rias das lições de lógica também estão divididas
priori somente na razão pura onde está enfo- assim. Outras boas fontes são os dois pequenos
cada a metafísica dos costumes. ensaios sobre o Instituto Philanthropinum,4 e o
Nas Lectures on Ethics, publicadas em recentemente divulgado, Nachricht (Anúncio do
1997 em que constam as anotações das aulas programa das suas preleções do semestre de ve-
de Kant feitas por seus alunos, especificamen- rão de 1765-1766).
te as feitas pelo estudante Mrongovius, encon- Sobre a pedagogia foi editado pelo ex-
tramos mais uma elucidação sobre a antropo- estudante Friedrich Theodor Rink e inicialmen-
logia moral: te publicado em 1803, um ano antes da morte
de Kant. Nessa época, Kant tem bem amadu-
A metafísica dos costumes ou metaphysica recida a concepção de que a organização soci-
pura é apenas a primeira parte da moralida- al da Alemanha está bastante longe dos ideais do
de; a segunda parte é a philosophia moralis Iluminismo devido ao despotismo político e à
appliccata , antropologia moral, à qual os falta, no sistema educacional do seu país, de
princípios empíricos pertencem. (...) A filo- princípios universais advindos de uma morali-
sofia prática geral é propedêutica. A antro- dade apriorística e que aplicados no processo
pologia moral é a moralidade aplicada ao educativo levassem os homens à liberdade e à
homem. Moralia pura é baseada em leis felicidade. É, portanto, inserido neste pensamen-
necessárias, e assim ela não pode ser fun- to que Kant lança uma pergunta que até hoje
damentada na constituição particular do nos faz pensar: “Como poderíamos tornar os
homem, e as leis baseadas nisso ficaram homens felizes, se não os tornamos morais e
conhecidas na antropologia moral sob o sábios?” (1999, p. 28 [451]). Para que os homens
nome de ética. Na filosofia prática geral, a se tornem morais e sábios e, portanto, felizes é
metafísica dos costumes, ou metaphysica preciso que sejam educados e, assim, afirma seu
pura, é também apresentada em um modo propósito:
mesclado. (1997, p. 226 [XIX, p. 599])

A educação na antropologia
4. O Instituto Philantropinum, em Dessau, foi fundado em 1770 por Johann
moral kantiana Bernhard Basedow, dois anos após ele ter publicado uma monografia muito
aclamada advogando a idéia de uma reforma educacional e convidando a
todos para lhe ajudarem na criação de uma escola experimental para treinar
O maior trabalho de Kant sobre a educa- professores em seus métodos. O desempenho dos seus primeiros alunos
ção é um conjunto de preleções intitulado Sobre impressionou profundamente os observadores, inclusive Kant e Goethe.
a pedagogia (Über Pädagogik), escrito sobre a Problemas pessoais com o próprio Basedow afastaram os seus melhores
professores e em 1784 ele próprio afastou-se da escola. As visões de Basedow
inspiração de Rousseau. Entretanto, como já eram baseadas em escritos de pensadores como Comenius, Locke e
mencionamos aqui, há outras boas fontes sobre Rousseau. Seus métodos de ensino prático eram mais extensos em suas
implicações para a educação que todos aqueles dos seus antecessores ime-
o tema. Uma das que complementam de modo diatos, e no início do século XIX seus métodos tornaram-se uma força fun-
substantivo sua teoria educacional pode ser en- damental no sistema das escolas públicas da Alemanha.

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com a educação presente, o homem não mações cognitivamente significantes deve-riam
atinge plenamente a finalidade da sua exis- ser encontradas exclusivamente nas ciências fí-
tência. (...) Podemos trabalhar num esboço sicas e, assim, relegavam as demandas morais
de educação mais conveniente e deixar in- (além das estéticas e religiosas) ao status infe-
dicações aos pósteros, os quais poderão rior das expressões emocionais. Kant visou de-
pô-las em prática pouco a pouco. (1999, fender a moralidade contra esses céticos, mos-
p. 17-8 [445]) trando que as demandas morais não apenas de-
tinham seu próprio status cognitivo, como tam-
Kant reconhece ter aprendido muito bém gozavam de primazia sobre o conhecimento
com Rousseau. Ele próprio relata o impacto da científico. 2) Um segundo grupo era formado
obra de Rousseau em seu espírito impregnado por outros filósofos. A maior parte desses pen-
pelas Luzes: sadores era encontrada nas classes educadas
que tinham bastante tempo ocioso e entre os
colocava no conhecimento a honra da hu- clérigos. De acordo com Kant, eles e seus pre-
manidade e menosprezava a plebe ignoran- decessores haviam analisado a natureza da
te. Rousseau me abriu os olhos. Aquela su- moralidade humana incorretamente ao tentarem
perioridade que me cegava se esvaeceu; baseá-la exclusivamente na experiência, ao invés
aprendo a honrar aos homens; e me consi- de considerar tanto esta quanto os dados da
deraria mais inútil que o mais comum dos razão pura. Eles, assim, não somente jogaram
trabalhadores se não acreditasse que estas conforme os céticos, mas também tenderam a
reflexões possam ter um valor para os de- subverter as convicções morais das pessoas
mais, estabelecendo um direito para a hu- comuns. Para neutralizar aquilo que via como
manidade” (1999 p. 17 [445]). uma influência perniciosa, Kant se pôs a expli-
car como e por que tais análises eram seriamente
A este respeito Sullivan diz que, em um errôneas. 3) Finalmente, o mais importante gru-
fragmento escrito por volta de 1765, Kant atri- po a quem Kant se dirigia era o formado por
bui a Rousseau a redescoberta da sua convic- pessoas comuns relativamente não educadas.
ção sobre a dignidade moral de todos os ho- Kant teve um grande respeito pelas convicções
mens: morais pré-filosóficas das pessoas comuns, e ele
de fato baseou sua análise inteira da moralidade
Houve um tempo em que eu desprezei as naquilo a que se refere como a “consciência
massas. Rousseau me pôs no caminho cer- moral comum”. Ele acreditava que as pessoas re-
to. Eu aprendi a honrar o homem. O pensa- almente possuíssem um apanhado do que seja a
mento da desigualdade torna o homem moralidade fundamentalmente confiável, quan-
desigual. Apenas Rousseau pode tornar, do não a possuíssem de modo claro. Para Kant,
mesmo o mais ensinado filósofo, um ho- o principal problema que as pessoas comuns en-
mem honesto e, sem auxílio da religião, frentavam consistia na dificuldade em persisti-
pode fazê-lo não considerar a si melhor rem nos seus ideais morais. Com o propósito de
que o homem comum. (1989, p. 298) as ajudar, ele buscou formular a norma moral
definitiva de modo tão claro e preciso quanto lhe
Kant possuía um genuíno interesse pela fosse possível (ética pura). Além disso, ele visou
educação dos homens do seu tempo. E isso se oferecer alguns conselhos sobre o que é políti-
atesta pelos três tipos de público a quem se di- ca e moralmente certo ou errado e oferecer um
rigia: 1) Um grupo era formado por pessoas esclarecimento a toda uma geração (“ética im-
educadas e impressionadas com a ciência pura”, segundo a noção ini-cialmente estudada
newtoniana. Esse público acreditava que as afir- por Louden, 2000).

454 Mário N. de OLIVEIRA. A educação na ética kantiana.


Um dos seus propósitos ao publicar nos seus princípios genuínos e assim cultivar
para as pessoas não educadas era diminuir a bons caracteres morais.
separação entre os Gelehrten oder Ungelehrten, Isso porque a moralidade para os seres
instruídos ou não instruídos. A linguagem que humanos é, na visão de Kant, o resultado pre-
anteriormente envolvia “piedade”, “pecado” e tendido de um processo educacional extensivo
“graça” foi substituída por uma orientação ver- já que “atrás da educação repousa o grande
bal que apelava para o “esforço”, a “capacida- segredo da perfeição da raça humana” (1999,
de para o Bem”, a “evidência da razão” e o p.16 [444]). A própria moralidade, ao menos no
“bem-estar na vida civil”. que concerne aos seres humanos, pressupõe a
Embora Kant não se refira às Moral educação. A moralidade não pode simplesmen-
Weeklies – baseadas na Spectator inglesa –, a te ser um produto causal da educação, mas ela
análise de Munzel (1999) mostra que ele pressupõe a educação como uma precondição
estruturou toda a Fundamentação da metafísica necessária, uma vez que “por natureza o ser
dos costumes nos termos das Moral Weeklies, ou humano não é um ser moral em absoluto”
seja, na transição do conhecimento popular da (1999, p. 95 [492]).
moralidade para a metafísica moral e finalmen- Kant explica mais sobre este ponto di-
te para a Crítica da razão prática. Nesta, Kant já zendo que a idéia da moralidade pertence à
expressara sua preocupação acerca do significa- cultura. Não precisamos entender o “pertence”
do do termo “filosofia” e a definição do mora- como se a moralidade na visão de Kant pudes-
lista ao observar que “seria do melhor alvitre” se ser simplesmente o resultado causal de qual-
manter o “significado antigo” do conceito de quer combinação de processos como a educa-
filosofia como um “ensinar sobre o bem mais ção ou a cultura. Podemos, certamente, enten-
alto”, desde que este nomear não ponha em der a moralidade “pertencendo” à cultura no
risco o sentido do “propósito principal” que dá sentido em que a moralidade necessariamente
à filosofia o título de “o ensino da sabedoria”. pressupõe o desenvolvimento cultural e pode
O “professor de sabedoria”, aquele que somente desenvolver-se a partir dele. Mas a
ousa se chamar “filósofo”, apenas se justifica ao moralidade não “pertence” à cultura no senti-
utilizar tal nome ao demonstrar “o efeito infa- do em que, em um certo nível de cultura, al-
lível da filosofia sobre sua própria pessoa como guém necessariamente “alcance” a moralidade.
um exemplo”. Essa qualificação mostra o signi-
ficado das transições na fundamentação da fi- Sobre a Pedagogia
losofia popular para a filosofia como sabedoria
para o mundo. Nesse processo, Kant efetiva- Em Sobre a pedagogia, Kant descreve
mente conecta seu próprio trabalho com o pro- os estágios e divisões da educação. O primei-
pósito central de publicações periódicas como ro estágio é o cuidado que lida com a criança
a Menschenfreund. puramente como uma parte da natureza e é
Ao reconhecer a preferência dos seus relativo ao primeiro estágio da vida humana.
contemporâneos por uma filosofia prática po- Assim, sai dos parâmetros da educação quan-
pular sobre uma metafísica da moral, Kant nota do esse termo é entendido do modo atual, mas
que tal fato é provocador. Entretanto, acredita Kant, com este estágio, trata “o cuidado que
que a moralidade deve ser qualificada pelos têm os pais para que as crianças não façam
“princípios da razão pura” articulados de modo qualquer uso prejudicial das suas forças” (1999,
que a doutrina moral seja “baseada na meta- p. 11 [441]). O cuidado é uma parte da “Edu-
física”. Assim, Kant assegura que mesmo no uso cação Física” oposta à “Educação Prática”, for-
prático popular, especialmente naquele da ins- ma aquela parte da educação “que o ser huma-
trução moral , seria impossível fundar a moral no tem em comum com os animais” (1999, p.

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34 [455]). Uma vez que Kant abre Sobre a Crítica do juízo, “a produção em um ser racio-
pedagogia anunciando que o ser humano “é a nal de uma aptidão para quaisquer fins em geral
única criatura que precisa ser educada” (1999, de sua própria escolha (conseqüentemente de
p. 11 [441]), existe realmente um sentido no sua liberdade) é cultura”.
qual o cuidado também se coloca fora dos Kant freqüentemente faz uma distinção
parâmetros da educação tal como o próprio adicional entre a cultura geral e “um certo tipo de
Kant, de início, a constrói. cultura, que é chamada de civilização”. A civiliza-
O segundo estágio da educação é a ção objetiva não apenas a habilitação, mas tam-
disciplina ou o treinamento. Como o cuidado, bém a prudência e, assim, representa um estágio
a disciplina também é entendida como um es- mais alto. “Toda a prudência pressupõe habilida-
tágio preliminar da própria educação. Segundo de. A prudência é a faculdade de alguém usar
Kant, “a disciplina transforma a animalidade em suas habilidades de um modo socialmente efeti-
humanidade” (1999, p. 12 [441]). Mas sabemos vo para alcançar seus objetivos” (1999, p. 26
que “transformar” não significa “erradicar”. Na [450]). Kant ressalta que embora a pessoa hábil
realidade, disciplinar “significa procurar evitar seja eficaz no alcance de seus objetivos, ela não
que a animalidade cause danos à humanidade. possui os tipos especiais de “habilidades de
(...) A disciplina é, portanto, meramente domar interação” que tipifica a pessoa prudente.
a selvageria” (1999, p. 25 [449]). Em um sen- Uma das três tarefas da educação prá-
tido mais amplo, essa tarefa é compartilhada tica, Kant nos informa em Sobre a pedagogia,
com o que Kant em outro lugar chama de “cul- é a “formação pragmática relativa à prudência”.
tura negativa” ou “libertar a vontade do despo- Também no final da Antropologia em sentido
tismo dos desejos” (1995, p. 295 [433]). pragmático, Kant afirma que um fato que dis-
Os dois termos gerais Bildung e Kultur tingue o ser humano dos outros habitantes da
são usados como sinônimos por Kant, e inclu- terra é a sua capacidade “de ser pragmático, de
em dentro deles uma variedade de processos usar as habilidades de outros seres humanos
mais específicos tais como a instrução para seu próprio fim”. A pessoa prudente, e,
(Unterweisung), o ensino (Belehrung) e a orien- portanto, civilizada, possui certos refinamentos
tação (Anführung). É também importante lem- sociais que a pessoa meramente hábil não
brar que “cultura”, como os outros estágios da possui. Os pré-requisitos de uma pessoa civili-
educação, é freqüentemente utilizada por Kant zada são “boas maneiras, bom comportamento,
num duplo sentido: às vezes esse termo se re- e uma certa prudência pela qual alguém é ca-
fere à formação geral da humanidade para além paz de usar todos os seres humanos para o
da animalidade na raça humana. Em outros próprio propósito final de alguém”.
momentos, refere-se a processos educacionais Kant freqüentemente usa “civilização”
mais específicos dirigidos a grupos particulares como parte de um trio de estágios necessários
assim como a indivíduos. Segundo o texto de para o desenvolvimento humano (às vezes,
Kant, cultura é também “a obtenção de habili- como parte de um quarteto, quando a disciplina
dades (Geschicklichkeit)” e estas são considera- é acrescentada). Também ao final do seu traba-
das obtidas quando as pessoas alcançam com lho sobre Antropologia5 ele afirma:
sucesso todos os seus fins escolhidos. Podemos
dizer, portanto, que as pessoas possuem habi- O resumo da antropologia pragmática com
lidades quando são eficientes em raciocínios referência ao destino do ser humano e as
instrumentais. A habilitação “é a possessão de características da sua educação é o seguin-
uma faculdade que é suficiente para o fim que
seja. Assim, a habilidade não determina, de 5. Tradução do autor do artigo. Esta obra ainda não possui edição em
modo algum, os fins”. Ou, como escreve Kant na língua portuguesa.

456 Mário N. de OLIVEIRA. A educação na ética kantiana.


te: o ser humano é destinado através da sua quando se quer formar o caráter das crianças, urge
razão a estar em sociedade com outros se- mostrar-lhes em todas as coisas um certo plano e
res humanos e a se cultivar, a se civilizar e certas leis, que elas devem seguir fielmente. Isso
a se moralizar nessa sociedade através das porque Kant acredita na educação moral como
artes e das ciências. (1996, p. 240 [324]) fomentadora da confiabilidade entre os homens.
Para ele, “os homens que não se propuseram cer-
A civilização conduz ao último estágio da tas regras não podem inspirar confiança; não se
educação que é a moralização. A moralização, tal sabe como se comportar com eles” (1999, p. 481).
como posta em Sobre a pedagogia, não pode ser Kant afirma que os professores sempre
uma simples adição da cultura e da civilização. Ela dizem que as coisas devem ser apresentadas às
envolve também uma passagem para o reino da crianças de tal modo que as cumpram por incli-
liberdade que, logicamente, pressupõe os passos nação, o que, para ele, pode ser bom em muitos
preparatórios da cultura e da civilização. Para casos. Entretanto, ele adverte: muitas coisas de-
Kant, a humanidade está ainda muito distante do vem ser-lhes prescritas como dever. Para seu pro-
estágio final da moralização, pois “vivemos em um jeto de educação moral, isso lhes será utilíssimo.
tempo de treinamento disciplinar, de cultura e de Kant está certo, entretanto, que o entendimento
civilização, mas de modo algum em um tempo de pleno do estudante sobre o agir por dever somen-
moralização” (1999, p. 28 [451]). te será possível com o passar dos anos e, assim,
Mas qual é o grande fim da moralização? sua obediência, a cada dia, será aperfeiçoada.
Alcançamos a resposta quando entendemos como Para formar um bom caráter, é preciso
Kant faz este conceito vincular-se ao de educação. antes domar as paixões. Para aprender a se
Para ele, a educação prática possui três partes: 1) privar de alguma coisa são necessárias coragem
a formação mecânico-escolástica em relação à e uma certa inclinação. É preciso acostumar-se
habilitação; 2) a formação pragmática que con- às recusas e à resistência. Mas não é só com
cerne à prudência, e 3) a formação moral que abstinências que se forma um caráter. Kant
concerne à ética. Essas três partes “mapeiam” os assegura que este é formado também na soci-
três estágios (cultura, civilização e moralização) abilidade. Diz que o educando deve manter
dentro da história humana (1991, p. 324) assim boas relações de amizade uma vez que apenas
como “mapeiam” os três tipos de imperativos (téc- um coração contente é capaz de encontrar
nico, pragmático e moral) analisados, por exemplo, prazer no bem (1999, p. 82 [485]). E qual a
na Fundamentação (Louden, 2000, p. 35 ss). etapa suprema da moralização?
A rigor, todas as partes da educação visam
basicamente a moralização, mesmo que os parti- A etapa suprema é a consolidação do cará-
cipantes individuais estejam agindo desapercebidos ter. Consiste na resolução firme de querer
deste objetivo maior em um nível pré-moral de fazer algo e colocá-lo realmente em prática.
cultura e civilização. O plano da natureza é “a (...). Se, por exemplo, prometi algo a alguém,
perfeição do ser humano através da cultura pro- devo manter minha promessa, mesmo que
gressiva” (1991, p. 322) e, na maior parte do tem- isso acarrete algum dano. Porque um ho-
po, nós somos participantes inconscientes desse mem que toma uma decisão e não a cum-
plano. Esta perfeição do ser humano, em Kant, pre, não pode ter confiança em si mesmo.
implica a formação do caráter. O primeiro esforço (1999, p. 87 [487])
da cultura moral deve ser lançar os fundamentos
do caráter. Para Kant, o caráter consiste no hábito Essa mesma ênfase em transformar o
de agir segundo certas máximas. Estas são, em modo de pensar e fundar solidamente o caráter
princípio, as da escola e, mais tarde, as da huma- de alguém está presente tanto em passagens de
nidade. Em Sobre a pedagogia, Kant mostra que Religião nos limites da simples razão quanto em

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Sobre a pedagogia. Assim, esse emprego do con- determinação da vontade para aceitar máxi-
ceito de “formação moral” não é “metafórico” mas que ele subseqüentemente vai elaborar
mas é direto e claro: Kant acredita que há um para si próprio. Finalmente, o estudante pre-
tipo de educação que pode ultrapassar as cau- cisa deixar-se levar por esta linha condutora.
sas naturais e as circunstâncias temporais e (2002, p. 137 [152]; Cf. 1999, p. 45 [461])
chegar ao modo do agente pensar e ao seu
caráter moral. A educação moral é bem-sucedi- O objetivo final é que o estudante com-
da à medida que alcança esse objetivo. Kant preenda que “a norma e a instrução repousam
apresenta as questões de método para este fim. somente na sua razão. Com o processo educativo,
sua própria razão vai ensinar-lhe aquilo que você
Método tem que fazer e diretamente lhe comanda a fazer”
(2003, p. 321-2 [481]). Por isso, para os jovens a
Kant busca um método educativo que quem isso ainda não é possível, a educação é
pudesse atingir esses objetivos. O que é necessá- imprescindível para sua liberdade.
rio é um método de educação prática que produ- As subdivisões dos métodos que Kant
za um “genuíno efeito moral no coração” (2002, apresenta para ensinar ética não são inteiramen-
p.142 [157]). Nos dois pequenos ensaios sobre o te originais. Ele parece recomendar o mesmo
Instituto Philanthropinum, Kant apresenta seu aval Lehrart (método de ensino) tanto para a ética
a uma experiência audaciosa em educação na quanto para a lógica. Segundo ele, se a doutri-
qual, acredita ele, “estabelece-se de um modo na da virtude deve ser apresentada como uma
radicalmente novo de acordo com o método ge- “ciência”, ela deve também ser sistemática e
nuíno”. Um tal método não deve (como Kant acre- possuir sua “didática ética”, que é o termo am-
dita ser o caso com todos os demais institutos plo que Kant usa para os métodos de ensino:
educacionais) “trabalhar contra a natureza”. Ao
invés disso, o método deve ser “sabiamente retira- a apresentação pode tanto ser tanto acroa-
do da própria natureza e não copiado sem origi- mática (do grego akroamai , ouvir) em que
nalidade de um velho hábito e de épocas quando todos, exceto o professor, são meros ouvin-
não houve experimentos”. Então, “o bem ao qual tes, ou erotemática (do grego eromai , per-
a natureza propiciou a predisposição pode ser guntar) em que o professor pergunta a
extraída dos seres humanos”, e “nós, criaturas seus alunos aquilo que lhes quer ensinar.
animais, seremos tornados seres humanos” através (2003, p. 320 [478])
da educação apropriada (1999, p. 15 [443]). Se
esse método educacional revolucionário fosse ado- O método erotemático é, por sua vez, sub-
tado “num período curto nós veríamos seres hu- dividido no “modo dialógico” e no “modo cate-
manos muito diferentes ao nosso redor”. quético” de ensino. No modo dialógico, o profes-
O ser humano ainda não formado ou sor questiona a razão do estudante; e no modo
educado também necessita de uma manifestação catequético, o professor meramente questiona a
física da virtude com a qual ele possa identificar- memória do estudante. O método catequético
se e com ela aprender, tal como já mencionamos. envolve mero “trabalho de memória”, no qual o
Na Metafísica dos costumes, ele anota que: estudante recita pensamentos que não são ainda
os seus próprios, mas com o método dialógico ou
Os meios experimentais (técnicos) para a o modo socrático de ensinar o professor e o estu-
formação da virtude é o bom exemplo do dante alternam perguntas e respostas entre si. De
próprio professor e o exemplo preventivo de um modo alternativo, com o método socrático “o
outras pessoas, porque a imitação, para o estudante questiona o professor (que de fato ain-
ser humano ainda não formado, é a primeira da é estudante)”. Na Lógica Kant afirma:

458 Mário N. de OLIVEIRA. A educação na ética kantiana.


não se pode ensinar segundo o método virtude significa fortaleza moral da vontade. Ela é
erotemático a não ser por meio do diálogo a fortaleza moral da vontade de um homem no
socrático, no qual ambos os interlocutores cumprimento do seu dever, que é uma coerção
têm que interrogar e também responder moral de sua própria razão legisladora na medida
alternadamente, de tal sorte que parece que em que esta se constitui a si mesma como poder
o aluno também é, ele próprio, um mestre. executivo da lei. Ela mesma não é um dever, ou
Com efeito, o diálogo socrático ensina por bem possuí-la não é um dever, mas ela manda e
meio de questões, ensinando ao aprendiz acompanha seu mandato com uma coerção mo-
como conhecer os princípios da sua pró- ral (possível segundo as leis da liberdade interna).
pria razão e aguçando-lhe a atenção para Para o homem, no entanto, posto que a coerção
isso. (1998, p. 273 [149-150]) deve ser irresistível, exige-se uma fortaleza cujo
grau somente podemos apreciar pela magnitude
Porque o método dialógico pressupõe dos obstáculos que o homem gera em si mesmo
maturidade maior por parte do estudante, o mediante suas inclinações. Assim, pois, “os vícios
professor o emprega preferencialmente após o incubados nas intenções contrárias à lei são os
método catequético. No entanto, em ética, o monstros que o homem tem que combater”. Daí
método dialógico pode ser usado bastante que a fortaleza moral, entendida como valor
cedo, e na doutrina do método da segunda (fortituto moralis), constitua, nas palavras de Kant,
Crítica, Kant descreve um caso que é posto para também a suprema honra guerreira do homem e a
um “garoto de dez anos de idade” para saber única verdadeira. Também se chama a verdadeira
se ele chega ao julgamento apropriado sem sabedoria, isto é, sabedoria prática, porque faz seu
que seja instruído por seu professor. Ainda o fim último da existência do homem na terra.
assim, Kant escreve na Metafísica dos costumes Somente possuindo-a o homem é livre.
que “o primeiro e mais essencial instrumento Kant afirma que a virtude deve ser ad-
de ensino da para o aluno ainda incipiente é quirida e que ela não é inata. A faculdade mo-
um catecismo moral, isto é, um catecismo não ral do homem não seria a virtude, se ela não
alterado pelo ensino religioso (2003, p. 320 fosse produzida pela força da resolução nos
[478]). Em Sobre a pedagogia, Kant revela seu conflitos com as inclinações que podem ser
inconformismo com “algo que está quase uni- contrárias ao dever. Ela é produto da razão pura
versalmente faltando, algo que promoveria prática na medida em que esta conquista, com
grandemente a formação e educação das crian- consciência de sua superioridade (pela liberda-
ças, a saber, um catecismo do que é direito” de), o poder supremo sobre tais inclinações.
(1999, p. 91 [490]). O professor sozinho faz as Sim, a virtude pode ser ensinada. Segun-
perguntas nesse estágio da instrução, e as per- do Kant, a cultura da virtude possui como princí-
guntas devem ser endereçadas apenas à memó- pio o exercício vigoroso, firme e corajoso que é a
ria dos alunos, mais que ao raciocínio. O cate- sentença dos estóicos que diz “habitue-se a supor-
cismo moral “deve conter casos que seriam tar os maus contingentes da vida e a afastar-se
populares, que ocorrem na vida comum, e que dos gozos supérfluos”. Segundo ele, trata-se aqui
naturalmente sempre fizesse perguntas se algo de um tipo de dietética para o homem que con-
é certo ou não” (1999, p.91 [490]). siste em se conservar moralmente são. Mas a saúde
é um bem-estar negativo, ela não pode ela própria
A virtude ensinada e a ser sentida. É necessário que alguma coisa a ela se
liberdade aprendida atrele, que procure um contentamento para viver
e que seja, portanto, puramente moral. E, concor-
Para concluirmos, voltamos à pergunta dando com Epicuro, Kant assegura que isso é “um
clássica: pode-se ensinar a virtude? Para Kant, coração sempre alegre”.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 447-460, set./dez. 2004 459
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Recebido em 22.01.04

Modificado em 01.09.04

Aprovado em 21.10.04

Mário Nogueira é doutor em Filosofia pela UFRJ, mestre em Filosofia pela UFRGS e especialista em Educação também
pela UFRJ.

460 Mário N. de OLIVEIRA. A educação na ética kantiana.

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