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A favor do neo-canibalismo

Ricardo Villalobos e Oswald de Andrade se encontram para tirar a nossa barriga da miséria cultural

Ainda não faz muito tempo, nosso país tinha um papel secundário (pra não dizer
terciário) no cenário mundial. ‘Brazil’ era sinônimo de praia, carnaval e futebol;
paisagens exóticas, pouca roupa e muita canelada ‘for export’. Numa economia
globalizada e tecnológica, na qual as revoluções ocorrem na velocidade da
informação, zilhões de bits por segundo conseguiram promover uma improvável
alquimia: transformar o azarão num player global. O Brasilzão, quem diria, virou a
bola da vez. Fomos catapultados da platéia para o palco principal em segundos, e
agora também comandamos a festa. E que festa! Balada forte, sem hora nem motivo
pra acabar. Ainda tocamos música estrangeira, nossos equipamentos são importados
(na surdina) e convidamos o dj mais quente da última temporada da Bósnia como
atração principal; mas é uma questão de tempo. A alegria, este bem tão abundante por
aqui, continuará sendo nosso maior commoditie, ao menos por enquanto.
Algumas pessoas lá fora, por outro lado, já descobriram que existem outros tesouros
preciosos entranhados nestas terras – e isto deve reverberar com mais força em nossos
corações verde-amarelos a partir de agora. “A música brasileira é uma das maiores
influências que tive. Os brasileiros estavam ouvindo techno duzentos ou trezentos
anos antes de todo o mundo. Se você comparar o groove do samba com o groove do
techno, ele tem uma idéia muito, muito parecida por trás. Acho que a música da
América do Sul é importante por causa do ritmo, mas também da melodia”. Parece até
discurso patriótico, mas a fala é do nosso camarada Ricardo Villalobos – que cresceu
na Alemanha, mas é chileno. Como um bom vizinho, Ricardo achou a nossa grama
mais verdinha, e em muito tem contribuído para propagar a brasilidade mundo afora
este seu encanto com nossa música e outras sonoridades latinas.
Foi através do seu próprio selo, o Sei es drum, por exemplo, que o single
“Caminando”, do Reboot, veio ao mundo. A música, que tem um sample da
brasileiríssima Simone interpretando “Pra não dizer que não falei de flores”, hino de
resistência à nossa ditadura, causou comoção nas pistas européias no verão de 2009.
O fato curioso é que esta versão foi composta sem que Frank Heinrich, a.k.a. Reboot,
tivesse conhecimento de que o autor da canção original, Geraldo Vandré, fosse, na
verdade, tio de Villalobos (fora casado durante anos com a irmã de seu pai). O autor
de Easy Lee, que é extremamente criterioso, e definitivamente não lança qualquer
música por seu selo, ouviu a track e disse: “é esta!”. Não conseguiu contato para
liberar os direitos autorais do sample, mas lançou mesmo assim; afinal, era só falar
com seu tio depois… Um pouquinho de sorte sempre (nos) ajuda.
A questão que me perturbou na época era: é claro, Reboot é Reboot, mas por que
cargas d’água nenhum compatriota nosso fez isso antes? Será que sempre tem que vir
um gringo primeiro pra nos apontar quanta coisa boa tem aqui, bem debaixo dos
nossos narizes queimados pelo Sol tropical? Mas a indignação inicial serviu para me
apontar questionamentos ainda mais profundos: será que algum brazuca realmente
ainda não havia feito nada similar? E, caso houvesse produzido, teria conseguido
tanta projeção? Engulo em seco, tomo um copo d’água, respiro fundo. Ouço a track
de novo. Ficou mesmo linda. Por que eu não pensei nisso antes, por que ninguém
mais aqui pensou? Coço o queixo. Acho que descobri uma tentativa de resposta. E é
bem simples e óbvia: enquanto eu e você estamos cá ouvindo Reboot (que é mesmo
demais) e todos os outros artistas da Cadenza, Bpitch Control, Cocoon, as últimas
tendências todas do techno, house, etc, os caras, lá fora, estão escarafunchando nossos
baús e encontrando Simone, Geraldo Vandré, Cartola. Samba. Bossa-nova.
Tropicália. E, porque não, frevo, coco, maracatu...
Atribuímos costumeiramente mais valor ao que vem de fora, parte pelo fato de
estarmos realmente ‘em desenvolvimento’, tecnicamente, em vários setores; e
também por um resíduo de mentalidade de país que foi colonizado para exploração,
que inconscientemente ainda enxerga os estrangeiros colonizadores como
pertencentes a uma casta superior. Nossas referências culturais, tanto em termos de
música quanto de cinema, literatura, moda, festas e consumo em geral são quase que
exclusivamente contemporâneas e, praticamente sempre, do exterior. Cabulamos a
aula de História, da nossa própria história, e agora eles estão nos ensinando. Será que
dá, pelo menos, pra pegarmos recuperação? Ainda dá, sempre dá.
Vamos aproveitar, então, pra uma rápida revisão da matéria. Houve uma virada na
produção cultural do nosso país, na década de 20, que foi marcada, precisamente, pela
Semana da Arte Moderna, aquela de 1922. Várias novas idéias foram discutidas ali,
entre elas uma mais ampla liberdade de expressão, experimentação, a redescoberta e a
valorização do nacionalismo, e assim acabaram ‘remixando’ a identidade cultural
brasileira. Apesar de sua importância não ter sido imaginada pela sociedade da época,
os efeitos da semana foram sendo amadurecidos e processados ao longo dos anos, e
podem ser percebidos até hoje. Literalmente, o evento mudou a maneira como nos
expressávamos e como passamos a ser interpretados pelo mundo. Um de seus
desdobramentos diretos foi o movimento antropofágico, idealizado pelo poeta
modernista Oswald de Andrade. Em seu manifesto, Oswald incitava a criação de uma
linguagem de exportação (no caso, a poesia) baseada na “canibalização” e
“deglutição” das culturas externas (européia, norte-americana) e internas (índios,
orientais, afro e euro-descendentes) – ou seja, a cultura de fora não poderia ser
negada, mas tampouco deveria ser imitada. Noutros escritos, o poeta fazia troça da
elite da época, que apenas ‘pagava um pau-Brasil’ para os países desenvolvidos.
Acabou influenciando as artes plásticas, a Bossa Nova, o Tropicalismo, o Cinema
Novo... Dá mesmo pra dizer que hoje somos todos bisnetos e herdeiros dos
modernistas e antropofágicos.
De lá para cá, muitas águas rolaram. O Brasil vem adquirindo projeção, ganhando
importância, dentro de um novo contexto global. Mas a crítica de Oswald de Andrade
ainda encontra eco: o volume de cultura que nós importamos continua muito maior do
que o que exportamos, e consumimos com muito mais voracidade a importada do que
a nacional. Esta observação se torna icônica quando pensamos no nosso cenário da
música eletrônica – baladas, festas, djs, produtores, público. De uma forma geral,
carecemos de personalidade, de identidade cultural; de expressar nossas origens,
nossos costumes, o meio em que vivemos. Mas não se trata de uma crise de
identidade, é muito mais uma eminência premente de auto-conhecimento da nossa
sociedade, em sua totalidade. Como se, comparativamente, a cultura japonesa já fosse
anciã; a européia, adulta; a estadunidense, adolescente; e a nossa, infantil – a
“consciência de si” da sociedade apenas reflete o tempo do estado de organização
social da nação, sua ‘idade’. Por isto, repito: é uma questão de tempo. Ainda estamos
engatinhando em frente aos holofotes – mas é claro que queremos seguir crescendo
fortes, saudáveis e ‘bem na fita’.
“O que está na ‘moda’ mesmo é o nosso modo de viver. Somos felizes, saudáveis,
sensuais, despojados e abertos. Somos mesmo.” Oskar Metsavaht, cabeça da Osklen,
que está conquistando o mundo por ter criado a roupa de neve fashion com sotaque
carioca, foi um dos caras que sacou todo este gap cultural e o aproveitou de maneira
inteligente. “Exagero aqui um pouco, mas é para podermos ter uma noção do que
temos pela frente: uma oportunidade. Temos do nosso lado um frescor em
criatividade, e estamos emergindo num tempo em que a tecnologia nos permite ser
observados no mundo todo, sem os filtros de editorias de revistas estrangeiras. E
temos a chance de aprender, em tempo, sobre o que existe de moda pelo mundo todo.
E, assim, de criar uma verdadeira identidade. Com design original, linguagem estética
universal e qualidade internacional, além de consciência socioambiental de verdade.
Sem perdermos o nosso maior conteúdo: o Brazilian Soul.” Mais neo-antropofágico,
impossível.
Em tempo: sabe qual é o prato favorito do Villalobos? Alcachofa, alcachofra. Que é
também uma das iguarias mais produzidas e apreciadas no Chile – e que, por
analogia, também explica a audição do seu álbum-début homônimo: ‘degustando suas
camadas, folha por folha; aprofundando-se, sem pressa, até que todo o esforço/deleite
investidos lhe conduzam à melhor parte: o coração.’ Quanta identidade cultural,
quanta sagacidade deste nosso hermano, não? Pois vamos degluti-lo também; com
alcachofra e tudo.

Walter Cândido é um neo-canibal vegetariano, paulistano de coração, e gosta de


alcachofa.
Walter.candido@metododerose.org


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