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Jurisprudéncia Critica VENDA COM RESERVA DE PROPRIEDADE INCORPORACAO DE ELEVADORES NOVO REGIME DOS ASSENTOS ACORDAO DO PLENO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTICA DE 31 DE JANEIRO DE 1996 Acordam no Pleno do Supremo Tribunal de Justiga: I. «Fortis Elevadores, L.**» recorreu, para 0 Pleno do Supremo Tribunal de Justiga, do Acérdao proferido na 2.4 Secgao deste Supremo, em 17 de Outubro de 1994, nos autos de revista n.° 85 632, em que aquela era recorrente e, recorrida, Camara Municipal de Lisboa (melhor se diria 0 respectivo Municfpio, mas persiste uma confusdo entre Orgios autérquicos e autarquias o que, todavia, nao é, aqui e agora, questao a resolver). O Acérdao que decidira essa revista negara-a (fls. 9 e segs.). Nestes autos, a recorrente invocou oposigéo de Acérdaos no concernente & qualificagao do contrato e a propésito da validade e eficdcia de cldusula de reserva e propriedade (fs. 2 € segs.), acerca do fornecimento e colocacao de elevadores em prédio urbano. A 1. Secgio do S.T.J., a qual este recurso foi distribuido, pro- feriu o Acérdio de fis. 60 e segs., julgando, por unanimidade, findo o recurso quanto a 1.* questo, mas verificada oposi¢ao rela- tivamente a 2.* questio, atendendo aos pressupostos € decisdes, em concreto, do Acérdao-recorrido e dos Acérdaos-fundamento. Contudo, logo se alertou no sentido de que, embora 0 alcance desses Ac6rdaos limitasse, tecnicamente, a oposigao a problemé- 292 ACORDAO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTICA DE 31-1-96 tica da reserva e propriedade, naturalmente poderia vir a ter de se considerar matéria de tipologia contratual na fundamentacio da uniformizagao da jurisprudéncia que viesse a decidir-se (fls. 64). A oposigao foi admitida no concernente ao Acérdao do S.T.J. de 06.12.1990, no recurso n.° 79 403 (fis. 30 e segs.). Subsequentemente, a recorrente alegou e concluiu (fis. 69 e segs.): 1) Ao requisito da permanéncia, que o art. 204.° do CCivil exige para que uma coisa mével se constitua parte integrante de uma coisa im6vel, nao basta que a ligagao fisica entre ambas seja feita com a intengdo de durar, sendo igual- mente necessdrio que o acto de destinagdo se funde num direito nao precdrio, 0 que postula que a propriedade da coisa mével e a da coisa imével convirjam no mesmo sujeito de direito; 2) Na possibilidade de uma divergéncia precdria de estatuto juridico (direito da propriedade sobre a coisa mével ligada, fisicamente, ao prédio de outrem, que nao o proprieta- rio deste por ainda no se ter dado a integragio) radica, preci- samente, a distingao do regime entre parte constitutiva ou componente e parte integrante de um imével, que 0 nosso Direito estabelece, ao contrario do Direito alemao, e que se manifesta nos intitutos da acesséo, da empreitada e da penhora, além de no proprio art. 204.° do CCivil; 3) Essa divergéncia pode surgir, no 4mbito da autono- mia da vontade, por via da reserva de propriedade permitida pelo art. 409.° do CCivil; 4) Nem as exigéncias das regulamentac6es de Direito administrativos dos prédios urbanos que, sem prejuizo da sua substituigdo, néo impendem a desafectacao da coisa mével por acto do proprietdrio (art. 880.° n.° 1 do CCivil), nem a tutela do terceiro adquirente de boa fé que, no nosso Direito, ao con- trario também do Direito alemao, nao se sobrepde, em regra, & tutela do Direito do proprietério, como resulta dos preceitos como os arts. 892.° do CCivil, 909.° n.° 1 d) e 910.° do CPC, sem que 0 art. 435.° do CCivil constitua derrogagdo 4 regra geral do art. 409.°, constituem raz6es de ordem ptiblica que se sobreponham & liberdade de estipulag&o negocial; ‘VENDA COM RESERVA DE PROPRIEDADE 293 5) Tao pouco o impede, se a coisa mével tiver sido objecto de um contrato de empreitada, o art. 1212.° n.° 1 do CCivil, j4 porque este se refere 4 empreitada da construgdo de im6veis e as partes componentes e nao a da construgao de méveis e as partes integrantes, j4 porque todo o art. 212.° é supletivo, sendo que, por um lado, o contrato de empreitada com fornecimento de materiais pelo empreiteiro € um con- trato de alienagao; 6) Sendo assim, fornecidos e instalados elevadores num prédio, ao abrigo de um contrato que tenha estabelecido a reserva de propriedade até ao pagamento integral do prego convencionado, s6 com o pagamento deste prego se dé a transferéncia da propriedade para o proprietario do prédio e, correspondentemente, a integragao, sendo aquela cléusula valida e eficaz quando tem por objecto coisas méveis que se destinam a ser integradas em prédios urbanos. A recorrente finaliza dizendo que «Neste sentido deve ser tirado assento». Contra-alegou a Camara Municipal de Lisboa, propugnando que se negue provimento a este recurso (fls. 91 e segs.). O Ministério Puiblico emitiu o parecer de fls. 102 e segs., comegando por uma saborosa citagio de Ega de Queirés € termi- nando por opinar no sentido de que deve ser confirmado Acérdao- -recorrido e emitido Assento nestes termos: «A cldusula de reserva de propriedade convencionada em contrato de fornecimento e ins- talagdio de elevadores em prédios urbanos torna-se nula logo que se concretize a respectiva instalacao». Foram colhidos os vistos legais. Il. Das linhas gerais do caso «sub judice»: IL1. O que esta em causa é, assim, 0 confronto entre a pers- pectiva jurfdica em que assentou o Acérdéo-recorrido (de 17.10.1994, no processo 85 632, da 2." Secgdo deste Supremo, aqui afls. 9 e segs.), e aquela que constituiu aspecto fulcral do Acérdao- -fundamento (de 06.12.1990, processo 79 403, da 1.* Seccao deste 294 ACORDAO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTICA DE 31-1-96 mesmo Supremo, aqui a fis. 30 e segs.); tudo isto a propésito da validade e eficdcia da cldusula de reserva de propriedade no con- trato celebrado a propésito do fornecimento e colocagao de eleva- dores em prédio urbano, conforme jé reflectido. Alias, a recorrente colocara, tal como indicado, uma outra questao, atinente 4 qualificagao do contrato, trazendo a colagao 0 Ac6rdao o S.T.J. de 09.10.1986, no processo 73 478, da 1.* Secgdo (aqui, fls. 18 e segs., 40 e segs. e 43). Mas, conforme jé ficou relatado, por Acérdao de 27 de Junho p.p., a 1.4 Secgao, por unanimidade, julgou verificada oposigéo apenas quanto a questdo da validade e eficdcia da citada cldusula. Isto significa que, relativamente a qualificagao do contrato, 0 recurso findou e, portanto, nada ha que se imponha acrescentar. Contudo, nao deixamos de anotar, entre o mais que, adiante vird, que algumas das dtividas que se colocam neste tipo de recursos arrancam de certas observacées, designadamente, do Prof. A. Reis, mas sem um pormenorizado atengio ao alcance légico objectivo de mudanga de textos processuais civis entre o de 1939, sobre que escreveu esse eminente processualista, ¢ 0 que veio a ser introdu- zido pelo DL 44 129, de 28.12.1961. De todo o modo, admitiu-se a aludida oposigéo no concer- nente & clausula de reserva de propriedade. E, conforme também ja se aflorou, a circunstancia de se ter julgado existente oposi¢ao ape- nas quanto a essa questo limita os termos da explicita uniformi- zago da jurisprudéncia, mas ndo impede que, no ambito do Acér- dao e na génese dessa uniformizag4o, se considere o tipo de negécio em causa. E isto é o que mais importa. Com efeito, o verdadeiro pro- blema nao é conceptual mas, sim, de efeitos praticos. Ou seja, trata-se de um caso paradigmatico da relevancia da jurisprudéncia de valores ou de interesses face a uma ultrapassada jurisprudéncia conceptualista. IL.2. Para além de tudo isto, se é exacto que ficou precludida a questo da oposigao do Acérdao-recorrido com o de 1986, acerca da qualificacdo do contrato; nao é menos certo que, agora, pode- rfamos negar a oposi¢éo quanto a clausula de reserva de proprie- dade e ao Acérdao de 1990. VENDA COM RESERVA DE PROPRIEDADE 295 Mas, negar essa oposi¢ao, seria negar a evidéncia. Com efeito, em sintese, o Acérddo-fundamento entendeu que, por via de tal cldusula, o elevador revertera a favor do fornecedor e poderia ser separado do prédio onde funcionava, o que vale por dizer que se Ihe reconhecia validade e eficacia; enquanto que o Ac6rdao-recorrido optou pela tese dita de nulidade de idéntica cléusula em contexto semelhante e, portanto, contrapés-se a rever- sao do elevador ao seu fornecedor. Portanto, nada a alterar quanto A reconhecida oposi¢éo de Acérdaos. TI.3. As doutas alegagdes da recorrente, e fls. 69 € segs., comegam por uma resenha histérico-jurisprudencional, através da qual a propria recorrente reconhece uma evolugao que, come- cando, nas suas linhas gerais, pela tese do Acérdao-fundamento vem, progressivamente, a inclinar-se no sentido da orientagao do Acérdao-recorrido, mormente ao nivel deste Supremo. Ora, este tipo de evolugao nao pode deixar de compaginar-se com o devir jurisprudencial em termos gerais que, sendo embora lento, nao deixa de ser seguro, fazendo perder relevancia as pers- pectivas positivistas, formalistas ou conceptualistas, a favor de uma prevaléncia de uma jurisprudéncia de interesses ou, hoje, mais rigorosamente, de valores, na linha do que jé se anotou. Naturalmente, aquela primeira visualizagao da lei e das suas consequéncias € a mais simples, imedialista e facil de defender. Mais dificil mas, também por isso mesmo, mais aliciante, é a preocupagao pelos interesses concretos, a luz de valores que, sendo de contornos claros mas de contetido varidvel conforme as situagdes efectivas, permitem uma melhor adequagao das solugdes casufsticas a sensibilidade natural da pessoa comum face a Justiga. Alids, além do mais, quer para a [dgica, em detrimento do litera- lismo, quer para a evolucdo que se contraponha ao imobilismo da hermenéutica juridica, quer para a razoabilidade que tenha em atengio, tanto quanto possivel, uma moderna perspectiva da lei da boa razéo, aponta, desde logo, o basico art. 9.° do CCivil. Claro que, realisticamente, quando se fala em interesses e em valores, hé sempre quem, dessa orientagao, beneficie e quem, nela, se nao reveja. E, normalmente, imposstvel contentar «gregos» € 2% ACORDAO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTICA DE 31-1-96 «troianos». S6 que a orientagao que se acolha, tendo de assumir a falibilidade e a relatividade de tudo o que é humano, tem de con- siderar e valorizar a orientagao que, sendo a melhor, nao pode ser Optima, porque solug6es 6ptimas seriam as que, utopicamente, contentariam todos os interesses que, por principio, tém de ser opostos para desencadearem um litigio. E este tipo de pensamento que leva a nao confundir invalidade (mais concretamente, nulidade) com ineficdcia (stricto sensu) e, ultrapassando conceptualismos estanques, faz antever que, em Direito, nao ha, apenas, ser e nao ser, mas pode haver ser que se modifique. Tudo em homenagem 8s situagdes concretas da vida, sem a qual o Direito nao teria causa-final. E, num 4mbito porventura mais simples, ha que ter em aten- ¢do as varias relagdes juridicas que, no concreto vivencial, se cru- zam ou convivem. 11.4. Por outro lado, o que est4 em causa nao é um direito de propriedade e um indefinido direito de terceiro. Pelo contrério. Esse direito de terceiro, 0 fornecedor do elevador seria, expli- citamente, direito de propriedade e, dai, a pretendida relevancia da cldusula de reserva de propriedade. Como ultima «ratio», nao deixaria de vir ao caso 0 art. 335.° do CCivil. Outrossim, tenhamos presente uma significativa frase da recorrente (fls. 75): «... 0 direito de propriedade do beneficiario da reserva mantém toda a sua eficdcia até a integragdio». ILS. E, ainda, de ter em conta que, apesar da generosidade do sistema processual civil portugués, 0 recurso para o Pleno do STS é, nao obstante a letra do art. 676.° n.° 2 do CPC, na sua essén- cia, mais atipico do que ordindrio. Com efeito e conforme se infere, designadamente da «ratio» do n.° 3 do art. 768.° do CPC, embora 0 recorrente, naturalmente, pretenda uma solucdo diferente da do Ac6rdao-recorrido, 0 escopo especifico deste processado est4 muito mais numa clarificagdo da orientagdo jurisprudencial geral do que na subsisténcia ou nao subsisténcia do Acérdao- VENDA COM RESERVA DE PROPRIEDADE 297 -recorrido. Vem neste sentido o recente DL 329-A/95, de 12.12 (alias, distribuido em 3/4.1.96). E nao ha que fazer interferir na solugdo desta questo hipé- tese, efectivamente, absurda de se «legalizar», civilisticamente, 0 uso de coisa adquirida por via criminalmente sanciondvel. O argu- mento «ab absurdo» faz pensar é numa caréncia de verdadeira fra- gilidade da tese que se pretende atacar. Ill. Do tipo contratual: IIL.1. Na situagao concreta que nos ocupa, a qualificagéo jurfdica do contrato inscreveu-se em circunstancialismo basico que radica na existéncia de cldusula de reserva de propriedade a favor do fornecedor de um elevador a uma entidade que 0 encomendou e sera instalado em edificio que é, ou vird a ser, de terceiro inte- ressado. Portanto, hd aqui dois bindémios: 0 que se estabelece entre quem encomendou 0 elevador e contrata com o fornecedor; € 0 ter- ceiro, que é ou vem a ser o proprietario do edificio onde o eleva- dor ser instalado. Na circunstancia, 0 fornecedor do elevador reserva-se 0 direito de propriedade sobre esse bem até ser pago o respectivo valor. Mas reserva-se perante quem encomendou o fornecimento. Nos casos correntes, temos dois binémios, que s6 tém de comum, objectivamente, o «quid», o bem questionado, 0 elevador; e, do ponto de vista subjectivo, o intermediario, aquele que, perante 0 dono do edificio assumiu o encargo de providenciar no sentido de ser instalado 0 elevador e, face ao fornecedor deste, estabeleceu 0 contrato de aquisic¢ao. Em principio, aquilo que o intermediario assume perante o fornecedor nao vincula quem nao é parte nesse binémio. 111.2. Em miltiplos casos semelhantes, com uma ou outra «nuance», surge a problemdtica da configuragao contratual. Nao vamos desdizer o que jé ficou claro: a defini¢ao contra- tual ndo pode fazer parte do texto da uniformizacao jurisprudencial ora a decidir. 298 ACORDAO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTICA DE 31-1-96 Mas como também jé se reflectiu, uma coisa é 0 texto sinté- tico dessa uniformizag&o e, outra, a sua fundamentagao. Daf que facamos uma incursdo, ainda que ligeira, sobre esta problematica. Alids, como se frisou, designadamente, no Acérdao deste Supremo de 06.07.1993 (C.J. — S.T.J. I, 2, 181), 0 nticleo impor- tante desta problematica est4 na instalagdo do elevador e na sua aptidao para servir o prédio urbano onde é colocado. Na vida normal, nao se adquirem os elementos constitutivos de um elevador para os guardar ou para nao funcionarem. Portanto € nesse aspecto da vida concreta e dos interesses efectivos que deve ser posta a questo em aprego, e nao tanto na denominagio contratual, sem que, a esta, deixe de reconhecer-se que pode ter alguma relevancia. De todo 0 modo, no campo das hipéteses possiveis, pode acontecer que o dono de um imével urbano que ja exista adquira, por compra, um elevador e venha a instal4-lo por sua direcgao de construgao directa. Mas, no comum das situag6es, dé-se 0 nome que se der, 0 que o dono de um prédio urbano j4 construfdo ou em vias da constru- ao faz é contratar com outrem que este outrem instalard elevador ou elevadores naquele prédio, a troco de um prego. E esta é, realmente, a hipstese de empreitada: art. 1207.° do CCivil. Com efeito, 0 ponto essencial do contrato de empreitada é a realizago de uma obra, como seja a instalag4o, pronto a funcio- nar, do elevador, e nao apenas a compra e venda dos elementos de um elevador, a menos que se tratasse de algo como um museu, s6 para vista, ou de negécio para simples coleccionador, também s6 para deleite visual. Claro que isto sao mais hipéteses do que reali- dades. E nés ndo estamos a tratar de hipdteses anémalas ou excep- cionais. O que nos ocupa sdo as vulgares e constantes situagdes da instalagéo de elevadores, em edificios, para servirem os utentes desses edificios. Claro que o mundo o Direito nao é feito de ilhas isoladas. Tudo se entrecruza e, por isso, natural € que um contrato tenha pontos de contacto com outro ou outros (cfr. v.g. Profs. P. lima e A. Varela, «Anotando», II — 3." ed., 786/791). VENDA COM RESERVA DE PROPRIEDADE 299 Repare-se que a propria lei, sensatamente, permite a introdu- ¢ao, pelos contratantes, de elementos diferenciadores nos préprios contratos nominados (art. 405.° do CCivil). E, no contrato de empreitada, o empreiteiro fornece os materiais necessdrios, 0 que est4 paredes-meias com a compra e venda, mas salvo acordo em contrério: art. 1210.° do CCivil. E, quantas vezes, é o empreiteiro de uma edificagao que faz, nao um contrato de empreitada, mas contrato de sub-empreitada com quem se obriga a fornecer e instalar elevadores — art. 1213.° do CCivil. IV. Da reserva de propriedade: E vamos ao especifico «thema decidendum» sob anilise, que se reporta & cldusula de reserva de propriedade, a propésito da con- tratag’io do fornecimento e instalagao de elevadores em edificio de alguém que ¢ terceiro relativamente aquele negécio concreto. Ha quem defenda que, a luz de uma normal empreitada e posto que se niio estaria, tipicamente, perante um contrato de alie- naga, face ao art. 409.° do CCivil, a clausula de reserva de pro- priedade estaria inquinada, «ab initio», de invalidade. Este tese recolhe algum apoio em anotagio dos Profs. P. Lima eA. Varela, «Anotado», I - 4. ed., 326, e em observacdes do Prof. Vaz Serra, in R.L.J. 112, 239, a propésito do Acérdaio do S.T.J. de 01.03.1979, in BMJ 285, 279 e RLJ 112, 235. E, em casos e contornos bem definidos e rigorosos, assim sera (cfr. Acérdao deste Supremo de 06.07.1993, in CJ — STJ, 1-22, 181). Mas resolver um recurso, em revista, é uma coisa; elaborar um Acérdio que conduza a uniformizagao de jurisprudéncia, com a sua vertente de generalidade, obrigar4 a ultrapassar as fronteiras de um caso concreto, embora tendo presentes os doutos preceden- tes deste Alto Tribunal (além do jé citando, v.g. Acérdao de 06.04.1995, in CJ - STJ IIL, 33). E nesta linha de pensamento e considerando que, mesmo um contrato de empreitada tem uma vertente normal de alienagao das partes componentes do «quid» objecto material da empreitada, 300 ACORDAO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIGA DE 31-1-96 nao pode recusar-se, em termos genéricos e absolutos, a validade da cldusula de reserva e propriedade, ao abrigo do art. 409.° do CCivil. Em verdade, um elevador € como um «puzzle» que sé tem sentido no seu conjunto mas, quer as partes, quer 0 todo, sao — ou podem ser — alienados pelo fornecedor. O que, todavia, dé o toque especifico ao contrato é a colocagao, é o pér a funcionar e 0 que, dai, juridicamente, decorra, a que ja iremos. Neste particular da validade, também importa trazer 4 colagao algo sobre, nao sé validade mas, também, eficdcia. V. Da validade e da eficdcia: A tendéncia mais reflectida na doutrina tende a considerar a ineficdcia como a «mae de todas as invalidades» ou, dito mais juri- dicamente, como sendo, a invalidade, uma espécie de ineficdcia (v.g. Prof. M. Pinto, «Teoria Geral do Direito Civil», 2.* ed., 591; Prof. M. Andrade, «Teoria Geral da Relagio Juridica», 11, 411). Mas, se assim pode ser em termos de construgdo conceptual, também é possivel uma construcao que, tendo em atengao, as cau- sas € as consequéncias de invalidades e de ineficdcias, distinga uma das outras e, até, eleja aquelas como — «lato sensu» —, 0 genéro dos vicios negociais, entre as quais se podem encontrar as ineficdcias — «stricto sensu». Alias, aqui como em tudo o que é 0 mundo do Direito, na vida real de que se deve ocupar a jurisprudéncia, relevam muito mais as causas e as consequéncias do que as denominacées formais mais ou menos globais dos institutos. E é assim que se pode ter por invdlido (nulo ou anuldvel, con- forme as circunstancias) o negécio que nao respeita a lei; e, por ineficaz, aquele que é inoperante, irrelevante, praticamente um nada juridico no que concerne a consequéncias ou a certas conse- quéncias. Simplesmente, sendo perspectivavel esta distingao, a invali- dade ou é ou nao é (e, alias, sempre ressalvados os efeitos explici- tos de eventual evolugao legislativa e, até, o mbito restrito da anu- labilidade — v.g. art. 287.° do CCivil); enquanto que, no VENDA COM RESERVA DE PROPRIEDADE, 301 concernente a ineficdcia ou inoponibilidade, tal é perfeitamente compagindvel com efeitos relativamente a umas pessoas e nao relativamente a outras e, até, com alteragéio ao longo do tempo con- forme os dados concretos a ponderar. Nao esquecamos que partimos de uma rejeicao do rigor for- mal da jurisprudéncia conceptualista, privilegiando os valores e os interesses, donde mais potencial dificuldade nas justificagdes mas, também, maior malebilidade na consondncia entre o Direito con- creto e a vida. E é aqui que entra um elemento determinante a ponderar: VI. O que sdo, juridicamente, os elevadores? VI.1. Na&o compliquemos tudo isto (e os juristas, 4s vezes, «adoram» complicar!) e vamos a mais directa e relevante fonte a considerar — a lei. As coisas «...tudo aquilo que pode ser objecto de relagdes juridicas» — art. 202.° n.° 1 do CCivil; ou, no impressivo e belo portugués do cédigo de 1867, «coisa diz-me em direito tudo aquilo que carece de personalidade» — art. 269.°, sao, juridicamente, de miltiplas naturezas, conforme a vertente que se analise e se reflicta, designadamente, no art. 203.° do CCivil, a comegar por imédveis e méveis. E, quanto as mdveis, a definigéo é meramente residual: sio méveis as que nao forem iméveis (ibidem, art. 205.°). E, lido e entendido o art. 204.° do mesmo cédigo, facil é cons- tatar que os elevadores, em si préprios, originariamente, sao coisas méveis. Mas isto significa que 0 sao como objecto directo de rela- des juridicas, dir-se-ia que, ontologicamente, enquanto «quid» existente isoladamente das restantes coisas. Alias, o préprio eleva- dor é, ele préprio, um conjunto de elementos que, antes de compo- rem ou integrarem o elevador, sao, eles préprios, passiveis de negécios auténomos; mas, a partir do momento em que compo- nham ou integrarem o elevador, é este que existe juridicamente. Isto nada tem de estranho. Basta pensarmos que os prdéprios tijolos ou, mesmo, os quilos de cimento que vém a compor um edi- ficio, comegaram por ser coisas com autonomia. 302 ACORDAO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTICA DE 31-1-96 Identicamente acontece, pois, com os elevadores. Originariamente, sao coisas méveis ¢ podem ser comprados e vendidos. Recordemos as hipéteses, ainda que conjecturais, dos museus ou de coleccionadores. Mas, como também ja dissemos, nao € dessas hipéteses que, ora, curamos. Se elas vém a colacao é s6 para se referenciar que, em princfpio, os elevadores podem ser objecto de varios tipos de negécios e, @ partida, nao é rejeitavel uma cléusula de reserva de propriedade a favor do fornecedor, na base da possibilidade reflectida no art. 409.° do CCivil. Contudo, nao deixamos de ter presente que o «thema deci- dendum» implica a colocagdo do elevador em prédio urbano, para servir os respectivos utentes. E, entdo, que acontece ao elevador? Seguramente, perde a sua individualidade. V1.2. Em rigor, a tnica diivida que, aqui, se pode colocar € entre parte componente ou parte integrante. E, nao esquecendo, em tudo isto que, mais o que falarmos de construc4o ou de arquitectura, é de jurisdicidade que se trata, esta- mos com 0 douto parecer do M.° P.°, quando chama a atengdo para © facto da imposigao legal da existéncia de elevador em edificio com mais de 3 pisos (art. 50.° do RGEU) — o que, alids, € uma exigéncia carecida de ampliagao a bem dos cidadaos idosos ou doentes, para que nao estejam «prisioneiros» em suas préprias casas, as vezes até num simples 1.° andar! Nestas situages, 0 ele- vador € téo elemento do prédio urbano quanto o vidro de uma janela ou o degrau de uma escada; o que vale por dizer que é parte componente do imével, por isso que, sem elevador, o prédio urbano nao estaria completo ou adequado para o seu proprio fim (cfr. Prof. M. Andrade, «Teoria Geral da Relagao Juridica», I, 237). E, em todas as outras situages (e até, naquelas para quem entenda que nunca pode ser parte componente ou constitutiva), seguramente 0 elevador, apés a sua colocagdo, é parte integrante, nos termos do art. 204.° n.° 1 e) o CCivil, o que significa que, a partir da sua instalacdo, naturalmente para funcionamento, em pré- dio urbano, o elevador perde a sua natureza original e passa a fazer parte das coisas iméveis. Alids, nem nos pode fazer hesitar alguma VENDA COM RESERVA DE PROPRIEDADE 303 autonomia fisica propria das partes integrantes (cfr. Prof. M. Cor- deiro «Direitos Reais», I, 280). E isto nao pode deixar de ter consequéncias juridicas. V1.3. A ligagao de um elevador a um prédio urbano 6, fina- listicamente, de cardcter fixo e permanente, desde as suas maqui- nas, aos cabos, as roldanas, as cabines, etc.; veja-se o absurdo que seria ter-se 0 vio do elevador e nao se ter 0 elevador! Absurdo e perigo grave, que j4 tem dado origem a consequéncias trégicas e é objecto de legislagao especifica e cautelar (entre outros diplomas: DL 131/88, de 17.03 e Portaria 269/89, de 11.04). Nesta linha de pensamento, os elevadores presumem-se partes comuns dos con- dominios, tal como so patios e jardins ou casa de porteiro ou gara- gens, ou como tudo o mais nao afectado ao uso exclusivo de um condémino: art. 1421.° n.° 2 do C. Civil. E, com isto, compagina-se uma clara responsabilidade do pro- prictério do imével onde o elevador funciona: cfr. D.R. 13/80, de 16.03 e, especialmente, DL 513/70, de 30.10. Tudo vale por dizer que os elevadores, componentes ou inte- grados num imével urbano, por causa deste e para complemento deste, tornam-se tao do proprietario do imével de que fazem parte como quaisquer outros elementos que sejam componentes ou inte- grantes do imével, haja a responsabilidade que houver de alguém perante o fornecedor do elevador. E isto € assim quer por via directa do art. 1212.° n.° 2 do CCi- vil, quer por forga de toda a ldgica do sistema reflectida, natural- mente, nesse complementar art. 1212.° n.° 2 do tal cédigo. VII. Continuando: VIL1. De tudo 0 jé se expds, evidencia-se que 0 elevador €, originariamente, mével por natureza e 0 que est4 em causa éuma situagdo de ligagao finalistica entre ele ¢ 0 prédio correspondente e tal tem cardcter de permanéncia. Nem se diga que essa permanéncia pode, em si propria, ser eliminada. 304 ACORDAO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTICA DE 31-1-96 Até uma porta indispensAvel existéncia de um prédio pode, materialmente, ser substituida. A técnica tudo remove, sem que isso signifique que os bens eventualmente substituidos nao fagam parte do prédio. Até, por exemplo, a canalizagao da agua, do gas ou conduta de electricidade podem ser substituidas e, decerto, nin- guém se lembraré de dizer que ndo fazem parte do prédio. J4 noutro plano — muito mais importante! — todas as pes- soas morrerao um dia, e nem por isso deixam de ter 0 direito dos direitos, 0 direito a vida! Sejamos realistas e deixemo-nos de dogmatismos estéreis. O que importa € 0 cardcter de permanéncia que é préprio da colo- cago de um elevador num prédio; nao € que fisicamente isso seja eterno até ao fim dos tempos! VII.2. Mas diz-se, importa que a ligagao tenha sido estabe- lecida pelo proprietario do prédio e do elemento integravel. Desde logo, o proprio Prof. M. Andrade, que coloca esse pres- suposto, f4-lo com as maiores reservas e esclarecimentos, como se pode ver das extensas notas de rodapé a paginas 238 e 239 da «Teoria Geral», 1, 238. Aqui, o que importa é uma relagdo objec- tiva de utilidade e, naturalmente, uma certa conexo juridica justi- ficativa, que nada tem a ver com a hipétese absurda, que jd se refe- riu, da pretensa «legalizacao» civilista do que é regido, sim, mas por leis criminais. Esta matéria foi também objecto de ponderaveis observacées do tratadista do Direito Civil, em Portugal, que se chamou Cunha Gongalves («Tratado», IIT, 59/60). Nem a lei constitufda e aplicdvel exige o discutido e pretenso pressuposto. VIII. Onde se volta a falar de ineficdcia: Tudo ponderado, torna-se claro que, embora a cldusula de reserva e propriedade possa ser valida e eficaz quando o elevador € uma coisa mével por natureza; a partir do momento em que passa a ser parte componente ou integrante de um prédio urbano é, juridicamente, imével, ao servigo e sob a propriedade de quem é VENDA COM RESERVA DE PROPRIEDADE 305 dono de todo 0 imével, e dos respectivos utentes, tal cldusula torna-se, seguramente, ineficaz e inoponivel ao proprietdrio e aos utentes do imével, sem prejuizo da responsabilidade de quem tenha contratado com o fornecedor do elevador, seja qual for essa res- ponsabilidade, obviamente desde que tenha cobertura juridica. Tudo isto em consonancia com o direito real da propriedade sobre 0 imével. Naturalmente, na generalidade das situagdes. releva, ainda, embora complementarmente, a boa fé de que gozem o proprietario e os utentes do prédio urbano de que o elevador se tiver tornado parte componente ou integrante. IX. Finalizando: De todo 0 exposto, é manifesto que 0 Acérdao-recorrido ndo suscita, decisoriamente, qualquer alteragdo, razio por que se man- tém; e se uniformiza a jurisprudéncia nos seguintes termos: A clausula de reserva de propriedade convencionada em con- trato de fornecimento e instalagao de elevadores em prédios urba- nos torna-se ineficaz logo que se concretize a respectiva instalagao. Custas pela recorrente. Lisboa, 31 de Janeiro de 1996 Cardona Ferreira; Ferreira da Silva; Torres Paulo; Miguel Montenegro; Fernando Fabiaio; César Marques, Roger Lopes; Ramiro Vidigal; Martins da Costa; Pais de Sousa; Miranda Gus- mao; $4 Couto; Oliveira Branquinho; Silva Cancela; Sampaio da No6voa; Costa Marques; Joaquim de Matos; Sousa Inés; Costa Soa- res; Machado Soares; Herculano de Lima; Metello de Napoles; Fernandes de Magalhaes; Lopes Pinto; Nascimento Costa; Pereira da Graga; Aragao Seia; Amancio Ferreira e Almeida e Silva.

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