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Administracao publica portuguesa Anténio Tavares Administragao publica portuguesa Anténio Tavares Imagine uma mesa com trés pés: administra¢ao, funciondrios e estrutura politica. Para que o tampo assente na perfeigao — que é como quem diz, para que um programa politico seja implementado e eficaz —, ha que existir equilibrio entre esta triade de poder. Como o garantir? Embora a administragao publica portuguesa tenha progredido nos Uultimos 50 anos, sobrevive a ideia de que, por vezes, esta demasiado distante do cidaddo, e subsiste uma elevada insatisfagio em meio milhao de funciondrios publicos. Neste ensaio, abre-se a caixa negra da administrag4o do Estado, explorando quatro grandes temas: gestéo e avaliacio do desempenho; vinculos, carreiras e remuneracées; qualificagdo e formacgdo do pessoal; lideranga e direccéo. Procura-se os desejdveis suportes para uma administracgao publica democratica, orientada para o servico publico, através do controlo dos resultados dos servicos prestados. Na seleccao de temas a tratar, a colecc4o Ensaios da Fundag4o obedece aos principios estatutérios da Fundagdo Francisco Manuel dos Santos: conhecer Portugal, pensar o pais e contribuir para a identificacdo e para a resolugao dos problemas nacionais, assim como promover o debate publico. 0 principal designio desta colecc4o resume-se em duas palavras: pensar livremente. aS” Anténio Tavares é doutorado em Administragao Publica pela Florida State University (EUA), professor associado com agregacio na Escola de Economia e Gestao da Universidade do Minho e membro do Centro de Investigacao em Ciéncia Politica. E, desde Julho de 2015, professor associado adjunto na Unidade Operacional de Governagdo Electrénica da Universidade das Nagdes Unidas (UNU-EGOV), em Guimaraes. Anténio Tavares Administracao publica portuguesa Ensaios da Fundacao WS FUNDACAO FRANCISCO MANUEL vos SANTOS Largo Monterroio Mascarenhas, n.° 1, 7." piso 1099-081 Lisboa Portugal Correio electrénico: ffms@ffms.pt Telefone: 210 015 800 Titulo: Administra¢ao publica portuguesa Autor: Anténio Tavares Director de publicagées: Anténio Araujo Revisio de texto: Nuno Quintas Design e paginacdo: Guidesign © Fundago Francisco Manuel dos Santos, Alfredo Teixeira, Abril de 2019 O autor desta publicagio adotou o novo Acordo Ortografico. As opinides expressas nesta edico so da exclusiva responsabilidade do autor e nao vinculam a Fundagao Francisco Manuel dos Santos. A autorizacdo para reprodugao total ou parcial dos contetidos desta obra deve ser solicitada ao autor e ao editor. Edig&o eBook: Guidesign ISBN 978-989-8943-29-3 Conhega todos os projectos da Fundagéo em www.ffms.pt Conclusto Referéncias bibliograficas Agradecimentos Nota inicial Em 1994, depois de concluir a licenciatura em Sociologia das Organizagdes na Universidade do Minho, iniciei o mestrado em Administracéo Publica na mesma Universidade, que conclui em 1997. No periodo entre 1998 e 2003, realizei o meu doutoramento em Administracdo Publica sob a orientacao do professor Richard Feiock na Reubin O’D. Askew School of Public Administration and Policy da Florida State University, nos Estados Unidos. A minha tese, intitulada State and Local Institutions and Environmental Policy: A Transaction Costs Analysis, argumenta que o enquadramento legal e as regras institucionais adoptadas pelos estados norte- americanos afectam a forma como os municipios desenvolvem as suas politicas publicas na drea ambiental. Obtida em contexto anglo-saxénico, a minha forma¢do académica na d4rea da Administrag&o Publica facultou-me uma visio comparada das administracgées publicas portuguesa e americana, algo que dificilmente conseguiria caso tivesse permanecido em Portugal nestes anos de formagao. Quando fui convidado para escrever sobre a administracéo publica portuguesa, decidi elaborar o ensaio que gostaria de ter lido quando comecei a fazer carreira universitdria na disciplina académica de Administracao Publica. Procurei produzir um texto que, embora obedecendo ao rigor necessdrio ao tratamento do tema, fosse, ao mesmo tempo, de leitura acessivel e liberto do jargao juridico habitualmente associado as obras sobre a administracao publica portuguesa escritas no 4mbito do direito. O registo utilizado expressa a minha viséo pessoal da administracao publica portuguesa, marcada pelos meus contactos com a mesma, no 4mbito da minha experiéncia como académico, formador e cidadao. Introducdo So nove horas de uma manha de Julho de 1980. Uma crianca segue pela mao da mae em direcgdo a delegacdo da Conservatéria do Registo Civil na cidade do Porto para, pela primeira vez, tirar 0 bilhete de identidade. Aguarda-os uma longa fila que circunda o quarteiréo de uma rua no centro da cidade; o atendimento ocorrer4, com sorte, antes da hora do almogo. Para a mae, que faz parte dos quadros de uma pequena empresa, e para todos os que aguardam o atendimento, a manha de trabalho ja esta completamente perdida. O quadro descrito no pardgrafo anterior é tipico da administracao publica portuguesa nos primeiros anos apés a revolucgéo democratica de 25 de Abril de 1974. Servigos com organizacao deficiente, funciondrios com poucas qualificagdes e geralmente mal preparados para interagir com os cidadaos e dirigentes com pouca sensibilidade para gerir os seus servi¢os tendo em vista a obtencao de resultados eficazes, eficientes e de elevada qualidade. Nesse aspecto, esta administrag4o pouco se distinguia da viséo estereotipada da burocracia criada, ao longo de pelo menos um século, nas administragdes mais modernas da Europa Continental e no mundo anglo-saxénico. Ao longo dos mais de quarenta anos apés a Revolucao, a administracéo publica portuguesa sofreu um processo de modernizacao que pode ser considerado como bem-sucedido, isto apesar das resisténcias internas 4 mudanga nas primeiras trés décadas e dos obstdculos externos 4 sua consolidagao na ultima. Para os milhdes de portugueses que interagiram com a administracao ao longo de quatro décadas, a sensacao frequente é de frustragao e irritag&o com o seu funcionamento, normalmente associadas aos esteredtipos criados ao longo de décadas e que revelam um _ profundo desconhecimento da _ pratica administrativa, da utilidade dos seus servicos e da boa vontade dos seus funcionarios. Quando nos referimos 4 administragao publica portuguesa, é importante delimitar, de forma téo precisa quanto possivel, o universo da nossa andlise. Embora seja usual separar a administra¢ao publica directa da administragao publica indirecta, nesta obra optamos por tratar de ambas de forma indistinta, uma vez que, na perspectiva do cidadao, a distingéo é largamente irrelevante. Tal como sugerido no sitio oficial da Direcg&o-Geral da Administragdo e Emprego Publico (DGAEP), a relagao entre o governo como 6rgio supremo da administracéo publica reconhecido constitucionalmente e as entidades excluidas da andlise 6 progressivamente mais ténue, sendo que apenas serao incluidas na andlise e discussfo as entidades da administracdo publica hierarquicamente subordinadas ao governo e algumas das entidades sujeitas 4 sua superintendéncia e tutela (poderes de orientagao e de fiscalizagao e controlo), como é o caso dos institutos publicos. Embora fagam parte da administracdo indirecta, as empresas publicas encontram-se excluidas da andlise, em virtude da sua natureza manifestamente distinta. Assim, a administracao publica discutida no 4mbito desta obra engloba os servicos centrais (ou concentrados, normalmente em Lisboa), que tém jurisdic&o sobre todo o territério nacional. Sao exemplos da administragdo central directa as direccdes-gerais, responsdveis pela implementacéo de politicas publicas, as inspecc6es-gerais, com fungdes de controlo, auditoria e fiscalizag4o, e as secretarias-gerais, com atribuigdes ao nivel dos orgamentos, da gestao de recursos humanos e da modernizacaio administrativa no Ambito de cada ministério. Os servigos periféricos (ou desconcentrados) da administragao directa tém competéncias territoriais limitadas e incluem as comissdes de coordenagao e desenvolvimento regional, as direccdes regionais de educagao, agricultura, solidariedade social e satide. Extintos no Plano de Reducao e Melhoria da Administragao Central (PREMAC), os governos civis também eram parte integrante da administragéo directa periférica. A administracdo indirecta central inclui primordialmente os institutos publicos, por exemplo, o Instituto Portugués da Juventude, o Instituto Nacional de Estatistica e o Laboratério Nacional de Engenharia Civil, e ainda algumas agéncias, como a Agéncia para a Modernizacao Administrativa e a UMIC — Agéncia para a Sociedade do Conhecimento, também elas institutos ptiblicos com autonomia administrativa e financeira. As administragdes das regides hidrograficas e o Instituto da Droga e da Toxicodependéncia sao os unicos organismos que compdem a administracao indirecta periférica. Além de todas estas, sio ainda parte integrante da administra¢ao publica portuguesa analisada nesta obra uma série de diversos érgios consultivos, comissées e outras estruturas atipicas, como sejam as comissdes nacionais, os conselhos consultivos, os conselhos nacionais, os programas operacionais, as estruturas de misséo e as entidades administrativas independentes. Por esta altura, um leitor atento facilmente notard o quao complexa pode ser a estrutura organica da administra¢4o publica. Contudo, parte desta complexidade esta ainda por expor, pois sao servicos ou entidades que nao serao abordados neste estudo. Além dos institutos publicos, a administragao indirecta do Estado compreende ainda um conjunto alargado de instituigdes com autonomia administrativa e financeira do Estado. Por um lado, o sector empresarial do Estado é composto pelas empresas publicas (nas quais o Estado detém a maioria do capital) — a titulo de exemplo, podemos destacar alguns centros hospitalares; e pelas empresas participadas pelo Estado, directa ou indirectamente (quando o Estado tem mais de 10 % do capital), como a TAP ou a Galp. A administracao indirecta do Estado é ainda composta pelas entidades reguladoras independentes, que operam nos sectores ptblicos onde ocorreram processos de privatizacdo. A estrutura da administragao inclui ainda a administracdo auténoma, que é composta pelas administra¢ées regionais (Agores e da Madeira), pela administracao local (municfpios e freguesias) e pelas associagdes ptiblicas, pessoas colectivas de natureza associativa, criadas pelo poder publico para assegurarem a prossecuc4o dos interesses ndo lucrativos pertencentes a um grupo de pessoas que se organizam com essa finalidade. As diferentes instituigées que compdem a estrutura da administra¢ao publica portuguesa mantém formas particulares de relacionamento com o governo. Enquanto as instituicées da administragao directa do Estado estéo hierarquicamente subordinadas ao governo, a administracao indirecta esta sujeita a orientago e fiscalizag4o por parte do governo. Assim, no segundo caso, as entidades tendem a operar com maior autonomia administrativa e financeira, sendo naturalmente responsdveis pela defini¢do dos seus objectivos e interesses. A complexidade da estrutura da administragdo publica é um indicador da sua import4ncia. A administracao publica é, em larga medida, o braco operacional do governo, que assegura as fungdes de gestdo, implementacao das politicas definidas por diferentes governos, tributacao, fiscalizacio e regulamentacéo. A forma como se estruturam as relagdes entre cidaddos, politicos e funciondrios piblicos tem registado evolugées significativas ao longo do ultimo século, reflectindo 0 equilfbrio de poderes entre esta triade. Este livro pretende, na primeira parte, apresentar estes equilibrios e a forma como a administracdo publica se relaciona com a estrutura politica. A fotografia da administracao publica apenas fica completa se analisarmos as suas disfuncées, que, em larga medida, espelham as conotagdes mais negativas que se atribuem a burocracia do Estado. Para reverter grande parte destas disfungdes, varios paises encetaram reformas profundas que viriam a afectar a estrutura da administragdo. Pensadas para impor eficiéncia e qualidade nos servicos, as reformas da Nova Gestéo Publica criaram novos contornos na estrutura da administragéo publica — particularmente pela via da fragmentacao institucional — e geraram novas formas de relacionamento entre as estruturas politicas e as estruturas responsdveis pela execucao das tarefas publicas. Este contexto geral permitiré enquadrar, na segunda parte, 0 caso portugués. Esta parte encontra-se dividida em trés seccdes principais. Na primeira secg4o, apresentam-se alguns dados da evolugao da administracdo publica portuguesa, com énfase no numero de funciondrios e na sua distribuigao por funcao, bem como o seu peso no total da populagdo activa e nas despesas correntes do Estado. A segunda sec¢4o descreve os diferentes momentos de reforma da administragao do Estado ao longo dos Ultimos cinquenta anos. Um olhar atento a estas iniciativas ajuda a compreender os progressos alcancados, as limitagdes sentidas e as mudangas de sentido motivadas por distintas orientagdes politicas em relag4o 4 administracao publica. A terceira e ultima seccdo procura abrir a caixa negra da administracao publica portuguesa, explorando quatro grandes temas: 1) gestdéo e avaliac4o do desempenho; 2) vinculos, carreiras e remuneracées; 3) qualificag4o e formacao do pessoal; e 4) lideranga e direccao. Esta obra termina com algumas conclusées e perspectivas de futuro sobre a administracao publica em Portugal. A trilogia do poder: a administragdo, os funciondrios e a estrutura politica O que é a administracao publica? A administragao publica pode ser definida como o poder de gestdo do Estado, que se manifesta no poder de regulamentar, tributar e fiscalizar, através dos seus érgios e outras instituicdes, tendo em vista a prossecugdo do servi¢o publico. Em todo o mundo, as administragdes publicas seguem um modelo de organizacao de tipo burocratico, idealizado no século xix, e que constitui, ainda hoje, a influéncia dominante no modo como se estruturam os servicos publicos. Algumas caracterfsticas das burocracias actuais séo muito antigas, com raizes na civilizagao egfpcia, na China antiga e no Império Romano, mas a forma de organizagdo burocratica remonta ao século xvm. A palavra «burocracia», com origem etimolégica nos termos bureau (escritério), de origem francesa, e kratos (poder), de origem grega, é atribufda a Jean-Claude Marie Vincent, ministro francés do século xvi, procurando designar o trabalho realizado em escritérios. O conceito de burocracia é frequentemente utilizado de forma pejorativa, para adjectivar o excesso de normas e procedimentos que podem tornar a estrutura administrativa ineficaz e, naturalmente, afectar a relacdo que o cidadio mantém com a maquina administrativa do Estado. Esta visio depreciativa surge em diversas obras literdrias, como Névsky Prospekt (1835), de Nikolai Gogol, Physiologie de l’employé (1840), de Honoré de Balzac, ou em diversos momentos da obra de E¢a de Queirés. O cinema de Terry Gilliam (Brazil, 1985) e as séries de televisdo Monty Python’s Flying Circus (1969-1974) e Yes Minister (1980-1984) contribufram também para a propagacao desta ideia satirica sobre a burocracia. Entre académicos, o conceito de burocracia aponta, contudo, para a racionalidade do aparato da administracao. Devemos a Max Weber, socidlogo alemao, identificar a administrag4o publica com uma forma de organizacao humana racional e instrumental, que idealmente actuaria de modo a assegurar a eficiéncia adequando os meios disponiveis aos fins pretendidos. Weber morreu em 1920, mas o seu legado para as administracées publicas de toda a Europa foi marcante e, ainda hoje, as administragdes publicas seguem a esséncia do modelo burocratico weberiano. Numa organizac4o burocratica, as actividades de rotina sio distribuidas pelos funciondrios e delimitadas através de regras coercivas a disposicao dos superiores hierarquicos. Para servir na burocracia, so necessdrias qualificagdes profissionais adequadas, pelo que a contratagao é realizada com base na seleccdo curricular, no mérito e na formacao especializada dos candidatos. De acordo com o modelo original de Max Weber, a burocracia moderna envolve as seguintes caracteristicas: 1. hierarquia clara associada a um sistema de carreiras em que a supervisdo dos niveis mais baixos é realizada pelos niveis superiores e os canais de recurso se encontram devidamente regulados; 2. a hierarquia é organizada de forma monocriatica e chefiada por uma Unica cabega (um director-geral, por exemplo); 3. a administracao baseia-se em documentos escritos cuja producao e reprodugdo é assegurada pelo corpo de funcionarios; 4. ha uma separac4o rigorosa entre o local onde o funciondrio exerce a sua actividade (bureau) e o seu domicilio pessoal, incluindo a propriedade do equipamento e dos dinheiros publicos; 5. a administragdo especializada pressupée treino especifico para as fungdes a desempenhar; 6. o funciondrio de uma burocracia plenamente desenvolvida exerce a sua actividade oficial a tempo inteiro durante o tempo de trabalho; 7. as regras sao estaveis, pormenorizadas e de facil aprendizagem. O conhecimento destas regras requer preparacdo técnica envolvendo conhecimento das leis, da jurisprudéncia e da pratica administrativa. © crescimento quantitativo das tarefas administrativas e a extensdo do dominio de interveng4o do Estado moderno a fungdes como a satide, a educaco e a seguranga social tornou-o cada vez mais dependente da burocracia. Este aumento quantitativo foi acompanhado por maior exigéncia de qualidade quer na provisdo de bens e servigos para a satisfagéo de necessidades anteriormente desconhecidas, quer no desenvolvimento e expans4o do comércio de bens e servicos, o qual obrigou a uma resposta da administracao. Em ultima andlise, o modelo burocratico e também a burocracia na sua forma consagrada vingaram, de modo convincente, em virtude da sua superioridade técnica. Enquanto forma de organizagao, a burocracia incentiva a extrema objectividade, optimiza a precisdo e a rapidez, remove a ambiguidade, promove a subordinagdo estrita e minimiza a friccAo e os custos com pessoal e material. O conhecimento dos processos por parte dos funciondrios e a utilizagao do argumento de «razédes de Estado» como justificagdo de cada acto administrativo constituem motivos adicionais para a continuidade e unidade desta forma de organizacao. Apesar de todas as transformagées societdrias, dos avangos tecnoldgicos e da globalizacgao, esta forma de organizacao persiste como dominante em todas as administracées publicas, independentemente do seu grau de desenvolvimento. A sua resiliéncia é um tributo ao brilhantismo de Max Weber, autor da formulagéo original da burocracia enquanto forma de organizacao. Mais do que destacar a racionalidade no modo de operar da administragaéo ptiblica, Weber considera a actividade da burocracia como indispensdvel ao funcionamento dos Estados. Quem so os funciondrios publicos? A conotacao negativa que pode existir em relacdo ao conceito de burocracia é extensivel aos funciondrios publicos. No jornal Distrito de Evora (n.* 8, 31 de Janeiro de 1867), fundado por Eca de Queirés, pode ler-se um exemplo caricatural: repartigées publicas atulhadas de empregados que nao trabalham, tribunecas de conselheiros que para nada servem, reformas para acomodar parentes e jornalistas. [...] Entra a gente por essas reparti¢des publicas, e vé-as atulhadas de empregados; mas a maior parte deles ocupam-se a ler periddicos ou a conversar com os amigos que os procuram, ou a escrever as suas correspondéncias particulares. Hd por 14 trés ou quatro pobres diabos que fazem todo servico; mas nem por isso tiram as pernas do atoleiro. Esses nao sao conselheiros, nem comendadores, e s4o os que tém menor fatia no orgamento. Contudo, nem sempre existiu esta conotagdo. Na sua concep¢ao original, Weber define a carreira burocratica como uma vocacio. Os funciondrios seriam treinados para uma funcdo remunerada, dentro de uma carreira, e deles se esperaria dedicagdo integral e exclusiva ao lugar. A lealdade do funciondrio obriga a que este se abstenha de retirar rendimentos ou outros proveitos da fun¢gao que no sejam os derivados do seu saldrio. O funciondrio da burocracia moderna nao estabelece uma relagdo com uma pessoa mas sim com fins impessoais e funcionais, e 0 seu patriménio nao se confunde com o patriménio do Estado ou da administracao. Com o crescimento do Estado-nac4o, os funciondrios ganharam elevado prestigio social, em larga medida associado a sua origem de estratos econémicos e sociais mais elevados. A posse de titulos académicos devidamente certificados amplificou _esta diferenciagao social bem como o elemento de estatuto associado a posigao do funciondrio de carreira. Estes ocupam os cargos de forma auténoma relativamente aos seus superiores politicos, e a sua escolha baseia-se nas suas capacidades funcionais e no seu mérito. Numa democracia plena, em que a opinido publica é intelectualmente desenvolvida, educada e livre, a nomeacao de incompetentes é evitada, pois pode resultar em consequéncias negativas na elei¢do seguinte para o partido politico responsdvel pela nomeagio. Nas burocracias publicas, o emprego dos funciondrios é para toda a vida, como forma de garantir a independéncia, evitar o despedimento por motivos politicos ou arbitrdrios e assegurar que o término da relag&o laboral, a ocorrer, se deve a razdes nao pessoais (apenas por incompeténcia, presume-se). O saldrio é a forma de compensag4o pecunidria do trabalho e é baseado na posi¢&o hierarquica e na antiguidade, e nao no numero de horas laborais ou no mérito. A carreira no servico publico desenvolve-se na hierarquia burocratica, dos niveis mais baixos aos mais elevados. Aos cargos mais elevados correspondem maior estatuto e maiores saldrios, pelo que o funcionario tfpico deseja ver consagradas, de forma mec4nica, as condigées de progressfo e promocdo. No final da carreira, uma pensdo de reforma é garantida ao funciondrio para assegurar rendimento para a sua velhice. Politica e administracéo Tal como vimos anteriormente, as instituigdes podem ter diferentes formas de relacionamento com o_ governo. Naturalmente, os funciondrios publicos estabelecem relagdes com as elites governativas, embora a natureza dessa rela¢4o possa ter evoluido. As primeiras abordagens teéricas a relacgéo entre os funciondrios da administragéo publica e a estrutura politica entendiam existir uma separacdo clara entre as duas esferas. Esta interpretacao classica — que tanto deve a Woodrow Wilson, 28.° presidente dos Estados Unidos da América e considerado por muitos como o pai da ciéncia politica — entendia que os politicos eleitos decidem sobre politicas publicas aprovando legislacao no parlamento e no conselho de ministros, enquanto os funciondrios publicos aplicam as leis de forma neutral e sem interferéncia dos politicos eleitos. Competiria assim aos politicos a definigao das linhas orientadoras das politicas puiblicas e aos administradores e funciondrios puiblicos a implementacdo destas segundo regras de boa gestéo e nao de acordo com critérios de oportunidade politica ou tempo eleitoral. Desta neutralidade e isencdo, emerge a necessidade de criagZo do estatuto do funciondrio, com carreiras préprias, a que aludimos. Nos estatutos estipulam-se os direitos e os deveres dos funciondrios publicos, bem como as circunstancias em que podem ser responsabilizados pelos politicos eleitos ou pela hierarquia administrativa. Além da ideia da neutralidade, estes modelos, que assumem que a administracdo e a politica sao esferas separadas, admitem que a administragao deve ser submetida a politica. Com efeito, em sistemas democraticos a delegacdo de competéncias decorre do eleitorado para os politicos eleitos, cujo mandato deve corresponder ao programa sufragado. Enquanto os politicos sao eleitos pela populacao, os funciondrios da administrag4o nao se encontram sujeitos ao escrutinio do voto. A ser assim, a administragao deve subordinar-se a politica, por via da legitimaga&o da sua acg4o. Por outras palavras, a politica deve exercer controlo sobre a administracao. A administragao, cabe cumprir a vontade do eleitorado por via da hierarquia e das suas competéncias técnicas especificas. Esta concepcao tradicional encara a politica e a administracao como actividades separadas, e assume que os dirigentes e funciondrios publicos nao tém qualquer papel no processo de tomada de decis&o. Contudo, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, esta concepcio comeca a mudar. Nessa altura, os estudos académicos realizados nos Estados Unidos sugerem que é problematico assumir a distingdo entre a politica e a administra¢o, ou entre a decisdo e a implementacao de politicas publicas. Por um lado, os ministros nao tém o conhecimento técnico especializado para decidir sobre todas as matérias, nem possuem toda a informacdo necessdria para o processo de tomada de decisdes, pelo que o envolvimento da administracao publica no processo de decis4o seria inevitavel. Por outro lado, o crescimento do Estado-providéncia provocou um aumento significativo do numero de funciondrios, nas administragdes ptiblicas dos paises ocidentais, a desenvolver um conjunto de tarefas administrativas cada vez mais alargadas. Conjugado com a inevitavel ambiguidade da legislacéo aprovada, este crescimento tornou invidvel o controlo directo dos funciondérios da administragdo publica por parte dos politicos eleitos e obrigou ao aumento do ntimero de dirigentes da administragao publica nomeados pelo poder politico. De igual forma, podendo ter um papel activo no processo de politicas publicas (ainda que formalmente nao participem na formulag&o de polfticas publicas), os funciondrios ptiblicos tém alguma margem de manobra na implementacio de medidas politicas, particularmente se a legislagdo nao anular todas as ambiguidades. Com efeito, a administragao publica influencia as politicas publicas através de recomendagdes ao poder politico e autoridades publicas (governo, parlamento, etc.). Administrar é, por isso, tomar decisdes sobre politicas publicas. O exemplo dos limites de velocidade nas estradas é esclarecedor deste argumento. O limite de velocidade padr&o nas auto-estradas portuguesas 6 de 120 quilémetros por hora. No entanto, é frequente constatarmos que os radares colocados pelos agentes da Guarda Nacional Republicana (GNR) estao programados para disparar apenas aos 140 ou até 150 quilémetros por hora. Além das questdes técnicas associadas 4 medig&o da velocidade via radar, hd uma _ componente de _ discricionariedade administrativa que é determinada internamente pelos responsdveis da GNR e que, na pratica, resulta numa reinterpretaco da lei no terreno. Vale a pena ainda lembrar que, embora a administra¢do publica esteja no final da rede de delegago de competéncias, é através dos funciondrios puiblicos que os cidaddos estabelecem o primeiro contacto com instituigées puiblicas. Assim, os funciondrios acabam por estar sujeitos a uma densa rede de influéncias, desde os cidad&os até outros stakeholders que tém interesse nas actividades da administragdo. Por fim, dificilmente poderemos conceber a ideia de um funciondrio que nao tenha as suas préprias preferéncias. Embora tecnicamente os dirigentes tenham preparacéo para executar decisdes e os politicos tenham preparagdo para tomar decisdes politicas, na pratica muitos dirigentes tém um papel muito mais importante na politica do que se poderia 4 partida pensar. Nenhum dirigente é sempre técnico ou neutro «nem homem, nem besta, mas estdtua», no sentido que ndo tem preferéncias e concorda de forma neutra com a decisdo politica no momento de implementacao das decisdes. Todos os dirigentes e funciondrios tém uma dimensio politica e técnica, que pode interferir mais ou menos na implementagao das decisées dos eleitos. Estes factores permitem compreender a diluicao da separacao da esfera politica da dimensdo técnica da maquina administrativa do Estado. Os dirigentes da administracao publica estabelecem a ponte entre os funciondrios e a estrutura politica e s4o, por isso, nomeados pela esfera politica. Tal permite — pelo menos teoricamente — que se reforce a estrutura de ligacZo entre a administracdo e a politica. Numa sociedade democratica, é legitimo que os dirigentes da administra¢ao publica estejam envolvidos no processo politico, ja que em sociedades democraticas existe sempre mais politica para 14 da decisdo. Este facto realca igualmente a importancia de analisar a relagao entre a actividade administrativa e a governacdo democratica. A expectativa que os cidaddos podem ter relativamente aos dirigentes da administrac4o publica numa sociedade democratica é uma atitude de responsabilidade ptiblica adquirida por via da educacao formal e da formagao profissional. Esta atitude inclui as qualidades consideradas desejadas noutros campos da gestdo, tais como: a eficdcia nas relagées interpessoais, a capacidade para delegar a autoridade, a capacidade para ligar a decisao com a sua implementacao (acc4o) e o dinamismo pessoal. Mais do que estas qualidades, os dirigentes da administragao publica devem estar imbufdos de um «espirito democratico», envolvendo todas as capacidades e energias dos membros da organizaco e obtendo a sua completa e zelosa participagao. Estas imagens da administracéo (e da sua relacéo com a estrutura politica) ocultam algumas disfungées burocraticas que tém caracterizado o funcionamento da administra¢ao publica ao longo do ultimo século. Disfungées burocrdticas Ao longo da segunda metade do século xx, a burocracia tornou- se sinénimo de ineficdcia e ineficiéncia. 0 crescimento do nimero de fungdes do Estado, associado a complexificacdo dos procedimentos administrativos para lidar com tarefas também elas cada vez complexas, fez que a palavra «burocracia» passasse a ser associada a longas filas de espera, lentidao no atendimento, procedimentos excessivos, funciondrios pouco expeditos e atenciosos e, em geral, pouca capacidade de resposta dos servicos. Esta imagem baseia-se largamente em experiéncias pessoais negativas e na partilha de maus contactos anteriores com os servigos publicos. Por seu lado, como resultado das rotinas do seu dia-a-dia, os funciondrios ptblicos desenvolvem preferéncias pessoais, simpatias e antipatias, estimas e discriminacdes relativamente ao publico com o qual contactam. As estruturas da administracdo publica foram pensadas, na sua origem, para a precisdo, a eficiéncia e a confianga. Contudo, a presenca de incentivos inadequados 4 melhoria do desempenho e as pressées exercidas pelo ambiente externo, associadas a exigéncia de mais e melhores servic¢os, resultaram numa resposta desajustada, quer pela incapacidade das estruturas, quer pelo défice de competéncias e formacdo dos funciondrios para lidar com a incerteza. A disciplina e a obediéncia a uma hierarquia garantiam, a partida, a seguranga da resposta da burocracia. O funciondrio publico era pressionado no sentido de cumprir a lei e as suas obrigacées, e a estrutura e organizacaéo da administracado exerciam pressdo sobre os funciondrios para serem metédicos, prudentes e disciplinados. Para operar com éxito, a administracao deveria atingir um elevado grau de previsibilidade e conformidade com os padrées prescritos de accao. Contudo, estas praticas tornaram-se, muitas vezes, mais intensas do que seria tecnicamente necessdrio, a fim de assegurar a fiabilidade necesséria da resposta. Como resultado, o cumprimento de regras e procedimentos-padrao passaram de instrumentos para a resolugdo de problemas a fins em si mesmas. Esta sacralizacao das regras acabou por interferir na realizacéo dos propésitos da organizacao. O formalismo e ritualismo desenvolveram-se e geraram uma incapacidade de a burocracia se ajustar 4 mudanga. O apego dos funciondrios as regras e nao aos objectivos da organizagao explica-se também, em larga medida, pela cultura legalistica e normativa em que assentaram as administracdes publicas da Europa Continental durante grande parte do século xx. O elemento central desta cultura s4o os chamados actos administrativos, isto é, as decisdes da administrag4o versando casos concretos. Ao contrario do que sucede nos paises anglo- sax6nicos, no 4mbito da common law, nos quais os funciondrios possuem algum grau de discricionariedade na aplicacao da lei a casos concretos, nos paises da Europa Continental, onde vigora o direito administrativo, essa discricionariedade é fortemente limitada. Se, por um lado, esta limitagdo da discricionariedade é compreensivel a luz da protecg4o de um conjunto de preceitos do Estado de direito, como sejam a defesa do interesse ptiblico e dos principios da racionalidade e imparcialidade, por outro lado, a rigidez com que a lei é aplicada inviabiliza a sua adequacg4o a casos particulares ou excep¢ées nao previstas na lei. A carreira burocratica assentava sobretudo em progressdes com base na antiguidade e salarios incrementais, o que reduz a pressdo para o desempenho com base no mérito ou na qualidade do servico prestado. Em resultado destes incentivos distorcidos, as regras assumem um cardcter simbélico em lugar da sua fun¢ao utilitaria. Outra consequéncia dos incentivos presentes nas organizagdes publicas é o desenvolvimento de um forte espirito de casta por parte dos funciondrios. A partilha de interesses e a defesa exacerbada dos seus direitos levam-nos a tentar bloquear tentativas de redefinicdo de procedimentos ou de avaliacao, quer por parte dos utentes quer pelos politicos eleitos. Por um lado, em relacao aos clientes, os funcionarios protegem-se mutuamente para evitar a retaliacio por desempenhos insuficientes. As reclamacées contra o funciondrio tendem a nao ter consequéncias praticas, devido a solidariedade que une a estrutura — uma manifestacdo do espirito de casta. Por outro lado, sao os funciondrios que controlam a informagao com base na qual os politicos (ou dirigentes nomeados politicamente) tomam decisdes. Tal permite que os funciondrios adquiram algum poder adicional, uma vez que — como sabemos — o conhecimento é em si fonte de poder. A escassez de informac4o impede a tomada de decisdo esclarecida; e, pelo contrario, 0 excesso de informacao torna-se impossivel de gerir para o decisor. A despersonalizacao das relagdes humanas gera conflitos com os utentes dos servigos ptiblicos. 0 conflito pode ser visto como decorrente do desajustamento entre as regras e procedimentos rigidos e as necessidades multifacetadas dos utentes. Os casos particulares s&o ignorados devido ao comportamento de categorizacéo do funciondrio. Esta disfungao, que no caso do sector privado custaria um cliente, nado tem consequéncias significativas no sector ptiblico, uma vez que os servicos nao operam em regime concorrencial. Em organizagées de natureza monopolista, sem alternativas de escolha para os utentes, a auséncia de avaliagao do desempenho dos funciondrios e dos servicos agrava a capacidade de resposta aos utentes. Assim, uma fonte estrutural de conflito é a press4o para o tratamento formal e impessoal quando aquilo que o utente deseja é consideracao individual e personalizada. As tarefas da burocracia nao podem ser levadas a cabo com base em critérios de relagdes primdrias (personalizadas). Qualquer tentativa de o fazer é confrontada com acusagées de favoritismo, nepotismo ou cunha, e objecto de veemente desaprovacao emocional. Ironicamente, esta desaprovacdo contribui, de forma latente, para reafirmar a necessidade de formalizacéo e manutengdo intacta da estrutura burocrdtica. Esta estrutura favorece a manutencdo do statu quo. Os funciondrios publicos sao treinados para nao pensar e para se submeterem as regras rigidas da organizacéo burocratica. Embora se reconheca que a administragao contém mais variaveis e influéncias impossiveis de prever ou controlar, as iniciativas assentes em ideias criativas, solugées heurfsticas e no «pensar fora da caixa» sao bloqueadas ou distorcidas para assegurar a submiss4o a autoridade legitima e evitar a alteracdo do statu quo. Como consequéncia, os recursos humanos da administrag4o nao sao suficientemente valorizados e desenvolvem frequentemente comportamentos «viciados», isto é, assentes na forga do habito e no medo de represalias, e nao no uso da raz4o. A organizacéo burocratica da administragao publica foi implementada inicialmente num contexto de elevada estabilidade no ambiente das organizagées, pelo que comegou por dar resposta as solicitagées do meio ambiente, n4o apenas no sector publico, mas também no privado. Grande parte dos principios da organizagdo cientifica do trabalho implementados por Ford nas suas fabricas passavam pela divisdo do trabalho e especializagao, regras rigidas, procedimentos bem definidos, andlise e descri¢gdo de fungées dos operarios, entre outras caracteristicas igualmente presentes nas administragées publicas ocidentais. Ford afirmava estar disposto a oferecer aos seus clientes tudo o que eles necessitavam, desde que fosse um Ford, modelo T, de cor preta. Com a crise de 1929-1932, surge pela primeira vez a consciéncia, no contexto do sector privado, de que nao é possivel produzir ignorando o mercado e as preferéncias dos clientes. Assim, © contexto concorrencial favoreceu a inovacao e a flexibilidade produtiva no sector privado, mantendo-se as organizagdes publicas 4 margem destas mudancgas até ao movimento pragmiatico dos anos 80 conhecido como Nova Gestao Publica (New Public Management). A Nova Gestao Publica introduziu uma légica mais préxima do mercado no seio da administrac4o publica e gerou, em alguns contextos, concorréncia dentro das organizagdes da administragao e entre elas. Contudo, a diminuigao da coesao interna e o aumento da necessidade de controlo revelam o erro crucial em que consistiu a tentativa de enxertar os modelos burocratico e de mercado. Ora, este deve funcionar com o minimo de direc¢ao (controlo), pelo que a tentativa de introduzir novos mecanismos de mercado mantendo velhos habitos de controlo burocratico aumentou as disfuncionalidades da administra¢do. Os conceitos e as praticas de gestao da qualidade (nao conformidades, normas ISO, controlo documental, etc.) confirmam igualmente esta ideia: os instrumentos de gest&o sao importados do sector privado, mas enxertados numa légica de cumprimento normativo-legal e nao, como seria desejavel, na expectativa de servir o cidaddo-utente. Contudo, a pressao exercida sobre as administragdes publicas contempor4neas para oferecer cada vez mais e melhores bens e servicgos forgou a sua adaptacdo para melhorarem a resposta ao cidad4o-utente. A consideracao dos valores e das necessidades das pessoas e o apoio social por parte da comunidade obrigaram a administragao publica a modernizar-se na sua resposta aos cidadaos. Democracia e administracao publica Desde meados do século xx que a separacdo entre politicos eleitos, que decidem sobre polfticas publicas, e administradores, que implementam essas politicas segundo regras de boa gestio, tem sido questionada. Por um lado, reconheceu-se o modelo de separacdo como normativo e irrealista, que dificilmente seria capaz de descrever e caracterizar o funcionamento da administragdo publica. Paul Appleby (1945) argumentou, no seu livro Big Democracy, que os funciondrios séo actores importantes do processo politico, nomeadamente no exercicio de discricionariedade administrativa. Os funciondrios estabelecem regras e procedimentos para o futuro e interpretam a lei, isto é, determinam como deve ser implementada na _pratica. Os dirigentes influenciam também as politicas publicas mediante recomendagées ao poder politico e as autoridades publicas (governos e parlamentos). Politica e administracgdo estdo interligadas, sendo que esta deve ser encarada, na sua esséncia, como politica — utilizando-se aqui 0 termo no seu sentido mais amplo e apartiddério. A administracdo deve, pelo menos em contextos democraticos, estar sempre relacionada com as solicitagdes do publico, e com a vontade publica expressa mediante decisées oficiais, formais e legislativas. Ha miltiplos exemplos da vertente politica da administracao publica, isto é, situagdes em que os funciondrios ptiblicos nao se comportam como agentes neutrais do poder politico e, pelo contrario, assumem escolhas divergentes das defendidas pelo poder. A actividade sindical nos diversos sectores da administragao indica que os funciondrios tém preferéncias politicas e se manifestam a favor ou contra as op¢des do poder politico. Mas a vertente politica também se expressa no dia-a-dia da actividade administrativa. Na implementacdo de politicas publicas, os funciondrios ptblicos sao confrontados frequentemente com uma mistura de pressdes politicas e administrativas, que levantam a questao de saber perante quem sdo responsdveis. Por um lado, operando como agentes da vontade politica, cabe-lhes prosseguir as finalidades definidas pelos eleitos em actos legislativos ou normativos, sendo por isso responsaveis perante o poder politico. Por outro lado, enquanto elementos da burocracia no terreno, sao dotados de conhecimento técnico especializado que os eleitos nao possuem e sao, por esse motivo, responsdveis perante a hierarquia administrativa. Nao raras vezes, estas orientagdes assumem natureza contraditéria, j4 que as motivacées politicas e de tempo eleitoral conflituam com a actuacao de cariz técnico fundada no conhecimento especializado. Na maioria das democracias da Europa Ocidental, o crescimento das fungdes do Estado e do ntimero de funciondrios da administracao publica ao longo da segunda metade do século xx provocou um aumento significativo do poder e da importancia dos burocratas. As greves em sectores fundamentais como a satide, os transportes ou a recolha de lixo transformaram os funciondrios ptiblicos em actores politicos, cujas opinides e exigéncias tém de ser levadas em consideragao pelos eleitos no momento de garantir a reeleicio. Ao definir regras e procedimentos para acesso aos servic¢os publicos, a administragao publica tornou-se um elo entre a politica e os cidadaos, filtrando as pressdes e as preferéncias destes em relacao aqueles. Uma administracdo insatisfeita origina cidadaos descontentes com o poder politico, pelo que os burocratas passaram a controlar parte da agenda politica, participando nas decisdes tomadas pelo poder politico, em particular naquelas que afectam o nivel de despesas publicas e emprego puiblico. Os dirigentes preocupam-se em proteger os programas publicos por que sao responsdveis e resistem a cortes nesses programas. Este sentimento de autoproteccdo é compreensivel, dado que, sem recursos orcamentais, tanto dirigentes como funciondrios se encontram limitados em poder, prestigio, progressdo na carreira, seguranca de emprego, orgulho no trabalho e desejo de servir o interesse ptiblico. Por outro lado, os beneficios dos programas publicos e outras prestacées sociais sao de natureza privada para os funciondrios publicos e beneficidrios, enquanto os custos séo colectivos, isto é, partilhados por todos a partir do Orcamento do Estado. A consequéncia desta expansdo de fungdes do Estado é légica: tanto politicos eleitos como funciondrios publicos tém incentivos para expandir a despesa e nao para a cortar. Estes factos explicam em grande medida o aumento do poder da burocracia na Europa Ocidental entre as décadas de 1950 e 1970. Em Portugal, o desenvolvimento do Estado-providéncia foi mais tardio, sobretudo a partir dos anos 80, pelo que este fendmeno também se fez sentir mais tarde. Além de tardio, sucedeu em Portugal em contraciclo com o que ocorreu, na mesma altura, no resto da Europa. A titulo de exemplo, o processo de nacionalizagées logo apés a revolucao de Abril de 1974 triplicou a dimens4o do sector empresarial do Estado portugués, tornando-o um dos maiores entre os paises da Organizacao para a Cooperacao e Desenvolvimento Econémico (OCDE) (Baklanoff, 1996). A crise petrolifera dos anos 70 e as dificuldades econémicas por ela geradas travaram esta expansiéo da burocracia nas democracias ocidentais. Assistimos, por isso, 4 procura de solugdes alternativas capazes de manter o nivel de servigos publicos prestados, mas recorrendo a adopgao de férmulas de gestéo privada por parte da administracéo publica que possibilitassem a limitagdo da despesa. As propostas de reforma inclufam, de acordo com Christopher Hood (1991): 1. a introdugdo de conceitos de gestéo privada, como sejam a definic¢éo de objectivos e alvos quantificdveis, e a sua mensuracao e avaliacao com base em indicadores de progresso e resultados; 2. a descentralizacdo de servicgos publicos para unidades mais pequenas (agéncias), capazes de competirem entre si de modo a aumentar a eficiéncia; 3. a introducao da competigao dentro dos servicos ptiblicos e a possibilidade de competirem com prestadores do sector privado capazes de prestar 0 mesmo tipo de servicos; 4. a concessao de servicos ao sector privado mediante atribuicado de contratos por via competitiva com base na sua capacidade de prestar servicos de modo eficaz, eficiente e sem sacrificio da qualidade; 5. a orientagdo da presta¢do de servicos para o cliente, enquanto contribuinte e financiador dos servicos publicos; 6. fazer mais com menos recursos, quer pelo aumento da produtividade dos servicos, quer sobretudo pela redugao dos custos associados a sua prestagdo. O impacto da Nova Gest&o Publica em Portugal também se fez sentir mais tarde, sobretudo durante a primeira década do século xx, Embora algumas iniciativas de reforma ao longo dos anos 90 tivessem por inspiracdo a Nova Gest&o Publica, a verdade é que o mantra «fazer mais com menos» sé se instalou quando surgiram os primeiros sinais de asfixia financeira e os défices publicos atingiram niveis preocupantes. Como qualquer outra iniciativa de reforma da administragdo publica, o movimento da Nova Gestdo Publica caracterizou-se por um conjunto alargado de éxitos e fracassos. Do lado positivo, é de sublinhar um aumento da capacidade de resposta dos servicos, que abandonaram o rétulo de «administrados» e passaram a considerar os utentes/clientes dos servicos publicos. Em alguns casos, a privatizacao e/ou concessdo de servicos a privados reduziu custos e melhorou a qualidade e a rapidez no atendimento. Noutros casos, os préprios servicos publicos beneficiaram desta reorientacio na promocao da qualidade (Oliveira Rocha, 2013). O lado menos positivo da reforma tem duas vertentes. A primeira prende-se com a propagacao de falhas de mercado tipicas dos servicgos publicos. Nos casos de privatizacao e/ou concessio de servicos ao sector privado em ambiente de monopélio, assistiu-se ao aumento dos pregos e a redugdo da qualidade como estratégias de maximizacéo do lucro. Em situacgdes mais extremas, os servicos foram concessionados a empresas que desenvolveram especializacéo na sua producdo, tornando invidvel a concorréncia em momentos futuros de concursos ptblicos para a renovacao das concessées. A segunda vertente negativa associada 4 Nova Gestao Publica relaciona-se com a fragmentagdo da autoridade na prestagao de servicos publicos. Em particular no contexto portugués, estas reformas reflectiram-se na tendéncia para a agencificacéo — ou seja, a criacdo de instituigdes semiauténomas, que passaram a assumir a responsabilidade por implementar politicas publicas. Este movimento de reforma administrativa multiplicou o numero de agentes na prestac4o de servic¢os publicos, tendo como justificagéo a escassez de recursos publicos e o aumento da complexidade dos problemas, como a pobreza e a exclusao social, o terrorismo e a seguranca internacional, as mudangas climaticas ou os desastres naturais, apenas para mencionar os mais dbvios. A dependéncia dos recursos e a natureza complexa destes problemas forgaram os governos a recorrerem ao sector privado e ao terceiro sector em diversos modelos de prestacao de servicos em rede e parcerias, tendo como finalidade a adopcio e implementacao de solugées. Este fragmentar de autoridade criou problemas de coordena¢gao e de responsabilizacao perante os governos e cidadaos. Por um lado, se o modelo burocratico obrigava a regulacao de processos dentro das organizagées, a gestéo de redes e parcerias com o sector privado obriga a interoperabilidade, isto 6, 4 programagao e gest4o das consultas, das transacgdes e da coordena¢4o entre organizagées. Por outro lado, enquanto na organizacdo burocratica a responsabilizagdo perante governo e cidaddos é facilitada pela unidade de comando associada a uma tnica hierarquia administrativa, o envolvimento de miltiplas organizacées privadas na prestacdo de servicos cria dificuldades na responsabilizag4o dos diferentes agentes, uma vez que estes nao se encontram vinculados por via hieraérquica, mas sim por nexos de contratos. As parcerias da administragéo com organizacées do sector privado sao frequentemente vitimas das diferengas de horizontes e escalas temporais, conflitos de interesses, valores ou identidade, desequilibrios de poder, fraqueza das liderangas e falhas de comunicacao. Todos estes problemas originaram dificuldades de resposta e prestacdo de contas perante os cidadaos, cada vez mais exigentes em relaco 4 sua administragao. Os equivocos da Nova Gest4o Publica tornam evidente que a administragao deve orientar-se por princfpios constitucionais e levar em considerac&o a nocao de «publico». As influéncias do sector privado podem chocar com os valores democraticos, em particular com critérios de equidade, justica, representacao e participagao. A administracéo publica nao pode ser gerida de forma puramente técnica ou politicamente neutra. Trata-se de uma actividade indissocidvel da politica e da visio da sociedade civil, isto 6, da nog&o de «publico», e é largamente influenciada pela ideologia e pelos valores dominantes. As questdes mais amplas de administragao publica prendem-se com os valores de cidadania, de justiga e equidade, de ética no servigo ptblico e de eficiéncia na formulagéo e adopcao de politicas publicas. A administragdo ptiblica contemporanea é concebida como governacdéo e nao apenas como gest&o ou administra¢ao do sector ptiblico. De acordo com esta perspectiva, os conceitos de cidadania e interesse publico s&o conceitos normativos centrais para explicar o comportamento administrativo. Nesse sentido, os funciondrios publicos resultam da unido de trés vertentes: uma vocacdo, um emprego e uma carreira. Em particular, 0 conceito de vocacéo para o servico publico torna o emprego no sector publico tinico, ja que exige dos funciondrios capacidade para operacionalizarem _ politicas publicas e programas, capacidade para manterem processos e didlogo no interesse publico, e conhecimento de técnicas para estimular a participagao na vida politica e publica e incentivar a cidadania. A importancia desta vertente é realcada pela ideia de que a complexidade pés-industrial e a burocracia de massas requerem uma cidadania activa (Stivers, 1990). A administracao publica portuguesa A administracgao publica nasceu, evoluiu e modificou-se em articulacdo com a democracia nos Estados europeus. Em Portugal, compreender a administracao publica e a pratica administrativa requer uma contextualizacio histérica e um conhecimento aprofundado do aparelho de Estado, que determina a administracao e é por ela influenciado. A administracao deve ser capaz de fazer aquilo que dela se espera com eficacia e eficiéncia, mas, simultaneamente, o seu poder deve ser limitado democraticamente, de modo a nao constituir ameaca a liberdade individual. Em modelos de delegacdo de competéncias préprios de democracias parlamentares, nao podemos separar a administracao publica da esfera politica, uma vez que tal podera significar, em Ultima andlise, uma tecnocracia fora de controlo e sem prestar contas ao poder politico. Por isso, a administracéo publica actual nao pode estar dissociada do Estado democratico que deve servir. A partir da década de 1980, sob a influéncia de um conjunto de reformas empreendidas nos paises da OCDE — apelidadas de Nova Gestao Publica —, assistimos a uma crescente preocupacdéo com a modernizaco e eficiéncia da administrag4o publica, através da redugao dos seus custos e da sua dimensdo. Em paralelo, procurava-se promover a qualidade dos servicos e dos processos, introduzindo, como vimos anteriormente, uma légica de mercado na gesto de servicos publicos. A criagaéo de agéncias com maior autonomia administrativa e financeira — que em Portugal ficaram conhecidas como institutos ptiblicos — tinha como objectivo principal promover uma gest4o mais racional, quase empresarial, dos servigos publicos. Ainda que a preocupacao com a eficiéncia seja compreensivel a luz da redugao de recursos disponiveis, este foco nao deve resultar no negligenciar da responsabilidade moral dos funciondrios e dirigentes perante os cidaddéos numa sociedade democratica. Se é verdade que os recursos sao limitados e a definicao das tarefas da administrag4o central implica escolhas, nao é menos verdade que a poupanga de recursos nao pode ser feita a qualquer custo. O encerramento de tribunais ou centros de satide no interior do pais até pode ser justificado por razdes de eficiéncia e de poupanga de recursos, mas levanta sérias questdes de equidade numa sociedade democratica. Independentemente do local onde residem, todos os cidadaos est&o sujeitos a idénticas obrigacées fiscais, pelo que nao é admissivel que 0 acesso aos servicos publicos seja substancialmente diferente consoante se resida nas grandes cidades ou numa aldeia remota do interior. Como é evidente, algumas diferengas em qualidade, tempo e distancia de acesso s&o inevitaveis, pelo que a principal dificuldade reside em equilibrar duas forcgas tendencialmente contraditérias: por um lado, a necessidade de escala associada a servigos publicos eficientes e, por outro, a proximidade dos servicos dos cidadfos em resposta a pressdes democraticas de equidade. Embora neste dominio se tenham verificado progressos significativos na administrag4o publica portuguesa, persiste ainda a ideia de que, por vezes, ela esta demasiado distante do cidadao. Dirigimo-nos a servicos ptiblicos e recebemos respostas que nos desagradam em virtude das exigéncias que a _ propria administragao levanta aos cidadéos em termos processuais, consideradas demasiado complexas e abstractas para que o comum dos cidadéos as perceba. Uma administragao publica democratica deve caracterizar-se pela orientacdo para o servico publico e controlar as suas actividades pelos resultados dos servicos prestados. As deficiéncias na representagao das agéncias ou reparticdes burocraticas que tomam decisées ocorrem sobretudo por trés razdes. Em primeiro lugar, os mandatos emitidos por érgaos representativos, como o governo ou a Assembleia da Republica, para as agéncias ou repartigdes publicas sao demasiado genéricos, e sdo as decisdes do dia-a-dia que os dirigentes e funciondrios tomam que sao percepcionadas como politicas publicas por parte dos cidadaos. Segundo, a mudanga é encarada como demasiado lenta e incremental no contexto das democracias, e os cidadaos que sentem os problemas como urgentes tendem a condenar um sistema que encaram como excessivamente lento, conservador e ao servico de interesses instalados. Por ultimo, a administracao central é uma organizagio de larga escala que transmite prepoténcia e impessoalidade, muito frequentemente indiferente ao cidadao. A melhor forma de compreender a esséncia do Estado administrativo em Portugal consiste em associar dois aspectos aparentemente contraditérios do sistema. Por um _ lado, a administracdo encontra-se mergulhada na linguagem do juridiqués das leis e dos regulamentos, dos quais resultam formalismos excessivos, requerimentos desnecessérios e papelada arbitréria que o cidad&o médio desconhece ou n&o compreende. Estas praticas so indispensdveis para garantir a manuten¢ao do statu quo. Por outro lado, o sistema admite os conhecimentos e as cunhas como valvulas de escape para a impoténcia do cidadao perante a administragdo, e reconhece as normas informais como mecanismos aceitdveis para evitar a paralisagao desse mesmo sistema. Por exemplo, um cidadao vitima de erro processual da Autoridade Tributdria ou da Seguranga Social pode passar anos a lutar contra uma divida por que nao é responsdvel, mas, se conhecer alguém dentro da administracdo, consegue facilmente resolver esse equivoco, bastando para tal que a substancia do erro seja reconhecida e o problema corrigido pelo seu conhecido, A sensacgio de proximidade do poder politico e da administragao esté ausente em Estados muito centralizados. Portugal é um dos Estados mais centralizados da Europa Ocidental e, nesse sentido, ha uma clara sensag4o de distancia em relacao 4 administragao central. Uma administragdo mais préxima dos cidad&os, que valoriza a cidadania e presta contas das suas actividades ajudaria a combater este tipo de sentimento. A montante, a desconcentragio geografica dos servicos, a descentralizacao para os niveis municipal e intermunicipal e a digitalizagao dos servicos publicos séo formas de reduzir esta distancia. A jusante, o provedor de Justiga tem como principal missao corrigir abusos e iniquidades e tratar queixas dos cidadaos contra a administracao. Os recentes movimentos enfatizando a participacdo dos cidadaos na administragdo, a co-produgdo de servicos publicos e a descentralizacao de fungées para niveis subnacionais permitiriam aumentar a representacao dos cidadaos e o sentimento de eficacia da participagaéo popular no governo. As experiéncias com orgamentos participativos, tanto a nivel nacional como local, tém esse potencial. Tanto a descentralizagao politica como os circulos uninominais permitem que os cidaddos se sintam mais préximos dos representantes que elegem e dado mais garantias de que a administra¢ao vai prosseguir os objectivos a que se propée. A primeira seccdo desta parte procura tracar a evolucaio e crescimento da administragfo publica portuguesa em termos numéricos, focando a atenc4o na introdugdo do Estado social em Portugal apés 0 25 de Abril de 1974. A evolucdo da administracdo publica portuguesa O 25 de Abril de 1974 veio pér termo ao modelo corporativo. Na opinido de Oliveira Rocha (1991), as corporagdes e outras estruturas corporativas do Estado Novo existiam apenas no papel, e Salazar falhou em institucionalizar as estruturas corporativas do Estado Novo por causa da existéncia de um sistema administrativo poderoso e altamente centralizado. Este autor propée o modelo do Estado administrativo como alternativa para explicar a evolugéo da administracdo publica portuguesa. A institucionalizag4o da burocracia em Portugal permitiu o longo periodo de estabilidade a que assistimos durante o Estado Novo e facilitou a transigéo para a democracia, contribuindo também para a continuidade de grande parte da elite burocrdtica. Apesar do saneamento dos altos quadros dirigentes mais préximos do Estado Novo no momento imediato apés a Revolugao, a renovagao foi manifestamente insuficiente para modificar a cultura organizacional presente na administra¢ao publica portuguesa. Apesar desta possivel continuidade na transic&o entre regimes, 0 perfodo democratico alterou, de forma significativa, o volume e a estrutura da administracao publica. Tal como pode confirmar-se no grdfico da figura 1, o nimero de funciondrios da administracao publica cresceu de forma sustentada até 2011. Neste perfodo, o aumento da intervencio do Estado veio gerar novas oportunidades e fontes de poder para a elite burocratica, cuja importdncia cresceu perante a instabilidade governamental e a fragilidade dos partidos sentidas durante a primeira década de democracia. Figura a Emprego nas administracées publicas central, regional e local (1968-2015) 800 700 600 500 400 300 200 100 ° PO or g & Oh cA 2 wy nh ab LLP SIS PIPE E ALPS I SE PS gs Fontes: OGAEP/IME, PORDATA O numero de funciondrios ptblicos mais do que duplicou entre 1968 e 1979. Para este aumento, muito contribuiu a expansdo das fungées do Estado, em particular nos sectores da educacao, satide e seguranga social. Em paralelo, este aumento reflecte o papel do sector pUblico na absorc¢éo dos recursos humanos que se tornaram excedentdérios em virtude do processo de descolonizagao. Por fim, nao deve ser desconsiderado o peso do programa de nacionalizacgdes, que estenderam o papel do Estado na economia, contribuindo com cerca de 10 % do emprego publico (Corkill, 1999). A tendéncia de crescimento manteve-se até 2005, com a administragéo publica central a atingir um valor maximo ligeiramente acima dos 560 mil efectivos. De 2005 até hoje o numero estabilizou, tendo-se verificado até um decréscimo, em virtude da conteng&o nas contratagées associada a intervengao da troika e a politica de reformas e substituicées baseada na Idgica «saem dois, entra um». Actualmente, a percentagem de funciondrios publicos em funcdo do total da populacdo activa é de 15,2 %, ligeiramente abaixo do valor médio registado no conjunto dos paises da OCDE (18,06 %) (OECD, 2017). A produtividade na administrac4o publica nao deve ser medida em custos de trabalho, j4 que os custos com pessoal estao dependentes da antiguidade e as organizacées com trabalhadores mais velhos seriam consideradas menos produtivas, devido aos salarios mais elevados que resultam das progressées salariais. Contudo, o congelamento das carreiras durante quase uma década veio deitar por terra esta recomendacdo genérica quanto a avaliac4o da produtividade, uma vez que sem progressdes 0 peso dos salaérios passa a depender fundamentalmente do nimero de funciondrios. Como este numero tem vindo a diminuir desde 2005, ha razées para acreditar num aumento substancial da produtividade da administraco publica central, pelo menos a julgar pela redugdo significativa das despesas com pessoal. Contudo, esta ideia deve ser temperada pela possibilidade de a redugdo de pessoal ter ocasionado uma redugdo do nivel e/ou qualidade dos servicos ptiblicos prestados, 0 que em si constitui uma diminuigdo de produtividade. A massa salarial em proporcao da despesa total tem vindo a decrescer desde 2003, e de modo muito acentuado a partir da crise das dividas soberanas iniciada em 2008 (figura 2). Em contraste com as despesas com pessoal, as prestag6es sociais em percentagem da despesa total nao tém parado de subir desde 1992, apenas com algumas quebras pontuais em 2003, 2011 e 2013, representando hoje 60 % da despesa total. A ideia fortemente propagada de que a administracdo publica portuguesa é dispendiosa é, em boa verdade, errénea. Se Portugal tem um Estado social caro, nao é certamente por causa da sua administracao; com todos os seus defeitos, ela tem sido cada vez menos responsdvel pela despesa. HA miltiplas razdes para explicar a subida da percentagem das prestagdes sociais (transferéncias correntes, figura 2), mas se algo se pode afirmar é que este aumento espelha a generosidade do Estado social portugués, porventura excessiva para a sua capacidade de o pagar. Figura 2 Despesas correntes do Estado: total e por classificagao econdmica (%) 70 50 40 30 20 10 ° DPE LPP PIP PDP II PI LS Sg - Despesas com pessoal ++ Aquisigio de bens e servicos — —Juros e outros encargos ——Transferéncias correntes —H— Subsidios Outeas despesas correntes enter: DGOMME, PORDATA Se a dimensdo da administracéo publica portuguesa sofreu consideraveis alteragdes durante o perfodo democratico, nao é menos verdade que também a sua estrutura sofreu importantes modificagdes. Como notdmos, Portugal nao ficou imune as reformas da Nova Gestao Publica que foram encetadas em varios paises da OCDE na década de 1990. A modernizacio da administra¢ao publica portuguesa alicergou-se, fundamentalmente, na tendéncia para delegar competéncias em institutos publicos. Embora nao se trate de uma novidade no enquadramento da estrutura administrativa — pois j4 em 1974 existiam cerca de 22 institutos publicos —, o seu numero aumentou consideravelmente até 2002, altura em que havia 440 institutos publicos em Portugal. Esta alteracdo estrutural foi acompanhada por um aumento do ntimero de empresas ptblicas — na sequéncia do processo de nacionalizagdes. Embora a segunda revisdo constitucional, em 1989, tenha posto termo ao principio da irreversibilidade das nacionalizagdes, permitindo que se iniciasse, a partir daquela data, um processo de privatizacées, © conjunto de entidades empresariais do Estado (ou com participacao do Estado) é, ainda hoje, considerdvel. Feita a sintese da evolucdo da administracao publica portuguesa apés 1974 e até aos dias de hoje, 6 chegado 0 momento de reflectir sobre as medidas de reforma do Estado e modernizacdo administrativa adoptadas e implementadas ao longo das ultimas quatro décadas. Areforma da administracdo do Estado: em busca do Santo Graal Ao longo deste ensaio, temos destacado alguns problemas com que a administracgéo publica em Portugal se tem deparado. Contudo, a histéria tem gravado importantes marcos que sinalizam os esforcos para reformar a administracao. £ certo que se trata, em larga medida, de esforcos avulsos e sem uma orientag4o estratégica — reflexo da rotatividade partiddria no governo e da forma como diferentes partidos politicos tendem a encarar as solucdes para os problemas da administragdo. Rever estes marcos é, contudo, um importante exercicio para recuperar a meméria, contribuindo, naturalmente, para compor a histéria da evolugao da administracao portuguesa. A primeira tentativa de reformar a administrag4o publica portuguesa surge no final da década de 1960, largamente coincidente com a Primavera Marcelista, indiciando uma ideia de modernizacio, assente na promoc&o do desenvolvimento econémico e na necessidade de construir o Estado social. Caberd ao Secretariado da Reforma Administrativa, criado em Novembro de 1969, reflectir e fazer propostas sobre as estruturas orgdnicas da administracao, a situacgéo e o regime dos funciondrios, o funcionamento dos servicos e a relacao entre a administrac4o e os administrados. Estas reformas nao chegam a sair do papel até ao 25 de Abril. A primeira década apés a Revolugao caracteriza-se por grande instabilidade governamental, com dez governos em dez anos. Neste cendrio de instabilidade, a administra¢ao publica assegurou alguma continuidade nas polfticas publicas, embora os saneamentos do pessoal administrativo do Estado Novo e a ocupag4o temporaria de sectores-chave da administracao publica pelo Partido Comunista Portugués tenham tornado invidvel qualquer proposta sustentada de reforma administrativa. Apesar da sua importancia, a profissionalizag4o da administra¢4o publica estava longe de ser uma preocupacao das elites polfticas do periodo pés-1974. A centralidade das questées eminentemente politicas e a recuperag4o da ordem social e econdmica do pais desviaram a atengdo dos decisores politicos da administragao publica. Assim, além de desacreditada, a administracao publica caracterizava-se pelo baixo nivel educacional dos seus funciondrios. E apenas apéds 0 pedido de adeséo A Comunidade Econémica Europeia que Portugal inicia uma trajectéria para garantir a profissionalizagao da administragado publica. Estes esforcos reflectem-se na criacdo de formacao especializada para funciondrios e dirigentes da administracao publica, mas sobretudo nas reformas institucionais. Podemos, por exemplo, considerar a fundacao do Instituto Nacional da Administragao (INA), em 1979, ou a criaco do Centro de Estudos e Formagao Autdrquica (CEFA) em 1980, como elementos decisivos para impulsionar a reforma administrativa apéds meados dessa década. Também em 1979, foi aprovado o primeiro Estatuto do Dirigente da Administragao Publica, que reflecte uma tentativa de impor nova dindmica na relac&o entre a ctipula directiva e os partidos no governo. Este estatuto eliminou a nomeacao vitalicia dos dirigentes herdada do modelo anterior. A primeira reflex4o teérica sustentada por um reduzido nimero de especialistas foi desenvolvida pelo Gabinete de Estudos e Coordenagao da Reforma Administrativa (GECRA), criado em 1982, sob responsabilidade de José Meneres Pimentel, ministro da Justica e da Reforma Administrativa. As preocupacées iniciais do GECRA incidiram em vertentes como a desburocratizagao e simplificagdo administrativa, a relaciéo administracao- administrados, a formacao dos dirigentes, as carreiras da fun¢gao publica, e a politica de emprego e de formaco profissional. Os trabalhos do GECRA influenciaram de forma acentuada a estratégia de reforma administrativa seguida apéds 1986 pela Secretaria de Estado da Modernizacao Administrativa (SEMA). Desburocratiza¢ao e desinterven¢ao na administracao publica portuguesa £ a partir de 1986, com a criagdo da SEMA, que o tema da reforma do Estado entra na agenda politica. Esta Secretaria de Estado assumiu a missdo de modificar estruturas, processos e praticas enraizadas na administra¢4o portuguesa, resultado de décadas de imutabilidade durante o Estado Novo. O rejuvenescimento dos quadros da administragao publica e a introdugdo de agentes de mudangas nos servicos contribuiram para reorientar a administracéo dos procedimentos para os cidad4os como clientes dos servigos publicos. As primeiras iniciativas, prosseguidas durante os dois primeiros governos liderados pelo primeiro-ministro Cavaco Silva, visaram sobretudo a simplificacg4o administrativa, a desburocratizacao e a desintervengdo do Estado na economia. Inspirado por principios gestiondrios, este movimento procurou mudar a cultura organizacional da administracao publica portuguesa, até entdo muito focada no cumprimento de procedimentos formais como um fim em si mesmo e com desrespeito pelos cidaddos enquanto utentes dos servicos ptiblicos. O poder politico assumia que bastava aprovar legislacao para modificar comportamentos de funciondrios e agentes da administracao. O percurso da reforma da administrag4o do Estado pode ser definido por um conjunto de reformas e medidas avulsas, sem grande orientacao estratégica. Porém, dado o ponto de partida, as «Mil Medidas de Modernizagéo Administrativa» tiveram impacto assinaldvel na reforma administrativa. Entre outras iniciativas, apareceram as caixas de comentarios e sugestées, alargaram-se hordrios de atendimento e meios de pagamento e enfatizou-se a melhoria do relacionamento administragdo- cidad&os por via das acgdes de formagao em atendimento ao cliente/utente. A publicagao e entrada em vigor do Cédigo do Procedimento Administrativo (CPA) em 1992 representa o consolidar das iniciativas neste perfodo. Embora motivado pelas habituais boas intengdes associadas 4 aprovacao de legislagao, o CPA veio proporcionar novos direitos aos cidaddos no seu relacionamento com a administrac¢4o e introduzir maior celeridade e certeza nas decisdes administrativas, cuja morosidade e arbitrariedade eram conhecidas. A aprovacao do CPA nao operou milagres, mas passou a dar algumas garantias aos cidad4os. E também durante este periodo que se iniciam as primeiras experiéncias de subcontratacgéo e concessio de servicos a privados, em particular servicos de limpeza, seguranca e refeigdes. Em alguns casos, os resultados s4o pouco satisfatérios: a contratagao em mercados monopolistas, como sucedeu nas cantinas dos hospitais, reduziu a qualidade sem que o preco diminuisse. O Dia Nacional da Desburocratizacao foi criado em 1990 por Resolugao do Conselho de Ministros e celebra-se anualmente na ultima quinta-feira de Outubro. Os seus objectivos eram sobretudo simbélicos: sensibilizar e dinamizar vontades, promover iniciativas e mobilizar recursos, na perspectiva de a administragao publica conseguir dar resposta as exigéncias dos cidados e organizacdes que com ela interagem. Neste dia debatem-se problemas processuais, bem como formas de modernizar tecnologicamente a administragdo publica e de simplificar os seus processos. Sao apresentados sistemas inovadores, entre outras iniciativas. A paix4o pela qualidade na administracao publica portuguesa Um trago caracteristico da administracao publica portuguesa é a adesao a modas. No infcio dos anos 90, as administracdes mais avancadas da Europa tendiam a enfatizar a qualidade enquanto elemento central da gestaéo e modernizacio administrativa. Em Portugal, varias iniciativas foram adoptadas neste dominio, incluindo a criac&o do Conselho Nacional da Qualidade (1992), a aprovacao da Carta da Qualidade dos Servicos Publicos (1993), o Concurso da Qualidade em Servicos Publicos e a formacao avancada em Gestao da Qualidade para dirigentes superiores da administra¢o publica. Contudo, tal como sucedeu com outras modas, também a atengao na qualidade foi rapidamente tomada de assalto pela rigidez do direito e do juridiqués. As normas de gestaéo da qualidade nao sao valorizadas pela sua substancia ou contetdo, tornando-se o cumprimento de muitos procedimentos mera obediéncia cega a regras definidas por um qualquer gabinete de qualidade presente em centenas de organismos da administra¢ao. Nenhum exemplo ilustra melhor esta tendéncia obtusa do que os Sistemas de Gestao e Avaliagao da Qualidade nas universidades. Os docentes séo forcados a preencher formuldrios de auto- avaliacao das suas disciplinas em que lhes sao proporcionadas trés alternativas — uma positiva, uma neutra e outra negativa. Os inquiridos sao forgados a justificar opinides nos extremos, mas nao a escolha da alternativa neutra. Acossados por carga de trabalho excessiva e pelo mantra «publicar ou perecer», e sem qualquer implicagéo para a melhoria da substancia ou do contetido destes inquéritos, sé os mais dedicados devotam tempo ao seu preenchimento empenhado e sincero. A maioria considera este processo, e com raz4o, vazio de contetido e sem qualquer impacto na qualidade do ensino ministrado. Estes inquéritos sao preenchidos todos os semestres e para todas as disciplinas, e tratados como mera obrigac&o burocratica sem sentido. Procurou-se impor esta ldégica de qualidade no ensino universitario, quando as boas prdaticas internacionais recomendam que a qualidade seja aferida tanto a priori (no momento da contratacgéo dos docentes) como a posteriori (nos resultados dos alunos). No final dos anos 90, vive-se um periodo de euforia. O estilo assente no didlogo do XIII Governo Constitucional, chefiado por Anténio Guterres, permite fazer aprovar uma série de novos regimes jurfdicos da fung4o publica, dos quais se destacam o Estatuto do Pessoal Dirigente (Lei n.° 13/97), 0 recrutamento e seleccéo de pessoal (Decreto-Lei n° 204/98), o ingresso e progressféo nas carreiras de regime geral, bem como os respectivos saldrios (Decreto-Lei n.° 404-A/98) e a mobilidade na fun¢gio publica (Decreto-Lei n.° 190/99). E criado o Férum Administrac40/Cidadaos para prosseguir, de forma colaborativa, alguns dos objectivos dos governos anteriores: inventariar, estudar e propor solugées de simplificag4o, de desburocratizagao e de melhoria da qualidade dos servigos prestados pela administracgao publica aos cidaddos (Resolugao do Conselho de Ministros n.° 110/96). A presenca do Livro de Reclamagdes nos servicos publicos passa a ser obrigatéria, coroldrio da politica de promocao da qualidade iniciada, sobretudo, apés a publicagao do Relatério Gore nos Estados Unidos. Conjuntamente com o livro Reinventing Government (1992), de David Osborne e Ted Gabler, o Relatério Gore (1994) serviu de inspiracdo a muitos governos interessados em reestruturar e modernizar as respectivas administragdes. O movimento de reinvengao do governo deu também origem ao lema «menos Estado, melhor Estado», que seria repetido por diversos executivos ao longo das duas décadas seguintes. E também durante o primeiro governo de Anténio Guterres que surge a primeira Loja do Cidadao (em 1999). O conceito é simples: concentrar num mesmo edificio um conjunto alargado de servigos da administragao publica, de modo a poupar deslocagées aos cidad4os. A orientagao para a qualidade mantém-se no segundo governo deste primeiro-ministro. A presenga de Portugal no Quality Steering Group, conjuntamente com a Austria, a Alemanha, a Finlandia, a Comissao Europeia, o Instituto Europeu de Administrag4o Publica (EIPA), a Fundag&o Europeia para a Gest&o da Qualidade (EFQM) e a Academia Speyer, demonstra a importéncia que a reforma administrativa e a promogdo da qualidade dos servigos publicos assumem por esta altura. A actividade do Quality Steering Group culmina com a aprovacao no Porto, em Fevereiro de 2000, e a apresentacdo em Lisboa, em Maio, do modelo CAF (Common Assessment Framework), que visava promover a auto-avaliagdo dos servigos publicos. Adoptado de modo entusidstico em alguns servicos da administracdo, dos quais se destaca o Instituto de Gest&o Financeira da Seguranca Social pelas diversas iteracgdes na sua utilizagao, o modelo CAF caiu rapidamente em desuso, reforgando a ideia de que a relacao da administra¢ao publica com a qualidade é, na maioria das vezes, pontual e passageira. Em resultado de década e meia de reformas administrativas (1986-2001), a administracgao publica portuguesa modernizou-se. Varias tendéncias internacionais influenciaram este processo de reforma: cidadaos-clientes no centro da actividade da administracao; aten¢4o em missées e resultados, em detrimento do primado das regras, regulamentos e recursos; promocao da delegac&o de competéncias tendo em vista a maior participacao dos colaboradores e outros interessados; estimulo as parcerias entre os trés sectores (publico, privado e sociedade); e recurso a mecanismos de mercado por garantias de melhor servicgo e nao por razdes meramente ideoldégicas ou orgamentais. As medidas aprovadas no periodo 1986-2001 foram muitas vezes influenciadas pelos principios da Nova Gest4o Publica, mas a sua adopcdo sofreu a influéncia de dois problemas centrais. Por um lado, nem sempre as iniciativas se encontravam articuladas entre si, resultando em efeitos contraditérios. Por exemplo, a concessao da exploracao de servicos publicos ao sector privado possibilitou reduzir custos, mas foi incapaz de manter a qualidade, como sucedeu com frequéncia na externalizagao dos servicos de cantinas no sector da satide, isto apesar de a qualidade na administraco publica fazer parte da retérica dominante das medidas reformadoras. Por outro lado, enquanto o discurso da eficiéncia aparecia regularmente associado a desburocratizacao e a simplificacéo administrativa, o didlogo defendido por Anténio Guterres originou a cedéncia a interesses corporativos, que tornaram a administrac4o menos eficiente, quer por via dos abusos nas nomeagées partiddérias de dirigentes, quer pela admissdo de mais de cem mil funciondrios para a administracado publica durante os seus dois governos (figura 1). Por paradoxal que possa parecer, as alteragdes ao enquadramento legal da administracdo publica portuguesa ao longo da década seguinte acabariam por ser muito mais articuladas entre si do que havia sucedido nos quinze anos anteriores. O enquadramento legal construido entre 2003 e 2009 é consistente com os principios da Nova Gestdo Publica e constitui um todo coeso tendo em vista a sua aplicagao. Nova Gestao Publica A queda do XIV Governo Constitucional (o segundo liderado por Anténio Guterres) em 2001 marca uma mudanga de ciclo. Por entre os discursos de maior contengao orgamental que permearam o mandato do primeiro-ministro Durao Barroso, retoma-se a énfase gestiondria na reforma da administracao publica e a retérica «fazer mais com menos». 0 momento mais emblematico do periodo 2002-2005 é a adopcao do novo Sistema Integrado de Avaliagao do Desempenho da Administragao Publica (SIADAP) assente nos princfpios da gest&o por objectivos (GPO) proposta por Peter Drucker nos longinquos anos 50 do século xx (Drucker, 1954). A GPO é uma técnica participativa que busca estabelecer objectivos claros e mensurdveis para toda a organizacdo. Os objectivos estratégicos sao definidos pelos dirigentes superiores e tornam-se a base de negociac4o dos objectivos no nivel hierérquico imediatamente inferior, e assim sucessivamente, até aos niveis mais baixos. Idealmente, num sistema completo de gestao por objectivos, cada individuo e cada unidade tém um conjunto de objectivos operacionais que guia o seu desempenho ao longo de um ano. A introdug&o de um sistema de GPO na administracao publica portuguesa teve o mérito de alterar, de modo substancial, 0 foco de uma administracdo centrada nos processos para uma administragao orientada para os resultados. Por esse motivo, permitiu alterar o modelo de avaliagao do desempenho em vigor desde 0 inicio dos anos 80. Havia, no XV Governo Constitucional, uma proposta muito concreta de reforma administrativa, que procurou integrar a gestéo por objectivos, a avaliacéo do desempenho, o desenvolvimento e a formag4o profissional e a progressdo na carreira. O tom gestiondrio da reforma administrativa nao se altera de forma substancial com 0 advento do XVII Governo, de José Sécrates. A fase inicial do mandato caracteriza-se também por uma clara pulsdo reformista, com a introduco de dois programas emblematicos: o Programa de Simplificagio Administrativa e Legislativa (Simplex) e o Programa de Reestruturagao da Administracao Central do Estado (PRACE). Logo apés a sua criac4o, o Programa Simplex ficou a cargo da Unidade de Coordenacao para a Modernizacao Administrativa (UCMA), tendo essa responsabilidade passado, em 2007, para o Gabinete da Secretaria de Estado da Modernizacao Administrativa, com o apoio técnico da Agéncia para a Modernizac4o Administrativa (AMA). O Simplex tinha como objectivos facilitar a interacgo cidadao/administracao, reduzir os custos de contexto para as empresas e incentivar a sua competitividade, aumentar a eficiéncia dos servicos publicos (eliminar tarefas intteis), tornar os procedimentos mais claros e transparentes, estimular uma cultura de confianga e de participacao dos utentes e estabelecer exigéncias administrativas proporcionais ao risco. O perfil da intervengdo é de cardcter gestiondrio, cunho que resulta da composicao interdisciplinar da AMA, com destaque para a atengdo dada ao governo electrénico. 0 sitio oficial do Programa (www.simplex.gov.pt) apresenta dados para o perfodo 2006-2011 que permitem atestar a importancia das diferentes iniciativas para simplificar e agilizar a administragao publica portuguesa. Tecnicamente, 0 éxito do Programa é inegdvel, mas, tal como sucedeu com outros programas publicos de sucesso, também o Simplex sofreu um abalo tremendo na sequéncia da crise das dividas soberanas e do Programa de Assisténcia Econémica e Financeira (PAEF). A outra medida emblematica do XVII Governo foi o Programa de Reestruturacao da Administrac4o Central do Estado. O PRACE foi criado pela Resolugdo do Conselho de Ministros n.° 124/2005; propunha-se modernizar e racionalizar a administra¢ao central e aproximar a administracao dos cidadaos, contribuindo para um aumento da qualidade de vida. Na sua esséncia, as propostas do PRACE seguem uma légica integrada e profundamente reformista, e tomam partido do conhecimento existente sobre as administragdes ptiblicas mais modernas em todo o mundo, sobretudo na Europa Ocidental. Infelizmente, apesar de as propostas terem sido implementadas conforme o planeado, os impactos do PRACE nunca chegaram a ser avaliados de forma compreensiva, confirmando a tendéncia crénica da administragao central para escapar ao escrutinio. De acordo com a avaliacio encetada pela Unidade Técnica de Apoio Orgamental (UTAO) da Assembleia da Republica, o conjunto de indicadores de resultados fornecido no permite qualquer avaliaco dos impactos financeiros e orgamentais (UTAO, 2011). O relatério da UTAO é, nesse sentido, esclarecedor. A UTAO solicitou informagdo técnica a trés organismos para proceder a avaliac4o: 4 Direcc4o-Geral da Administragao e do Emprego Publico (DGAEP); 4 Empresa de Gestdo Partilhada de Recursos da Administrago Publica, EPE (GERAP) e ao Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliaco e Relagdes Internacionais do Ministério das Finangas e da Administragao Publica (GPEARI/MFAP). Das trés organizagdes, apenas a DGAEP respondeu, e os dados fornecidos nao permitem concluir sobre os impactos do PRACE. Repare-se que so mencionadas reducées no numero de organismos e no numero de dirigentes, mas estas redugées, apesar de reais, so extremamente ambiguas. Por um lado, as redugdes por fusdo de organismos nao garantem poupangas reais, j4 que os servicos podem continuar a operar nos mesmos edificios e com os mesmos funciondrios e apenas o seu nome ter sido mudado. Por outro, a redugdo no numero de dirigentes sé tera efeitos orcamentais marginais, resultantes da poupanga em despesas de representacdo e na diferenga salarial entre o vencimento do dirigente e a posic&o remuneratéria ocupada na carreira de origem a que retorna finda a sua comissao de servico. O relatério da UTAO aponta para uma reducdo de 1 % no numero de funciondrios entre Dezembro de 2007 e Junho de 2010, mas sublinha igualmente que nao é possivel determinar se esta redugdo esté, pelo menos em parte, relacionada com os efeitos do PRACE. Em qualquer caso, sem dados individuais, é impossivel aferir os impactos de um programa com as caracteristicas deste. Os anos do governo minoritdrio liderado por José Sécrates (2009-2011) e do governo de Passos Coelho (2011-2015) séo um deserto de ideias na reforma do Estado, representando um claro retrocesso para o funcionamento da administracdo publica, a qualificagéo dos funciondrios e a motivagdo e o empenho de todos os envolvidos. Muitos trabalhadores queixavam-se da alteracdo das regras do jogo pelos sucessivos governos. A auséncia de perspectivas de carreira, o congelamento de progressdes por mérito, a falta de renovagdo dos quadros e a diminuta mobilidade interservicos sao apenas alguns dos aspectos criticados e que levaram muitos 4 saida precoce da administracao publica, quer participando nos sucessivos programas de rescisdéo de vinculos durante o executivo de Pedro Passos Coelho, quer por via das reformas antecipadas em diversos governos. Em concreto, de acordo com a Sintese Estatistica do Emprego Publico, divulgada pela DGAEP, o governo de Passos Coelho avangou com programas de rescisio amigdvel que resultaram na redugdo de 2157 assistentes técnicos e operacionais, 1889 professores e 473 técnicos superiores. Ao PRACE seguiu-se o Plano de Reduc&o e Melhoria da Administracao Central do Estado (PREMAC). O executivo de Passos Coelho pretendeu aprofundar o trabalho realizado pela equipa do PRACE, tendo o PREMAC resultado numa reducao préxima dos 40 % no ntimero de estruturas de nivel superior da administracao central e de 27 % no numero de cargos dirigentes. Contudo, na boa tradicgao portuguesa, os impactos em custos e qualidade dos servigos prestados nao foram avaliados, limitando-se o governo a publicar um relatério de aplicac&o no final de 2012 e uma anilise da evolugdo das estruturas da administracao publica central portuguesa decorrente do PRACE e do PREMAC (DGAEP, 2013). Em 2012, a converséo do INA em direccdo-geral reveste-se sobretudo de cardcter simbélico, uma vez que lhe retira 0 cariz elitista associado A sua congénere francesa Ecole Nacionale d’Administration (ENA). No entanto, a limitagZo da sua autonomia resultou também numa perda efectiva de capacidade e agilidade para atrair e contratar os melhores formadores a nivel internacional. Na prdatica, 0 «novo INA», agora designado como Direccao-Geral da Qualificagéo dos Trabalhadores em Fungées Publicas, limita-se a proporcionar accées de formacao leccionadas por formadores nacionais, perdendo-se, por isso, oportunidades de troca de experiéncias internacionais e replicacao de melhores praticas. Um ponto em comum nos governos de Pedro Passos Coelho e Anténio Costa é uma timida promogfo de iniciativas da sociedade civil tendo em vista a co-produgio de servigos publicos. Promover a co-producdo pode representar uma poupanca de recursos, combinada com a atribuicao de um papel crescente a sociedade civil na prestacao de servicos publicos. Hé miultiplas iniciativas deste género em diversos paises europeus, mas a sociedade civil em Portugal é ainda muito fragil para liderar estes processos. Apesar disso, podemos encontrar alguns exemplos que se aproximam do conceito de co-producao. A plataforma de e- learning para cuidadores informais e o reconhecimento formal do seu estatuto (www.cuidadoresportugal.pt) representam um esforco notério neste sentido. Outro exemplo de co-producao sao as diversas experiéncias de orcamento participativo bem- sucedidas em inimeros municipios portugueses e, agora também, a nivel nacional com a iniciativa Orgamento Participativo Portugal (https://opp.gov.pt). O XXI Governo Constitucional, liderado por Anténio Costa, reavivou a preocupacéo com a simplificacéo administrativa através do Programa Simplex+, assente em 255 medidas de governo digital, tendo como objectivo central desmaterializar processos e desburocratizar a administracao. As duas medidas mais emblematicas deste Programa sao os projectos Nascer Cidad&o e Nascer Utente. O pedido de cartao de cidadao passara a estar associado ao momento do nascimento, podendo ser solicitado de imediato no hospital, com o balcdo Nascer Cidadao. Além desta medida, o projecto Nascer Utente tem como finalidade disponibilizar o boletim de satide infantil e juvenil digital e do boletim de vacinas electrénico, acessiveis aos utentes e aos profissionais pelo portal do Servicgo Nacional de Satide. Quase quarenta anos apés o cenario descrito no inicio desta obra, o progresso na desburocratizacéo e simplificagéo do relacionamento entre a administracdo e o cidadao é evidente. Contudo, como sabemos, a alteragéo e, sobretudo, a institucionalizacao de novas praticas no sector ptblico tendem a ser processos lentos e demorados. Adicionalmente, nao é possivel estimar o impacto que estas medidas de simplificacdo podem ter tido na aproximacao do cidadao a administragao publica e se estas medidas permitiram conter a conota¢o negativa da burocracia. O futuro da reforma da administrag4o do Estado Apesar de todos os avangos significativos na simplificagdo administrativa e na implementaciéo do governo digital, ha diversas criticas que podem ser apontadas ao modo como os diversos governos abordaram a quest4o. Em primeiro lugar, a modernizac4o administrativa raramente foi encarada como designio estratégico, embora tenha havido momentos de maior fulgor, como sucedeu nos dois primeiros mandatos do primeiro- ministro Cavaco Silva (1985-1991), o primeiro mandato de Anténio Guterres (1995-1999) e no tinico governo de maioria de José Sécrates (2005-2009). Curiosamente, as principais alteracdes de modernizagao da administragaéo ocorrem em cendrios de governos maioritarios. Nos dois primeiros casos, trata-se de governos que enfrentaram etapas fundamentais do processo de construgaéo europeia — Cavaco Silva no momento de adesdo a Unido Europeia, e Anténio Guterres na preparacao para a entrada na zona euro. E possfvel que tenha havido um efeito de contagio e/ou de presséo externa para modernizar a administracaio publica. Alids, o primeiro estatuto do dirigente puiblico, de 1979, assume precisamente esse efeito «comunitdrio», quando diz, no preambulo, que a administragao publica tem de se adaptar as exigéncias tecnolégicas e as «influéncias endégenas e exdgenas, designadamente comunitdrias». Contudo, mesmo nestes casos, a reforma administrativa ficou sempre aquém das expectativas. Os melhores momentos traduziram-se na adopcio e implementacaio de dezenas de medidas fragmentadas, como sucedeu no caso dos programas Simplex e Simplex+, orientadas para microaspectos da gest4o publica, com impacto aprecidvel na qualidade dos servicos prestados aos cidadaos. E justo sublinhar o papel da AMA neste processo, dado ter sido a principal entidade coordenadora da

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