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Estratégia da transferência – Tática do ato analítico – Política do fim

Dominique Fingermann

Resumo
A estratégia do desejo do analisante estabelece as condições do jogo no terreno da análise; as táticas
do analista tencionam fazer aparecer o parceiro, parceiro “real” do jogador, até o fim da partida.
Assim sendo, e desde os primórdios do ensino de Lacan, é inegável, a psicanálise de orientação
lacaniana tem uma direção política (mudança de discurso): está a cargo do analista conduzi-la até
seu fim.
Este artigo pretende desenvolver essa questão a partir de um recorte peculiar do ensino de Lacan: a
sua retomada da questão da direção da cura e os princípios de seus poderes, em 1968, no Seminário
XVI – “De Um Outro ao outro” (Lacan, 1968-1969). É o momento específico em que, após o
Seminário XV (“O Ato psicanalítico”), Lacan elabora o modelo do “Discurso Analítico”, matema do
Ato analítico que lhe permitirá direcionar o tratamento analítico até o final de seu ensino.

Palavras-chave: psicanálise; direção da cura; final de análise; lógica; aposta

Résumé
La stratégie du désir de l'analysant met en place les conditions du jeu sur le terrain de l'analyse; les
tactiques de l'analyste opèrent dans le sens de faire apparaître le partenaire réel du joueur jusqu'à
la fin du jeu. Dés le début de l'enseignement de Lacan, c'est inégable, la psychanalyse d'orientation
lacanienne a une direction politique (changement de discours): il revient à l'analyste de la conduire
jusqu'à sa fin.
Cet article prétend développer cette question à partir d'une reprise par Lacan de la direction de la
cure et les principes de son pouvoir, em 1968au cours de son Séminaire XVI “ D'un Autre á
l'autre”. Il s'agit d'un moment spécifique où après le Séminaire XV “ L'acte psychanalytique” ,
Lacan élabore le modèle du “Discours Analytique”, mathème de l'Acte psychanalytique qui lui
permettra d'orienter la cure analytique jusqu'à la fin de son enseignement.

Mots clés: psychanalyse; direction de la cure; fin d'analyse; logique; pari; enjeu

1. Direção da cura: estratégia-tática-política

“Estratégia”, “tática” e “política” são termos que se encontram associados na terminologia


da guerra desde sempre, desde a Grécia. Por extensão, estratégia, tática e sua oposição são conceitos
da teoria matemática dos jogos. Ao longo de seu ensino 1, Lacan refere-se a essa teoria inúmeras
vezes para explicitar a lógica da psicanálise, empréstimo conceitual apropriado já que a teoria
matemática dos jogos explora as operações humanas que levam em conta as três dimensões: o Real
do acaso e do imprevisível, o Simbólico das regras, das séries, das combinatórias e o Imaginário do
parceiro e das suposições de seus lances2. Três dimensões que condicionam a textura do ser humano
como falaser (parlêtre) que a psicanálise põe à prova.
No seu escrito de 1958 “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, Lacan utiliza
esse três termos: “estratégia”, “tática” e “política”, para falar da direção da análise produzida pela
intersecção dos jogos do analisante e do analista:


A.M.E. – Analista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.co-autora com M
Mendes Dias de Por causa do Pior – 2005 Iluminuras (e-mail: dfingermann@terra.com.br)
1
Em particular no início de seu ensino, como podemos ler no “Seminário sobre a Carta Roubada” e no “Tempo
Lógico e a asserção da certeza antecipada” (Lacan, [1966]2001, p. 11 e 197).
2
Lacan refere-se, em particular, à publicação de Von Neumann e Morgenstern “Theory of games and economic
behaviour” (1944). O matemático Guibault, também contemporâneo de Lacan, publicou, nos anos 1950, alguns livros
sobre jogos, e notemos que foi por seu intermédio que, em 1972, caiu nas mãos de Lacan o nó borromeano.
Eis por que o analista é menos livre em sua estratégia do que em sua tática. Vamos
adiante. O analista é ainda menos livre naquilo que domina a estratégia e a tática, ou
seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em
seu ser. (Lacan, 1998a, p. 595-96)3.

Na estratégia de seu desejo, que a transferência torna manifesta, o analisante leva a pessoa
do analista a suportar seu fantasma fundamental nas suas diversas extensões. O analista não é
parceiro desse jogo, mas, como no bridge4, está no lugar do morto, seus lances e sua tática vão
fazer surgir o parceiro, real.
A estratégia do analista enquanto sujeito não interessa para o jogo da análise; ele “não é
livre”, i.e.: frente ao jogo estratégico da transferência, a contra-transferência do analista não serve
para nada; o que se espera é a sua tática, os golpes, os lances “de analista”, que, enquanto tal,
proporcionam o encontro com o real. “Mais livre”, esses lances não são não obstante nem intuitivos
nem canalhas, mas fundam o seu ato como condição política da psicanálise.
Mais tarde, Lacan dirá que o ato do analista é agente de um novo discurso no mundo;
“novo” porque causa uma posição que subverte a relação do sujeito com o saber e com o gozo,
proporcionada pelo discurso vigente. O operador de discurso “ato do psicanalista” ordena uma
dialética do desejo que implica a subversão do sujeito até sua “insurreição”, sua separação radical
do Outro; é um ato causador de um novo laço social, forçosamente político. Essa política engaja o
analista a partir de sua “falta-a-ser”, diz Lacan em 1958, para produzir, no fim, o deser (Lacan,
2001b, p. 254) do sujeito suposto saber, como ele dirá mais tarde, termo lógico da análise, efeito da
“insurreição” produzida (Lacan, 2001c, p. 408).5
Notemos que, se nesse momento de seu ensino, Lacan referia-se ainda à dimensão da
“intersubjetividade”, ao dessolidarizar política, estratégia e tática, termos tradicionalmente
articulados e interdependentes que o título desse artigo retoma, ele avança a não-simetria no jogo do
analisante e do analista; não há “intersubjetividade” no jogo analítico.
A noção de falta-a-ser como função do analista enquanto operador contesta a vigência de
uma intersubjetividade no laço analítico. Por outro lado, além de assinalar assim a sua preocupação
em relação à enfatuação dos analistas (de ontem e de hoje), ele indicava desde então a direção da
análise como vetorizada: “do pai ao pior”. (Lacan, 2001d, p. 545)
É a estratégia do analisante que estabelece as condições do jogo no terreno; as táticas do
analista tencionam fazer aparecer o parceiro, parceiro “real” do jogador, até o fim da partida. Assim
sendo, e desde os primórdios do ensino de Lacan, é inegável, a psicanálise de orientação lacaniana
tem uma direção política (mudança de discurso); está a cargo do analista conduzi-la até seu fim.
Pretendo, nesse artigo, desenvolver essa questão a partir de um recorte peculiar do ensino de
Lacan: a sua retomada da questão da direção da cura e os princípios de seus poderes, em 1968, no
Seminário XVI – “De Um Outro ao outro” (Lacan, [1968-1969]2008). É o momento específico em
que, após o Seminário XV (“O Ato psicanalítico”) interrompido pelos “eventos de 1968”, Lacan
elabora o “Discurso Analítico”, matema do Ato analítico que lhe permitirá direcionar o tratamento
analítico até o final de seu ensino.
O Seminário XV respondia ao precedente sobre “A Lógica do Fantasma”: apenas a dimensão
ética do Ato psicanalítico ancorado no Real pode fazer objeção à lógica da neurose e mudar seu
curso e discurso. O Seminário XVI desenvolve os fundamentos lógicos dessa ética e suas
consequências. O Seminário XVII conclui quanto à dimensão política da psicanálise, formalizando o

3
Na versão francesa, p.589-80: “[...] Voilà pourquoi l'analyste est moins libre en sa stratégie qu'en sa tactique.
Allons plus loin. L'analyste est moins libre encore en ce qui domine stratégie et tactique : à savoir sa politique, où il
ferait mieux de se repérer sur son manque à être que sur son être [...]”.
4
Bridge é um jogo de cartas do qual participam dois pares de jogadores, em que cada dupla se senta frente a
frente. O parceiro daquele que carteia, ou seja, daquele que ganhou o leilão, fica morto, isto é, coloca o seu jogo na
mesa depois de ser lançada a primeira carta pelo seu oponente da direita, e não interfere mais no carteio desse jogo
(Wikipedia, acesso em 01/08/09).
5
“Personne qui n’ait sa chance d’insurrection à se repérer de la structure, puisqu’en droit elle fait la trace du
défaut d’un calcul à venir.”
discurso que baliza a sua operação, e a destaque dos outros discursos reguladores do gozo,
demarcando-a definitivamente do “avesso da psicanálise”.
Emprestando a temporalidade lógica explorada por Lacan, diremos que o Seminário XV
constitui o “instante de ver” que o “tempo para compreender” do Seminário XVI desdobra até o
“momento de concluir” do Seminário XVII e a clínica dos discursos inultrapassável no ensino de
Lacan.
No “tempo para compreender” dos longos desvios do Seminário XVI, para além da função
da fala e levando em conta a consequência da estrutura da linguagem, Lacan precisa a condução do
jogo analítico a partir de um modelo, ou matriz, que revela e explora a dimensão lógica dessa
direção (“os princípios” de seu poder). A escrita dos “quatro discursos” no seminário seguinte
(Lacan, 1992) estabelece e formaliza essa matriz operacional doravante imprescindível para a
orientação do analista na direção da cura.
Vamos, primeiramente, relembrar alguns aspectos dos termos empregados por Lacan para
especificar, em seguida, a orientação do jogo analítico.

2. Estratégia e tática política no discurso militar

No discurso militar e nas conduções das guerras, a ação articula-se em três níveis
hierarquicamente interdependentes: política, estratégia e tática. Classicamente, a política comanda,
fixa os objetivos e fornece os meios e direção da estratégia, que condiciona as condutas táticas no
terreno: as operações reais. Embora submetidas ao plano idealizado pela estratégia, as táticas
incluem forçosamente, na sua efetivação, o acaso, as circunstâncias incalculáveis antecipadamente
(os acidentes previsíveis estão incluídos na estratégia). Vale notar que as guerras revolucionárias do
século XX subvertem essa hierarquia, já que táticas surgidas no terreno produziram estratégias
diferenciadas e comandaram na política. Essa observação é relevante porque prova que o modelo
que pretende dominar o real com o simbólico mostra-se insuficiente e que podem ser produzidos
modelos de operações que explorem a capacidade explosiva do incalculável, impensável que escapa
ao crivo da razão.

3. Estratégia e tática: Teoria dos jogos

A Teoria dos Jogos é um capítulo da matemática que interessa às técnicas da “pesquisa


operacional”, que contemplam situações cujo resultado depende de vários centros de decisões;
assim, os problemas econômicos, políticos e militares caracterizam uma situação como sendo um
“problema de jogo”. Consideram-se dois fatores essenciais para construção do modelo operacional:
a cooperação e a luta. Existem jogos de cooperação pura, de luta pura e jogos nos quais se
encontram simultaneamente cooperação e luta. Para abordar qualquer problema de jogo, é
necessário construir um modelo que represente a lógica do jogo, suas regras de funcionamento, as
variações, as metas, os meios de ações e decisões coerentes com as possibilidades definidas pelo
dispositivo. Um modelo substitui a complexidade excessiva das situações reais: axiomas expressam
as condições do jogo, funções representam a ação e a solução coerente com as condições impostas.
A matematização das técnicas de jogos iniciou-se no século XVII, com o primeiro lance de
Pascal (que introduziu a matemática nas questões do jogo, das apostas e da repartição dos ganhos),
mas desenvolveu-se essencialmente no século XX, junto com os avanços da lógica (Borel – Von
Neumann).
A teoria permite diferenciar o conjunto das possibilidades táticas de um jogador e um recorte
nesse conjunto: as preferências estratégicas favoráveis ao ganho; ela permite discriminar as “táticas
essenciais” e as “estratégias optimais”.
Sem entrar mais em detalhes nessas teorias ditas “dos jogos”, vamos sublinhar, para a
construção de nosso modelo psicanalítico, que a estratégia é um plano elaborado, pensado,
construído a partir dos possíveis lances (as “táticas essenciais”) de um jogador favorecendo o seu
ganho (“estratégia optimal”) – precavendo-o da perda. No entanto, vale notar que essa teoria
contempla que o “pensamento” estratégico pode ser ultrapassado pela “virtuosidade” tática.
O trabalho analisante da associação livre movimenta-se em função da estratégia, enquanto o
ato do analista, a imisção de sua interpretação e de seu silêncio, é manifestação da tática, cuja
“virtuosidade” lógica conduz ao fim da tarefa e da operação.

4. Estratégia da transferência

a) O jogo da análise começa com uma regra, fundamental. Artifício proposto taticamente
pelo analista que instaura a regra, ato inaugural de cada psicanálise que, a priori, suspende a função
do sujeito (Lacan, [1968-1969] 2008, p. 19), mas incita o neurótico, que busca saber: “no início da
experiência analítica, não temos nenhuma dificuldade para incitá-lo, em suma, a confiar nesse Outro
como lugar em que o saber se institui, no sujeito suposto saber” Lacan, 2001d, p. 333).6
Os fundamentos dessa regra fundamental são tanto a estrutura do significante, pelo efeito de
sentido que produz, quanto a lógica matemática, pelo manejo que ela permite sustentar, conforme
demonstrado por Lacan nesse seminário.
A regra é fundamental porque é meio e fim da operação. É na superfície da associação livre
que se trama a partida, pois aí se desdobra, como num campo de batalha, a estratégia do sujeito, ou
seja, a estratégia transferencial, a sua elaboração preferencial de um plano bem pensado para não
perder, ou pelo menos para bolar uma solução de compromisso para se virar com a castração do
Outro (Lacan, no Seminário XVI, explora “as” estratégias perversas e neuróticas de evitação da
castração do Outro).

b) Qual é a partida?
É um jogo da verdade, embora revele, no fim, como ela é mentirosa. Mas, “falha criadora do
saber e ponto-origem do desejo de saber” (Lacan, 2001d, p. 267)7, ela sustenta a operação do
“sujeito suposto saber” que anima a construção analisante até que se des-cobre seu equívoco e o real
que ela encobre (Lacan, 2001a, p. 329). A falha é criadora, por isso a insistência de Lacan em avisar
desde sempre que “a verdade tem estrutura de ficção”.
A tática do analista funda-se na “verdade” do inconsciente que, segundo a sua versão
freudiana, diz Lacan,

[...] é um lugar de onde o Eu penso é motivado... não há nada a dizer desse lugar que
tenha sentido. Ele é criado por um “isso não quer dizer nada”. É o lugar em que o “isso
não quer dizer nada exige um “isso quer dizer” substituto. (Lacan, 2001d, p. 266)

A tática do analista encena, atua, presentifica esse ponto inicial da estrutura “isso não quer
dizer nada”, enquanto sustenta paradoxalmente a operação do sujeito suposto saber: o trabalho da
transferência.
A estratégia do sujeito na fala da análise, desde o começo, faz sentido, produz um “isso quer
dizer”: “La stratégie avec la vérité est l'essence de la thérapeutique (Lacan, 2001d, p. 19)”. No
entanto, é a partir da verdade radical do “não há – sentido algum” (Ça ne veut rien dire) que se
motiva essa tensão pelo sentido, suposição de um sujeito ao saber que faltaria para que a verdade
queira dizer alguma coisa. Essa verdade radical, i.e. a raiz da verdade, é o seu real: “não há...
sentido algum”.
“Para começar, é na medida em que o Outro não é consistente que a enunciação assume a
forma da demanda” (Lacan, 2001d, p. 84). O “querer dizer”, oriundo do “isso não quer dizer nada”,
vetoriza a fala do analisante que, ao se dirigir ao Outro ao qual o analista dá suporte, enuncia: “eu te
6
Versão francesa: “[...] L'acte psychanalytique se présente comme incitation au savoir. La règle donnée à
l'analysant implique que vous pouvez dire tout ce que vous voulez, Dieu sait ce que de prime abord cela peut
représenter d´insensé [...]” (p. 345); versão brasileira: “[...] O ato psicanalítico apresenta-se como uma incitação ao
saber. A regra dada ao psicanalisando implica que ele pode dizer tudo o que ele quiser. Deus sabe o que, à primeira
vista, isso pode representar de absurdo [...]”. (p. 333)
7
Versão francesa: “[...] défaillance créatrice de savoir, point origine du désir de savoir [...]”. (p. 275)
demanda quem Eu é” (Lacan, 2001d, p. 84). Esta é a enunciação suposta a qualquer enunciado S →
Sq: há um saber do sujeito no Outro, s (S1...Sn). Reconhecemos aqui os termos do matema da
transferência (Lacan, 2001b, p. 248): S→ Sq
s (S1..Sn)
Constatemos na estratégia transferencial que o analisante norteia essa demanda de
identidade “quem Eu é?”, a partir da sua matriz fantasmática: “eu me pergunto o que tu queres”.
Na transferência o analisante responde a suposição de sujeito com uma atribuição do objeto que
completaria o enigma localizado como “desejo do Outro”. Como será que ele calcula a sua jogada?

c) Insuficiência lógica
- Qualquer enunciado S1 que representa o sujeito lança mão de Um Outro significante, S2: o
significante representa o sujeito para um Outro, significante, sempre Outro, que nunca representará
o sujeito, que nunca dará conta do Um que permanece ex-sistindo. A suposição de saber sobre o
sujeito instala-se, assim como a sua insuficiência: “normalmente um tal exercício consegue chegar
apenas a uma profunda insuficiência lógica”. (Lacan, 2001d, p. 276)
Um tal exercício procura “fazer relação” de S1 ao S2, quando “pula” na associação livre,
saltando de Um significante a Um outro, mas o produto da operação conduz a uma profunda
insuficiência lógica. Com efeito, o Outro significante nunca responde à demanda resolvendo a
questão “quem Eu é?”; o que se enuncia é apenas Um outro significante, mais um outro, mais um
outro: repetição dos S1,S1,S1, sem que se alcance “o” outro que definiria o ser, o que selaria o Um
da identidade do sujeito enquanto separado, distinto, e suspenderia a questão: “o que Eu é?”. Qual
percurso de um Outro ao outro (com artigo definido) proporcionaria um limite a essa repetição? A
associação livre salta de um significante ao outro a partir de um cálculo – (a estratégia do neurótico)
– exibido na transferência, cálculo daquilo que falta de saber (S2) ao Um (S1) para completar a
verdade do sujeito($). (Localizemos aqui os quatro termos do Discurso do Mestre que formaliza a
estrutura do sujeito.)
A “relação” S1-S2 revela de fato a conjunção impossível de S1 e S2 e a disjunção do S1,
significante mestre da identificação do sujeito, com “a”, signo da singularidade que escapa à sua
alienação ao Outro.

d) Cálculo do neurótico
O neurótico burla essa disjunção, escrevendo-a com a verdade mentirosa: $<>a, axioma da
fantasia, que faz coesão/coerência, logo no ponto em que se encontraria a inconsistência da
sequência infinita dos 1.1.1.
$<>a faz limite à série, permite para o neurótico um cálculo, uma medida de seu intervalo,
de sua razão.
A estratégia da transferência produz isso: a complementação da verdade pelo saber a partir
da formatação fantasmática. Ao se deparar com essa profunda insuficiência, a enunciação do sujeito
transforma-se em demanda e a questão do sujeito ricocheteia em “eu me demanda o que tu queres”
(que Lacan escreve aqui no segundo “andar” do grafo – Lacan, 2001d, p. 84).
- A forma dada à falha da verdade do sujeito sobre si mesmo molda-se na forma do furo do
Outro, molda-se no “desejo do Outro”. Lacan cita o exemplo de Wanda, de O Despertar da
Primavera (Wedekind, 1974) que, aos 14 anos, deparando-se com a ausência de resposta da mãe a
respeito da sua identidade feminina, encontrada no real do excesso do sexo, molda-se
analogicamente ao que fura o olhar e o narcisismo materno: no olhar da mãe encontra-se a morte de
uma criança. “Bate-se uma criança” é um modelo de fantasia e é o molde da fantasia de Wanda, que
acha assim a sua pretensa identidade nesse furo do Outro que faz molde para o ser e que ela produz
insistentemente nas suas estratégias amorosas ao se fazer detrito, espancada, massacrada, morta no
fim. O dejeto, a criança morta, é o que não cabe, fura o olhar da mãe da infância. Wanda fez isso,
fez-se com isso.

e) Da lógica do significante à lógica


O exercício da associação livre chega apenas a uma profunda insuficiência lógica que o
cálculo fantasmático tenta driblar. A tática do analista consiste em presentificar, no lugar dessa
inconsistência, a causa de toda e qualquer operação humana, o objeto a, revelando a sua
consistência lógica assimilável à função do conjunto vazio na matemática, sítio de inumeráveis
operações.
Lacan usa o axioma do “par ordenado” da teoria dos conjuntos para demonstrar essa
inconsistência da lógica do significante, incompetente, para tornar distinto e distintivo esse Um que
“não cessa de se inscrever”, traço unário que inscreve a diferença, mas não especifica nada da
identidade; ele é Um, outro a cada vez, inscrevendo sem cessar o sem sentido do Um e a repetição
do gozo que falta.
O recurso ao axioma do “par ordenado” desenvolvido ao longo do Seminário XVI esclarece
essa consequência da estrutura do significante que Lacan, na formalização dos “Discursos” no
Seminário XVII, indica com a marca do impossível: não há relação, o S2 “não cessa de não
inscrever” o S1 que apenas representa o sujeito e permanece fora de alcance: $ → S1// S2,
produzindo, deixando escapar o resto da operação que causa.
impossível
S1 → S2
$ a

Com o “par ordenado”, Lacan vai reler sua interpretação do algoritmo saussuriano S/s,
premissa de sua indefectível definição do significante que “representa um sujeito para outro
significante”: $ → S1 → S2
O S1 não significa nada, apenas representa, o S2 não representa nada a não ser a
relação/articulação de um significante com um outro (S1-S2) – O S2 da fórmula é, portanto,
substituído pela relação (S1-S2), ou seja: S1-(S1-S2), e novamente S2 será substituído pela relação
(S1-S2).

S1, (S1(S1-(S1-(S1-S2))))

O que “não cessa de se inscrever” é o Um – “traço unário” que distingue e afirma: “1-1-1,”
como se declarasse: “sou, sou, sou,...” e sempre falta dizer “O quê?”. “O que sou?” é o signo que o
neurótico procura e vai encontrar ao decifrar o enigma do “desejo do Outro”. “1-1-1,”: sempre se
pode acrescentar mais UM, a partir da lei do sucessor que forma a série e não dá nenhuma
especificidade a cada Um, a não ser “ser mais Um”.
O sucessor pode ser, como na série de Fibonacci (0,1,1,2,3,5,8,13...), constituído a partir da
soma dos dois precedentes, que uma proporção pode numerar (1,618..), e que o cálculo do neurótico
pode fazer consistir, pouco importa; ele será mais UM, um Outro para sempre: uma profunda
insuficiência lógica.

5. A tática do ato: da insuficiência lógica à aposta

Como no campo de guerra, a tática leva em conta a estratégia do parceiro, mas se orienta
pelo real; nisso a tática do analista submete-se a sua ética (Lacan, 2001d, p. 189) 8, que está no
centro das operações e tem sérias consequências políticas (muda o discurso).

a) Do começo ao fim
A tática do ato analítico opera com o real do começo ao fim: na proposta ardilosa da “regra
fundamental” que inclui a carta do insensato a priori; na sustentação paradoxal das elucubrações de
saber na perspectiva da verdade fantasmática mentirosa; nas intervenções e interposições ao longo
da cura, para não corresponder à demanda, nem assegurar um S2, equivocando seus achados,
balançando seus aconchegos e outros atalhos.
8
“[...] c'est dans le réel que je désignai le point pivot de ce qu'il en est de l'éthique de la psychanalyse [...]”.
A estratégia da transferência vetoriza o sentido infinito da série + 1, a,+1,a,+1,a → , com seu
cálculo do “a” a partir da “falta que produziria no Outro” (Lacan, 1998b, p. 844)9. A tática do ato
tem outra direção, ela não acrescenta sentido, mas precisa retirar, subtrair o calculo do “a” que faz a
coesão do sentido infinito (o destino neurótico) para, no sentido avesso, produzir o limite da série,
que definitivamente, e não infinitivamente, define o que funda o Um De Um Outro ao outro.

b) Indecidível
O exercício da associação livre não pode chegar a um ponto de identidade “Isso, sou Eu”, a
partir do Outro: “normalmente um tal exercício consegue chegar apenas a uma profunda
insuficiência lógica”. O aleatório desse exercício chega a uma conclusão: é indecidível, nenhum
significante pode completar o Um, ele será Um outro, sempre outro e fadado a sua repetição do
gozo que falta à sua representação pelo significante outro: não há, o dois da relação.
É indecidível, “Mas é necessário jogar” – “...mais il faut parier”, repetia Pascal no curto
rascunho da famosa “Aposta”. (Pascal, p. 1212)
A identidade é indecidível pela via do sujeito, subjectum, “hypokeimenon”10, variável
evanescente de toda a série de seus ditos, mas a aposta, a posta em jogo do cacife ( mise en jeu de
l'enjeu), o “topar a parada” indica e valida a referência do ato, “ousia”11 sem substância: “Ça c' est
quelqu'un!” (Lacan, 2001c, p. 415), “Aí tem gente!”: Há Um - Y a d'l'Un.

c) Aposta
A aposta de Pascal fornece um modelo interessante para Lacan nessa articulação entre lógica
e ética, entre a lógica do significante que determina o sujeito e a ética da sua causa real, entre a
lógica da estratégia do sujeito e a ética da tática do analista, articulação que condiciona o ato
analítico.
A Aposta consiste em saber “se Deus é ou não é”, não dá para saber pela razão:
inconsistência e indemonstrabilidade, demonstradas no curto escrito de Pascal. Mas se pode apostar;
e mesmo fazendo mil cálculos do número de vidas potencialmente ganhas, isso constitui apenas
uma enrolação para disfarçar que, no fim e desde o começo, não dá para saber, e que no final o que
valida o jogo é o em-jogo (enjeu – cacife), que se perde para proporcionar o jogo (jeu) e fazer valer
o “Je” como puro engajado (engajé) no ato.
Je – Jeu – Enjeu – engage ..: embora ainda não tenha forjado esse conceito, Lacan recorre ao
“cristal da língua”, à “alíngua” para fazer surgir o “dizer” dos ditos, o que ex-siste e causa a sua
insistência.

d) Corte
A estratégia da transferência produz a coalescência da estrutura com o sujeito suposto saber:

A coalescência da estrutura com o sujeito suposto saber, é isso que atesta, no


neurótico, o fato de ele interrogar a verdade de sua estrutura e de se tornar, ele mesmo,
em carne e osso, essa interrogação. Se há uma coisa que pode derrubar isso, é
precisamente a operação do analista, que consiste em praticar o corte graças ao qual a
suposição do sujeito suposto saber é desligada, separada da estrutura... O
9
Versão francesa:“ce qu'il va y placer, c'est son propre manque sous la forme du manque qu'il produirait chez l'Autre
de sa propre disparition”.
10
Referência de Lacan ao termo de Aristóteles nas Categorias que designa o sujeito: “[ ...] ce point nœud qui est celui
déjà proprement marqué dans la logique d'Aristote et qui motive l'ambiguïté de la substance et du sujet, de
l'hypokeimenon pour autant qu'il n'est logiquement à proprement parler rien d'autre que ce que la logique
mathématique par après a pu isoler dans la fonction de la variable, c'est à savoir ce qui n'est rien que
désignable par une proposition prédicative”. Lacan, 2001, p. 348 (versão francesa) e p. 336 (versão brasileira).
11
Referência de Lacan ao termo de Aristóteles nas Categorias que designa a referência “L'ambiguïté tout au long du
texte aristotélicien se maintient non pas sans être distingué à la façon d'une tresse entre cette fonction
parfaitement isolée par lui de l'hypokeimenon et celle de l'ousia qu'honnêtement il vaudrait bien mieux traduire
par être ou par "étance", par le Wesen, à l'occasion, de Heidegger, que par ce mot lui-même qui ne fait que
véhiculer cette dite ambiguïté de substantia”. Lacan, 2001, p. 348 (versão francesa) e p. 336 (versão brasileira).
funcionamento do tratamento analítico gira em torno desse corte. (Lacan, 2001d, p.
374)12

O corte é silêncio – presença – voz – emergência da alteridade radical do Outro, corte que
presentifica, no lugar do S2 esperado para completar o sentido, o fato lógico do “Um-a-Mais”,
suplementar a qualquer mais UM: o conjunto vazio subconjunto de qualquer outro conjunto. Onde
se supunha o dois da relação, há o conjunto vazio que volta sempre ao mesmo ponto e que,
colocado no bom lugar, permite contar outras histórias (Un nouvel amour, diz Rimbaud, 1998, p.
104) 13

e) Esvaziar
A tática do analista orientada pelo Real evidencia a inconsistência lance após lance e trata de
esvaziar o objeto fantasmático que insiste em suturar, curar o “incurável. Lacan dá-nos o exemplo
do Zen Budismo que, segundo os preceitos do TAO (Tseu, 2003), orienta o tratamento das
manifestações do objeto “a” com um “calar-se, nada ver, nada ouvir” (Lacan, 2001d, p. 338)14 que,
na resposta esvaziante, consegue “evacuar” (Lacan, 2001d, p. 391) o objeto a, reduzi-lo à sua
estrutura lógica (o conjunto vazio).

f) Fim de partida
Mas quem joga com quem? – A tática do ato é incitar a associação livre, esse
desprendimento, essa suspensão do sujeito, que por fim estará destituído, e produzir o fim do jogo
por falta de combatentes: não tem mais com quem jogar, W.O.15
“A análise é terminada quando o analista e o paciente não se encontram mais”, diz Freud
([1921-1938]1985, p. 231-268). O analisante não vai mais ao encontro marcado com o Outro.
Y a d' l'UN. “Há Um”. “Tão só quanto sempre estive...”, anuncia Lacan como princípio do
Ato de Fundação de sua Escola de Psicanálise em 1964. Há “Um- a- mais” que não faz relação com
o Outro: a separação, a decisão do ser, no fim, não é mais insondável e causa um novo laço com o
outro.
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S2 S1

Há Um, é isso!: é assim que se produz o limite da psicanálise, produção da sua finitude.

Por aí vocês veem a importância de minha aposta de Pascal, que também é feita por um
único jogador, uma vez que o Outro, como insisti, não é um jogador, é um conjunto vazio. O Outro
sabe das coisas, mas, como não é um sujeito, não pode jogar. (Lacan, 2001d, p. 352)16

“A análise é terminada quando o analista e o paciente não se encontram mais”.


A política que conduz o jogo é o fim da partida – FIN DE PARTIE17, diria Beckett.

12
Versão francesa: “[...] La coalescence de la structure avec le sujet supposé savoir, voilà ce dont témoigne chez
le névrosé ceci, qu'il interroge la vérité de sa structure et devient lui même en chair cette interrogation. S‘il y a quelque
chose qui peut faire tomber cela c'est précisément l'opération de l'analyste qui consiste à pratiquer la coupure grâce à
quoi la supposition de savoir est séparée de la structure... Le jeu de la cure analytique tourne autour de cette coupure
[...]”. (p. 388)
13
“Un coup de ton doigt sur le tambour décharge tous les sons et commence la nouvelle harmonie./ Un pas de
toi, c'est la levée des nouveaux hommes et leur en-marche./ Ta tête se détourne : le nouvel amour ! /Ta tête se retourne, -
le nouvel amour!”
14
Versão francesa: “[...] se taire, ne rien voir, ne rien entendre [...].” (p. 350)
15
Ganhar por W.O. (walk over) significa que uma competição esportiva foi vencida devido à ausência do
oponente. O W.O. acontece quando um time não comparece ao local da partida (Wikipédia, acesso em 30/11/2008).
16
Versão francesa: “[...] Vous voyez donc là la portée de mon pari de PASCAL, qui, lui aussi, se joue à un seul joueur,
puisque l`Autre comme j’y ai insisté, ce n´est pas un joueur c'est l'ensemble vide. L' Autre sait des choses mais comme
il n´est pas un sujet, il ne peut pas jouer [...]”. (p. 364)
17
Referência a Fin de partie [Fim de partida], de Samuel Beckett (Paris:2009 Les Éditions de Minuit).
Referências bibliográficas

FREUD, S. ([1921-1938]). Analyse avec fin et analyse sans fin. In: Résultats idées, problèmes II.
Paris: PUF. p. 231-268.

LACAN, J. ([1968-1969]2008). De um Outro ao outro (Seminário XVI). Rio de Janeiro: Jorge


Zahar.

_____. ([1969-1970]1992). O avesso da Psicanálise (Seminário XVII). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

_____. ([1972-1973]1975). Encore (Séminaire XX). Paris: Éditions du Seuil.

_____. (1998a). A direção do tratamento. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

_____. (1998b). Posição do inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

_____. (2001a). La méprise du sujet supposé savoir. In: Autres Ecrits. Paris: Éditions du Seuil.

_____. (2001b). Proposition sur le psychanalyste de l'École. In: Autres Écrits. Paris: Éditions du
Seuil.

_____. (2001c). Radiophonie. In: Autres Écrits. Paris: Éditions du Seuil.

_____. (2001d). Télévision. In: Autres Écrits. Paris: Éditions du Seuil.

PASCAL, B. Pensées II - 2 (3) Infini-Rien: le pari. In: Oeuvres Complètes, p. 1212.

RIMBAULD, A. (1998). À une raison. In: Illuminations. Paris: Librairie Générale Française.

TSEU, L. (2003). Tao te King (traduit et commenté par Marcel Conche). Paris: PUF, 2003.

WEDEKIND, F. (1974). L’éveil du printemps. Paris: Gallimard.

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