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CREDITO.

MKR Page 2 Wednesday, December 12, 2007 2:27 PM

Copyright © Santuza Cambraia Naves

Direitos desta edição reservados à


EDITORA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
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Impresso no Brasil / Printed in Brazil

É vedada a reprodução total ou parcial desta obra

1ª edição — 1998

R E V I S Ã O D E O R I G I N A I S : Maria Lucia Leão Velloso de Magalhães


E D I T O R A Ç Ã O E L E T R Ô N I C A : Denilza da Silva Oliveira, Marilza Azevedo
Barboza e Simone Ranna
R E V I S Ã O : Aleidis de Beltran e Fatima Caroni
P R O D U ÇÃ O G R Á F IC A : Helio Lourenço Netto

C A PA : Inventum Design e Soluções Gráficas

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca


Mario Henrique Simonsen/FGV

Naves, Santuza Cambraia.


O violão azul: modernismo e música popular / Santuza Cam-
braia Naves. — Rio de Janeiro: Editora Fundação Getulio Var-
gas, 1998.

236p.

Inclui bibliografia.

1. Música popular — Brasil. I. Fundação Getulio Vargas. II. Tí-


tulo.

CDD-780.420981
DEDIC.MKR Page 5 Wednesday, December 12, 2007 2:23 PM

a Felipe e Júlio
EPIG.MKR Page 7 Wednesday, December 12, 2007 2:14 PM

Não sei fechar um mundo bem redondo,


Ainda que o remende como sei.

Canto heróis de grandes olhos, barbas


De bronze, mas homem jamais cantei.

Ainda que o remende como sei


E chegue quase ao homem que não cantei.

Mas se cantar só quase o homem


Não chega às coisas como são,

Então que seja o cantar azul


De um homem que toca violão.

O homem do violão azul


Wallace Stevens
Tradução de Paulo Henriques Britto
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Su már i o

Agradecimentos 11

Introdução 15

Capítulo 1 — Um tropical amor do mundo 21


Apresentação: a “música interessada” 21
A construção da civilização 33
A cultura na civilização 43
“A ‘colher torta’ do criador mexe o virado” 55
A estética da monumentalidade 66

Capítulo 2 — O apito da fábrica de tecidos 77


A estética da simplicidade 77
O ritmo dissoluto 85
E o meu despertador é o guarda-civil 106
É futurismo, menina 116
Com sustenidos e bemóis/ desenhados na minha voz 125
O poético e o prosaico 129
SUMARIO1.MKR Page 10 Wednesday, December 12, 2007 2:07 PM

10 O viol‹o azul

Capítulo 3 — A cidade fragmentada 143


A pererequice melódica difícil 143
À merencória luz da lua 160
Alô, alô, carnaval 171
A ditadora sorridente do samba 181

Capítulo 4 — À guisa de conclusão: tímido


e espalhafatoso 189
O engenheiro e o bricoleur 189
Embaralhando classificações 203
O noir e o solar 209

Referências bibliográficas 225


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Agr ad eci men tos

Não pretendo ser econômica nos agradecimentos, porque várias


pessoas contribuíram de diferentes maneiras para a realização deste li-
vro. Algumas se fizeram mais presentes no plano intelectual, mostrando-
se extremamente generosas tanto para sugerir novas questões quanto
para exercer, de forma muito criativa, a atividade crítica. Outras atuaram
no plano da afetividade, e foram igualmente importantes. E há ainda ou-
tras que conseguiram, de maneira formidável, juntar os dois planos.
Não tenho palavras, literalmente, para agradecer a Ricardo Benza-
quen de Araújo, que orientou a tese de doutorado que deu origem a este
livro, não só por ter acreditado no meu trabalho como também por ter pa-
cientemente me ajudado, ao longo destes anos, a construí-lo. À maneira
de um arquiteto, ele me deu “régua e compasso”. Ao aceitar a orientação,
Ricardo me permitiu realizar uma antiga aspiração minha, a de me tornar,
humilde e “espertalhonamente” — como diria Mário de Andrade —, sua
fiel discípula.
Agradeço particularmente a Luiz Eduardo Soares pelo estímulo que
me deu, desde o início, para realizar o doutorado, atuando desde então
como orientador intelectual e como amigo. César Guimarães, como pro-
fessor, me ofereceu a oportunidade de divulgar trabalhos que eu vinha
desenvolvendo, além de me convidar para desempenhar atividades de
pesquisa na área acadêmica. Jamais me esquecerei de sua intervenção
pronta, rápida e profundamente humana em determinadas situações-limi-
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1 2 O vi olão azu l

te. Italo Moriconi é uma pessoa a quem sempre recorro, como aluna e
como amiga. A convivência com Italo, com sua inteligência instigante e
seu notável senso de humor, é sempre um ganho. Otávio Velho, por ter
reconhecido meu trabalho, me abriu as portas de várias instituições,
desde a época em que fui sua aluna no Museu Nacional; creio que posso
dizer algo parecido a respeito de Hugo Lovisolo. José Reginaldo Gonçal-
ves, Lúcia Lippi Oliveira e Berenice Cavalcanti têm sido interlocutores cui-
dadosos e sérios; todos eles, cada um à sua maneira, tornaram-se meus
amigos.
Meus colegas do Departamento de Sociologia da PUC — parti-
cularmente Eduardo Raposo, Maria Sarah da Silva Telles, Sônia Giaco-
minni e Valter Sinder — sempre se mostraram prestativos, amigos e
compreensivos. O mesmo posso afirmar com relação aos professores
da Faculdade Candido Mendes-Ipanema, como Ruy Afonso Guimarães
de Almeida, Ana Teresa Schaepfer Spinola e Ilana Wolfovitch.
Eduardo Martins, de maneira afetuosa, me passou contatos im-
portantes para a realização da pesquisa. Maria Isabel Mendes de Almei-
da tem sido uma grande aquisição na minha vida, atuando como ami-
ga, colega de trabalho e interlocutora. Quão “dilacerante” para mim
seria viver sem os seus adjetivos!
Luiz Rodolfo da Paixão Vilhena fez intervenções importantes no
meu trabalho; graças a ele, por exemplo, repensei algumas questões,
tais como a da “flexibilidade” do músico popular. Maria Alice Rezende
de Carvalho, Carol Gubernikoff Guimarães e Júlio César Valadão Diniz
contribuíram com sugestões teóricas e bibliográficas. Sérgio Cabral me
passou informações importantes sobre o universo da música popular;
Isabel Lustosa atuou diversas vezes como mediadora entre mim e as pes-
soas que pensam este universo.
Pablo Nogueira sempre se mostrou interessado pela pesquisa
que eu desenvolvia, trazendo-me valiosas contribuições bibliográficas,
principalmente as referentes a Jaime Ovalle. Elizabeth Xavier acompa-
nhou todos os estágios da pesquisa e teve participação especial na ela-
boração do primeiro capítulo. Silvana Miceli de Araújo, além do inte-
resse que sempre demonstrou por meu trabalho, mostrou-se também
paciente todas as vezes que foi de certa forma envolvida no processo
de produção deste livro.
Estive o tempo todo, nesta aventura sociológica, em companhia
de Bárbara Musumeci Soares, minha grande amiga. Outras pessoas,
mesmo não participando diretamente desta “aventura”, estiveram afe-
tivamente presentes, como Agostinho Guerreiro, Alba Gisele Gouget,
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Agrad eci men tos 1 3

Musumeci, Marco Paulo Fuzaro Mourão, Maria Celina Soares D'Araujo,


Maria Paula Frota, Maria Teresa de Araujo, Mirtha Ramirez, Nice Risso-
ne, Regina Novaes, Rosana Botelho, Sean Patrick Larvie, Sérgio Carra-
ra, Teresa Diniz e Vitor Manuel Marques Fonseca.
Paulo Henriques Britto, meu marido, teve uma participação fun-
damental neste trabalho. Além da sua companhia constante, de que é
sempre um prazer partilhar, devo a ele grande parte da minha forma-
ção musical. Em sua atitude franciscana, ele me auxilia nas mais dife-
rentes atividades, do trabalho manual ao intelectual, da impressão de
um arquivo à discussão da obra de Stravinski.
Meus filhos, Felipe e Júlio, que compartilham comigo o amor
pela música, sempre acompanharam meu trabalho — mesmo “sem
querer”. Além disso, Felipe me ajudou na fase inicial da pesquisa, co-
lhendo informações no Museu da Imagem e do Som. Beto, meu sobri-
nho, mostrou-se tão envolvido com a minha pesquisa que chegou a
fazer uma verdadeira peregrinação pelos sebos da cidade, à procura de
livros que eventualmente pudessem me interessar.
Agradeço também à Capes, pelo financiamento que obtive para a
realização dos cursos e da pesquisa, e à Anpocs, por ter me concedido
dotação para a finalização da tese.
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I n tr od u ção

Discuto fundamentalmente, neste livro, a relação entre o moder-


nismo e a música popular. Uma das idéias centrais que desenvolvo é de
que a música popular concretiza um certo ideal modernista que valoriza
o despojamento e rompe com a tradição bacharelesca, associada a deter-
minadas concepções de erudição. Parto do pressuposto de que há uma
convergência entre os músicos populares, que trabalham individualmen-
te e sem recorrer a um projeto estético, e os poetas e ideólogos do mo-
dernismo, envolvidos num projeto coletivo consciente em torno da sim-
plicidade e do sermo humilis, embora, na maioria das vezes, tanto na
poesia modernista quanto na música popular, o humilde se concilie com
o sublime. Nesta linha de argumentação, comparo essa atitude flexível e
polifônica dos poetas modernistas e dos músicos populares com a pos-
tura fechada da maioria dos músicos modernistas, que só conseguem
operar com o sublime. Esse estilo desenvolvido pelos compositores eru-
ditos, como Villa-Lobos, torna-os mais próximos da sensibilidade fran-
cesa de fim de século (Debussy) e distantes do estilo mais humilde do
Grupo dos Seis (Darius Milhaud, Francis Poulenc, Arthur Honegger,
Georges Auriac, Louis Durey e Germaine Tailleferre), que, na Paris do
início do século, incorpora a música popular sem grandes transfigura-
ções e confere um grande peso aos “ruídos urbanos”.
Recorro a um referencial teórico que lida com as diferentes atribui-
ções de valor às linguagens estéticas que se propõem elevadas ou bai-
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1 6 O vi olão azu l

xas, sublimes ou humildes, oficiais ou cotidianas, retóricas ou impro-


visadas, obscuras/afetadas ou naturais, e assim por diante. Encontra-se
esse tipo de referencial nas análises de Mikhail Bakhtin (1987b) sobre a
epopéia e o romance, nas de Erich Auerbach (1987 e 1993) sobre o sermo
humilis franciscano, nas de James Clifford (1988) sobre a atitude etno-
gráfica que confunde as distinções entre o baixo e o elevado, e nas de
Marc Fumaroli (1994) sobre a tradição francesa da conversação.
Adoto a perspectiva da tradição de estudos históricos e antropo-
lógicos representada, por exemplo, pelas análises de Clifford Geertz
(1978) e Dominique LaCapra (1987), que repensam a relação entre os
processos sociais e a interpretação de textos, evitando métodos de in-
vestigação tendentes a reduzir o texto a mero sintoma do contexto.
Nessa perspectiva, procuro enfatizar tanto a gênese quanto o impacto
das obras de arte em questão — a estética modernista e a música po-
pular —, tentando captar sua ação transformadora com relação aos câ-
nones vigentes. Assim, relativamente a uma das áreas de investigação
desta pesquisa — o universo da música popular na virada dos anos 20 e
na década de 30 —, procuro ver como certo segmento de composito-
res e intérpretes contribui para modificações no cenário artístico, na
medida em que captam diferentes aspectos tanto do processo de urba-
nização e de modernização técnica quanto das tentativas de revitalizar
determinadas tradições. Ou seja, ao invés de perceber as inovações cul-
turais como resultado das transformações materiais em curso, prefiro
atribuir estas inovações a uma tarefa interpretativa desses artistas po-
pulares, os quais, ao conferirem significado aos “ruídos urbanos”, ou
mesmo a um tipo de silêncio associado ao rural, promovem alterações
criativas na realidade.
O tema das inovações culturais evoca outra questão, relativa à his-
toriografia existente sobre música popular no Brasil. Notei, por exem-
plo, que é consensual entre os historiadores a idéia de que 1930 é um
marco importante na música popular. A modernização das técnicas de
gravação, assim como o surgimento do rádio e do microfone, por exem-
plo, seriam fatores em grande parte responsáveis pelas transformações
operadas nos gêneros populares. É comum também afirmar-se que a ge-
ração que surge a partir dos anos 20 mostra-se bastante sensível para
captar as novas linguagens e percepções que se criam com as mudanças
aceleradas na cidade — no caso, o Rio de Janeiro. Não pretendi refutar
tais interpretações, mas apenas enfatizar, ao lado das descontinuidades
tão destacadas pelos pesquisadores, o aspecto das continuidades. Ten-
tando tornar mais claro este ponto, chamo a atenção para um modo de
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I n tr od u ção 1 7

atuar, no campo da música popular, em que muitas vezes se promovem


inovações recorrendo à tradição. Esse procedimento incorporativo do
passado cultural demanda, sem dúvida, uma explicação mais aprofun-
dada, o que faço ao longo do livro. De qualquer modo, essa questão re-
quer um rápido comentário inicial sobre os cuidados que procurei tomar
para não reificar determinadas fantasias de modernização ou de urbani-
zação. Em vez de procurar signos modernizantes na obra desses com-
positores, tomando como pressupostos essa mudança ocorrida na rea-
lidade objetiva e a percepção deste processo, tentei, de maneira mais
cautelosa, perceber como os músicos do período concebiam o momen-
to em que viviam e os espaços que demarcavam sua experiência. Ana-
lisando suas representações musicais, percebi, então, não sem surpresa,
a convivência de fantasias de modernização com outras associadas a um
registro antigo. A roça se confunde com a cidade e o mundo objetivo re-
cebe um tratamento subjetivo.
A tradição é portanto valorizada tanto pelos músicos populares
quanto pelos eruditos. No caso destes últimos, como já observei, os tex-
tos musicais folclóricos, associados a um passado pujante e isento de con-
taminações — ou a um presente que permanece, mas em extinção —,
são reverenciados e reelaborados num registro erudito. Os compositores
populares tendem a trabalhar outro tipo de texto musical, geralmente o
vinculado a uma tradição consagrada, como a do hinário, ou a operística,
que se presta à prática de procedimentos irreverentes, como o parodísti-
co. A propósito, uma das fases mais importantes da pesquisa que desen-
volvi foi a observação dos processos metalingüísticos nas composições
musicais. Percebi, por exemplo, que era recorrente nas obras de Villa-
Lobos pós-30 a citação de peças folclóricas; esse recurso era usado, no
entanto, para sacralizar as peças citadas, associadas às configurações ra-
ciais de nossa identidade coletiva. Numa clave diferente, alguns músicos
populares, como Noel Rosa, tomavam textos consagrados para deformá-
los através da imitação parodística. Dito de outro modo, enquanto os
compositores eruditos tendiam a enaltecer a tradição cultural, os popu-
lares, descomprometidos com projetos unanimistas, tratavam-na sem gra-
vidade. E quando substituíam o texto pela vida que se desenrolava no co-
tidiano da cidade, lançavam mão, em grande parte das vezes, do
procedimento satírico.
Gostaria de esclarecer que não tive a intenção de realizar um es-
tudo etnomusicológico ao desenvolver este tema, embora tenha me
mantido atenta, durante toda a realização deste trabalho, para questões
de isomorfismo entre música e letra, já que a canção popular só se rea-
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liza através da conjunção desses dois elementos que lhe são constitu-
tivos. A atenção a apenas um dos elementos não só empobrece a aná-
lise como desvirtua a compreensão desse gênero musical. Neste
sentido, concordo com Charles Perrone, que, embora reconheça as ori-
gens comuns da poesia da canção e da poesia destinada à leitura, afir-
ma que as duas formas são concebidas para propósitos diferentes. O
autor enfatiza o fato de que criam-se as letras de canção visando à
transmissão oral numa obra musical. Assim, se um texto é criado para
ser cantado, e não para ser recitado, ele deve ser estudado tal como foi
concebido. Perrone afirma: “Seja qual for o enfoque — artístico musi-
cal, antropológico ou literário — será necessário que se leve em conta
as características musicais de uma canção juntamente com os significa-
dos verbais ou funções culturais para que se possa verificar a ação com-
plementar que há entre a música e o texto” (1988:11).
Procurei portanto me manter atenta tanto ao significado quanto
aos signos inscritos nas canções que tomei para analisar. Esse tipo de
preocupação me levou a observar com cuidado não só as estruturas
musicais em si, mas também os arranjos orquestrais e os estilos de in-
terpretação da época. Fui percebendo, ao longo da pesquisa, que os ar-
ranjos tenderam a obedecer a um parâmetro que passou a se tornar he-
gemônico, a partir do início dos anos 30, com as inovações promovidas
por Pixinguinha e Radamés Gnattali na gravadora Victor. A tosca sim-
plicidade dos regionais, conjuntos de acompanhamento musical que se
valiam de poucos instrumentos e concebiam o arranjo apenas como
uma espécie de fundo, ou base, para orientar o intérprete, foi substitu-
ída pelas orquestrações exuberantes de sopros e cordas, em que os ins-
trumentos não eram mais utilizados para “dar o tom”, mas de maneira
contrapontística, possibilitando uma relação mais complexa entre o in-
térprete e os instrumentos.
Este livro se propõe analítico e reflexivo; não se trata de uma
pesquisa de construção histórica, que lidaria basicamente com fontes
primárias. Recorri portanto a uma literatura extensa, que toma como
objeto não só a música popular e erudita produzida no Brasil no perío-
do em foco, como também questões estéticas mais genéricas sobre o
modernismo brasileiro e o europeu. Constam das referências bibliográ-
ficas teses, artigos, ensaios, biografias e publicações jornalísticas, além
de periódicos de época, como Ariel — Revista de Cultura Musical e
Klaxon. Não me furtei, no entanto, à pesquisa de fontes primárias, que
realizei sobretudo no Museu da Imagem e do Som, ouvindo depoimen-
tos dos principais agentes das mudanças estéticas mencionadas, e no
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I n tr od u ção 1 9

CPDOC (Fundação Getulio Vargas), onde consultei documentação do


Arquivo Capanema referente aos projetos de educação cívico-musical
dos anos 30 e 40. Procurei formar também uma discografia que do-
cumenta a produção musical do período, incluindo obras de artistas
tanto modernistas quanto populares.
Também não tive a intenção de desenvolver um trabalho exausti-
vo, esgotando completamente as informações estéticas relativas às duas
décadas que me propus estudar. Em vez de escrever a história da música
popular nos anos 20 e 30, optei por analisar figuras e atitudes paradig-
máticas do período. Os compositores do novo samba que se cria nos
morros do Rio de Janeiro, por exemplo, são tratados em bloco. Não pre-
tendi, com esse procedimento, apagar suas singularidades; mas, dadas as
limitações impostas por meu próprio projeto, achei mais conveniente
captar-lhes alguns traços comuns, como sua inserção na boemia, a re-
presentação da malandragem, sua atitude gauche e outros.
E gostaria de fazer um comentário final, referente à heterogenei-
dade das informações bibliográficas sobre o período analisado. Além
de dispor, como já observei, de uma literatura extensa, lidei com os
mais variados tipos de textos — de escritos memorialísticos, biográfi-
cos ou autobiográficos, ora ingênuos, ora sofisticados, a estudos de
cunho acadêmico, assim como me deparei com interpretações diferen-
tes — e até mesmo antagônicas — sobre o tema investigado. Em vez de
tomar essa heterogeneidade como um problema a ser enfrentado, pre-
feri usar o bom senso e limitar-me à tarefa metainterpretativa a que me
propus desde o início. Apesar de valorizar enormemente a questão das
diferenças de interpretação, acredito que este tipo de análise deman-
daria uma outra pesquisa.
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1
Um tr opi cal amor d o mu n d o

Eu vos quero alterados por um tropical amor do


mundo, porque eu vos trago o convite da luta.
Mário de Andrade, Oração de paraninfo

Apr esen tação: a “músi ca i n ter essad a”

Um fenômeno que chama a atenção de quem pesquisa a música


brasileira da virada dos anos 20 e da década seguinte é o dos direciona-
mentos opostos tomados pela música erudita e a música popular. A co-
meçar pelo fato de que o projeto musical modernista, articulado basi-
camente por Mário de Andrade, mantém a tradicional classificação
hierarquizante entre erudito e popular, a despeito de toda uma valoriza-
ção do “populário”. É significativa a posição de Mário de Andrade: se por
um lado não vislumbra a possibilidade de se fazer música nacional sem o
concurso do “populário”, por outro continua tendo por meta a criação de
composições mais elaboradas, no âmbito da experiência erudita. Quanto
a esta questão, ele é taxativo: “[...] é com a observação inteligente do po-
pulário e do aproveitamento dele que a música artística se desenvolve-
rá”. Se Mário expressa sua admiração pela música popular brasileira de
maneira contundente — “é a mais completa, mais totalmente nacional,
mais forte criação da nossa raça até agora” —, dela ainda exige, no en-
tanto, uma série de desenvolvimentos, na medida em que a vê destituída
de maiores elaborações formais, espontânea e descompromissada com
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22 O vi olão azu l

quaisquer propostas de cunho construtivo (Andrade, 1962:24). A “mú-


sica artística”, portanto, é a música erudita.
Ao enfatizar a figura de Mário de Andrade, não nego a participa-
ção de literatos, compositores, críticos, musicólogos e outros no proje-
to musical modernista, como por exemplo Renato Almeida, Oswald de
Andrade, Luciano Gallet, Camargo Guarnieri e Lorenzo Fernandez.
Apenas pretendo salientar o papel formador de Mário de Andrade neste
movimento. Com relação a Camargo Guarnieri, por exemplo, Marcus S.
Wolff afirma que este compositor já tendia para o nacionalismo musi-
cal antes de conhecer Mário de Andrade. Mas, segundo Wolff, o inte-
resse de Guarnieri pela música popular e folclórica teria se intensifica-
do a partir de seu contato com Mário de Andrade. Wolff (1991:4-6)
observa que, no início dos anos 30, Lorenzo Fernandez e Camargo
Guarnieri já adotavam a mesma postura nacionalista dos escritores mo-
dernistas, compartilhando com eles, portanto, o mesmo universo soci-
ocultural.
Voltando a Mário de Andrade, Gilda de Mello e Souza (1979:20)
chama a atenção para o fato de que ele utiliza o conceito de Charles
Lalo de nivelamento estético, que remete à idéia de se erigir um gênero
inferior ao nível da “arte culta”, ou superior. Segundo a autora, esse fe-
nômeno ocorreu quando os compositores começaram a introduzir a
canção popular na polifonia católica, trabalhando-a com variações con-
trapontísticas, e quando Haendel incorporou a siciliana, uma dança fol-
clórica, na criação da ária dramática e passou a executar a mazurca e a
polonesa ao piano de maneira virtuosística. Em artigo sobre a música
modernista, Arnaldo Contier analisa esse tipo de atitude que tende a
reificar as distinções entre os domínios do erudito e do popular através
da maneira pela qual Renato Almeida e outros musicólogos do movi-
mento, no Brasil, lidam com a tradição cultural. Valoriza-se o imaginá-
rio do homem natural referenciado a rituais folclóricos, o qual, nesta
linha de raciocínio, deve ser preservado. Por exemplo, em manifesto de
1926 — “A história da música brasileira” —, Renato Almeida condicio-
na a realização do projeto musical modernista à integração do compo-
sitor (intelectual) com a natureza (universo rural), tal como interpreta
Arnaldo Contier (1992:274-5):

[...] Para o autor, a “sinfonia da terra” era caracterizada pela natureza exu-
berante [...]. Em contato direto com essas florestas, o observador-pesqui-
sador poderia decodificar as mais diversas imagens sonoras — conso-
nantes e dissonantes —, atrelando-as a tonalidades altamente matizadas
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Um tr opi cal amor d o mu n d o 23

conforme intensidades mais “fortes” ou “suaves”, irmanadas “[...] numa


surpreendente harmonia”. De acordo com essa interpretação do processo
histórico, a música brasileira existia concretamente numa realidade cul-
tural autóctone, simbolizada pelo universo selvagem ou primitivo.

[...] O compositor, ou o homem novo, deveria aproximar-se dessa comu-


nidade outrora representativa da miscigenação e dos laços de sangue
oriundos da fusão das três raças tristes: o branco (bandeirante conquis-
tador), o negro e o índio. A conexão intelectual homem culto-“homem
rústico” concretizar-se-ia no projeto da brasilidade modernista fundamen-
tada no romantismo conservador sobre os ideais de “nação” [...].

Mas prevê-se, no projeto musical modernista, a transfiguração


desse imaginário popular por meio de recursos técnico-estéticos do do-
mínio erudito, o único a propiciar condições para a existência do
homem cultural, ou seja, o “agente social capaz de deglutir antropofa-
gicamente as falas populares num discurso sonoro nacionalista atre-
lado à arte pura, como os Choros nº 10, de Villa-Lobos” (Contier,
1992:275-6). Contier acrescenta:

Na realidade, o projeto em prol da brasilidade modernista baseava-se, de


um lado, no estudo das manifestações consideradas dionisíacas, como
Carnaval; e, de outro, na sua transfiguração em peças eruditas, conforme
regras (apolíneas), oriundas da tradição técnico-estética da linguagem
tonal e de formas de representação do universo sonoro europeu do sé-
culo XIX: preservação da tensão/repouso estabelecida pela teoria sobre
dissonância/consonância; ritmos sincopados, retoricamente definidos
como a internacionalização da duração dos sons numa técnica “essen-
cialmente” brasileira, ou autóctone; polirritmia; suítes, óperas, poemas
sinfônicos (1992:276).

Uma visão evolucionista da história subjaz, por certo, a essa idéia


de submeter o elemento popular a um desenvolvimento erudito. Mário
de Andrade recorre às teorias de James Frazer e Edward Tylor para lo-
calizar as raízes religiosas das manifestações folclóricas, equiparadas,
num certo sentido, a experiências místicas primitivas. Assim, ao utilizar
essas teses antropológicas, Mário não só concorda com os mestres in-
gleses que os rituais folclóricos constituem uma sobrevivência de tra-
ços culturais de um momento menos evoluído localizado no passado,
como também aceita sua visão do elemento folclórico como menos ci-
vilizado, ou “primitivo”, “relativamente a um padrão cultural que se
considera civilizado” (Moraes, E., 1983:86-7).
CAP1.MKR Page 24 Thursday, December 13, 2007 10:48 AM

24 O vi olão azu l

Outra questão se coloca. Num momento em que a música po-


pular, atuando à margem dos círculos artísticos articulados em torno de
um projeto de renovação estética, tende a assimilar o imaginário urba-
no, ou mesmo suburbano, referenciado a experiências modernizantes,
a música erudita — vinculada a este mesmo projeto — se volta para a
pesquisa dos elementos folclóricos, referenciados, na maioria das ve-
zes, ao universo rural. Isso não significa uma situação de confronto,
mesmo porque não há interlocução entre artistas populares e eruditos.
Se esses dois tipos de artistas mantêm um certo convívio, ele tende a se
dar num outro plano, onde a discussão intelectual cede lugar a um tom
coloquial de conversação. Esse encontro tem lugar em alguns redutos
boêmios do Rio de Janeiro, onde poetas, músicos e intelectuais moder-
nistas exercitam uma escuta antropofágica da música popular que ali se
executa. Em diversos relatos sobre o convívio de compositores de
choro e samba com intelectuais e músicos do movimento modernista,
Jaime Ovalle1 costuma aparecer como um mediador entre os mundos
erudito e popular, assim como uma figura emblemática da postura in-
corporativa do elemento popular. Davi Arrigucci, ao descrever a boe-
mia artística da Lapa dos anos 20, ressalta a importância de Ovalle
como freqüentador desse reduto:

Músico primeiro ligado ao piano e ao bandolim, iria se tornar conhecido


também como o “Canhoto” do violão, nas rodas boêmias de seresteiros e
sambistas cariocas. O samba acabava de nascer naqueles anos e alguns
de seus expoentes iniciais fariam parte do enorme círculo de amizades de
Ovalle, como Sinhô, Donga e João da Bahiana (1990:65-6).

Manuel Bandeira descreve esse aspecto transitivo de Jaime Oval-


le, que tanto circula no “chão humilde” dos compositores mais simples
quanto no terreno mais sofisticado da música erudita, em busca de uma

1
Jaime Ovalle (1894-1955), compositor e poeta, dedicou-se, como autodidata, ao
piano e ao bandolim, e depois ao violino e ao violão. Veio de Belém para o Rio de
Janeiro ainda jovem, passando a se relacionar com intelectuais e músicos. “Poeta,
conhecedor da música popular brasileira e violonista de choros e serestas, foi fre-
qüentador assíduo da casa de Villa-Lobos”. Suas obras mais conhecidas, Azulão e
Modinha, foram concebidas a partir de versos de Manuel Bandeira, seu grande ami-
go. Seus poemas escritos em inglês, reunidos sob o título The foolish bird, não
foram publicados. (Enciclopédia da música brasileira: erudita, folclórica, popular,
1977:576).
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composição ao mesmo tempo elaborada e “fundamentalmente enrai-


zada no pathos popular”.2 Arrigucci (1990:65-6) cita, além de outros
músicos ligados a Ovalle, poetas, artistas e intelectuais que, aspirando
um maior contato com as fontes populares, fizeram da Lapa um espaço
literário, como Raul de Leoni, Ribeiro Couto, Dante Milano, Manuel
Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda, Caio de Mello Franco, Oswaldo
Costa, Di Cavalcanti, Cícero Dias e Villa-Lobos.
O violão, um dos instrumentos a que o compositor recorre, pos-
sibilita esse tipo de mediação entre o erudito e o popular, o que lhe
confere um papel simbólico no panorama modernista. Pois, como ar-
gumento ao longo deste livro, o modernismo em sua versão brasileira
promove uma certa dose, ainda que limitada, de descontinuidade com
relação ao passado estético comprometido com os ideais de civiliza-
ção. Tende a rejeitar, neste caso, principalmente as contribuições ad-
vindas da tradição clássica, legítima representante de um tipo de eru-
dição que exclui as manifestações da cultura popular. Se o populário
musical, como afirmei anteriormente, deve ser reelaborado por um pro-
cesso musical erudito, ele não perde, entretanto, sua importância en-
quanto elemento definidor da “alma” nacional. Os ideólogos moder-
nistas tentam afrouxar as distinções solidamente cristalizadas entre o
erudito e o popular, as quais, no plano musical, correspondiam ao cul-
tivo do piano ou do violão. Ao primeiro costumava-se reservar o tea-
tro, enquanto o violão era confinado ao espaço circense. Os cantores
que se acompanhavam com esse instrumento tão associado à plebe,
como Eduardo das Neves e Mário Pinheiro, tornavam-se, pela força das
circunstâncias, dublês de palhaço e de músico.3
Esse fenômeno de hierarquização dos instrumentos musicais ex-
plica de certo modo a aversão dos modernistas pela “pianolatria” vi-
gente no país. No “Manifesto da poesia pau-brasil”, de 1924, Oswald de
Andrade associa o piano à mesma tradição que teria engendrado a es-
tatuária e a poesia parnasiana:

Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinhas na parede. Todas


as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de pa-
tas. A pleyela [...] (Andrade, 1972a:7).

2
Apud Arrigucci, 1990:69.
3 Ver Prado, 1989/90.
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Rejeita-se o piano, por um lado, por se associá-lo à tradição ro-


mântica que se quer superar e, por outro, por se tratar de um instru-
mento que se prestou como nenhum outro à prática virtuosística. Pro-
põe-se, em lugar dessa música de especialistas, a música camerística,
mais afeita a inovações e a uma atividade mais integradora dos artistas.
À recusa do piano sucede-se portanto a incorporação do violão, o que
ilustra um outro aspecto da discussão modernista — compartilhada por
algumas vanguardas européias e latino-americanas: a valorização das
culturas populares e/ou primitivas. Nesse esforço modernista de apro-
ximar o elevado (associado ao erudito) do baixo (popular), o violão
ganha força simbólica como instrumento que possibilita a transição
entre esses dois mundos. Dotado de amplos recursos musicais e de
grande penetração social — aspecto que o valoriza perante os artistas
de orientação nacionalista, não só no Brasil como em outros países —,
o violão começa, a partir dos anos 20, a interessar cada vez mais a gran-
de parte dos músicos eruditos.4
Em artigo de 1924 para a revista Ariel, ilustrado com o Violão de
Pablo Picasso, Manuel Bandeira discorre sobre o instrumento, desta-
cando sua importância como elemento definidor da nacionalidade:

Para nós brasileiros o violão tinha que ser o instrumento nacional, racial.
Se a modinha é a expressão lírica do nosso povo, o violão é o timbre ins-
trumental a que ela melhor se casa. No interior, e sobretudo nos sertões
do Nordeste, há três coisas cuja ressonância comove misteriosamente, co-
mo se fossem elas as vozes da própria paisagem: o grito da araponga, o
aboio dos vaqueiros e o descante dos violões.

Desgraçadamente entre nós o violão foi até aqui cultivado de uma ma-
neira desleixada. [...]

Houve também [...] uma certa prevenção contra o violão por carregar a fa-
ma de instrumento refece, alcoviteiro e cúmplice da gandaia em noitadas
de sedução. Era, tipicamente, o instrumento mauvais sujet. Ele foi, po-
rém, reabilitado pela visita que recebemos de dois artistas estrangeiros, os
quais vieram revelar aos nossos amadores todos os recursos e a verda-
deira escola dos grandes virtuoses de Espanha. Refiro-me a Agostinho
Barrios e Josefina Robledo. [...]

Mas o repertório? [...] o repertório do violão é, além do próprio, todo o re-


pertório do alaúde. O alaúde é um instrumento cuja caixa é parecida com

4 Ver Castagna & Schwarz, 1993.


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a do bandolim, um pouco maior, braço alongado, e tem o mesmo nú-


mero de cordas, afinadas da mesma maneira que as do violão. O timbre
é também o mesmo, ligeiramente mais tênue. [...]

Os nossos tocadores de violão compuseram peças de caráter brasileiro in-


teressantíssimas. Correm, porém, de oitiva. Tais são os maxixes de Ar-
thiodoro da Costa, João Pernambuco, Quincas Laranjeiras e outros de
igual valor.

Villa-Lobos [...], que está agora em Paris, [...] tocou violão quando rapazola.
E compôs muita coisa que está guardada a sete chaves... E não sei se não
as atirou todas ao mar... Ele não gosta que se fale nisso. Preconceito muito
pouco moderno e muito pouco nacional [...] (Bandeira, 1924a:463-8).

Chiquinha Gonzaga (1847-1935) tornou-se também uma figura


emblemática, ao fazer, em um registro mais popular que Ovalle, e em
época anterior, a mediação entre os mundos “baixo” e “elevado”. Sua
própria condição de pianeira possibilita essa mediação. Ela recorre ao
piano, considerado um instrumento nobre; mas o utiliza para executar
composições “ordinárias”, associadas ao universo da baixa cultura. O
termo “pianeiro”, com um teor originariamente depreciativo, é usado no
Rio de Janeiro do final do século para designar o músico que toca o ins-
trumento sem a formação exigida, em que se requer tanto o conheci-
mento musical quanto o uso de partituras. O termo remete também ao
músico que, mesmo possuindo formação musical — como é o caso de
Chiquinha —, dedica-se a interpretar ao piano composições populares,
que permitem a prática do improviso.5
Também em outros aspectos de sua vida Chiquinha desloca-se
pelos domínios do baixo e do elevado. Particularmente atenta aos ruí-
dos musicais do Rio da virada do século e dos anos 10, e guiada pelo
flautista Callado — reconhecido como criador do choro e nacionaliza-
dor da música popular —, Chiquinha começou sua carreira produzin-
do polcas e atuando como pianeira no ambiente dos chorões. A partir
daí dedicou-se também a compor valsas e tangos, assim como à função
de maestrina. Sua versatilidade estética correspondia à sua figura pú-
blica, construída à custa de várias inversões nos códigos culturais vi-
gentes, o que a tornava bastante controvertida. Seus biógrafos tendem a
enfatizar esse prisma. Assim, a narrativa de sua vida sofre uma série de
inflexões. Tudo começa com a história de sua família — a Neves

5 Ver Diniz, 1984.


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Gonzaga —, que se situava “numa camada social intermediária entre a


camada senhorial e a escravaria” (Diniz, 1984:47), o que já denota a
idéia de ambigüidade. Um segundo momento é marcado pelo episó-
dio da expulsão de Chiquinha pela família, “em virtude de sua separa-
ção do marido”, sendo então “imediatamente adotada pelo ambiente
musical boêmio”. A qualificação de boêmia, portanto, aliada ao fato de
exercer uma profissão não adequada às mulheres, ajuda a construir a
personagem cujo comportamento é “severamente condenado”, sofren-
do em conseqüência cada vez mais “hostilidades”:

No Rio de Janeiro de 1877 o nome Chiquinha Gonzaga foi cantarolado


em maldosas quadrinhas satíricas pelas ruas (Diniz, 1984:116).

Ressalta-se, neste contexto, a originalidade de seu comporta-


mento:

Costumava [...] confeccionar ela própria seus vestidos. [...] Naqueles tem-
pos em que a moda era a saia-balão e a mulher elegante não dispensava
o chapéu como acessório do maior respeito e status, Chiquinha ousava
dispensá-los. Substituía-o por um lenço de seda envolvido e confundido
com seus cachos (Diniz, 1984:115).

A ousada personagem não ficava alheia ao cenário político da


época, aderindo prontamente às causas progressistas; participou da
campanha abolicionista e, logo depois, do movimento republicano.
Desencantada mais tarde com o novo regime, escreveu Aperte o botão,
cançoneta que, por seu teor irreverente, não foi bem-aceita pelo go-
verno florianista. Suas músicas foram apreendidas e Chiquinha rece-
beu ordem de prisão, o que não teria se concretizado “devido ao seu
parentesco com pessoas ilustres” (Diniz, 1984:144-8). Mas sem dúvida o
episódio mais narrado pelos pesquisadores de música popular é o en-
contro de Chiquinha Gonzaga com Nair de Teffé, outra personagem fe-
minina que, por suas atitudes inusitadas, surpreende o Rio do início do
século. A primeira-dama, casada com o presidente Hermes da Fonseca,
assumia um comportamento destoante tanto de sua origem de classe
quanto de sua condição feminina, ao tomar aulas de violão — instru-
mento à época associado ao populacho — e ao manter um certo con-
vívio com compositores populares, como Catulo da Paixão Cearense.
Nair de Teffé radicalizou esse comportamento em 1914, promovendo
no dia 26 de outubro uma apresentação musical de Chiquinha Gon-
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zaga no Palácio do Catete. A compositora executou ao violão o tango


Corta-jaca, de sua autoria, o que provocou reações bastante negativas
na cidade, como a de Rui Barbosa, comentando o fato em sessão do Se-
nado Federal:

Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa da recep-


ção presidencial em que, diante do corpo diplomático, da mais fina so-
ciedade do Rio de Janeiro, aquelas que deviam dar ao país o exemplo das
maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o corta-
jaca à altura de uma instituição social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira
falar há muito tempo, que vem a ser ele, sr. presidente? A mais baixa, a
mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea
do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o
corta-jaca é executado com todas as honras de música de Wagner, e não
se quer que a consciência deste país se revolte, que as nossas faces se en-
rubesçam e que a mocidade se ria! (Rui Barbosa apud Diniz, 1984:236-7.)

Retomando a questão da ênfase conferida pelos musicólogos


modernistas aos elementos folclóricos — associados em geral ao regis-
tro rural —, é importante observar que essa atitude não deve dar a en-
tender que os ritmos urbanos tenham sido inteiramente excluídos do
projeto modernista. Em vários artigos de crítica musical, Mário de An-
drade demonstra seu interesse pelos gêneros musicais que se desen-
volvem em algumas cidades brasileiras, como o samba e o maxixe. No
Ensaio sobre a música brasileira, por exemplo, ele se mostra atento às
fusões de ritmos que se desenvolvem nas cidades, como o jazz e o ma-
xixe, e também avalia o processo de maneira positiva:

Os processos do jazz estão se infiltrando no maxixe. [...] E tanto mais cu-


rioso que os processos polifônicos e rítmicos de jazz que estão nele não
prejudicam em nada o caráter da peça. É um maxixe legítimo. De certo os
antepassados coincidem... (Andrade, 1962:25).

Ou quando Mário avalia, em artigo de 1924, a música de Marcelo


Tupinambá:

O que exalta a música de dança de Marcelo Tupinambá é a linha meló-


dica. Muito pura e variada. O compositor encerra nela a indecisão hete-
rogênea da nossa formação racial. Ora tem o espevitamento do quase
branco das cidades, ora a melancolia do nosso interior (Andrade,
1963:118).
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Heitor Villa-Lobos, o músico mais conhecido do movimento mo-


dernista, compõe várias obras de temática sertaneja; e apresenta, pelo
menos nos anos 20, todo um ciclo de composições em que nitidamen-
te incorpora ritmos cariocas, como a série dos Choros. J. Jota de Moraes
atribui a Villa-Lobos, na década de 20, uma atitude mais experimental e
menos conformista, no sentido de buscar novos materiais, de explorar
novas combinações de instrumentos e de criar percussões ricas e varia-
das. A série de Choros, gerada por esse singular processo de compo-
sição, reúne elementos provenientes das músicas erudita e popular.
Moraes associa esse tipo de procedimento aos “exercícios de liberda-
de” que Villa-Lobos teria se permitido quando se encontrava em Paris.
Mas a partir do momento em que retorna ao Brasil e se vê longe do li-
bertário ambiente musical parisiense, Villa parte para uma estética neo-
clássica, significativamente representada por suas Bachianas (Moraes,
J., 1983:173).
Contudo, ao propor que se faça uma “música interessada”, ou
seja, comprometida com o projeto nacionalista, Mário de Andrade não
só defende a transfiguração erudita das manifestações populares
como tende a enfatizar os elementos folclóricos, marcadamente ru-
rais (ou sertanejos) de nosso repertório cultural. De acordo com José
Miguel Wisnik, essa valorização do regional corresponderia à concep-
ção desenvolvida pelo nacionalismo modernista de que a música ur-
bana exprimiria “o contemporâneo em pleno processo inacabado”
(Squeff & Wisnik, 1983:148). Mas nota-se que essa idéia de um ina-
cabamento do nosso processo histórico, com seu viés evolucionista,
acaba contribuindo para a própria confecção da categoria “música in-
teressada”. Mário de Andrade dá a entender que só seria justificável
fazer música meramente “desinteressada” quando ultrapassássemos o
momento de formação nacional. Essa orientação corresponde às re-
flexões mais genéricas sobre Arte (com A maiúsculo) que Mário de-
senvolve em Introdução à estética musical, obra que inicia em 1925
com propósito assumidamente didático.6 Ele afirma, por exemplo, o
caráter necessariamente “interessado” da arte primitiva, pois “o
homem não podia ainda dissociar conscientemente os prazeres de in-
teresse imediato dos de interesse mediato, enfim: separar o Belo do
Bom, do útil”. E enriquece o argumento dizendo que, ao contrário das
representações artísticas aceitas universalmente como superiores,

6 Ver Toni, 1995.


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como as de Ésquilo, Shakespeare, Cervantes, Beethoven e outros, nas


representações artísticas primitivas a expressão não é livre, por se
subjugar sempre a uma necessidade prática de comunicação. O que
caracteriza a evolução da arte, portanto, é o fato de sua expressão se
tornar livre. Assim, o artista deixa de ser “um operário das necessida-
des líricas do povo” e se permite obedecer “às suas impulsões líricas
individuais” (Andrade, 1995:25-7).
Pelo que se depreende dos textos posteriores de Mário de An-
drade, como o Ensaio sobre a música brasileira, de 1928, estaríamos
ainda num patamar histórico que exige a atuação do artista-operário,
depositário de uma concepção útil e moralizante de arte. As “impul-
sões líricas individuais” seriam mais compatíveis com um estágio avan-
çado de desenvolvimento.
Mário de Andrade já expõe esse tipo de concepção evolucionis-
ta de arte — e de teor claramente moralizante — em artigo de 1924 —
“Marcelo Tupinambá”:

A arte musical brasileira, se a tivermos um dia, de maneira a poder cha-


mar-se escola, terá inevitavelmente de auscultar as palpitações rítmicas e
ouvir os suspiros melódicos do povo para ser nacional, e por conse-
qüência ter direito de vida independente no universo. Porque o direito de
vida universal só se adquire partindo do particular para o geral, da raça
para a humanidade, conservando aquelas suas características próprias,
que são o contingente que enriquece a consciência humana. O querer ser
universal desgraçadamente é uma utopia. A razão está com aquele que
pretender contribuir para o universal com os meios que lhe são próprios
e que lhe vieram tradicionalmente da evolução do seu povo (Andrade,
1963:115).

Mas nota-se, por este artigo, que Mário de Andrade não está li-
dando com uma perspectiva classicamente evolucionista, que impli-
ca a idéia de uma trajetória linear e uniforme rumo ao progresso.
Com relação a este ponto, Eduardo Jardim de Moraes afirma que o
modernismo brasileiro, a partir de 1924, faz uma nova projeção de
nossas possibilidades de ingressar na ordem universal. Começa-se a
ter um novo entendimento desse processo, segundo o qual a entrada
do país na modernidade dependeria não só de um tempo próprio
como também de um desenvolvimento singular das nossas poten-
cialidades culturais. É a partir desse raciocínio que Mário de Andrade
analisa a constituição da arte musical brasileira, que seria alcançada
quando adquiríssemos o direito de vida universal. Mas antes de che-
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gar lá, ou seja, ao estatuto da “humanidade”, teríamos que lidar com


as questões relativas à nossa “raça”, à nossa singularidade, ao nosso
perfil peculiar. Ou, como observa E. Moraes, teríamos que constituir
um retrato-do-Brasil que possibilitasse a apreensão da entidade na-
cional “como uma parte distinta das outras partes componentes do
concerto internacional e como uma realidade que se apresenta como
uma totalidade” (1983:68).
Detenhamo-nos então na concepção de “música interessada”
proposta por Mário de Andrade. De acordo com a postura construtiva
que o ideólogo do modernismo assume no Ensaio sobre a música bra-
sileira, escrito num momento que interpreta como “de nacionaliza-
ção”, a “música interessada” seria um tipo de experiência estética a ser
desenvolvida por um artista comprometido com a construção do pro-
jeto nacional. Mário elege, portanto, um critério social e “de combate”,
e não filosófico, para se pensar a música brasileira. O escritor dá tam-
bém a entender que estaria questionando sua própria trajetória van-
guardista, voltada em excesso para a busca da renovação cultural, ou,
em seus próprios termos, da “originalidade”. Propõe-se então a ate-
nuar esse tipo de atitude e a fortalecer a prática construtiva, o que impli-
ca, entre outras coisas, a recuperação do ensino e da pesquisa (histó-
rica e etnográfica), tendo como principal objeto o folclore. E pontifica:
“Faz tempo que não me preocupo em ser novo. [...] A minha obra
desde Paulicéia desvairada7 é uma obra interessada, uma obra de
ação” (1962:73). Mário de Andrade dissocia, portanto, a idéia de ori-
ginalidade tanto das propostas de ruptura radical com o passado quan-
to da meta de atualização diacrônica do país à nova ordem universal,
passando a enfocar essa idéia sob outro prisma, vinculando-a à pró-
pria tradição cultural do país. Promove-se o que Moraes analisa como
a “des-historização do projeto modernizador”, que reinventa um regis-
tro temporal próprio para a história brasileira, no qual convivem
concomitantemente passado, presente e futuro. Essa nova concepção
de temporalidade — cuja formulação em muito se deve à definição de
temporalidade popular — predominaria, como vimos, nas discussões
modernistas principalmente a partir de 1924 e tenderia a abolir os con-
flitos entre os ideais inovadores e conservadores. Eduardo Moraes
então conclui:

7 Paulicéia desvairada foi publicada em 1922.


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Diferentemente do que ocorre em outros modernismos onde a idéia de


revolução ou de descrédito do passado se situa no centro das indagações,
no caso brasileiro a modernização vem caracterizada como atualização,
onde não está afastado o compromisso com a tradição (1983:6-7, 28-9).

Assim, as manifestações populares, sobretudo as folclóricas, são


tomadas como matrizes para composições eruditas, elaboradas, que
apresentam ao mesmo tempo uma caracterização nacional. E coeren-
temente com essa concepção unificadora que subjaz à confecção do
“retrato-do-Brasil”, evita-se que tais manifestações se confundam com o
exótico ou se restrinjam a um único elemento, como o indígena. Todos
os elementos do nosso “populário” devem concorrer para a formação
de nossa musicalidade étnica, pois a arte nacional, segundo Mário,
“não se faz com escolha discricionária e diletante de elementos”, mas já
está feita “na inconsciência do povo” (1962:15-6).

A con str u ção d a ci vi li zação

Esse viés construtivo do projeto musical modernista estabelece, a


meu ver, uma continuidade com o processo civilizador iniciado no Bra-
sil no século passado, embora o faça atualizando esse processo, con-
ferindo-lhe um caráter mais includente8 com relação ao repertório po-
pular. Recorro a Norbert Elias e a seu conceito de civilização,
principalmente no que a palavra remete, de acordo com sua interpre-
tação, às acepções francesa e inglesa do ideal de progresso — tanto do
Ocidente quanto da humanidade — e a uma perspectiva universalista.
Elias argumenta que o conceito de civilização tende a enfatizar as se-
melhanças entre os seres humanos e a atenuar as diferenças nacionais,
expressando o sentimento de autoconfiança característico de povos
que já constituíram sua identidade e que, ao longo do tempo, estabe-
leceram solidamente suas fronteiras (1990:25).

8 Usei o termo “includente” em dissertação de mestrado sobre Caetano Veloso (Ri-


beiro, 1988) para designar um tipo de atitude estética que se caracteriza por incor-
porar peças do repertório cultural — nacional e estrangeiro — de maneira eclética e
menos comprometida com linhas unívocas e definidas. Essa atitude, pelo que obser-
vei, caracteriza a arte pop, o novo rock inaugurado pelos Beatles e a chamada estética
pós-moderna. No caso brasileiro, o exemplo mais claro é a prática iniciada pela tro-
picália.
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Considero também importante para os objetivos desta discus-


são enfatizar a questão colocada por Elias quanto à univocidade a
que é levada a conduta humana sob os efeitos do processo civiliza-
dor. Cria-se, segundo ele, um tipo específico de ordem, em que o con-
trole historicamente efetuado por outrem é convertido em autocon-
trole. A personalidade é então modelada de maneira civilizadora
quando as funções sociais, sob o efeito da competição na sociedade
ocidental, se tornam cada vez mais diferenciadas, e o indivíduo é for-
çado a se conduzir de maneira mais diferenciada, uniforme e estável
(1993:193-274).
Partimos portanto do pressuposto de que o ideal de progresso
predominante no país a partir do século XIX assume os contornos do
processo civilizador analisado por Norbert Elias, na medida em que se
toma a Europa como modelo e se assume uma atitude excludente
para com o que se desvia de uma direção univocamente traçada. Em
sua análise de Sobrados e mocambos (1936), de Gilberto Freyre, Ri-
cardo Benzaquen de Araújo lida exatamente com essa concepção de
processo civilizador ao interpretar o relato apresentado por Freyre
das modificações ocorridas no país, no plano cultural, a partir da
vinda da Corte portuguesa. No rol das mudanças, Gilberto Freyre en-
fatiza o fenômeno da decadência do patriarcalismo, atribuída em
grande parte à própria presença do monarca numa terra tradicional-
mente tendente a manter suas características feudais, com o poder
descentralizado e assumido por membros do patriciado rural. A so-
ciedade colonial teria se modificado, portanto, em seus principais as-
pectos, pois os senhores de engenho e de fazenda, com seu estilo de
vida vinculado à casa-grande, começariam a perder a grandeza que
ostentavam na época colonial.9 Na análise de Araújo, o processo ci-
vilizador, no caso resultante da união de esforços da soberania mo-
nárquica e da moderação dos costumes, atua no sentido de “refrear
aquele híbrido e anárquico, quase bárbaro poder exercido pelos se-
nhores de engenho e outros grandes proprietários durante o período
colonial” (1994:16). Essa nova nobreza urbana que então se configu-
ra e que passa a habitar os sobrados, embora partilhe com as casas-
grandes rurais o ideal de autarquia, cultiva, no entanto, “um estilo
bem mais moderado e burguês” (1994:116). Eis como Ricardo Benza-
quen de Araújo sintetiza essa questão:

9 Freyre apud Araújo, 1994:110.


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Dessa forma, nosso autor esboça um quadro no qual ainda é até possível
se falar em autoridade patriarcal, mas somente na medida em que fique
bem claro que esta categoria possuía aqui um sentido bastante diferente
do que é empregado em CGS [Casa-grande & senzala]. Afastando-se do
campo, da escravidão e da poligamia — mas não inteiramente da hybris
[...] —, essa autoridade passa a ser exercida sobre uma família basica-
mente monogâmica, de corte bem mais disciplinado e ocidental, muito
mais compatível, portanto, com o conjunto das modificações estudadas
até o momento (1994:120).

Esse ideal de contenção, associado portanto à guinada reeuro-


peizante do país, levaria os sobrados a adotar um procedimento exclu-
dente para com os segmentos asiáticos, africanos e mesmo indígenas,
que, no reduto da casa-grande, teriam vivenciado “um registro mais
voltado para a ‘proximidade' e a ‘confraternização'”.
Tal esforço de aparar as irregularidades, com seu viés modera-
dor, tem sido associado mais recentemente ao registro republicano, o
qual, buscando legitimar-se, imporia um modelo de civilização para o
país que excluiria a diversidade social. José Murilo de Carvalho é um
dos autores que se dedicam a analisar as transformações operadas no
imaginário político e social a partir da implantação desse registro, prin-
cipalmente no Rio de Janeiro, dada a sua condição de capital. Os go-
vernantes, segundo Carvalho, assim como grande parte dos intelec-
tuais, preocupam-se em conferir a esta cidade um perfil condizente com
o mundo “civilizado” (1988:16). Mas “civilizar”, neste contexto, signifi-
ca basicamente afrancesar, tomando-se os parâmetros dessa nação eu-
ropéia para lidar com os vários planos da vida social. Carvalho lembra,
a propósito, que a própria simbologia revolucionária da República nos
foi fornecida pelos franceses:

Entre os propagandistas, o entusiasmo pela França era inegável. A pro-


ximidade do centenário da revolução de 1789 só fazia aumentá-lo. Silva
Jardim pregava abertamente a derrubada do Antigo Regime no Brasil, fa-
zendo-o coincidir com o centenário. Não se esquecia de incluir o fuzi-
lamento do conde D'Eu, francês, a quem destinava o papel do infortu-
nado Luís XVI, numa réplica tropical do drama de 1792. O entusiasmo
não podia ser melhor expresso do que nas palavras de um oficial da Ma-
rinha, recordando em 1912 os tempos da propaganda: “Todas as nossas
aspirações, todas as preocupações dos republicanos da propaganda,
eram de fato copiadas das tradições francesas. Falávamos da França bem-
amada, na influência da cultura francesa, nas menores coisas das nossas
lutas políticas relembrávamos a França. A Marselhesa era nosso hino de
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36 O vi olão azu l

guerra, e sabíamos de cor os episódios da grande revolução. Ao nosso


brado ‘Viva a República!' seguia-se quase sempre o de ‘Viva a França!' [...]
A França era nossa guiadora, dela falávamos sempre e sob qualquer pre-
texto” (Carvalho, 1993:12-3).

A repressão ao entrudo no final do século XIX e aos batuques


africanos no início deste século, exaustivamente estudada por diversos
autores, é bastante representativa dessa atitude que tende a eliminar o
que não se enquadra no modelo de contenção então hegemônico, ado-
tando como prática a rejeição a vários tipos de manifestações da cha-
mada “baixa cultura”, vistas como bárbaras e associadas a um Brasil ar-
caico. Um exemplo desse tipo de análise pode ser encontrado no artigo
de Peter Fry, Sérgio Carrara e Ana Luiza Martins-Costa intitulado “Ne-
gros e brancos no Carnaval da Velha República”, no qual se analisa a
repressão tanto à prática do entrudo em algumas cidades brasileiras a
partir de meados do século passado, quanto aos batuques africanos no
início do século. Os autores mostram como a prática do entrudo co-
meça a remeter a um passado colonial obscuro e passa a ser substituí-
da por uma festa carnavalesca estruturada “em préstitos luxuosos, bai-
les de máscara e brincadeiras de rua”, configurando-se um todo onde
reina “ordem, alegria e civilidade”. E, segundo eles, é por essa mesma
lógica que opõe a barbárie à civilização que se explica a proibição,
por parte das autoridades policiais, de batuques africanos. Pois a cons-
tituição da cidadania carnavalesca pressupunha um procedimento ex-
cludente para com “toda uma categoria social que era então convidada
a redefinir, ou mesmo esquecer, seus valores e práticas distintivos, tra-
tados como idiossincrasias individuais” (1988:259).
Um registro semelhante opera no cenário marcado pela fantasia
de civilização da belle époque, que enforma, entre outras coisas, o pro-
cesso modernizante por que passa o Rio de Janeiro com Pereira Pas-
sos, num momento em que as tradições coloniais são vistas como atra-
sadas e vergonhosas. De acordo com Jeffrey Needell, “Pereira Passos
não condenava apenas as ruas estreitas e imundas, mas também as fa-
chadas sem pintura, os estilos rurais de consumo e os aspectos ‘bárba-
ros' do Carnaval” (1993:70-1).
E depreende-se de depoimento de Renato Murce a Sérgio Cabral
que esse intuito civilizador chega até os anos 20 e 30, alcançando o
rádio em seu início, quando se tenta fazer da Rádio Sociedade do Rio
de Janeiro (idealizada pelo antropólogo Roquette Pinto e pelo cientista
Henrique Moritze) um veículo de orientação predominantemente didá-
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Um tr opi cal amor d o mu n d o 37

tica, programando-se apenas música erudita e palestras educativas. Re-


nato Murce complementa: “Nada de música popular. Em samba, então,
nem era bom falar”. Coerente com a linha de programação, em sua es-
tréia no rádio (em julho de 1924) Murce interpreta peças de Puccini,
Verdi, Massenet e Bellini, a convite de Roquette Pinto (Cabral, 1990:36).
Sérgio Cabral cita trecho de discurso de Roquette Pinto, por ocasião da
transferência de sua emissora para o governo (setembro de 1936): “É
certo que não fundamos a Rádio Sociedade para só irradiar o que o pú-
blico deseja. Nós a fundamos, principalmente, para transmitir aquilo
que o público precisa”. De acordo com Cabral, Roquette Pinto estaria
afinado, na época, com o primeiro gerente da BBC de Londres, J. C. W.
Reith, o qual faz o seguinte pronunciamento em 1924: “Acredito que
todos admitirão que explorar uma descoberta científica tão importante
apenas para fins de entretenimento corresponderia a prostituir suas po-
tencialidades e insultar o caráter e a inteligência do povo” (Cabral,
1990:37). Essa concepção de cultura, que remete à idéia de erudição e
se opõe à prática do entretenimento, é portanto comum entre os pro-
motores dos modernos meios de comunicação. Mas há indícios de re-
ação ao próprio veículo em si, por parte de pessoas ligadas a formas
mais tradicionais de expressão. Em estudo sobre a Rádio Nacional, Luiz
Carlos Saroldi e Sonia Virgínia Moreira (1984:15) afirmam, por exem-
plo, que tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos houve uma recusa
ao rádio por parte de homens de imprensa, que passaram a contrapô-lo
ao jornal, veículo por excelência da comunicação escrita. O rádio,
nesse tipo de entendimento, é visto como “um veículo imediatista e lo-
quaz, sem a nobreza e a perenidade da palavra impressa”.
Ao expor essas análises sobre a ocorrência de um processo civi-
lizador no país em diversos momentos históricos, embora de maneira
não exaustiva, fui movida pela intenção de contrastar dois sistemas
classificatórios: o dos ideólogos da modernização via civilização e o
dos modernistas, que buscam uma via alternativa ao universalismo. No
primeiro caso, segue-se um modelo clássico, que, com o objetivo de
manter um certo ideal de ordem, tende a promover separações entre
estilos elevados e baixos. Na experiência modernista, busca-se emba-
ralhar as distinções tradicionais e recuperar, em nome da originalidade
cultural, elementos “inferiores” renegados pelo processo civilizador.
Levando-se em conta as diferenças entre os dois ideais de moderniza-
ção, torna-se mais fácil perceber as descontinuidades promovidas pelo
movimento modernista.
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38 O vi olão azu l

Atendo-me à renovação efetuada na esfera musical, considero im-


portante destacar o momento de preparação e de realização da Semana
de 22, o que inclui a preparação do evento e suas repercussões. Obser-
vamos, por exemplo, que às vésperas da Semana os modernistas assu-
mem uma atitude provocadora e irreverente com relação ao passado es-
tético, atribuindo a Carlos Gomes, por sua vinculação com o gênero
operístico — principalmente o derivado do legado romântico, conside-
rado excessivo na forma e no sentimentalismo piegas —, o papel de pas-
sadista-mor e contrapondo-o à figura inovadora de Villa-Lobos. Oswald
de Andrade desencadeia uma grande polêmica, envolvendo o crítico
musical Oscar Guanabarino, ferrenho defensor da tradição, ao atacar ra-
dicalmente o compositor de Campinas em artigo publicado no Jornal do
Commercio — “Semana de Arte Moderna” — em 12 de fevereiro de 1922:

Carlos Gomes é horrível. Todos nós o sentimos desde pequeninos. Mas


como se trata de uma glória da família, engolimos a cantarolice toda do
Guarani e do Schiavo, inexpressiva, postiça, nefanda. [...]

Ora, enquanto na Alemanha se procedia à renovação estética, formida-


velmente anunciada por Wagner, e na França, César Franck precedia De-
bussy, o nosso Carlos Gomes, batuta em punho, cabelo sensacional,
olhar de fera americana, acreditava em Ponchielli. [...] De êxito em êxito,
o nosso homem conseguiu difamar profundamente o seu país, fazendo-
o conhecido através dos Perís de maiô cor-de-cuia e vistoso espanador na
cabeça a berrar forças indômitas em cenários terríveis.10

Mário de Andrade, algum tempo depois, investe também contra


Carlos Gomes, embora num estilo mais moderado:

[O Brasil] não produziu músico mais inspirado nem mais importante que
o campineiro. Mas a época de Carlos Gomes passou. Hoje sua música
pouco interessa e não corresponde às exigências musicais do dia nem à
sensibilidade moderna. Representá-lo ainda seria proclamar o bocejo
uma sensação estética. Carlos Gomes é inegavelmente o mais inspirado

10 Oswald de Andrade apud Mariz, 1983:29. De acordo com Annateresa Fabris, à di-
ferença “de seus companheiros, que usam a argumentação persuasiva, Oswald de
Andrade recorre abertamente à provocação, trivializando pela paródia os valores de
seus antagonistas”. “É nesse contexto que deve ser lida sua diatribe contra Carlos Go-
mes, na qual lança mão da difamação para exaltar, por contraste, a modernidade de
Villa-Lobos” (Fabris, 1994:150-1).
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Um tr opi cal amor d o mu n d o 39

de todos os nossos músicos. Seu valor histórico para o Brasil é e sempre


será imenso. Mas ninguém negará que Rameau é uma das mais geniais
personalidades da música universal... Sua obra-prima, porém, represen-
tada há pouco em Paris, só trouxe desapontamento. Caiu. É que o fran-
cês, embora chauvin, ainda não proclamou o bocejo sensação estética
(apud Wisnik, 1983:81).

Carlos Gomes é apresentado, por ocasião da Semana, como figura


emblemática do padrão clássico-romântico adotado pelas elites culturais
européias entre o século XIX e a I Guerra Mundial, que orienta o gosto
dominante no Rio e em São Paulo nas décadas de 10 e 20. Só se apre-
sentam nos programas de concerto e se cultivam nos conservatórios as
obras de compositores considerados “clássicos”, entre os quais se in-
cluem Bach, Haendel, Mozart, Beethoven, Chopin, Wagner, Brahms,
Strauss, Schumann e Paganini, além de autores de óperas, como Verdi,
Mascagni e Puccini. Mahler é um dos poucos contemporâneos que então
se executam nas salas de concerto. Procedia-se, segundo Arnaldo Con-
tier, ao “congelamento do ‘passado' estético”, o que se consolidava “na
mentalidade de segmentos sociais consumidores da chamada Arte Culta
(óperas, poemas sinfônicos, sonatas)” (1992:260-1).
A programação musical da Semana promoveu, portanto, uma rup-
tura com essa concepção de arte culta, ao incluir, além de Villa-Lobos,
compositores franceses que significavam uma alternativa à tradição clás-
sico-romântica: Debussy, Blanchet, Vallon, Satie e Poulenc. Blanchet e
Vallon foram pouco representativos no cenário modernizante da época,
ao contrário dos três outros compositores.11 Sempre se atribui a Claude
Debussy (1862-1918), por exemplo, o gesto inaugural para o surgimento
da “música moderna”, com a apresentação ao público de Prélude à
l'après-midi d'un faune, composto entre 1882 e 1884. Os procedimentos
inovadores de Debussy em Prélude são muitos, a começar por sua ou-
sadia no tocante às relações harmônicas usuais; embora não faça uma
música atonal, ele cria uma composição livre da tonalidade diatônica que
vigorou como regra durante um longo período. Dando continuidade a
esse procedimento anticonvencional, Debussy cria Prélude sem obede-
cer a um tema definido, libertando-se portanto das regularidades e ho-
mogeneidades de ritmo exigidas pelo desenvolvimento temático tradici-
onal. E Debussy é apontado como pioneiro “na utilização sistemática da

11 Ver Wisnik, 1983.


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instrumentação como elemento essencial da composição”. Paul Griffiths


argumenta que “as obras de Debussy perdem substância quando arran-
jadas para instrumentações diferentes” (1994:9). Prélude, por exemplo,
foi concebido para flauta, e mudaria em muito as suas características se
fosse executado por outro instrumento.
Sem pretender esgotar a contribuição de Debussy ao ambiente
vanguardista do final do século, e procurando me ater à criatividade do
compositor ao elaborar Prélude, mencionaria também sua concepção
estética próxima da poética de Mallarmé. Como se sabe, Debussy ins-
pira-se na écloga L'après-midi d'un faune, escrita pelo poeta francês
em 1876. Coerente com o ponto de vista de Mallarmé, Debussy não vê
a música como um meio de expressar emoções pessoais, assim como
também não a concebe como modo narrativo, o que implicaria um
aprisionamento a uma conexão lógica ditada pela consciência. Liberta-
do pela imaginação onírica, Debussy escreve:

Eu desejaria para a música uma liberdade que lhe é talvez mais inerente
que a qualquer outra arte, não se limitando a uma reprodução mais ou
menos exata da natureza, mas às misteriosas correspondências entre a
Natureza e a Imaginação (apud Griffiths, 1994:10).

Quanto a Erik Satie (1866-1925) — que teria, segundo alguns


musicólogos, exercido influência em Debussy por suas experimenta-
ções harmônicas —, não se pode deixar de ressaltar a atualidade de sua
obra no contexto modernista, principalmente o francês. A proposta de
Satie de reduzir a música ao estritamente essencial ajusta-se perfeita-
mente à tendência que se desenvolve, no pós-I Guerra, de reagir con-
tra os excessos associados ao romantismo do século XIX. Vários com-
positores da época, em busca de novos parâmetros estéticos, tentam
recriar tanto o espírito clássico quanto o barroco do século XVIII. Ao
contrário, por exemplo, das complexidades da música de Mahler, ou
das indefinições formais de Debussy, o classicismo e o barroco lida-
riam, segundo alguns músicos modernistas, com formas claras e conci-
sas. Bach se destaca, entre os vários compositores recuperados, por se
atribuir objetividade — procedimento bastante valorizado no momen-
to — às suas construções musicais. Faz sentido, portanto, nesse con-
texto, a criação do balé Pulcinella, por Stravinski, em 1919/20, a partir
de peças de Pergolesi, contemporâneo do compositor alemão. Mas é
importante observar que Stravinski não se propõe a parodiar o texto
musical que lhe serve de fonte. Ao invés de fazer troça do passado,
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põe-se a retrabalhar a forma antiga de modo afetuoso, porém distan-


ciado, tal como se procede na atitude neoclássica (Griffiths, 1994).
Ao contrário de Stravinski, que recorre ao pastiche para brincar
docemente com a tradição barroca, Satie adota o processo parodístico
para destilar seu sarcasmo contra o passado romântico e as convenções
musicais de modo geral. Um bom exemplo desse tipo de procedimento
utilizado pelo compositor francês é a peça D'Edriophthalma, da série
Embryons dessechés, citação paródica da Marcha fúnebre de Chopin.
Executada ao piano por Ernâni Braga, em meio aos eventos musicais da
Semana de Arte Moderna, esta peça de Satie é representativa do espírito
transgressivo dos modernistas com relação ao passado clássico-românti-
co. A inclusão desta peça no programa chegou a provocar reação nega-
tiva até por parte de integrantes do movimento, como é o caso da pia-
nista Guiomar Novaes, que, em carta dirigida ao jornal O Estado de S.
Paulo, em 15-2-1922, manifesta seu desagrado para com a profanação
parodística da música de Chopin (Wisnik, 1983:70-1).
A inclusão de Francis Poulenc (1899-1963) no programa da Se-
mana é coerente com a escolha de Satie. Juntamente com Darius Mi-
lhaud, Arthur Honegger, Georges Auriac, Louis Durey e Germaine Tail-
leferre, Poulenc integra o Grupo dos Seis, tendência musical francesa
assim cognominada pelo crítico Henri Collet. Os integrantes deste gru-
po, bastante influenciados por Erik Satie, assumem uma atitude irreve-
rente para com seu próprio passado estético nacional e para com a tra-
dição romântica. Os compositores mais confrontados foram portanto
Debussy e Wagner. Paul Griffiths afirma que, de acordo com o projeto
musical dos Seis, a música deveria ser “direta, secamente espirituosa e
atual”. O modelo escolhido foi Erik Satie, que exercitava uma espécie
de dadaísmo. Bastante representativas de sua tendência à concisão e de
seu humor parodístico são as peças musicais Choses vues à droite et à
gauche (sans lunettes) e Sonatine bureaucratique (Griffiths, 1994:66).
Ao assumir uma atitude inconseqüente em relação à música, tomando-
a como algo descartável e desprovido de aura, Satie manifesta uma sen-
sibilidade pouco afeita à idéia do sublime.
Poulenc, talvez o mais anti-romântico dos Seis, revelou-se desde
cedo um apaixonado pelas canções de rua e pela música popular dan-
çante.12 Significativas do apego de Poulenc à frivolidade e de seu des-
compromisso com registros mais elevados são as canções que compõe

12 Ver Abraham, 1979.


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42 O vi olão azu l

sobre textos de Apollinaire, como Le bestiaire, de 1919, e Banalités, de


1940.13
Esses compositores franceses, assim como outras vanguardas do
início do século — dadaístas e cubistas, por exemplo — associam mo-
dernidade com despojamento e rompem com a tradição clássico-ro-
mântica, comprometida com a idéia do sublime. Nesse tipo de registro,
valorizam-se as formas simples, associadas à idéia de objetividade; este
é um dos motivos pelos quais se atribui um viés neoclássico à estética
musical que se desenvolve após a I Guerra, representada por compo-
sitores dos mais diferentes matizes, como o Stravinski de Pulcinella,
Prokofiev, Satie e o Grupo dos Seis.
J. Jota de Moraes argumenta que é difícil conceituar o neoclassi-
cismo, já que o termo se aplica às mais diferentes manifestações, em-
bora seja possível alinhavar alguns princípios estilísticos dessa estética:
“utilização de formas equilibradas e baseadas no conceito de simetria,
por vezes abordadas de maneira irônica; clara definição dos processos
temáticos; retomada da harmonia, agora enriquecida pela utilização si-
multânea de várias tonalidades; contenção da expressividade”. Moraes
chama a atenção para um aspecto importante: embora o neoclassicis-
mo costume ser atribuído a uma reação ao romantismo, principalmen-
te ao expressionismo germânico, tanto um como o outro lidam com a
tradição: “o neoclassicismo como mera paródia da música do passado;
o expressionismo como desenvolvimento lógico da tradição pós-ro-
mântica” (Moraes, J., 1983:42-3). Em relação ao caso específico de Sa-
tie, Wisnik (1983) observa que ele reúne as características de profana-
dor e de reinstaurador da aura musical, de acordo com os
procedimentos — dadaístas ou neoclássicos — que se propõe utilizar.
Ao assumirem uma atitude performática, durante a Semana, de crí-
tica ao passado clássico-romântico, os modernistas brasileiros se mos-
tram afinados com algumas tendências musicais européias, representa-
das tanto por Stravinski quanto pelo Grupo dos Seis. E no primeiro
momento modernista, como mostrarei mais adiante, os ideólogos do mo-
vimento se permitem uma postura mais iconoclasta, predisposta tanto a
negar o sublime quanto a questionar as classificações inerentes à con-
cepção de arte culta. No decorrer do movimento, principalmente a partir
de 1924, tende-se a uma atitude mais conciliatória para com a tradição e
menos intolerante com relação às obras que se pautam pelo sublime. O

13 Griffiths, 1994; Abraham, 1979; e Parker, 1977.


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Um tr opi cal amor d o mu n d o 43

que se mantém é a predisposição de recuperar o repertório popular, tra-


dicionalmente excluído pelo conceito de cultura que se pauta pelo ideal
de “civilização”. Muitos anos após a Semana, por exemplo, em 1937, em
ensaio intitulado “Evolução social da música no Brasil”, Mário de Andra-
de se reporta aos acontecimentos relacionados à independência do país.
De acordo com a interpretação de Arnaldo Contier:

Para Mário, “1822” significou um golpe instaurado pelas elites agrário-ex-


portadoras, que promoveram o divórcio entre o Estado (considerado uma
figura de ficção) e o povo em geral. Assim, de 1822 até “1918-22”, esse
“povo” fragmentou-se em “raças” separadas culturalmente em comparti-
mentos estanques, não provocando, portanto, uma possível miscigenação
ou aculturação entre brancos, negros e índios. Por esse motivo histórico,
os compositores brasileiros do século XIX — Carlos Gomes, Francisco
Manuel da Silva, Leopoldo Miguez — foram obrigados a aderir ao “in-
ternacionalismo musical”, ora parafraseando, ora compilando modelos
utilizados por Verdi ou Wagner. Nesse momento, consoante essa expli-
cação, tornava-se impossível, “historicamente”, o aproveitamento das “fa-
las populares” nas obras desses compositores (1992:277).

Embora se reporte a acontecimentos relacionados a um outro mo-


mento histórico, Mário, neste ensaio, adota um ponto de vista semelhan-
te ao de Gilberto Freyre ao analisar a vinda da Corte portuguesa. Freyre,
como vimos, encara 1808 como um momento que redefine os traços da
sociedade colonial; a partir daí criam-se condições propícias para a he-
gemonia, entre as elites, de uma perspectiva universalista, com seu viés
excludente para com os elementos que não se enquadram no padrão eu-
ropeu. Mário, no texto citado, localiza esse tipo de processo civilizador
na fase iniciada com a independência do país em 1822. Tanto um quanto
o outro lamentam o predomínio, no país, da lógica da separação — entre
o erudito e o popular, o branco e o negro, o elevado e o baixo, e assim
por diante —, responsável, em grande medida, pelo surgimento de um
panorama cultural descolorido e isento de originalidade, muito mais ten-
dente à compilação do que a um processo criativo.

A cu ltu r a n a ci vi li zação

Retomemos o ponto relativo às atualizações promovidas pelos


modernistas musicais brasileiros no seu projeto cultural, tendo em
vista o compromisso desses intelectuais com a construção da nação.
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44 O vi olão azu l

Uma primeira questão que se coloca prende-se ao fato de que, tal


como os seus contemporâneos europeus, nossos modernistas rom-
pem com a perspectiva excludente do processo civilizador; assim,
não só valorizam o popular como também passam a incorporá-lo a
sua proposta estética. Esse tipo de conduta é concomitante com o de-
senvolvimento, na França dos anos 20, de uma atitude etnográfica,
que se devota a questionar radicalmente os valores artísticos legados
pelo classicismo e a embaralhar as classificações tradicionais. James
Clifford se reporta ao próprio significado, na época, da palavra etno-
grafia, que denotava a idéia de um apelo ao exótico, ao paradoxal, ao
insólito. Atualizado após a I Guerra, o conceito de cultura perde o C
maiúsculo, que antes garantia a sustentação de um sistema de hierar-
quias morais e estéticas. A nova atitude, tal como a dadaísta, a cubista
e a surrealista, põe-se a reclassificar categorias familiares, como “su-
blime” e “vulgar”, “alta” e “baixa cultura” e outras equivalentes (Cli-
fford, 1988:129-30).
De certa forma, os direcionamentos tomados pelos estudos mu-
sicais no século XX correspondem a essas perspectivas includentes ou
excludentes de se lidar com a tradição popular. A musicologia, por
exemplo, que começa a ganhar contornos a partir de 1919, com seu
viés positivista, fundamenta sua prática numa taxonomia musical com-
prometida com a idéia da superioridade da música ocidental. Imbuído
dessa concepção, o musicólogo compartilha com os historiadores da
tradição humanista os mesmos valores e estilos. Já a etnomusicologia,
desviando-se dessa tradição tomada pela musicologia, alinha-se com a
antropologia, voltando-se, conforme a tendência desta área, para o es-
tudo das músicas não-ocidentais. Se por um lado o etnomusicólogo
procura descrever tecnicamente as composições trabalhadas, por outro
indaga sobre o papel desempenhado pela música nas diferentes soci-
edades (Kerman, 1987:1-13). Em suma, se a musicologia e a etnomusi-
cologia se distinguem muito mais em função de suas filosofias e ideo-
logias do que propriamente de seus objetos, podemos pensar na
equivalência possível entre os universos da etnomusicologia e do mo-
dernismo musical, e podemos também ver a etnomusicologia como re-
presentativa da relação entre os estudos folclóricos e o discurso das ci-
ências sociais.14 E, sem dúvida, um dos pressupostos dessa nova
mentalidade responsável pela própria definição de etnomusicologia é a

14 Ver Vilhena, 1995.


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emergência do primitivismo como um valor. Assim, questiona-se toda


uma tradição — nesse sentido, mais clássica do que romântica — que
historicamente fez prevalecer uma idéia de “arte superior” associada na
maioria das vezes à cultura branca européia, e que promoveu, portan-
to, exclusões no repertório popular.
Mas a despeito desse procedimento mais inclusivo, o projeto mu-
sical modernista mantém a tendência, associada ao processo civiliza-
dor, a hierarquizar e a promover determinadas ordenações num senti-
do unívoco. Recorro, a propósito, à análise de Eduardo Jardim de
Moraes (1983:4-5) sobre a argumentação predominante entre os mo-
dernistas brasileiros a partir de 1924, que tende a compatibilizar o an-
tigo e o novo. Assim, ao invés de se enfatizar, no processo moderniza-
dor, o aspecto da ruptura, valoriza-se, pelo contrário, sua capacidade
de estabelecer continuidade com o passado. O autor então conclui que
o modernismo se mostra, dessa forma, comprometido com a preserva-
ção da ordem.
Tudo indica que esse desvelo com a ordem — tributário do es-
forço construtivo do movimento — leva os modernistas a aderirem a
certos ideais civilizadores. Não por acaso, esta é uma das questões le-
vantadas pelos “antropófagos” ao criticarem o movimento modernista.
Vejamos o que Moraes diz a respeito:

[...] a contestação da Antropofagia relativamente à ótica modernista visava


as próprias categorias que informavam a elaboração dos retratos-do-Bra-
sil. A visão analítica que havia sido adotada pelo Modernismo, e em par-
ticular por Mário de Andrade, em sua opção por uma abordagem etno-
gráfica e folclórica do material popular — fundamento da vida nacional
— teria aparecido, à primeira vista, como a possibilidade do reconheci-
mento das singularidades componentes da vida nacional. A crítica antro-
pófaga vinha indicar que a utilização desta perspectiva analítica, tomada
de uma etnografia que sacrificava a integridade do objeto analisado à im-
periosa dominação de uma racionalidade que se afirmava como “civili-
zada”, terminava por conduzir o Modernismo à reafirmação do modo de
ser dependente da entidade nacional (1983:190-1).

No campo musical, essa postura comprometida com um certo


tipo de ordem aparece, à primeira vista, na manutenção já mencio-
nada anteriormente da hierarquia erudito-popular. Um exemplo re-
velador desse procedimento são os impasses encontrados por Mário
de Andrade ao elaborar seu modernismo musical, pois, na medida
em que a “música interessada” não se restringe a uma produção de
CAP1.MKR Page 46 Thursday, December 13, 2007 10:48 AM

46 O vi olão azu l

cunho naïf — o “populário” apenas serve de base para uma compo-


sição artística —, não há como dispensar a concorrência de elemen-
tos estrangeiros. Os processos de harmonização, por exemplo, de-
veriam necessariamente ultrapassar as nacionalidades, pois a
“música artística” não poderia se limitar à pobreza dos processos har-
mônicos populares, os quais deveriam se sujeitar a um desenvolvi-
mento erudito. A possibilidade de criarmos nós próprios um sistema
de harmonização também é descartada, já que tal criação, sem con-
tar com recursos acústicos e sem se basear no populário, seria não só
falsa como também individualista, pois se apresentaria destituída de
um caráter nacional. E Mário enfatiza o aspecto “desraçado” da har-
monização européia, partindo do pressuposto de que certos proces-
sos de harmonização tendem a ser mais individuais do que propri-
amente raciais (Andrade, 1962:49-51).
Há uma certa propensão, entre os musicólogos de viés moder-
nista, como Mozart de Araújo, de estabelecer um critério funcional
para definir as músicas folclórica, popular e erudita. Assim, a música
é interessada — o que se aplica ao caso da folclórica e da popular —
quando se vincula a determinados aspectos da vida cotidiana ou a ri-
tuais coletivos, como a canção de ninar, o canto de trabalho ou o de
recreação, o ritmo marcial etc. Já a música desinteressada, ou erudi-
ta, feita para se ouvir, visa ao puro deleite, livre de qualquer critério
de funcionalidade. Se a música interessada requer a participação do
ouvinte, a erudita apenas supõe a edificação do mesmo. Vemos que
esse tipo de distinção entre o popular e o erudito se constrói a partir
da concepção de dois tipos de sociedade: uma holista, associada ao
registro “primitivo”, e outra individualista, identificada com a idéia
de civilização. A partir desse raciocínio, atribui-se uma concepção
predominantemente intelectual à música erudita, enquanto a popu-
lar é vista como derivada de impulsos sensoriais. Se na composição
erudita “o autor se liberta da isocronia rítmica, da simetria métrica e
da quadratura estrófica, podendo criar livremente o seu ritmo”, na
música popular o autor é completamente tolhido pela tradição, pelos
ritmos preexistentes. Também nas fórmulas melódicas aconteceria
este fenômeno, já que na música popular as “frases, motivos, células
melódicas, inflexões e jeitos de entoar” tendem a se generalizar, per-
dendo suas características individuais, “ao mesmo tempo que con-
centram em sínteses inconscientes as qualidades [...] duma raça [...]”.
Mas se a música popular sofre essas restrições nos aspectos rítmico e
melódico, ela é a única capaz de expressar os “interesses afetivos de
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uma comunidade nacional”; daí se buscar na música popular não a


originalidade, mas a autenticidade nacional (Araújo, M., 1994:154-7).
Por essa lógica, os redutos populares são os que conservam os ele-
mentos que constituem a alma da raça — a pureza original — não
contaminada pela civilização, e os aspectos dionisíacos que a vitali-
zam. Luiz Rodolfo Vilhena (1995:171) observa que a própria idéia de
cultura popular nasceu em meio a concepções puristas, que atribuíam
uma aura de autenticidade aos fenômenos identificados ao povo, as-
sociada à espontaneidade e/ou à antigüidade.
Em artigo de 1924 para Ariel, Sérgio Milliet utiliza esse tipo de ar-
gumentação:

É um grande erro considerar-se o maxixe música sem importância. Ele re-


presenta parte de nossa alma, e a alma de uma raça é cousa seriíssima.
Justamente o que devemos cultivar são os elementos espontâneos bro-
tados em nosso povo. Devemos partir dos seus característicos, a inge-
nuidade, a sensualidade, a melancolia e o chiste da modinha para, com
estes dados, chegarmos a uma música nossa, e portanto universal. Tu-
pinambá, Nazareth e Souto não devem esquecer o que sucedeu a Catulo
da Paixão Cearense, nosso maior poeta somente enquanto foi “caboclo”
(1924a:215).

Esse tipo de ordenamento hierarquizante que vigorava sob o


processo civilizador também parece ter continuidade na recusa, pelos
modernistas, dos sons populares transformados pelas tecnologias
emergentes, como o rádio, o microfone e as novas técnicas de grava-
ção. Passa-se a associar a nova realidade a um universo caracterizado
não só pelo consumo, em que tanto o autor quanto a obra se tornam fa-
cilmente descartáveis, como também pela fruição fácil de um produto
inferior. Contier argumenta, por exemplo, que “com a ampliação do sis-
tema radiofônico e a indústria do disco, as músicas populares urbanas e
sertanejas passaram a ‘incomodar' os artistas eruditos”:

[...] Em 1930, Luciano Gallet, em face da crise na música culta no Brasil,


apontava três razões: a) as rádios-sociedades “[...] entram pelas portas do
Brasil inteiro e espalham música ruim, sem o menor critério de seleção”;
b) os editores de música: “[...] as rádios lançaram ainda os ‘artistas popu-
lares’: compositores de assobio, executantes de ouvido, cantores-igno-
rantes”; c) o editor de disco “[...] só vê que o Samba-tal garante uma tira-
gem imediata de 70 mil discos [...]” (1992:280).
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Em carta a Mário de Andrade de 14-12-1929, Luciano Gallet re-


vela sua preocupação com o alastramento, no país, de execuções mu-
sicais sem orientação, sem critério:

Felizmente que aqui já há reação e que se começa a perceber o brasileiro;


mas de momento o terreno está em falso, ao menos em grosso. Da minha
campanha inicial de fazer subir o inferior ao elevado, chegou-se agora
ao resultado seguinte: o inferior desenvolveu-se espantosamente (o que
não é mau, preferível ao cultivo do estrangeiro) mas sem orientação,
cheirando freqüentemente a exploração do gênero. Por força que não há
nem pode haver critério entre essa gente. Ainda outro dia ouvi essa coisa
espantosa: a MODINHA do Villa, cantada em rádio, com acompanha-
mento de dois violões, tocadores de ouvido que inventavam um acom-
panhamento qualquer. Ainda não seria mau de todo, se no fim, o speaker
não anunciasse pomposamente: “Modinha de Villa-Lobos, o eminente
compositor brasileiro”! [...] (apud Bardanachvili, 1995:76.)

Mário de Andrade, em palestra proferida em 1934 na Sociedade


de Cultura Artística intitulada “A música popular e a música erudita”,
distingue a música que denomina popularesca da música popular. A
primeira ele define como uma espécie de “submúsica, carne para ali-
mento de rádios e discos, elemento de namoro e interesse comercial
com que fábricas, empresas e cantores se sustentam, atucanando a sen-
sualidade fácil de um público em via de transe”. Embora reconheça a
existência de exceções no campo da música popularesca, admite que a
maioria “é chata, plagiária, falsa”, “uma espécie de arte de consumo”.
Nesse contexto, a obra “é esquecida e substituída por outra”, assim
como seu autor “é usado, gastado e em seguida esquecido e substituí-
do por outro” (apud Mariz, 1983:43). Assim, se o elemento popular, so-
bretudo o folclórico, se converte em matriz imprescindível para a rea-
lização da música artística, ou interessada, o mesmo não se pode dizer
da produção popularesca, que Mário atribui principalmente a Catulo da
Paixão Cearense e a Juvenal Galeno. Esse tipo de música, voltada para
o divertimento e não para a comoção, não captaria a alma popular,
nem tampouco o elemento nacional, na medida em que sua expressão
viria do nosso lado europeu.15
Villa-Lobos compartilha com Mário de Andrade da rejeição à mú-
sica popular divulgada pela mídia. No anteprojeto que encaminha a

15 Moraes, E., 1983:132-3.


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Gustavo Capanema no final dos anos 30, e que trata da criação do en-
sino de canto orfeônico nas escolas de todos os níveis, ele propõe,
entre outros itens — como “zelar pela execução correta dos hinos ofi-
ciais [...] intensificar o gosto e a apreciação da música elevada [...] con-
correr para maior unificação do caráter da nossa raça [...] estabelecer a
coesão do sentido nacionalista e proporcionar bom critério da apre-
ciação do povo” —, a ajuda ao governo para a realização da “censura
artística nas estações de rádio”.16 Júlio Medaglia (1989/90:72) afirma
que Villa-Lobos defendia a alfabetização da “rebelde musicalidade” do
povo brasileiro, ou seja, a “música de repetição” cujo desenvolvimento
passou a ser propiciado pelo rádio e pelo disco.
Percebe-se aí o deslocamento de categorias associadas pelo pro-
cesso civilizador ao universo da baixa cultura. Se no projeto modernis-
ta o significado do termo se mantém — implicando a definição de “bai-
xo” relativamente ao que se considera “elevado” —, o qualificativo,
antes relacionado ao popular, passa a ser atribuído a uma nova cate-
goria: o massificado. Ou seja, o popular (ou populário, na acepção de
Mário de Andrade), identificado sobretudo com as manifestações fol-
clóricas das “três raças”, é agora valorizado, enquanto se rejeita o po-
pularesco. Como prevalece a idéia de uma modernidade em constru-
ção, seleciona-se um repertório condizente com o modelo a ser
implantado, o qual, se é mais democrático, não deixa também de ser
excludente. Por outro lado, ao rejeitarem o popularesco — buscando
um registro mais elevado para a composição popular —, os modernis-
tas musicais demonstram também seu comprometimento com a idéia
do sublime. Só seria válido, nesse sentido, dedicar-se a um tipo de mú-
sica que capte a alma popular, que leve à comoção, criando-se inter-
dições que se aplicam às obras banais, cujo intuito é despertar da sen-
sualidade fácil das massas em busca do prazer.
Esse procedimento excludente com relação ao popularesco é ob-
jeto do seguinte comentário de Contier:

Em síntese, a brasilidade apoiava-se no folclore, negando, portanto, as


experiências de Satie (Parade, 1917), que se baseou em canções de mu-

16
“Anteprojeto de criação da Divisão de Educação Cívico-Musical ou Serviço Na-
cional do Controle da Aplicação do Canto Orfeônico ou Inspetoria-Geral de Educa-
ção Cívico-Musical.” Arquivo Gustavo Capanema, CPDOC/FGV (GC 37.02.19f). O do-
cumento traz um carimbo com data de 1940.
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sic-hall e de shows circenses, ou as obras de Villa-Lobos inspiradas nos


choros ou serestas dos artistas populares e urbanos. Os modernistas bra-
sileiros temiam os ruídos e os sons oriundos da “cidade que sobe” (São
Paulo, por exemplo) (1992:281).

Ao fazer esta afirmação, Contier contrapõe o projeto dos musicó-


logos brasileiros — que não só acentuam os aspectos bucólicos na lei-
tura que fazem do país, como preservam o valor tradicionalmente insti-
tuído ao erudito — ao estilo despretensioso adotado pelo Grupo dos Seis
em Paris, que confere um grande peso aos ruídos urbanos e incorpora a
música popular sem excessivas transfigurações. Esse tipo de análise nos
permite inferir que, se os músicos populares se mantêm espontâneos,
não corrompidos pelo processo de modernização e condizentes com um
estágio cultural primitivo, são canibalizados pelos compositores moder-
nistas. Mas se perdem a ingenuidade original, deixando-se contaminar
pelos meios de comunicação de massa, tornam-se alvo de críticas por
parte dos mesmos.
Mas retomemos a explanação de Contier no ponto em que mos-
tra as mudanças na trajetória de Villa-Lobos pós-22 e principalmente
pós-30. De acordo com ele, essa guinada estética do compositor se
deve ao fato de ele ser “silenciado” pelos nacionalistas, que fazem ob-
jeções aos ruídos urbanos. Nos anos 10, e ainda nos anos 20, Villa-
Lobos procederia de acordo com os modernistas europeus, como Stra-
vinski, os músicos futuristas e pré-concretistas, ou como o norte-ame-
ricano Charles Ives, incorporando a música popular urbana (serestas e
choros), utilizando o descritivismo de ruídos das máquinas e fazendo
experiências politonais e polirrítmicas, além de outras incursões no ter-
reno da música moderna (Contier, 1992:282).
Renato Almeida, musicólogo e folclorista que teve contatos es-
treitos com o grupo modernista, também afirma que à época da Sema-
na de 22 os integrantes do movimento compartilhavam com Villa-
Lobos esse gosto pelas últimas novidades musicais, principalmente as
provenientes da França:

Durante os dias da Semana passávamos largo tempo no Teatro Municipal,


assistindo aos ensaios de Villa-Lobos, por cuja arte a fascinação de Ronald
[de Carvalho] era então considerável, e à noite, era comum irmos à chá-
cara do Carvalho, onde conhecemos o conselheiro Antônio Prado, ainda
em plena vivacidade de espírito. Era ele um freqüentador assíduo dos es-
petáculos turbulentos da Semana. Fomos apresentados, pela primeira
vez, a d. Nazaré Prado, que vivia no entusiasmo do movimento, e faziam-
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se ali reuniões interessantíssimas, repetindo-se os espetáculos do Muni-


cipal, sem vaias e assobios. Ronald lia sempre os Epigramas, executava-se
música moderna: Villa-Lobos, Poulenc, Satie, Milhaud. [...] (Renato Al-
meida apud Mariz, 1983:32.)

Manuel Bandeira, em artigo de outubro de 1924 para a revista


Ariel, já se mostra perceptivo para com as mudanças operadas na visão
de modernidade de Villa-Lobos:

Noto aqui [...] que o nosso querido amigo [Villa-Lobos] voltou [de Paris]
brabo com os modernos. Não é moderno! Acabaram-se as blagues! [...]
Um momento houve em que espíritos muito diversos se uniram no pro-
pósito necessário de negar, de arrasar, de destruir. Foi o período da bla-
gue dissolvente, da análise que desmontava com um riso mau os meca-
nismos mais especiosos. Hoje a época é de reconstrução. Espírito clás-
sico. Clássico no sentido precisamente de esforço formal e construtivo,
não de regrinhas defuntas (1924b:477).

Wisnik (1983:44) também admite que a sensibilidade “moderna”


estava presente em Villa-Lobos e em Luciano Gallet já na segunda dé-
cada do século, embora enfatize mais a influência do impressionismo
francês sobre estes compositores, e mais particularmente de Debussy.
Wisnik então afirma que

[...] por ocasião da Semana havia no Brasil compositores reconhecidos e


já maduros que não prometiam sair do universo romântico em que se for-
maram, separados, por um hiato considerável, dos compositores que tra-
ziam idéias novas, todos em clara fase embrionária, com exceção de Villa-
Lobos que já se apresentava em concertos desde 1915, deixando “ousa-
dias” harmônicas, rítmicas ou timbrísticas invadirem o campo de seu
aprendizado tradicional. Luciano Gallet, mais novo que Villa-Lobos, ma-
nifestava preocupações relativamente avançadas quanto ao problema da
composição musical, sendo a sua aproximação ao Modernismo menos
uma explosão instintiva, como no caso de Villa-Lobos, e mais uma re-
flexão cerebral [...] (1983:52-3).

Mas, segundo Wisnik, embora Villa-Lobos tenha de fato alarga-


do as possibilidades musicais, sua obra apresenta características que a
fazem destoar da produção modernista mais rigorosa, colocando-o,
dessa maneira, à contramão da modernidade — pelo menos em sua
acepção européia, ou francesa. Wisnik refere-se, por exemplo, ao fato
de a música de Villa em muito se prestar a uma “escuta expressiva, dei-
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xando-se ouvir mais ou menos facilmente como descrição” (1983:36-7).


O autor fundamenta este ponto abordando os limites impostos por
nosso nacionalismo musical à adoção de certos parâmetros modernis-
tas franceses. Pelo que se depreende de sua argumentação, a presença
de Darius Milhaud17 entre nós em 1917 e 1918 não teria sido tão im-
pactante no universo modernista brasileiro quanto se costuma afirmar.
Pois, segundo a versão corrente, Milhaud teria atuado como uma es-
pécie de mediador cultural entre os nossos músicos — como Villa-
Lobos e Gallet — e os compositores europeus contemporâneos, favo-
recendo assim o surgimento do modernismo musical no Brasil (Wis-
nik, 1983:39). Ora, a opção dos nossos músicos por Debussy contrasta
visivelmente com o antidebussysmo do chamado Grupo dos Seis, a já
mencionada tendência vanguardista francesa, bastante influenciada por
Erik Satie e Jean Cocteau, da qual Milhaud é membro influente. Dito de
outro modo, enquanto os compositores brasileiros se apegam à estéti-
ca impressionista, mesmo quando trabalham com temas populares, Mi-
lhaud e os demais integrantes do Grupo dos Seis valorizam o urbano —
particularmente o popular — em sua simplicidade original.
Em artigo para Ariel (sobre o concerto de Sousa Lima de 20 de
outubro de 1924), Mário de Andrade admite que os músicos brasileiros
não seguem uma orientação modernista rigorosa:

E nem se poderá dizer que Debussy seja moderno. Ao contrário, a mo-


derna geração russa, espanhola, alemã, francesa, mesmo alguns italianos,
reage francamente contra Debussy. De legitimamente modernista só ha-
via um nome no programa Poulenc [sic], porque tanto Villa-Lobos como
Manuel de Falla não são exatamente modernistas, isto é, não dirigem e
cerceiam a sua maneira de criar a um conceito exclusivista modernizante
(1924:499-500).

O antidebussysmo militante dos músicos modernistas de Paris


faz sentido no contexto nacionalista do pós-guerra, época de reafirma-
ção de identidades nacionais. Procura-se, nesse momento, revolver a

17 (1892-1974) — um dos integrantes do Grupo dos Seis, o compositor francês viveu


no Rio de Janeiro em 1917/18 como adido de Paul Claudel, então embaixador da
França. Ficou conhecido pelo desenvolvimento da politonalidade na música. Seu in-
teresse pela música brasileira, principalmente a popular, “teria marcado sua obra pos-
teriormente composta na França, como é o caso de Le boeuf sur le toit (1919), para or-
questra, e das Saudades do Brasil (1921), para piano” (Wisnik, 1983:39).
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história para encontrar o “fio original” da música francesa. Le coq et l'ar-


lequin, manifesto de Jean Cocteau de 1918 pelo qual o Grupo dos Seis
se orienta, rejeita, por julgá-las excessivas, as tradições alemã e russa.
Cocteau se pronuncia contra o sublime romântico, a carícia impressio-
nista, a pedalização dos russos; Bach é valorizado, enquanto se descar-
ta a contribuição de Beethoven, Wagner, Debussy, Mussorgski e Rimski-
Korsakov (Cocteau apud Moraes, J., 1983:44). E a simplicidade é eleita,
neste manifesto, como o valor mais alto da tradição estética francesa.
De acordo com Wisnik:

[...] dessa revisão do passado sobressai a necessidade de uma volta ao


contraponto em detrimento da complicação harmônica, valorizando-se a
clareza e o despojamento polifônico na exposição das idéias, contra toda
espécie de grandiloqüência ou edulcoramento. Dentro desse ponto de
vista, Bach interessa, e Beethoven não. E pensando assim, os Seis opõem-
se a Debussy, contrapondo a seus pianos e pianissimos, à sutileza de seus
efeitos harmônicos (tidos como “doçuras acariciantes”), os ritmos fortes, a
violência, a crueza dos efeitos. [...] Preconizam uma arte “realista, simples,
nua”. A timbração instrumental teria sua base não nas cordas, mas na ru-
deza dos sopros e da percussão: um “rico orfeão de madeiras, metais e
bateria”. Mais do que essas considerações de ordem estilística, Le coq et
l'arlequin prevê a utilização intensiva da música popular próxima: os bai-
les de subúrbio, as feiras, o café-concerto, o circo. Seguindo essa orien-
tação, Milhaud compôs Cocardes, para pequena orquestra de banlieue, à
maneira dos músicos de rua (1983:46-7).

Darius Milhaud afirma essa tradição francesa da simplicidade em


tom de manifesto, atribuindo a Gounod um papel fundador na tendência:

Cada país tem sua tradição. Rameau, Berlioz, Chabrier, Gounod, Bizet,
Debussy, Fauré, Satie, Auric, Poulenc e Sauguet são a música francesa. No
século XIX sua voz foi abafada pelas correntes cezar-franckistas e wag-
nerianas e pelo éparpillement sonoro de [Rimski-]Korsakov. Debussy sen-
tiu a necessidade de continuar Rameau. Hoje, graças à previdência de Erik
Satie, é para o lado de Gounod que os jovens se voltam (apud Milliet,
1924b:260).

Isto explica, segundo Wisnik, o fato de Milhaud enfatizar muito


mais as figuras de Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá do que Villa-
Lobos e Gallet, já que o compositor francês tenderia a valorizar princi-
palmente a música popular urbana, mostrando-se pouco afeito a com-
posições ao estilo debussysta (1983:46-7). Em artigo de 1924 para Ariel,
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Milhaud, a propósito, faz uma crítica contundente à influência francesa


no meio musical brasileiro:

A curva traçada pela evolução da música em França, depois de Wagner,


reproduz-se exatamente do outro lado da terra. Todo movimento, toda
tendência encontram um eco no hemisfério austral. Às vezes, as influên-
cias se dividem: Vincent d'Indy e a Schola servem de modelo aos com-
positores argentinos e chilenos, enquanto no Brasil a orientação é niti-
damente debussysta e impressionista.

O papel da França na cultura musical do Brasil é preponderante. Graças


aos compositores Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald, que foram
diretores do Conservatório do Rio de Janeiro, a biblioteca desse estabe-
lecimento possui todas as partituras de orquestra de Debussy e do Grupo
da S.M.I. ou da Schola, bem como todas as obras publicadas de Satie.

Ao contrário, a música contemporânea austro-alemã é quase desconheci-


da naquele país e o movimento, tão importante, determinado por Schoen-
berg é mais ou menos ignorado.

É de lamentar que os trabalhos dos compositores brasileiros, desde as


obras sinfônicas ou de música de câmera dos srs. Nepomuceno e Oswald,
às Sonatas Impressionistas do sr. Guerra ou às obras de orquestra do sr.
Villa-Lobos [...], sejam um reflexo das diferentes fases que se sucederam
na Europa, de Brahms a Debussy, e que o elemento nacional não seja ex-
presso de uma maneira mais viva e mais original. A influência do folclore
brasileiro, tão rico de ritmos e de uma linha melódica tão particular, se faz
raramente sentir nas obras dos compositores cariocas. [...]

Seria de desejar que os músicos brasileiros compreendessem a impor-


tância dos compositores de tangos, de maxixes, de sambas e de cateretês,
como Tupinambá ou o genial Nazareth. A riqueza rítmica, a fantasia in-
definidamente renovada, a verve, o entrain, a invenção melódica de uma
imaginação prodigiosa, que se encontram em cada obra destes dois mes-
tres, fazem destes últimos a glória e o mimo da Arte Brasileira. Nazareth
e Tupinambá precedem a música de seu país como as duas grandes es-
trelas do céu austral (Centauro e Alpha do Centauro) precedem os cinco
diamantes do cruzeiro do sul [sic] (1924:264-6).

Vê-se, portanto, que esse tipo de empenho civilizador é incom-


patível com a sensibilidade modernista dos Seis — tendência da qual
Milhaud faz parte —, afeita desde o início a aceitar as contribuições da
cultura popular, a chamada música comercial (ou de entretenimento)
divulgada pela mídia e também as advindas do mundo técnico emer-
gente. Dois exemplos extremados de incorporação da linguagem urba-
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na pela música modernista podem ser vistos no manifesto de Luigi Rus-


solo de 1913 intitulado “A arte dos ruídos — manifesto futurista”, no
qual Russolo afirma que a máquina constitui matéria-prima para o seu
trabalho, e também em Parade, de 1917, de Erik Satie. Trata-se de uma
música que Satie compôs para um balé com libreto de Massine, cená-
rios e figurinos de Picasso, inspirado numa idéia de Jean Cocteau. Co-
menta J. Jota de Moraes: “Ponto de confluência do cubismo, do dada-
ísmo e mesmo do futurismo, o espetáculo tinha na música um mero
suporte sonoro. Como disse Cocteau, a partitura de Parade deveria ser-
vir de fundo musical a ruídos sugestivos tais como sirenes, máquinas de
escrever, aeroplanos, dínamos” [...] (1983:34-7).
Retomando o tema da música popularesca, vemo-nos diante do
seguinte problema: o projeto musical modernista, na medida em que
nega a “indústria cultural” e tende a incorporar o popular mais identi-
ficado com os elementos folclóricos da tradição cultural, exibe uma
tensão entre a motivação modernista — influenciada pela música eu-
ropéia, que valoriza a pesquisa formal e procura adaptar-se à cena mo-
derna, incorporando de alguma forma a linguagem urbana — e a que
se caracteriza por uma sensibilidade atada às manifestações culturais
rurais, ou sertanejas. Cria-se, por outro lado, um tipo de registro em que
a concisão característica do processo civilizador é substituída pelo ex-
cesso e pela grandiloqüência. Com relação a esse aspecto do projeto
musical, Contier observa:

Em síntese, esse projeto implicava uma defesa mais temático-ideológica


do que essencialmente musical (significantes), obrigando o compositor
moderno a elaborar critérios metodológicos para escrever textos inspi-
rados nas danças das “[...] multidões inquietas, doidas e extasiadas de pra-
zer”, conforme a tradição musical clássico-romântica oriunda da Europa.
Entretanto, alguns traços de fragmentos de textos modernos eram con-
siderados por R. [Renato] Almeida radicais e incompatíveis com o “perfil”
do retrato sonoro do Brasil a ser esboçado pelo artista comprometido
com o imaginário de “22”: “[...] não temos que ser modernos à Satie, ou à
Schonberg, mas modernos dentro de nossas forças e da nossa sensibili-
dade” (1992:276).

“A 'colh er tor ta' d o cr i ad or mexe o vi r ad o”

Procurando refletir sobre a concepção de cultura inerente ao


projeto musical modernista, julgo importante registrar a atitude conci-
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liatória dos ideólogos do movimento para com duas tradições diferen-


tes: uma que se ancora na perspectiva da diferença, básica para a va-
lorização do popular; e outra que se fundamenta nos pressupostos
universalistas da perspectiva iluminista. O popular — ou populário, na
acepção de Mário de Andrade — é bastante valorizado, principalmente
em sua configuração rural ou folclórica. Fonte inesgotável de riqueza
cultural, o popular nos forneceria a matéria-prima para esboçarmos os
traços gerais de nossa identidade, sem a qual nos seria vedado o in-
gresso na ordem universal. Assim, o modernismo que aqui se implanta
é impregnado de valores particularistas; mas esses valores importam
por viabilizarem o cosmopolitismo. Apesar da aspiração universalista, o
movimento brasileiro promove descontinuidades com a tradição do
universalismo ao descartar a idéia de progresso inerente ao conceito
clássico de “civilização”, projetando não só um tempo próprio como
uma trajetória singular rumo ao “concerto das nações”.18
O conceito de cultura adotado por nossos musicólogos, ao reunir
universalismo e particularismo, demonstra afinidade com a tradição ro-
mântica alemã.19 É justamente dentro dessa tradição que civilização e
cultura são contrapostas. O conceito de cultura que então se configura
estabelece um elo diferente com a temporalidade, eximindo-a de inten-
ções ou propósitos claramente configurados. Ao invés de um caminho
homogêneo e linear que se desdobra no futuro, lida-se com uma traje-
tória sinuosa, mas própria, compatível com as singularidades de cada na-
ção, pois se a civilização tende a apagar as diferenças nacionais, a cul-
tura, pelo contrário, tende a enfatizá-las.20

18
Ver Moraes, E., 1983.
19
Ver, por exemplo, a introdução de Telê Porto Ancona Lopes (“Uma difícil conju-
gação”) a Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade, em que a autora, pesqui-
sando a biblioteca de Mário e analisando a estrutura do romance — ou “idílio” — ci-
tado, sugere o contato do escritor com os expressionistas alemães (Lopes, 1982).
Jorge Schwartz, em seu artigo “O expressionismo pela crítica de Mário de Andrade,
Mariátegui e Borges”, afirma que Mário de Andrade, além de conhecedor da língua
alemã, manteve contato com artistas influenciados pelo expressionismo, como Anita
Malfatti (que estudou na Alemanha) e Lasar Segall (nascido em Viena e com passa-
gem pela Alemanha). Segundo Schwartz (1990:85), o grotesco, utilizado pelo expres-
sionismo, teria sido “a resposta estética de Mário de Andrade às suas preocupações
sociais”. Luiz Fernando Dias Duarte (1995) argumenta que se a “ciência romântica”
foi sobretudo um fenômeno alemão, “sua influência para cá do Reno”, no entanto, foi
“permanente e fundamental”.
20 Ver Elias, 1990:24-5.
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Um tr opi cal amor d o mu n d o 57

Os alemães formulam seu conceito de cultura em função do sur-


gimento, no final do século XVIII, da idéia de Bildung, cujo significado
é “formação”, ou “autoformação”. Como o próprio nome indica, há
uma clara referência à idéia de aperfeiçoamento individual. Lida-se
com a proposta de um desenvolvimento harmonioso das capacidades
naturais de uma cultura ou indivíduo. Tal como na acepção de “culti-
vo”, de Georg Simmel, esse processo de aperfeiçoamento só se consu-
ma quando se parte do “núcleo interno original” do indivíduo. Mas, de
acordo com Simmel, para que a cultura se configure para o indivíduo, é
necessário que ele crie propositalmente e acrescente ao seu processo
imanente de desenvolvimento — associado a forças naturais — ele-
mentos externos e objetivos. Assim, consuma-se o aperfeiçoamento
através do “entrelaçamento teleológico de sujeito e objeto”, pressupon-
do-se de antemão que a intervenção externa acompanhe as tendências
“inerentes” do indivíduo em questão. À idéia de aperfeiçoamento indi-
vidual, os ideólogos da Bildung — críticos da formulação iluminista re-
lativa a uma “lei suprema válida para todos” — acrescentam a proposta
de se preservar as particularidades. Em Herder, por exemplo, um dos
precursores do Sturm und Drang e do ideal alemão de Bildung, a idéia
de uniformidade cultural é contestada, pois o autor afirma a diversida-
de das culturas contra o universalismo do Iluminismo francês. Cada in-
divíduo, segundo Herder, apresenta uma originalidade insubstituível, e
há uma Bildung da comunidade, assim como há a do indivíduo (Du-
mont, 1994:82-3).
Esse tipo de concepção, que, segundo Louis Dumont, tenta recri-
ar a Alemanha, incorpora o indivíduo iluminista. Mas como esse indiví-
duo é avaliado negativamente, ou seja, como um ser abstrato e despro-
vido de vitalidade — na medida em que se apresenta como universal e
despido de qualquer particularidade —, tenta-se investi-lo de valores
holísticos, lidando-se com as idéias de organicidade, de totalidade e de
perfeição. Procura-se então promover na Alemanha uma continuidade
entre holismo e individualismo, introduzindo no indivíduo iluminista um
grau de originalidade. Mas trata-se de uma originalidade que não se re-
aliza através do simples; pelo contrário, ela tende a se complexificar por
meio de relacionamentos com o exterior, seja com sujeitos individuais,
seja com uma rede mais ampla caracterizada por uma espécie de minis-
sociedade. Por meio de um processo dialético, parte-se da tese, repre-
sentada pelo simples, pelo unilateral, e atinge-se a síntese, representada
pela totalidade. Assim, o indivíduo aqui contemplado não é o da Renas-
cença, uma espécie de microcosmo do todo, nem o romântico, que luta
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contra o mundo, mas é o que se forma em interação com um meio.


Trata-se de um sujeito-totalidade, cujo desenvolvimento conta tanto com
as “capacidades inatas” quanto com a “influência do meio”: formação
por desenvolvimento e formação por adaptação (Dumont, 1994:82-3).
Interessa também à nossa discussão ressaltar o caráter normati-
vo da Bildung, voltado para o ideal de autoformação, de enriquecimen-
to da personalidade. Se esse autodesenvolvimento é alimentado pelas
particularidades, estas se subordinam, no entanto, ao desenvolvimento
ideal da humanidade. Dumont, a propósito, discorre sobre as relações
estreitas entre a antropologia proposta por Humboldt, uma das figuras
mais expressivas desta vertente do pensamento alemão, e a Bildung.
Nessa antropologia, cabe ao estudioso não só observar mas também
julgar. O pesquisador deve ser ao mesmo tempo “observador da natu-
reza, historiador e filósofo”, tentando conciliar a primazia normativa
proposta por Kant e o inventário da diversidade humana promovido
por Herder (Dumont, 1994:116).
Analisando essa questão, Dumont reporta-se ao próprio significa-
do da Bildung: “reunir em si o que há de mais diverso na humanidade,
destilá-lo até ver a idéia exprimir-se dos modos mais perfeitos, sem se-
gregar o particular do universal, e o subjetivo do objetivo, de modo que
tudo esteja inter-relacionado” (1994:107-8). Esse ideal parece se aplicar
ao projeto modernista brasileiro até aqui analisado, o qual, se valoriza a
tradição, dela requer, no entanto, que saia de um estado bruto e venha a
ser lapidada. Lida-se com a racionalidade, tal como no processo civiliza-
dor, mas trata-se de uma erudição que, ao invés de excluir os elementos
que não se enquadram no padrão “civilizado” hegemônico, não só afir-
ma o popular como se coloca a serviço dele.
Metáforas fortes de cultivo são vislumbradas em jornais e revis-
tas modernistas, como Ariel : Revista de Cultura Musical, que se mostra
inclinada tanto à discussão e ao embate — como os periódicos de van-
guarda em geral — quanto a um didatismo de viés iluminista — com
propostas normativas de melhoria do ensino musical.21 Em artigo de
1924 para Ariel, por exemplo, Florestan avalia as potencialidades mu-
sicais dos brasileiros, traçando um quadro em que tudo prima pela pu-
jança, pelo excesso. O fato de sermos “sonhadores”, “de grande viva-
cidade sentimental”, além de possuirmos um cancioneiro de “rara
originalidade, de riqueza rítmica excepcional, de melodia voluptuosa e

21 Ver Poggioli, 1968.


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vária”, nos destina a ser “um dos povos musicais do universo”. Tería-
mos, portanto, as mesmas características “naturais” de outros povos de
folclore musical abundante, o que nos possibilitaria, tal como a eles, a
formação de escolas musicais. O autor toma como modelo a experiência
estética dos compositores das airs de cour e dos cravistas franceses do
século XVIII, que criaram estilizações das pastourelles, das bergerettes e
das canções trovadorescas. O exemplo alemão, obviamente, também é
citado: “o desenvolvimento nacionalista da escola de Hamburgo e a uti-
lização dos cantos dos minnesanger e dos grandes mestres cantores e
principalmente o emprego estilizado do lied que lhe deu Weber, Schu-
bert, Schumann, Wagner e Brahms”. Florestan (1924:316-7) acrescenta
ao seu argumento o relato do procedimento estético dos compositores
da Ars Nova, que se apropriaram dos cantos toscanos, e de Monteverdi e
da escola napolitana, que buscavam sua fonte musical nos cantos e dan-
ças dos pescadores. Em suma, o autor propõe que, à maneira de outros
artistas europeus, busquemos no folclore os elementos de nossa vitali-
dade. Esses elementos, sem dúvida, configuram nossa originalidade, sin-
gularizando-nos perante os outros povos. Mas, tal como os artistas cita-
dos — franceses, alemães e italianos —, que lidam com um repertório
popular exuberante, temos que aprimorar esses elementos, domestican-
do-os num certo sentido.
Luciano Gallet assume entre nós esse tipo de atitude pedagógica.
Ao longo de sua trajetória, seu projeto nacionalista vem sempre acom-
panhado de preocupações com o aprimoramento musical dos brasilei-
ros.22 Em 1930, por exemplo, ele escreve as Bases para a organização

22
É importante para esta discussão destacar alguns momentos da trajetória de Lu-
ciano Gallet. Depois de estudar arquitetura, trabalhou algum tempo como desenhis-
ta, enquanto começava a tocar piano, mesmo sem ter formação musical, em uma pe-
quena orquestra de salão. Iniciou em 1914 seus estudos de piano com Henrique
Oswald, no Instituto Nacional de Música, e de harmonia com Agnelo França. Neste
mesmo ano, estudou interpretação com Glauco Velásquez. Em 1917 fez curso de har-
monia com Darius Milhaud, que o teria iniciado na música moderna. A partir de 1918,
começou a se interessar mais pela música e pelo folclore brasileiros, “que em grande
parte ignorava, apesar de seguir a corrente nacionalista” (Enciclopédia da música
brasileira, 1977:299-300). Rosane Bardanachvili afirma que a estreita relação de Gal-
let com Mário de Andrade, iniciada em 1926, foi apenas “um motor que impulsionou
Gallet a refletir sobre uma trajetória que ele mesmo vinha traçando desde o início da
década de 20”. Segundo Bardanachvili (1995:30), os contatos com Mário de Andrade
fizeram Gallet se sentir cada vez mais pertencente a um movimento nacionalista.
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da Rádio Cultura do Brasil, cujo teor são propostas de organizar cursos


regulares de musicologia. Inicia neste mesmo ano, com o texto-manifes-
to “Reagir”, campanha pela orientação do gosto musical. Rosane Barda-
nachvili relata em linhas gerais a missão que se atribui o compositor:
além de fundar associações, Gallet “pensava também em comércio mu-
sical, em intercâmbio internacional, em métodos didáticos para o apren-
dizado da música brasileira, em programas de rádio, em revista musical,
em reformulação de curriculum das escolas de música, em organização
de concertos” etc. (1995:70).
A maneira pela qual Gallet lida com o repertório musical popu-
lar é também bastante ilustrativa do procedimento ancorado no ideal
da Bildung. Afinado com o tipo de sensibilidade que valoriza o passa-
do estético, o compositor se propõe a harmonizar algumas canções
brasileiras. Apesar de dizer que não se trata de compor, ou de estilizar
essas canções, e mesmo limitando sua tarefa a um intuito didático, ele
admite ter trabalhado para a sua própria evolução e para a alheia, “com
o enriquecimento e comentário rítmico, harmônico e polifônico de
cada peça” (Luciano Gallet apud Bardanachvili, 1995:84). Mário de An-
drade discorda do tom humilde de Gallet, assim como da afirmação do
compositor de que seu trabalho se limita a “puras harmonizações ilus-
tradas com ritmos característicos”, já que, segundo Gallet, em todas as
composições que ele trabalha a linha melódica é conservada autêntica.
Mário argumenta:

Isso não é verdade e creio mesmo que Luciano Gallet é artista por demais
para se sujeitar a esse trabalho etnográfico. Fatalmente a “colher torta” do
criador mexe o virado. Luciano Gallet está mais é fazendo obra de muito
boa criação (apud Bardanachvili, 1995:84).

Esse ideal da Bildung também se revela na discussão moder-


nista através de algumas categorias de Mário de Andrade, como o
“músico interessado”, ou o “músico completo”. Tais categorias se
constroem em função de uma postura pedagógica que se propõe for-
mar não só concepções artísticas como também subjetividades afina-
das com a nova estética. Contier (1992:272-3) refere-se, por exem-
plo, a manifesto de Renato Almeida de 1926 — História da música
brasileira —, no qual algumas obras de Villa-Lobos, como os Cho-
ros, são vistas “como sintomas do aparecimento do homem novo,
capaz de aglutinar discípulos comprometidos com o ‘coletivo' e com
a modernidade”. E, ao que tudo indica, quem mais se aproxima desse
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ideário modernista é Villa-Lobos,23 cabendo-lhe como uma luva a


qualificação de “músico artista”, o qual, segundo Mário, estaria en-
carregado de “assuntar” a “realidade da execução popular” e desen-
volvê-la. É justamente Villa que é citado por Mário como autor de tal
procedimento:

Mais uma feita lembro Villa-Lobos. É principalmente na obra dele que a


gente encontra já uma variedade maior de sincopado. E sobretudo o de-
senvolvimento da manifestação popular (Andrade, 1962:37).

De fato, Villa realiza como ninguém a prática antropofágica pre-


conizada pelo escritor com relação ao populário, trabalhando as mani-
festações da tradição popular — como o chorinho carioca e vários rit-
mos regionais — com um instrumental erudito legado pela cultura
ocidental. Disso resulta, evidentemente, uma obra mesclada de tendên-
cias tanto nacionais quanto universais, a despeito da trajetória do com-
positor, marcada, principalmente a partir de 1930, por uma prática in-
tervencionista de cunho nacionalizante. Luiz Paulo Horta destaca, por
exemplo, a influência francesa — que estaria “no ar”, “no inconsciente,
ou no subconsciente” — não só sobre o compositor, como também
sobre o próprio ambiente carioca da belle époque. Mas Villa, segundo o
autor, procederia permanentemente, na obra e na vida, através da
união de contrários, conciliando sempre a tradição da disciplina, re-
presentada pela presença de Bach, com a experiência da liberdade, vi-
venciada com os chorões. Horta acrescenta: “A sua boemia foi sóbria:
em vez de álcool, café forte (fortíssimo). E a imaginação delirante não
cortou a capacidade de trabalho” (1987:17-22).
O compositor nem sempre corresponde, no entanto, ao perfil do
músico-artista delineado por Mário, principalmente quando incorre em
alguns deslizes, tendendo ao exotismo (com a pseudomúsica indígena,
por exemplo) ou ao individualismo. Mário dá a entender que a carreira

23
Luciano Gallet também foi alvo da atenção de Mário de Andrade nos anos 20, em-
bora nunca tenha alcançado, no cenário musical, a mesma visibilidade de Villa-Lo-
bos. José Miguel Wisnik descreve a situação singular de Gallet na música brasileira:
“Segregado tanto naquela parte inicial de sua obra que o modernismo nacionalista ro-
tulou de ‘francesismo', como no aproveitamento rigoroso e sintético do folclore em
sua obra posterior, Luciano Gallet foi condenado então ao naufrágio pela quase in-
viabilidade dos propósitos de sua música num meio açambarcado pelo nacionalismo
de efeito fácil e vistoso” (1983:54-5).
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de Villa-Lobos estaria sofrendo um desvirtuamento em função de seu


sucesso — devido em grande parte ao apelo ao exótico — “mais indi-
vidual que nacional” (Andrade, 1962:14). Dois anos depois do Ensaio
sobre a música brasileira, em artigo de crítica musical — “Villa-Lobos
versus Villa-Lobos” —, Mário retoma esse tipo de preocupação não só
com a obra, como também com a vida do compositor. Reporta-se, por
exemplo, às etnografias fantasiosas produzidas na época sobre os con-
tatos de Villa-Lobos com os índios, como a publicada em Paris, que atri-
bui a ele o episódio supostamente ocorrido com Hans Staden, socorri-
do a tempo por missão científica alemã de ser devorado por índios em
ritual antropofágico (Andrade, 1963:143-4). Quanto ao viés individua-
lista do compositor, Mário chega a se referir a Villa como bicho-do-
mato, ou seja, uma pessoa em que “as violências, os erros, as grande-
zas, os defeitos, os valores se realizam sem controle, sem nenhuma or-
ganização social”. Ou então reprova os excessos da imaginação cria-
dora de Villa, dizendo que em sua personalidade musical há “uma
permanente falta de autocrítica, uma perigosa complacência consigo
mesmo” (1963:161). Villa-Lobos, no entanto, não perde o título de “mú-
sico da Semana” — na condição de único compositor brasileiro a cons-
tar nos programas —, nem tampouco o acompanhamento fiel do críti-
co Mário de Andrade, tanto para apreciar grande parte de sua obra
quanto para alertá-lo sobre os perigos que incorre em função de sua
tendência a um individualismo indomável. Vemos portanto que esse
conceito de modernidade, moldado por um esforço formal e constru-
tivo, projeta os ideais de contenção no plano da subjetividade. Afinal, a
“música nacional” exige um homem novo, cuja vontade deve ser apla-
cada e cujos excessos de personalidade devem ser aparados meticulo-
samente. Delineia-se este “homem novo” tal como no ideal de “cultivo”
do romantismo alemão, em que se busca a identidade original do in-
divíduo para em seguida limpá-la dos traços fortuitos, alcançando
assim o ideal grego de autocontrole e do pleno desenvolvimento das
faculdades humanas.24
Mas esse coro clássico que parece ser engendrado a propósito de
Villa-Lobos é acrescido, tal como se procede ao se orientar pela Bil-
dung, do elogio romântico da singularidade, da originalidade. Manuel
Bandeira, por exemplo, em artigo de 1924 para Ariel, reconhece posi-
tivamente o gênio de Villa-Lobos:

24 Ver Bruford, 1975.


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Villa-Lobos acaba de chegar de Paris. Quem chega de Paris espera-se que


venha cheio de Paris. Entretanto Villa-Lobos chegou de lá cheio de Villa-
Lobos. A ardente fé, a vontade tenaz, a fecunda capacidade de trabalho
que o caracterizam renovam a cada momento em torno dele aquela at-
mosfera de egotismo tão propícia às criações verdadeiramente pessoais.
A maioria dos artistas estrangeiros que vão a Paris estudar ou trabalhar
quase nada logram fazer nos primeiros tempos [...]. Fica-lhes a sensibili-
dade como que desnorteada pelo tumulto de todo um mundo novo de
sensações. A sensibilidade de Villa-Lobos, porém, resistiu ao choque trau-
mático Paris. [...] A formação dos outros como que vem de fora para den-
tro; a dele, de dentro para fora. Formação vulcânica, não sedimentária. A
qualidade dominante do seu espírito é a imaginação, a que deve a sua
música aquela prodigiosa riqueza de ritmos e de combinações de timbres
que espantou a Schloezer. Villa-Lobos não precisava ouvir com os ouvi-
dos do corpo as excelentes orquestras de Paris. Pela sua imaginação alu-
cinatória ele as antecipava interiormente [...] (1924b:475, grifo meu).

Dito de outro modo, tenta-se criar, no nosso cenário musical mo-


dernista, espíritos coletivistas, prontos a rechaçar as tentações do indi-
vidualismo e a corrigir os desvirtuamentos de nossa “moral cultural”
(Andrade, M., 1975:237). Tudo indica que o “homem novo” de Renato
Almeida configura-se através do ideal de “cultivo” próprio da tradição
alemã (Simmel, 1971), muito bem representado pela imagem da trans-
figuração do homem natural em homem cultural (Contier, 1992). Proje-
ta-se um indivíduo que, se é livre o suficiente para controlar seu próprio
destino, molda-se, no entanto, pelo princípio do auto-aperfeiçoamento
(Dumont, 1994).
Em 1935, por ocasião da formatura de alunos do Conservatório
Dramático e Musical de São Paulo, Mário de Andrade, na condição de
paraninfo, apresenta em seu discurso uma categoria idealizada — o
músico completo — que se contrapõe à figura do músico especializa-
do, o virtuose, e se constitui negativamente aos valores do mundo bur-
guês. Faria parte desse mundo o fenômeno, condenado veementemen-
te por Mário, da “miserável mutação de música em comércio”, que
levaria os conservatórios brasileiros a viverem “numa pressão angus-
tiosa”:

[...] A própria circunstância de serem eles institutos em que o ensino se


sistematiza, se moraliza por assim dizer, os obriga a estatuir um ensino
mais legítimo de música. E assim, inicialmente eles nascem atormentados
pelo seu próprio destino, que os torna indestinados num país onde todos
pedem tocadores e ninguém pede música. A maioria dos conservatórios
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se comercializa então, engolidos pela torrente niveladora. Se tornam pro-


dutores de pianistas e violinistas, confundindo a elevação cultural da sua
finalidade com as acomodações despoliciadas do ensino particular. Não
são conservatórios, são cooperativas de professores particulares (Andra-
de, 1975:238-9).

Seria também recorrente nesse mundo o problema da vaidade in-


dividual, “que sacrifica os valores nobres da arte pela esperança dum
aplauso público” (Andrade, 1975:237). Eis como Mário investe contra a
“glória” em sua configuração burguesa:

Qual o pai que desejou tornar o filho um músico completo? Talvez ne-
nhum. Qual o pai que desejou ver o filho um pianista ou cantor célebre?
Talvez todos. Nós não andamos à procura da vida, e por isso a vida nos
surpreende e assalta a cada esquina. Nós andamos apenas suspirando pe-
la glória. A glória é uma palavra curta em nosso espírito, e significa ape-
nas aplauso e dinheiro. Nós nem queremos ser gloriosos, nós desejamos
ser apenas célebres [...] (1975:237-8).

Mas o cerne da questão, nesse discurso pessimista que Mário


profere em 1935, é sem dúvida seu desconsolo, motivado pela gui-
nada especializante e utilitarista desse novo mundo burguês que se
configura:

[...] O nosso músico precisa da existência universitária [...], porque a inob-


servância do nosso músico quanto à cultura geral é simplesmente ine-
narrável. Nenhum não sabe nada [...], os interesses completamente fe-
chados, duma estreiteza inconcebível, só e exclusivamente entreabertos
para as coisas da música. [...] Os violinistas vão aos recitais de seus pró-
prios alunos ou dos violinistas célebres, os pianistas só se interessam por
teclados. [...] Uma curteza de espírito assombrosa; um afastamento desleal
das outras artes, das ciências, da vida econômica e política do país e do
mundo; uma incapacidade lastimável para aceitar a existência, compre-
endê-la, agarrá-la; uma rivalidade vulgaríssima; uma vaidade de zepelin
sozinho no ar. Cada qual se julga dono da música e recordista em espe-
cialidade. A vida, a vida totalizada, se restringe a um dar lições, preparar
de vez em longe algum recitalzinho e falar mal dos colegas. Vida tão
exangue e inovadora que não se sabe mais se estamos dentro da música
ou dum mosqueiro de passagem (1975:242-3).

Mário de Andrade rejeita, neste discurso, o próprio ideal de vo-


cação no sentido que Max Weber confere ao termo. Quando Weber
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passou a intervir na cena pública alemã, no final do século XIX, a pers-


pectiva da Bildung já se encontrava em declínio. Vinculada ao ideal de
Kultur, que valorizava a cultura geral e o diletantismo, essa perspec-
tiva já não faria sentido num mundo de novas realidades sociais, com a
racionalização e o progresso consolidando o conhecimento útil. Uma
maneira de se enfrentar essa nova situação seria então a alternativa de
valorizar a tradição da Reforma em detrimento da tradição renascentis-
ta, substituindo o modelo grego pelo puritano. Propunha-se então a re-
tomar o conceito de vocação de sentido essencialmente religioso,
como o do calvinismo, porém desvinculado da ética extramundana que
lhe era atribuída por Lutero. Em face das crises valorativas da época, a
vocação — que pressupõe a atividade diferenciada de cada indivíduo
no trabalho deste mundo — tornou-se um poderoso instrumento para a
construção de uma identidade vinculada a um modelo que não impor-
ta em variedade nem em cultivo do self (como na Bildung), e sim em
especialização. O ascetismo (do tipo protestante) inserido nessa ética
dá uma ênfase muito maior à produtividade e à inovação do que à obe-
diência à tradição.25
E Mário, como vimos, levanta uma série de objeções aos fenô-
menos típicos de um universo de feitio burguês, menos afeito a valores
oriundos de experiências integradoras. Assim como contrapõe o vir-
tuose (especialista) ao músico completo, Mário investe contra a torrente
niveladora que avassala a vida musical, tornando comercializável a arte
e retirando do músico a aura, ou, em seus próprios termos, a “elevação
cultural”. Ao self fragmentado pela divisão do trabalho contrapõe valo-
res holísticos que remetem a um indivíduo cultivado, aperfeiçoado e
completo. Em vez do sujeito submetido aos limites da profissão — o
burguês especialista —, propõe o próprio homem da Bildung, “livre
para ser ele próprio” — o aristocrata, o diletante, o portador de cultura
geral (Dumont, 1994:102-3). Em carta a Schiller, Humboldt, um dos
principais ideólogos da Bildung, critica o estilo de vida do filisteu, que
vive para o trabalho e trabalha para satisfazer necessidades materiais.
Humboldt elogia a vida criativa e o gozo despreocupado da vida (Bru-
ford, 1975).
E complementando seu ataque ao domínio do utilitarismo bur-
guês, Mário apresenta a idéia de substituir as posturas meramente em-

25 Ver Goldman, 1989; e Bruford, 1975.


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penhadas na busca da felicidade individual por um espírito de luta re-


vestido de um “tropical amor do mundo”:

Eu não vos convido à ilusão! Nem vos convido muito menos à confor-
mista esperança, pois que fui o primeiro a vos substituir o vinho alegre
desta cerimônia pela água salgada da realidade. Eu não vos convido se-
quer à felicidade, pois que da experiência que dela tenho, a felicidade in-
dividual me parece mesquinha, desumana, muito inútil. Eu vos quero al-
terados por um tropical amor do mundo, porque eu vos trago o convite
da luta [...] (Andrade, 1975:256).

A estéti ca d a mon u men tali d ad e


Atingimos um ponto da discussão em que convém salientar a
correspondência estreita entre Bildung e tradição. No caso do projeto
musical modernista brasileiro, lida-se com um conceito de cultura
muito próximo ao formulado por essa vertente do romantismo germâ-
nico. Mas, apesar de sua vinculação com o passado, essa idéia de cul-
tura não é incompatível com a perspectiva de mudança, desde que o
mundo novo projetado se adapte às sinuosidades do terreno, aos obs-
táculos acumulados ao longo do tempo. Aplicado à musicologia mo-
dernista, o conceito de cultura auxilia a identificar o populário, peça-
chave, segundo Mário de Andrade, para que se crie a música nacional.
Para se realizar esse projeto, pode-se — e deve-se — recorrer aos pro-
cessos de harmonização desenvolvidos pelos europeus. Mas esses pro-
cessos só podem ser acionados para trabalhar uma matriz original, que
seja representativa de nossas características raciais. A cultura, portanto,
dado o seu vínculo forte com a tradição e a sua perspectiva essencia-
lista, não seria condizente com práticas revolucionárias; o conceito, tal
como empregado aqui, remete à idéia de evolução.
A Bildung mantém-se também vinculada ao ideal de totalidade.
Esse aspecto, de igual forma, não a torna incompatível com o projeto
construtivo dos nossos modernistas, desde que o mundo novo vislum-
brado — a nação brasileira — tenha seu contorno redondo, plenamen-
te acabado. Esse ideal de completude, próximo do modelo da Bildung,
indica a maneira pela qual os ideólogos musicais do modernismo cons-
troem sua imagem de sociedade. Mário de Andrade, por exemplo, mui-
tas vezes a concebe como uma totalidade, como também é o caso de
Villa-Lobos. Enio Squeff (1993:67) desenvolve essa questão, tentando
mostrar que tanto Villa-Lobos quanto Mário fazem um mapeamento
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musical do Brasil: o músico, através de sua própria obra, e o escritor, a


partir de uma perspectiva filosófica ou conceitual. Se Mário envereda
por uma cruzada pedagógica, recolhendo peças do repertório popular
e investindo na formação de músicos interessados no projeto nacional,
é Villa-Lobos que, antecipando-se aos modernistas, empreende via-
gens desde 1905 pelo interior do país (Nordeste, Mato Grosso, Goiás e
Minas Gerais), tentando realizar “o sonho de conhecer o Brasil” (Horta,
1987:18-23). E é Villa-Lobos quem se propõe a realizar, à frente da Su-
perintendência da Educação Musical e Artística (Sema), a partir de
1932, o projeto acalentado por Mário de unificar o Brasil através do co-
ral, a que o escritor atribui no Ensaio sobre a música brasileira um valor
musical e social. A este direcionamento tomado por Mário de Andra-
de, Villa-Lobos e outros musicólogos do movimento — que, como vi-
mos, tende a assumir um compromisso com um projeto de totalida-
de, caracteriza-se sempre pelo recurso ao excesso e costuma resultar
numa certa gravidade — daremos o nome de estética da monumen-
talidade.
A perspectiva unanimista desse tipo de estética já aparece esbo-
çada em 1924, na revista Ariel, cuja seção “Sinfonietta” apresenta um
texto programático com o seguinte teor:

[...] Precisamos quanto antes desenvolver o canto coral entre nós. [...] a
fundação de sociedades corais brasileiras viria preencher a lacuna talvez
mais sensível da nossa cultura. E talvez também assim modificaríamos em
parte este excessivo individualismo latino da nossa gente e tornaríamos a
nação mais humana e mais harmoniosa e unânime nos seus movimentos
de progresso. [...] (Ariel, 1924:146.)

Essas expectativas de completude, continuidade e essência há


muito — desde a Grécia antiga — se incorporaram às concepções de
arte e cultura no Ocidente. Só no século XIX se verificaram mudanças
nessas concepções, como respostas aos efeitos da industrialização
emergente, do surgimento da sociedade de massas e das mudanças so-
ciais subseqüentes. Assim, no século XVIII a palavra arte remetia à
idéia de “habilidade manual”, enquanto cultura tinha a conotação de
“cultivo”, tanto de plantas quanto de seres humanos. No século XIX
ocorre uma mudança nesses conceitos: não só a arte passa a designar
uma atividade associada à pureza, à espontaneidade e à criatividade,
como também o artista passa a ser referenciado à figura do gênio, isto
é, um indivíduo especial, portador de uma sensibilidade refinada.
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Quando esse tipo de concepção se torna hegemônico, o artista se se-


para da sociedade — de massa ou burguesa —, colocando-se contra
ela. O termo cultura sofre uma transformação semelhante, passando a
significar algo elevado, acima da média. Recorre-se então à arte e à cul-
tura, nesse contexto, para se proteger dos perigos da vulgaridade e do
nivelamento.26
Não há como negar que, ao longo do século XIX, tais categorias
sofreram novos desenvolvimentos, principalmente com a criação do
conceito antropológico de cultura. A partir dessa nova definição, ques-
tiona-se a perspectiva universalista e postula-se a diversidade humana.
Mas há quem afirme, como James Clifford, que as definições do século
anterior não foram inteiramente transformadas, na medida em que esse
conceito manteve seu significado original: “um corpo coerente que vive
e morre”. Clifford complementa: “A cultura é permanente, tradicional,
estrutural (em vez de contingente, sincrética, histórica). A cultura é um
processo de ordenação, não de ruptura. Ela muda e se desenvolve
como um organismo vivo. Ela normalmente não ‘sobrevive’ a altera-
ções abruptas” (1988:233-5). Trata-se de uma acepção a-histórica de
cultura, em que a tradição é vista como algo a ser cultuado, velado; va-
loriza-se portanto a repetição, e não a ruptura. Esse tipo de interpreta-
ção organicista encontra correspondência numa estética essencialista e
não existencialista, grave e densa, ao invés de irreverente e leve, e so-
bretudo inteira, imune às contaminações e às rachaduras do tempo.
Tal procedimento é bastante visível no campo da arquitetura,
principalmente na Itália, que abriga, como observa Massimo Canevac-
ci, “os maiores e mais sufocantes vestígios de um passado monumental
e comemorativo” (1993:74). Assim, argumenta, não foi sem razão que
este país se tornou o cenário ideal do futurismo que, em seus primór-
dios, acirrou a crítica da estética monumental e seu estilo neoclássico.
Em manifesto de 1914, por exemplo, Sant'Elia proclama o rompimento
com a tradição arquitetônica em nome da “formidável antítese entre o
mundo moderno e o antigo”:

[...] Perdemos o sentido do monumental, do pesado, do estático, enri-


quecemos a nossa sensibilidade com o gosto pelo leve, pelo prático, pelo
efêmero, e pelo veloz. Sentimos que não somos mais os homens das ca-
tedrais, dos palácios e dos púlpitos; mas dos grandes hotéis, das estações

26 Ver Clifford, 1988.


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ferroviárias, das imensas estradas, das portas colossais, dos mercados co-
bertos, das galerias luminosas, das auto-estradas, das demolições saudá-
veis (apud Bernardini, 1980:157).

Nesse texto programático, Sant'Elia refere-se a uma estética mo-


numental que se constrói através do excesso — de adornos, de peso, de
riqueza, de reverência etc. Trata-se de uma forma artística apegada à
memória, ao cultivo de uma tradição mítico-ancestral.
Interessa particularmente a esta análise que desenvolvo a inter-
pretação de Reginaldo Gonçalves da monumentalidade como uma das
modalidades de discurso que vigoraram nas narrativas do patrimônio
histórico brasileiro, principalmente a partir dos anos 30, sob a gestão de
Rodrigo Melo Franco de Andrade. Caracteriza esse tipo de narrativa a
idéia de que o presente não prescinde do passado; assim, cabe à tra-
dição — representada pelos bens do patrimônio — fazer a mediação
entre o momento contemporâneo e os tempos idos, que lhe são supe-
riores. Essa estratégia discursiva tende também a construir uma visão
homogênea de nação, à qual os indivíduos aparecem totalmente sub-
metidos. Representando-se, dessa maneira, a nação como uma totali-
dade, cria-se uma idéia de espaço público “monológico, policiado, fe-
chado”, e ao mesmo tempo “sem diferenças, sem pluralidade”.27
No campo musical, as realizações do tipo monumental geralmen-
te se associam às obras sinfônicas, que permitem, dada a sua própria na-
tureza, efeitos grandiosos. O excesso manifesta-se em tais obras através
de vários meios, desde a própria abundância e variedade de instrumen-
tos de que dispõe a orquestra sinfônica até recursos expressivos vários,
como os extremos dinâmicos (fortissimo seguido de pianissimo, por
exemplo), a extensão dos movimentos, a abundância de temas diferen-
tes e a complexidade do desenvolvimento, entre outros. Costuma-se as-
sociar o excesso ao próprio espírito europeu da belle époque, em que os
artistas tentam prover a elite rica e zelosa dos costumes de novidades
com pouco teor transgressivo. O ideal, segundo J. Jota de Moraes, seria
envolver as novidades musicais “com o luxo do canto e da dança, dos ce-
nários e dos figurinos, a fim de que não se tivesse muito trabalho ao di-
gerir a própria música”. Moraes também lembra que este é o momento
dos grandes cantores italianos e alemães (“que tinham suas carruagens
puxadas por admiradores”), das orquestras que cada vez mais se amplia-

27 Gonçalves, 1996a:10-6. Ver também Gonçalves, 1996b.


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70 O vi olão azu l

vam, chegando-se à experiência de Mahler, que escreve uma sinfonia


para mil executantes, e dos “feéricos Ballets Russes de Sergei Diaghilev”.
Em suma, Moraes lembra que os primeiros anos do século foram mar-
cados pela “exacerbação extrema dos meios expressivos”, resultando no
“colossal” cultivado por Mahler e Strauss.28
É importante observar que o excesso não realiza necessariamente
obras monumentais; assim, Diaghilev lida com coreografias ricas e des-
lumbrantes, sem valer-se de perspectivas unanimistas. Por outro lado,
não se concebe a criação da retórica monumental sem o concurso do ex-
cesso. Os concertos em praça pública, por exemplo, que segundo Enio
Squeff se consolidaram com a nova prática ritualística inaugurada com a
Revolução Francesa, recorreram não só a uma retórica monumental mas
também a uma estética excessiva em todos os aspectos. Procurava-se
promover um estado de mobilização constante, para o qual se valiam
principalmente da música instrumental e de imensos corais para serem
cantados pelas massas. Isso explica em grande parte o fato de as orques-
tras sinfônicas se desenvolverem muito durante a revolução, e de se co-
meçarem a substituir os instrumentos de corda pelos instrumentos de so-
pro, que teriam mais massa sonora. Squeff chama a atenção para a
importância de Gossec29 nesses acontecimentos, ao compor o Canto do
14 de julho “para ser entoado pela multidão no dia em que a revolução
celebrou a primeira Festa da Federação (14 de julho de 1790)”:

Serão executadas várias peças musicais. Uma delas é a abertura de uma


ópera de Vogler (Georg Joseph, 1749-1814); mas outra, a que fez mais su-
cesso entre a multidão, calculada em 200 mil pessoas (uma marcha lúgubre

28 Moraes, 1983:16-42. Segundo este autor, expansão e transfiguração são as palavras-

chave para a compreensão da linguagem mahleriana. Essa linguagem teria expandi-


do o conceito de “material temático”. Assim, “em vez dos habituais dois temas con-
trastantes — base sobre a qual erigia-se, até então, a forma-sonata —, passou a fazer
o discurso girar sobre uma verdadeira multidão de pequenos temas e de longas me-
lodias, ao ponto de a exposição de algumas de suas sinfonias apresentarem, antes de
desenvolvê-las, oito a 10 idéias fundamentais contrastantes, onde os instrumentos fre-
qüentemente são utilizados como verdadeiros solistas. E, não contente apenas com o
instrumental colocado à sua disposição, chegou a incorporar vozes de cantores, de
crianças e de grandes coros à sua já enorme massa orquestral” (1983:58-9).
29 François-Joseph Gossec (1734-1829) foi um dos principais compositores da França

do século XVIII, cujas sinfonias e peças de câmara lançaram as bases das formas or-
questrais do período clássico na França (Encyclopædia Britannica, 1980).
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em homenagem aos mortos recentes contra os realistas em Nancy) será, de


novo, do próprio Gossec — e nada menos que 1.200 instrumentistas de so-
pro a executarão com várias outras músicas. O efeito deve ter sido tre-
mendo. Além de usar o tantã, um instrumento relativamente raro na música
de concerto até ali, e de ter incluído a tuba em algumas de suas peças [...],
Gossec praticamente institucionalizará os clarinetes como substitutos dos
violinos nas orquestras formadas só com sopros. É possível que esta não
seja a única origem das modernas bandas, militares ou não. Mas, sem os
cometimentos orquestrais de Gossec, a história das bandas e das modernas
orquestras sinfônicas seria provavelmente outra [...] (Squeff, 1989:45).

Quando se toma a estética de Villa-Lobos como exemplo de es-


tética que se realiza pelo excesso, observa-se que um recurso particu-
larmente importante é a diversidade de informações musicais utiliza-
das, provenientes das mais diferentes tradições — européia, indígena e
africana; urbano-cosmopolita e rural-regional. Wisnik (1983:169) obser-
va que o aspecto monumental de sua obra visaria a responder às ex-
pectativas do meio social: “a música de Villa-Lobos parece correspon-
der plenamente à idéia de ‘país novo', segundo a qual os países da
América Latina tenderam a ser vistos, até mais ou menos a altura de
1930, pelo ângulo da sua pujança virtual e, pois, da grandeza ainda
não realizada”. Esse momento coincide com a difusão das inovações
ocorridas na Europa no início do século, em particular a “descoberta”
das músicas folclóricas russa (Stravinski) e húngara (Bartók), com seus
ritmos irregulares e harmonias inusitadas. Em particular, o primitivismo
brutalista do primeiro Stravinski — o da Sagração da primavera (1913)
e As bodas (1923)30 — parece singularmente adequado para conotar a
idéia de pujança étnica, de virilidade não corrompida pelos refinamen-
tos da civilização. Devidamente diluída e edulcorada por Carl Orff —
compositor cuja obra foi aceita e elogiada pelos nazistas como legítima
expressão do vigor ariano31 —, essa mescla de primitivismo e grandio-

30 Sobre
As bodas, escreve Eric Salzman na contracapa da gravação de Pierre Boulez:
“A obra foi concebida em 1912 e composta entre 1914 e 1917, porém a presente ins-
trumentação só foi completada em 1923”.
31 A respeito de Carl Orff, o musicólogo britânico Gerald Abraham observa: “O único

tipo de modernismo aceitável no Terceiro Reich era o primitivismo ritmicamente hip-


nótico, totalmente diatônico, das cantatas de Orff Carmina burana (1937) e Catulli
carmina (1943), e sua ópera Die Kluge (A mulher esperta, 1943). Ironicamente, as au-
toridades da pátria do bolchevismo estavam nessa mesma época tentando reprimir
este exato tipo de música por ser ‘formalista’ e antiproletária” (Abraham, 1979:840).
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sidade deixou marcas no Villa-Lobos que compôs obras como os cho-


ros Rasga o coração (Choro nº 10, 1926) e Pica-pau (Choro nº 3, 1925),
e que promoveu o canto orfeônico nas escolas, regendo “monumen-
tais massas orfeônicas em estádios de futebol” e corais de “até 40 mil es-
colares, cantando músicas a duas, três e quatro vozes” (Enciclopédia da
música brasileira, 1977:795).
Algumas composições musicais, como as de Carl Orff e as de
Villa-Lobos pós-anos 30, causam realmente impacto, tendo em vista os
recursos grandiosos utilizados ao concebê-las e executá-las. Um bom
exemplo são as Bachianas brasileiras nº 7, obra que Villa-Lobos com-
põe para orquestra em 1942 e dedica a Gustavo Capanema. Nos nomes
dos quatro movimentos que a constituem, Villa-Lobos faz alusão a gê-
neros musicais folclóricos de várias partes do Brasil. Ao prelúdio ele dá
o nome de “Ponteio”; o segundo movimento, a giga, seria uma “Qua-
drilha caipira”; o terceiro, a tocata, é um “Desafio”; e o quarto, a fuga,
“Conversa”. Porém, trata-se de uma peça cuja concepção e realização
têm, na harmonia convencional, no melodismo fácil, na orquestração
grandiloqüente, pouco de bachiano, quase nada de brasileiro e muito
de romântico tardio. Como observa J. Jota de Moraes (1983:174-5), essa
composição é um bom exemplo sonoro das contradições do pensa-
mento musical de Villa-Lobos. Assim, segundo Moraes, apesar de Villa
se propor a conciliar a linguagem de Bach com elementos folclóricos
brasileiros, ele é levado, na prática, a seguir a tendência neoclássica eu-
ropéia, que buscava recuperar o antigo.
Reforço, no entanto, o argumento de que o excesso não remete
necessariamente a uma visão totalizadora e a uma estética monumen-
tal. Villa-Lobos, como vimos, cria um tipo de elaboração musical
muito próximo do ideal da Bildung, transformando o material bruto
das fontes populares através de um processo de cultivo, para o qual
concorrem não só as técnicas da civilização como também uma con-
cepção de sistema — ou uma aspiração à totalidade — muito própria
dessa tradição alemã. Já Stravinski desenvolve, recorrendo ao exces-
so, um idioma personalíssimo — sem criar uma estética totalizante e
monumental —, misturando a tradição romântica russa de Tchai-
kovski e Rimski-Korsakov com folclore eslavo e classicismo ociden-
tal, Pergolesi e Mozart, tango e ragtime, música circense e música sa-
cra, dodecafonismo e brutalismo rítmico, em diferentes fases de sua
longa carreira.
Uma boa maneira de distinguir esses dois procedimentos estéti-
cos — o de Villa-Lobos e o de Stravinski — é ver como cada um in-
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corpora o repertório musical preexistente. Se a estética monumental, tal


como a desenvolvida por Villa-Lobos a partir dos anos 30, incorpora
uma gama variada de materiais ao trabalho artístico, ela o faz na maio-
ria das vezes recorrendo à citação: da música indígena, do choro, do
sertanejo etc. Mas desenvolve-se, nesse caso, uma atitude reverente
para com as fontes incorporadas, o que resulta numa composição so-
lene, em que o material citado atua de modo a conferir suntuosidade e
pompa à linguagem musical.
Já Stravinski, numa trajetória mais errática do que a de Villa-Lo-
bos, entra pelos anos 10 abandonando uma orientação atada ao roman-
tismo e inaugurando a incorporação dos traços russos através de uma
forma áspera e dissonante. Sagração da primavera (1913), por exem-
plo, assim como As bodas (concebida em 1912) aparecem nesse con-
texto como peças violentamente experimentais. Nos anos 20, entrando
numa fase associada ao neoclassicismo, lida de outra forma com os
procedimentos metamusicais. Em Pulcinella (1920), por exemplo,
volta-se para o passado clássico ao utilizar material atribuído a Pergo-
lesi (1710-36), porém o faz de modo irreverente, valendo-se de uma
instrumentação por vezes francamente humorística, recorrendo alter-
nadamente ao pastiche e à paródia.
No campo das artes plásticas, Cândido Portinari se projeta —
principalmente a partir de 1932, quando retorna ao Brasil depois de
uma longa estada em Paris — com suas criações no estilo monumental,
visivelmente influenciado pelos muralistas mexicanos. Em artigo sobre
a mostra do pintor de 1934, em São Paulo, Oswald de Andrade refere-
se à nova guinada de Portinari, resultante de seu posicionamento con-
tra a arte neutra, tendendo a uma “monumentalidade escultórica”, à
“superação do quadro de cavalete” e ao seu encaminhamento para o
afresco (apud Fabris, 1996:34). Lavrador (Preto de enxada, 1934) passa
a ser citado por vários críticos como obra paradigmática dessa nova
fase de Portinari, em que, movido pelo interesse social, procura dar
forma ao homem de carne e osso empregando técnicas e recursos da
pintura mural e da escultura, em vez de desenvolver formas abstratas
(Fabris, 1996:36).
Annateresa Fabris argumenta que essa mudança na trajetória de
Portinari corresponde à própria guinada dos modernistas brasileiros
nos anos 30, que tendem a substituir a atitude experimental do início
do movimento por um gesto de compromisso com as questões polí-
ticas e sociais. O tema, portanto, passa a ser enfatizado, sobretudo o
de natureza social. Assim, o expressionismo dos primeiros tempos,
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74 O vi olão azu l

configurado por uma poética individualista, adapta-se ao momento


construtivo tentando expressar o ser social. Utiliza-se então a defor-
mação como instrumento de crítica, como denúncia da situação dos
vencidos, dos injustiçados, dos excluídos (Fabris, 1996:51). Mas trata-
se de um tipo de estética representativa dos impasses encontrados
por vários modernistas brasileiros a partir dos anos 30, que tentam
conciliar a experimentação formal com a atitude construtiva. Mário de
Andrade, por exemplo, a propósito da mesma mostra, em artigo para
o Diário de São Paulo (15-12-1934), afirma que a pintura mural de
Portinari reflete o drama do artista contemporâneo, “que não quer
abandonar nem os direitos desinteressados da arte pura, nem as in-
tenções interessadas da arte social”. Mestiço (1934) o impressiona
mais do que as outras obras, por expressar tanto o homem nas suas
relações de trabalho quanto a experimentação puramente formal, na
qual o óleo, “sem desmentir a sua natureza, consegue no entanto um
peso e uma eternidade de bronze” (Mário de Andrade apud Fabris,
1996:37).
Portinari opta portanto por uma estética que lida com duas
concepções opostas de temporalidade. Por um lado, mostra seu vín-
culo com as questões modernistas ao captar o homem de seu tempo,
vinculado a um contexto social específico e a uma atividade cotidi-
ana. Por outro, ao empregar técnicas e idéias da arte clássica — his-
toricamente associadas à perspectiva monumental — para desenvol-
ver temas contemporâneos, mostra-se mais empenhado em congelar
determinados aspectos da vida do que em captar sua efemeridade,
como procedem várias vanguardas de sua época. E também à con-
tramão de algumas vanguardas européias, que se voltam para a des-
coberta da cidade em todos os seus aspectos, Portinari inicia a nova
fase representando o homem rural, principalmente o referenciado à
sua biografia, a Brodósqui, sua cidade de origem no interior de São
Paulo. Mantém-se fiel a uma atitude modernista que não dispensa,
porém, o clássico, tentando desenvolver uma atitude ao mesmo
tempo iconoclasta e engajar-se no restabelecimento de uma certa
ordem ligada a ideais de perenidade. Ou, como percebe Flexa Ribei-
ro em crítica visivelmente comprometida com esse ideal de ordem,
Portinari ora procede segundo o cacoete moderno, utilizando a de-
formação, ora opera nos moldes figurativos tradicionais (Fabris,
1996:46). Fabris detecta a preocupação de uma certa tendência
artística paulistana com a volta à ordem em artigo de O Estado de S.
Paulo, em que se atribui a Portinari a função de inserir a arte brasi-
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leira na tendência “clássico-moderna” que passa a vigorar na Europa.


Cabe-lhe portanto a responsabilidade de restituir à arte brasileira a
razão e o bom gosto (Fabris, 1996:42). Fabris também chama a aten-
ção para os valores estéticos fascistas (na acepção de Soffici) defen-
didos por Fanfulla ao fazer a crítica da mostra de Portinari, ressaltan-
do o viés clássico inerente ao trabalho do pintor, assim como à arte
latina em geral, o seu apego ao “domínio do natural” e o seu proce-
dimento fundamentado nos ideais de ordem e harmonia, além de
“profundamente nacional”. Fabris acrescenta à sua interpretação do
artigo “La mostra di Cândido Portinari”, extraído de Fanfulla:

Ser nacional implica buscar uma expressão “clássica à maneira italiana”,


na qual o real e o ideal, o objetivo e o subjetivo, o moderno e o tradi-
cional se encontram lado a lado e se fecundam reciprocamente. É a partir
desse quadro de referências que se desenha o retrato de Portinari como
artista engajado numa expressão intelectual, mas não contemplativa, na
qual a vida do espírito se conjuga à vida do corpo, na qual a idéia brota
diretamente da sensação (1996:44).

Como vimos, esse tipo de orientação que se ancora no modelo


da Bildung recorre ao monumental para dar forma às suas aspirações
de continuidade, essência e totalidade. Cabe ao artista, portanto, não
apenas captar como também representar uma natureza que se atribui a
um indivíduo e/ou coletividade, concebidos como mônadas, como
todos homogêneos que dispensam fragmentações. No caso de Villa-Lo-
bos, principalmente a partir dos anos 30, é comum o uso de procedi-
mentos metalingüísticos, como a citação de peças folclóricas. Imbuí-
do, no entanto, de um grande apego à tradição, assim como de um
ideal unificador, Villa reverencia os textos musicais que lhe servem de
fonte, como se eles detivessem a alma nacional. Portinari, de maneira
semelhante a Villa-Lobos, substitui o experimento com formas abstra-
tas, que desenvolvia no início de sua carreira, pela monumentalidade
escultórica, mais conformada ao padrão clássico-moderno. E o expres-
sionismo, quando utilizado, coloca-se a serviço do coletivo, e não
como expressão da subjetividade, tal como concebido pelos artistas
alemães.
Portinari e Villa-Lobos reinventam, no entanto, a tradição, seja a
referenciada à natureza exuberante, como Villa procede, por exem-
plo, ao criar a peça musical Floresta do Amazonas (1958), seja a uma
cultura localizada num momento histórico determinado, como a refe-
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76 O vi olão azu l

renciada ao passado de Portinari em Brodósqui. E tanto um quanto o


outro promovem uma descontinuidade com o período anterior, radi-
calmente contaminado pelo sopro civilizador. Na fase anterior à eclo-
são da atitude modernista, as manifestações culturais legadas pelo pas-
sado colonial escravocrata, associadas à barbárie e ao primitivismo,
eram rejeitadas em nome do branqueamento do país. O que caracte-
riza o modernismo, mesmo na versão ordenadora do projeto musical
brasileiro, é justamente o esforço de superar essa oposição, adotando
porém um tom absolutamente elevado e monumental para articular o
erudito e o popular.
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2
O api to d a fáb r i ca
d e teci d os

Sou do sereno
Poeta muito soturno
Vou virar guarda-noturno
E você sabe por quê
Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto do piano
Estes versos pra você
Noel Rosa, Três apitos

A estéti ca d a si mpli ci d ad e
Poderíamos identificar uma segunda prática ao longo dos anos 20
e 30 no modernismo brasileiro — a que denominaríamos estética da sim-
plicidade — que, ao contrário da experiência totalizante da arte monu-
mental, opera no registro da fragmentação. Trata-se de uma opção pelo
simples que não recusa, entretanto, o excesso ou qualquer tipo de trans-
bordamento; a seriedade, quando acolhida, vem sempre matizada com o
senso de humor. Enquanto a linguagem elevada e grave do registro mo-
numental conforma a música modernista, como a de Villa-Lobos nos
anos 30, ou a pintura social de Portinari, o espírito da simplicidade ma-
nifesta-se em obras literárias do movimento, em que se incluem tanto es-
tudos de cunho sociológico quanto textos ficcionais e poéticos. Observa-
capitulo2 final.fm Page 78 Thursday, December 13, 2007 11:31 AM

78 O v i ol ão a zu l

se esse procedimento, no cenário modernista, na obra de Gilberto


Freyre dos anos 30 — particularmente Casa-grande & senzala e Sobra-
dos e mocambos —, nos manifestos, poemas e romances de Oswald de
Andrade, em parte da obra literária de Mário de Andrade, nos poemas
de Manuel Bandeira e outros. Esse espírito pouco afeito a elucubra-
ções totalizantes revela-se também em várias canções populares do pe-
ríodo, cujos autores — como Noel Rosa, Lamartine Babo e Ari Barroso
(antes da fase ufanista que tem início no final dos anos 30) —, alheios à
discussão modernista, atuam num registro mais individual e seguem o
ideal de despojamento nos planos lingüístico e musical.
Procurei formular o conceito de simplicidade a partir da análise
interpretativa de obras — principalmente musicais e literárias — que
fogem ao padrão monumental, desenvolvendo formas descomprome-
tidas com perspectivas unificadoras. Apesar desse esforço de configu-
rar modelos que facilitem a compreensão da estética produzida no pe-
ríodo, o termo “simplicidade” me foi fornecido pelos próprios atores
envolvidos na discussão modernista, notadamente os franceses já ci-
tados, vinculados à tendência musical denominada Grupo dos Seis.
Retomando a discussão do capítulo anterior, os integrantes desta ten-
dência se inspiram em manifesto de 1918, intitulado Le coq et l'arle-
quin, de Jean Cocteau. Nesse texto, Cocteau contrapõe a tradição mu-
sical francesa, caracterizada segundo ele por um procedimento
estético fundado no despojamento, às tradições alemã e russa que têm
início principalmente no final do século XVIII, às quais ele atribui prá-
ticas musicais excessivas e grandiloqüentes. De acordo com Darius Mi-
lhaud, um dos principais integrantes dos Seis, essa linhagem foi inau-
gurada na França por Gounod no século XIX. No entanto, a partir do
final desse século teria se formado uma clivagem na música francesa,
representada de um lado por Satie, que seria fiel a Gounod, e de outro
por Debussy, que desvirtuaria a vocação francesa da simplicidade, de-
senvolvendo uma arte subjetivista (impressionista) e desprovida de
clareza. Se o processo criativo de Satie, além de parodístico, se colava
ao mundo prosaico do dia-a-dia, o de Debussy, ao contrário, mostra-
va-se preso ao sublime. Adeptos da concisão, da objetividade e, acima
de tudo, da simplicidade, Milhaud e seus companheiros se viam, por-
tanto, como herdeiros legítimos do legado de Gounod e Satie.
Os músicos modernistas franceses constroem esse ideal de sim-
plicidade a partir de uma leitura singular que fazem de seu país e de
seu tempo. Se a modernidade emergente lhes exige renovação estéti-
ca, essa mudança só pode ser feita se retomarem a tradição. É em seu
capitulo2 final.fm Page 79 Thursday, December 13, 2007 11:31 AM

O api to d a fábr i ca d e teci d os 79

passado clássico, por exemplo, que reencontrariam a objetividade per-


dida por alguns músicos no final do século XIX, como é o caso, segun-
do eles, de Debussy. A França responderia, portanto, à provocação mo-
derna de uma maneira muito própria, sem a grandiloqüência dos russos
e alemães, mesmo porque a idéia de cultura dos modernistas franceses
é mais flexível, sem conotação de síntese. Por outro lado, os novos tem-
pos exigiriam uma atualização dessa linguagem, que deveria confor-
mar-se tanto às situações prosaicas do cotidiano das cidades, com suas
feiras e seu ritmo próprio, quanto ao nonsense do extracotidiano cir-
cense. Nas práticas rotineiras ou fora delas haveria o espírito popular a
ser captado, com suas formas “baixas” — do pregão do jornaleiro ao
sussurro da prostituta. É nesse sentido que o termo “simplicidade” re-
mete também à idéia de humildade.
Esse tipo de recurso a formas descomprometidas com ideais ele-
vados e totalizantes é identificado por Erich Auerbach a uma atitude
que surge no cristianismo medieval, a partir da qual se promovem mu-
danças nas classificações estilísticas da Antigüidade. Nesse ordenamen-
to dos antigos, os estilos elevado e baixo se distinguiam de acordo com
o nível do assunto a ser tratado. Recorria-se ao elevado para tratar de
atos heróicos e situações extraordinárias, associados a figuras míticas e
aristocráticas, tal como se procede na tragédia; e valia-se do baixo para
dar conta dos eventos banais do cotidiano. Santo Agostinho (século V)
teria sido o primeiro a embaralhar as separações defendidas por Cíce-
ro, deixando de reconhecer o critério segundo o qual o estilo era de-
terminado pelo nível do assunto abordado. Todos os temas cristãos, ar-
gumentava Agostinho, são sublimes, razão pela qual se deveria orien-
tar a escolha do estilo por um objetivo prático: ensinar, admoestar ou
empolgar. Promove-se então uma ruptura radical com a tradição da re-
tórica, já que, no contexto cristão, as coisas menores se tornam com-
patíveis com o estilo elevado, assim como os mistérios mais elevados
da fé passam a ser explicados pelo estilo baixo, mais acessível a um
maior número de pessoas. O termo latino humilis — que vem de hu-
mus, solo, e significa literalmente “baixo” — perde portanto a conota-
ção pejorativa que tinha na literatura não-cristã e começa a designar o
estilo baixo e a caracterizar a Encarnação e a Paixão de Cristo, atos in-
terpretados como humilhação voluntária, como uma escolha pela exis-
tência terrena e pelo sacrifício no meio dos pobres. A própria figura de
Cristo evoca tanto Deus quanto o Homem, tanto o sublime quanto o
baixo (Auerbach, 1993:30-45). Procuravam-se então nas Sagradas Es-
crituras passagens que remetessem à idéia de que a Revelação era re-
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servada aos pequeninos e ocultada dos sábios, de que Deus escolheu


como apóstolos homens humildes e não homens de posição social e
cultural elevada (Auerbach, 1987).
São Francisco de Assis (século XII) introduziu na própria vida a
conciliação do humilde com o sublime, atualizando radicalmente a fi-
gura de Cristo. Abriu mão da postura místico-contemplativa, recorrente
na tradição cristã, para exercer uma prática comprometida com o coti-
diano e o popular, recorrendo, para tanto, a uma representação por
vezes excessiva, tendendo para o grotesco, que acabou se disseminan-
do por toda a ordem franciscana. Assim, segundo Auerbach, o “exces-
so de força expressiva drástica converteu os irmãos em criadores e,
logo também, em objeto de anedotas cênicas, jocosas e, freqüentemen-
te, grosseiras ou obscenas”. Essa atitude dos franciscanos teria em
muito influenciado o realismo grosseiro que se alastrou na tardia Idade
Média (Auerbach, 1987:125-50), chegando até, mais tarde, a influenciar
uma figura como Rabelais.
É possível estabelecer uma aproximação entre esse estilo humil-
de, à maneira franciscana, com os princípios irreverentes que lhe ser-
vem de apoio, e alguns escritores modernistas brasileiros que rejeita-
ram a tradição bacharelesca, subserviente, segundo eles, para com o
registro erudito adotado no Império. Essa tomada de posição é explí-
cita, por exemplo, no “Manifesto da poesia pau-brasil”, publicado por
Oswald de Andrade em 1924:

O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente.


Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. [...] A riqueza dos bailes e das
frases feitas. [...] Falar difícil.

O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportando e dominando


politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de
ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O
Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho
(1972a:5).

Ao rejeitar a tradição bacharelesca, Oswald imprime, neste ma-


nifesto de 1924, um novo rumo à sua crítica, o que o leva a diferenciar-
se cada vez mais de seus companheiros de movimento, notadamente
de Mário de Andrade. A figura do bacharel, por exemplo, é associada
ao portador de cultura geral, ou seja, o diletante que se amolda ao ideal
da Bildung. Em vez desses “homens que sabiam tudo” e “se deforma-
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ram como borrachas sopradas”, Oswald propõe o homem especializa-


do, que segue a sua vocação:

[...] Filósofos fazendo filosofia, críticos, crítica, donas de casa tratando de


cozinha.

A poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem


(1972a:6).

Oswald investe também, neste manifesto, contra as práticas eru-


ditas em várias de suas configurações: o gabinetismo, o teatro de tese e
a luta no palco entre morais e imorais, os sociólogos e os homens de
lei, “gordos e dourados como Corpus Juris ”. Em seu lugar, propõe o
homem que vive, que substitui a citação pela invenção. Em vez dos ju-
risconsultos, “perdidos como chineses na genealogia das idéias”, apela
para o engenheiro, o homem que domina a técnica:

O trabalho contra o detalhe naturalista — pela síntese; contra a morbidez


romântica — pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra
a cópia, pela invenção e pela surpresa (1972a:7-8).

Por essa via, Oswald postula seu ideal de simplicidade, que re-
mete à junção do bárbaro (relacionado à tradição) com o técnico (ad-
vindo com a civilização). Em nenhum momento aparece no “Pau-bra-
sil” a perspectiva totalizante do romantismo alemão, com seus homens
cultivados e completos. O homem vislumbrado por Oswald, ao contrá-
rio, é o homem especializado e provido de ingenuidade:

O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma


atitude do espírito.

O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.

A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tra-


dição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.

Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecâ-


nica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural.
Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem com-
parações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.

Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos [...] (1972a:9-10).


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Gilberto Freyre, de maneira mais moderada que Oswald de An-


drade, também advoga a causa da simplicidade, valendo-se de uma ar-
gumentação crítica com relação à linguagem bacharelesca. Ao analisar
o estilo que Gilberto desenvolve em Casa-grande & senzala (1933), Ri-
cardo Benzaquen de Araújo enfatiza o fato de ele compartilhar com os
modernistas a recusa “à verbosidade sem peso, sem densidade”, pró-
pria da retórica, e adotar uma linguagem coloquial e colada ao coti-
diano, afinada com o sermo humilis. O que estaria em jogo, nesse caso,
seria um julgamento negativo de Gilberto quanto ao excesso a serviço
de ideais totalizantes, como se vê no emprego da retórica pelos padres
e bacharéis. Os jesuítas que a introduziram no país, no período da Con-
tra-Reforma, teriam retomado “o elevado estilo clássico da oratória ci-
ceroniana, reabilitando esta tradição latina no intuito de sensibilizar, de
comover os infiéis por intermédio da frase ‘redonda’, ornamentada, e
conquistá-los para a Igreja”. Gilberto critica a linguagem elevada que se
entranhou no discurso bacharelesco, a serviço da “aspiração absoluta-
mente totalizadora que caracteriza essa influência européia”. Criou-se
uma situação em que o excesso, ou seja, o “‘brilho' da eloqüência”,
aliou-se “ao cinzento e ao negro” trazido pelo processo civilizador,
“contra a vivacidade oriental e africana das cores coloniais” (Araújo,
1994:137-43).
O procedimento estético que se pauta pela simplicidade — ou
pelo estilo humilde — tende a recortar de outra maneira o repertório
cultural, selecionando num mesmo movimento tanto as peças que se
aproximam do ideal de despojamento quanto as associadas aos ele-
mentos africanos e orientais, outrora expurgados pelo processo civili-
zador. Quando se lida, através do procedimento metalingüístico, com
informações culturais que se afastam desse padrão e se aproximam do
monumental, ou do sublime, a paródia passa então a ser usual. É co-
mum, por exemplo, entre os músicos que comungam no ideal de sim-
plicidade, a recorrência a textos operísticos com o único intuito de pro-
faná-los e de expor sua suposta vinculação com um passado estético
melodramático. As composições românticas também se prestam a esse
tipo de apropriação parodística, como no caso mencionado no capítu-
lo anterior, relativo à peça D'Edriophthalma, de Erik Satie, da série Em-
bryons dessechés, em que ele cita, de maneira irreverente, a Marcha fú-
nebre de Chopin.
E o que corresponde, na tradição modernista, ao ideal de des-
pojamento? Justamente aqueles elementos prosaicos da linguagem co-
tidiana, incompatíveis, em momentos anteriores, com as formas eleva-
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O api to d a fábr i ca d e teci d os 83

das que se exigiam no trabalho artístico. Davi Arrigucci argumenta que


uma das características fundamentais do período modernista “é que a
vida de relação, tal como se mostrava no dia-a-dia, se torna matéria li-
terária” (1990:52-3). Essa nova perspectiva que se abre então para a
arte contaria desde logo, segundo o autor, com a adesão de Manuel
Bandeira, que tematizava o “mais humilde cotidiano”, e de Mário de
Andrade, que se propunha, até mesmo em suas cartas — trabalhando a
“vasta matéria tirada da vida de relação” —, a alargar o conceito de li-
teratura. Isso significaria uma ruptura com as convenções anteriores,
responsáveis por classificações rígidas relativas a temas considerados
poéticos e não-poéticos. Arrigucci registra a importância do poeta suíço
Blaise Cendrars32 para a definição dos rumos da literatura dos anos 20,
no Brasil, na medida em que sua poesia, de caráter jornalístico e pro-
saico, causa impacto na geração modernista. O autor também estabe-
lece convergências entre as estéticas de Manuel Bandeira e de Oswald
de Andrade, mostrando que, à semelhança de Bandeira, que encontra-
va temas e formas nas páginas jornalísticas, Oswald registrava as des-
cobertas diárias, de maneira fragmentária, “em instantâneos telegráfi-
cos do Pau-Brasil, em 1925”. Esse procedimento comum dever-se-ia a
uma mesma consciência de redescoberta do país e a uma mesma per-
cepção da poesia nos fatos.33
Arrigucci argumenta que em Cantiga (poema de Estrela da ma-
nhã), o procedimento despojado de Bandeira se mostraria próximo da
tradição da lírica musical romântica alemã, representada pelos Lieder,
em que era usual a transformação de pequenos poemas líricos em can-
ções de câmara. O autor também chama a atenção para o fato de que
Bandeira, além de ser amante da música, desenvolvia uma poesia a que
se atribui uma musicalidade intrínseca, o que, de certa forma, explica-
ria o fato de sua poesia ter sido musicada por vários compositores. Por
outro lado, foi através da música que Bandeira aproximou-se do ele-
mento popular, o que era uma tendência no modernismo e também
marcou o intenso relacionamento do poeta com figuras importantes do

32 Ver Benedito Nunes (1979:12), segundo o qual Oswald de Andrade “entrara em


contacto com ‘a comunidade vanguardista de Paris’, principalmente por intermédio
de Blaise Cendrars, que sobre ele exerceu duradoura influência”.
33 Arrigucci, 1990:53 e 103. Sobre a percepção da poesia nos fatos, ver Andrade, O.,

1972a.
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cenário musical, como Mário de Andrade e Jaime Ovalle (Arrigucci,


1990:168 e 173).
Uma nova forma, inaugurada por Manuel Bandeira em nosso ce-
nário modernista, refletiria essa aproximação da linguagem poética
com a linguagem ordinária: o verso livre, que marcou a ruptura com a
dicção elevada do parnasianismo, aparecendo nitidamente como uma
volta da poesia ao natural e à simplicidade (Arrigucci, 1990:59). Pois,
se a inspiração é, para Bandeira, imprescindível ao trabalho artístico, o
poeta, no entanto, segundo sua concepção, poderia inspirar-se nas coi-
sas simples do cotidiano, já que a poesia se encontra em toda parte,
“tanto nas coisas elevadas como nas baixas, tanto nos amores como nos
chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas”, embora seja
sempre “inesperada” (Arrigucci, 1990:136-7). Quanto a esta questão,
Arrigucci argumenta que o paradoxo essencial da forma de Bandeira
está na junção que promove entre o sublime e a linguagem simples do
cotidiano; assim, a concepção de poesia de Bandeira oscilaria entre
idéias opostas. Bandeira juntaria a concepção de Mallarmé de que a po-
esia “está nas palavras, se faz com palavras”, equiparando-se ao traba-
lho técnico, com a concepção de poesia “como transe ou súbita inspi-
ração” (Arrigucci, 1990:130-1). Em Poema tirado de uma notícia de
jornal, Bandeira, à semelhança de Blaise Cendrars, realiza, de acordo
com Arrigucci, uma mescla de diferentes tradições literárias, fundindo o
épico com o lírico e acrescentando a essa fusão a objetividade típica do
trabalho jornalístico. Assim, ao caráter narrativo do poema, comum à
epopéia, soma-se a maneira isenta de contar a história, em conformi-
dade com os modelos da imprensa moderna. E se o eu lírico não se re-
vela de imediato, percebe-se, ao longo da leitura, o profundo envolvi-
mento do sujeito com o tema. Arrigucci resume o procedimento, a que
atribui as características do objetivismo lírico (termo cunhado por Sér-
gio Buarque para definir a obra de Cendrars): “Uma notícia da vida mo-
derna se transforma num MYTHOS trágico, narrado como uma histo-
rieta numa estrutura lírica, cuja fonte (a posição do sujeito) permanece
oculta” (1990:108-9).
Mas o que mais caracteriza o procedimento modernista nesta
sua faceta despojada é talvez o tratamento cômico-sério dado aos te-
mas, como faz Bandeira, por exemplo, em suas crônicas publicadas
no jornal A Noite, sob o título geral “Bife à moda da casa”, como faz
Mário de Andrade em Macunaíma, e como procedem vários escrito-
res brasileiros, contemporâneos ou não de Bandeira (Arrigucci, 1990:
105-8). Esse procedimento cômico-sério, segundo Mikhail Bakhtin, per-
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meia todos os gêneros antigos — o poema bucólico, a fábula, a me-


mória literária, o panfleto, a sátira menipéia — predecessores do ro-
mance; e, o que é mais importante, o cômico-sério só se configura
quando se tem percepção da vida contemporânea, do tempo presen-
te. A idéia de transitoriedade, ligada a esse tipo de sensibilidade his-
tórica, teria sido tema de representação nos gêneros baixos — ou na
“cultura criativa do riso das pessoas comuns” —, que desenvolvem
uma nova atitude perante a linguagem: “o presente, a vida contem-
porânea, eu próprio, meus contemporâneos, meu tempo”, “todos
esses conceitos foram originariamente objeto de um riso ambivalen-
te, ao mesmo tempo alegre e destrutivo”. Essa atitude, portanto, teria
em muito influenciado, tanto no mundo antigo quanto na Idade Mé-
dia, a formação da linguagem do romance, pois é no riso popular que
se encontrariam suas autênticas raízes folclóricas. De acordo com
Bakhtin, o espírito romanesco já existiria nos gêneros cômico-sérios
não só porque a realidade contemporânea serve como sua matéria,
mas também porque, pela primeira vez, o que é representado não se
presta a distanciamentos. A distância épica seria então abolida, pas-
sando a predominar a perspectiva da realidade contemporânea,
mesmo no caso de o passado e o mito virem a ser tematizados. Ao
riso, portanto, caberia destruir tanto o épico quanto a separação hie-
rárquica, pois a imagem distanciada não se presta ao cômico. O ro-
mance, ao contrário da epopéia, preservaria a singularidade do pas-
sado, pois, de acordo com Bakhtin, “toda contemporaneidade grande
e séria requer um perfil autêntico do passado, uma outra linguagem
autêntica de um outro tempo”. Ele promove uma revolução radical na
linguagem artística ao assumir a incompletude do presente, sua in-
cessante continuação rumo ao futuro. E na medida em que o presen-
te se torna a principal referência, o tempo e o mundo perdem sua
completude, assim como o modelo temporal do mundo muda radi-
calmente: “ele torna-se um mundo onde não há primeira palavra (não
há palavra ideal) e onde a palavra final ainda não foi falada”, o tempo
e o mundo, dessa maneira, tornam-se históricos pela primeira vez na
consciência artística e ideológica (Bakhtin, 1987a:20-31).

O r i tmo d i ssolu to

Modernistas franceses e brasileiros, comprometidos com a sim-


plicidade ou com a monumentalidade, diferem, portanto, quanto à ma-
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neira de lidar com a tradição, erudita ou popular. A leitura que se faz na


França de uma nova ordem, de um novo tempo, ou da própria idéia de
modernidade, parece corresponder à projeção de Max Weber de que o
“destino de nosso tempo” levaria os homens “a banirem da vida públi-
ca os valores mais supremos e mais sublimes”. Isso explicaria, segundo
Weber (1972:51), o fato de ser intimista, e não monumental, a arte que
se conformaria ao mundo de hoje. Ora, nada mais revelador desse tipo
de opção por uma linguagem artística mais camerística (intimista) e
menos sinfônica (monumental) — e sobretudo dessublimadora — do
que as experiências musicais dos modernistas franceses pertencentes
ao Grupo dos Seis.
A dicção profana que se instaura na França permite a manifesta-
ção do humor e do prosaico. O registro elevado torna-se alvo de pa-
ródias, enquanto os aspectos banais e pouco edificantes da cidade são
assumidos, principalmente os associados à vida boêmia dos cafés-con-
certos, dos bas-fonds, além de outros ruídos urbanos e suburbanos que
se fazem ouvir nas feiras, nos circos e demais espaços populares. So-
fisticação e despojamento atuam juntos, criando-se uma sonoridade
polifônica, flexível e aberta a uma constante atualização. Esse tipo de
apego a formas simples e descomprometidas com temas sacralizados
configurou-se também nos salões aristocráticos da França do Antigo
Regime, onde se valorizava, segundo Marc Fumaroli (1994), um tom de
conversação alegre, ágil, vivo e pouco afetado. Conversar era sobretu-
do a arte de viver em sociedade, de conciliar o bom senso com o brilho
da inteligência, com o espírito, sem entretanto carregar a atmosfera
com qualquer sombra de gravidade ou elevação. Se exigia a instrução,
a conversação dispensava o pedantismo. Tratava-se do exercício de
uma diplomacia, com o auxílio da palavra, que compensaria no plano
privado as instabilidades e arbitrariedades da vida pública. Entretanto,
essa habilidade política não retirava da conversação seu espaço — a
sala de visitas ou o jardim de uma morada privada — e seu tempo — o
do lazer — próprios, onde se exercitava um jogo entre iguais cujo ár-
bitro era a figura feminina da anfitriã. Esse modelo constituiria a regra, a
tradição, e seria rompido por uma situação excepcional advinda com a
Revolução Francesa, que fez com que a conversação cedesse lugar à
veemência dos oradores.
A alusão ao discurso político dos revolucionários enuncia a di-
ferença substancial entre essa arte de falar entre pares, desenvolvida
em salões privados, e a arte da eloqüência, geralmente exercitada em
assembléias. A eloqüência — poética da vida oficial, cujo alvo é a
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multidão — requer premeditação, já que visa a atingir um público


com demandas políticas específicas; faz uso, portanto, da retórica, um
gênero comprometido, desde a sua concepção, com as noções de ne-
cessidade, eficácia, utilidade e outras correspondentes. Quando asso-
ciada aos gêneros que se desenvolvem na democracia — o delibera-
tivo, o judiciário e o epidíctico (o elogio dos grandes homens e da
virtude), a eloqüência tende ao monumental. A conversação, ao con-
trário, desenrolando-se na vida privada, com seu viés aristocrático e
pouco sujeito às necessidades, é o reino do imprevisível, onde se va-
lorizam a simplicidade, o jogo, o improviso, a clareza, a leveza e a vi-
vacidade. Quando transposta literariamente, em forma de correspon-
dências, de memórias e de vários outros gêneros, a conversação não
perde o viço, qualidade que lhe advém do contato constante com um
cotidiano de interações ininterruptas, mesmo que restritas aos pares
dos salões aristocráticos. Atualiza, em certo sentido, os diálogos de
Platão, como o Banquete, e tem seu modelo moderno nos Ensaios de
Montaigne, que consistem numa “vasta improvisação”. Assim, preser-
vam, segundo Fumaroli,

a espontaneidade, o tom amigável, os meandros imprevistos de uma con-


versação familiar e socrática não somente com o leitor, que é para Mon-
taigne “meu semelhante, meu irmão”, mas também com esta sociedade
excelente de Antigos, filósofos, poetas, heróis, que graças a Montaigne
deixam de ser livros e se tornam interlocutores de uma palestra geral e
apaixonada (1994:120-41).

Um dos aspectos mais importantes da conversação escrita é,


pois, o fato de ela configurar-se como um gênero literário interrompi-
do, que entrelaça a palavra e a escrita, a memória e a atualidade, e que
coloca a serviço da política a “diplomacia do espírito”, com seus ins-
trumentos hermenêuticos e críticos (Fumaroli, 1994:120-41).
Pode-se vislumbrar algum tipo de correspondência entre essa
tradição francesa da simplicidade — na conversação, oral e escrita, e na
música — e a poética modernista no Brasil que questiona o discurso
empolado dos bacharéis, preso a compromissos oficiais, e propõe uma
escrita colada à linguagem que se constrói no cotidiano. Manuel Ban-
deira, que tende a se orientar por uma certa moderação, conciliando o
humilde com o sublime, nos dá um exemplo radical desse procedimen-
to que se fundamenta na simplicidade, excluindo o supérfluo em quais-
quer de suas manifestações e impedindo a manifestação do sublime:
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88 O v i ol ão a zu l

Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma,


A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação,
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.


Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.34

Este exercício da conversação à francesa, que se desenrola na


vida privada e prescinde, de certo modo, dos compromissos da vida
pública, também é bom para pensar as condições e o universo pró-
prios dos nossos músicos populares, lançando uma ponte, pavimenta-
da pela simplicidade, entre eles e os literatos modernistas anteriormen-
te mencionados. Em vez dos salões do Antigo Regime, tais músicos
freqüentam os redutos boêmios cariocas, que, embora humildes, atuali-
zam através da atitude gauche o alheamento aristocrático com relação à
utilidade. Alguns desses músicos — entre os quais Noel Rosa —, de-
senvolvem uma linguagem ágil e isenta de gravidade, como se libertos
das exigências da necessidade — no caso, a burguesa. Adotam uma ati-
tude incorporativa para com os temas e expressões triviais que se criam
constantemente no cotidiano da cidade, cada vez mais transformada
pelo processo de modernização.
Aliás, o cultivo da simplicidade por esses músicos populares
que surgem nos anos 20 em muito se deve, certamente, não só à ma-
neira pela qual interpretam as novidades introduzidas por esse pro-
cesso de modernização, como o rádio, o microfone e as novas técni-
cas de gravação, entre outras, mas também à proliferação de estilos no
Rio de Janeiro. Se o Rio de Janeiro da época é uma extensão da pro-
víncia, não deixa de ser, para alguns segmentos, uma extensão de Pa-
ris; ao mesmo tempo, os setores de classe média tendem progressiva-
mente, com o advento do cinema falado e outras tecnologias, a
receber forte influência norte-americana. A cidade se complexifica,
exatamente porque começa a conviver com diferenças crescentes, o
que contribui para o enriquecimento da linguagem. Surgem novas op-

34 Bandeira, 1993:288. O livro Belo belo, do qual se extraiu este poema, foi publicado

em 1946.
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ções, entre as quais se destaca o cultivo de formas mais simples, in-


troduzidas pela moda ou mesmo provenientes de novas configura-
ções sociais, como os segmentos boêmios do lumpesinato, que
aderem sem pejo ao vocabulário “baixo” que se cria nos botequins e
outros redutos do gênero.
Pelo que se depreende dos estudos sobre música popular, um
bom número de compositores cariocas teria aceitado essa provocação
moderna, mostrando-se, através da linguagem musical que passaram a
desenvolver, ágeis para captar os novos estilos de vida desenvolvidos
no Rio de Janeiro e para lidar com os meios de comunicação que sur-
giram no período. Atentos às transformações e às realidades já estru-
turadas, mostraram-se flexíveis para experimentar formas diferentes,
compatíveis com uma consciência voltada para o presente e para os
seus valores transitórios, mutáveis. Assim, as narrativas históricas en-
fatizam um corte, no final dos anos 20, com o padrão cultural que vi-
gorava desde o início do século, visualizando um momento de transi-
ção de um registro mais atado à sensibilidade rural para uma estética
de conformação aos padrões urbanos que se delineavam. Um dos ins-
trumentos mais importantes para a realização dessas mudanças teria
sido certamente o rádio, que passou a veicular a música que a popu-
lação negra começara a desenvolver, a partir dos anos 20, nos morros
do Rio de Janeiro, pouco consumida até então por outros segmentos
da cidade.35
Sérgio Cabral argumenta que o surgimento em 1928 da primeira
revista especializada em música, a Phono-Arte, idealizada por Cruz Cor-
deiro, um dos primeiros colunistas de discos do país, é bastante repre-
sentativo das mudanças ocorridas no campo da música popular nesse
período, assim descritas:

[...] as gravadoras haviam trocado o antigo processo mecânico de grava-


ção de disco pelo processo elétrico; as estações de rádio adquiriram mais
potência e o aparelho receptor passou a ser um sinal de status da classe
média; três dias antes de ser fundada a revista, nascia no bairro do Estácio
de Sá a primeira escola de samba, a Deixa Falar; uma nova geração de
compositores e cantores (Mário Reis, Noel Rosa, Almirante, Carmen Mi-
randa, Ismael Silva, Ari Barroso e outros) surgia naquela fase; nasciam no-
vas gravadoras e novas estações de rádio e, pela primeira vez, era gra-
vado um samba com instrumentos de bateria de blocos e escolas de sam-

35 Ver Basbaum, 1982.


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90 O v i ol ão a zu l

ba, o Na Pavuna, de Candoca da Anunciação (Homero Dornelas) e Al-


mirante (1979:140-1).

Na Pavuna, samba criado por Homero Dornelas e Almirante


em 1930, é realmente citado por vários pesquisadores de música po-
pular como composição inaugural desses novos tempos, no que toca
tanto à letra quanto ao ritmo. Sérgio Cabral (1979:63-4) é um dos au-
tores que ressaltam a originalidade desse samba estranho para a épo-
ca, por trazer pela primeira vez de maneira explícita em seu acompa-
nhamento os sons dos batuques dos negros e por explorar em seus
versos um tema que depois se tornou corrente no Rio de Janeiro: o
bairrismo. De acordo com relato de Almirante, a composição realizou
o projeto de se criar um tipo de acompanhamento para o samba que
ele e seu grupo já vinham idealizando havia algum tempo, recorren-
do-se a pandeiros, tamborins, cuícas, ganzás, surdos e outros instru-
mentos utilizados pelas escolas de samba (apud Cabral, 1990:64). E
Sérgio Cabral afirma que, apesar do estranhamento provocado pelo
samba de Almirante e Dornelas, a música não apenas alcançou gran-
de repercussão popular como criou um estilo que foi assimilado por
vários compositores. Na Pavuna, além disso, teria criado um merca-
do de empregos para ritmistas, pois foi a partir deste samba que se
passou a adotar, nos arranjos orquestrais, instrumentos de percussão,
o que levou as gravadoras a absorver os profissionais emergentes. As-
sim, teria aparecido uma nova categoria de ritmistas profissionais,
como João da Baiana, Tio Faustino, Alcebíades Barcelos (Bide), Ar-
mando Marçal, Bucy Moreira, Raul Marques, Ministro da Cuíca e ou-
tros (Cabral, 1990:69-70).
Foi exatamente nessa época, como mostra Roberto Moura
(1988:30-1), que o samba desenvolveu uma linguagem própria, nota-
damente carioca, e diferenciou-se de formas maxixadas ou influencia-
das pelo tango. E, segundo ele, essa nova forma harmonizou-se com a
estrutura organizacional e com a representação das escolas de samba
que surgiram no final dos anos 20. Com relação ao samba desenvolvi-
do no Estácio, João Máximo e Carlos Didier afirmam que se ele coe-
xistiu com o da Cidade Nova, dele diferiu rítmica, melódica e poetica-
mente. E acrescentam:

As dessemelhanças rítmicas talvez se devam a ter sido ele criado a partir


dos refrões cantados nos improvisos de partido alto e rodas de batucada,
herdando destes uma pulsação por si só já diferente da dos sambas de Si-
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nhô, nos quais ainda se encontram vestígios não só do maxixe, mas tam-
bém do lundu. [...] Se na Cidade Nova as festas são animadas por músicos
treinados [...], no Estácio de Sá, salvo por um ou outro violão ou cava-
quinho em mãos desajeitadas, tudo é tamborim, surdo, cuíca e pandeiro.
Ou acompanhamento ainda mais rudimentar [...]. Quanto à parte poética,
o sambista do Estácio de Sá canta em suas letras, da maneira mais simples,
a vida dos morros e das casas de cômodos, das populações pobres, dos
malandros e de outros indivíduos à margem da sociedade (1990:118-9).

Tentando tornar mais claras essas considerações estéticas, é pos-


sível alinhavar algumas características do samba que, nos anos 20, se
desenvolve nos morros do Rio de Janeiro. O samba praticado pela ge-
ração anterior de Donga e Sinhô, embora originado da síncope afro-lu-
sitana, sofre bastante a influência do maxixe, principalmente por conta
de sua execução por músicos de orquestras das gravadoras e do teatro
musicado, bastante familiarizados com aquele ritmo. A pulsação do
samba de Donga em muito se orienta, portanto, pela coreografia de
uma dança de salão em que o ritmo e o andamento advêm do tango, da
havaneira e da polca, a despeito de suas raízes africanas.36 Nos morros,
desenvolve-se, de forma diferente, um samba cuja pulsação tenta se
adaptar aos movimentos coreográficos dos ranchos e das escolas de
samba que então se constituem, obedecendo às evoluções de passistas
individualizados.
Chamou-me a atenção o fato de que tanto os historiadores quan-
to os próprios atores envolvidos no processo de produção musical do
período enfatizam o corte que se verifica, no final dos anos 20, com as
transformações produzidas no samba. Um dos pontos analisados por
uns e outros refere-se a um gesto inaugural dos sambistas do Estácio,
no sentido de criar, no plano musical, um tipo de percussão compro-
metida com os elementos — negros — da cultura popular associados
ao “primitivo”. Assim, as narrativas reforçam o fenômeno de que esta
nova modalidade de samba incorpora um elemento negro que não
mais se associa a um estilo de vida pequeno-burguês, como o das co-
munidades baianas da Cidade Nova e adjacências. Um novo recorte
teria sido feito, através do qual os sons começariam a se originar de re-
dutos ligados à boemia, ao carnaval e sobretudo ao cotidiano das po-
pulações faveladas. E o repertório “urbano” que passaria a ser apre-
ciado e divulgado pela mídia teria sido sobretudo o do lúmpen, pro-

36 Tinhorão, 1974; e Enciclopédia da música brasileira, 1977.


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duzido em meio à pobreza e a rituais considerados no mínimo pri-


mitivos, que de início recorriam muito ao improviso. Essa nova condi-
ção do músico popular contrastaria com a da geração anterior de sam-
bistas e chorões, como Donga, Sinhô e Pixinguinha, que, de acordo
com vários relatos — como os de Lúcio Rangel (1965) e Almirante
(1963) —, freqüentavam os saraus da baiana “respeitável” conhecida
como Tia Ciata, à rua Visconde de Itaúna, nº 117. Lúcio Rangel, por
exemplo, faz menção ao fato de Sinhô, pianista do Clube Flor do Aba-
cate, no Catete, ser “amigo de políticos e escritores importantes, íntimo
de José do Patrocínio Filho e de Olegário Mariano”. Rangel (1965:243)
também se reporta aos “versos algo rebuscados” e pernósticos de Si-
nhô, o que talvez seja um reflexo de sua condição de aspirante a um
status superior.
Esse comentário de Lúcio Rangel a propósito de Sinhô exige, no
entanto, um reparo, pois Sinhô não produziu apenas versos rebusca-
dos. Se ele criou imagens excessivamente floreadas, como, por exem-
plo, “o beijo puro/ da catedral do amor”, que aparece em Jura, samba
de 1928, ele exibe, por outro lado, em Ora, vejam só, samba de 1927,
uma sensibilidade afinada com a dos músicos do morro que desenvol-
vem a poética da malandragem:

Ora, vejam só
A mulher que eu arranjei
Ela me faz carinhos
Até demais, chorando
Ela me pede meu benzinho
Deixa a malandragem
Se és capaz

A malandragem
Eu não posso deixar
Juro por Deus
E por Nossa Senhora
É mais certo
Ela me abandonar
Meu Deus do Céu
Em maldita hora.

Mário Reis interpreta este samba de maneira bastante compatível


com o espírito humilde desta composição de Sinhô, que, tal como no
modelo franciscano, se constrói utilizando uma linguagem coloquial e
descomprometida com ideais elevados, não prescindindo, portanto, de
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uma certa dose de grotesco. O arranjo, alegre e sofisticado, conta, além


do violão e dos instrumentos tradicionais de percussão, com oboé,
flauta e saxofone. Os dois exemplos citados sugerem que Sinhô, viven-
do sem dúvida um momento de transição na música popular, acaba ex-
perimentando um e outro registro: um mais colado ao sublime, recor-
rendo a um palavreado difícil, e outro, à maneira da geração mais nova
de sambistas, afinado com o humilde.
Mas, reparos à parte, o fato é que essas duas gerações de sam-
bistas costumam ser distinguidas tanto em função da estética quanto do
estilo de vida que desenvolvem. André Gardel, por exemplo, descreve
a geração mais antiga, que se reúne na Cidade Nova, como uma espé-
cie de “aristocracia da ralé”:

Na zona da Cidade Nova, para onde se dirigem os negros baianos, mais


organizados em torno do candomblé e festividades diversas — ranchos,
sociedades recreativas, pagodes etc. — saídos da zona do cais do porto
pela então rua do Sabão, atual Buenos Aires [...] sendo uma espécie de
aristocracia da ralé, em contato com a classe média, ocorrem as festas das
“tias baianas” das quais a mais famosa é Tia Ciata. A perseguição e proi-
bição da polícia a estas festas primitivas e desordeiras faz com que surja
um tipo de relacionamento com o poder, por parte dessa aristocracia, ve-
lho nosso conhecido: “a dialética da malandragem”. Por meio de “formas
de sobrevivência, conveniência, devoção e diversão” os baianos criam
sua unidade aberta a interferências culturais diversas, plasmando uma
identidade. A casa de Tia Ciata era a capital da “Pequena África”, espaço
freqüentado também por figurões e gente bem relacionada. Seu marido
chega a ter um emprego em posto privilegiado no baixo escalão no ga-
binete do chefe da polícia, em troca da retirada de um encosto do pre-
sidente Venceslau Brás por Tia Ciata [...] (Gardel, 1996:83).

Os sambistas do morro — como os do Estácio —, por sua vez,


tematizavam em suas obras vivências boêmias e desenvolviam um
vínculo com o universo da malandragem ainda mais forte do que o
dos músicos da Cidade Nova. Para tanto adotavam um tom humilde
que muitas vezes se realizava com a linguagem chula com que re-
presentavam seu cotidiano, ou então, ao estilo de Manuel Bandeira,
conciliavam o baixo com o sublime. Bandeira, como vimos, ao lado
de Jaime Ovalle e outros escritores modernistas, compartilhava com
alguns músicos populares certos redutos da vida noturna do Rio de
Janeiro. Monica Pimenta Velloso (1996:29) afirma, quanto a esta
questão, que esses escritores cariocas tendiam a pensar tanto a cida-
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de quanto o país através de suas ruas. Assim, o que antes era ocul-
tado pela República modernizadora — como o submundo, a margi-
nalidade, a boemia e as ruas —, passa a ser valorizado como “espaço
pleno de significado”. Configura-se portanto uma situação em que os
sambistas, tal como Bandeira, muitas vezes são sujeitos a “alumbra-
mentos”, enquanto Bandeira, tal como os sambistas, assume uma
perspectiva existencial em sua poesia, como se vê em Gesso, poema
de O ritmo dissoluto:37

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova


— O gesso muito branco, as linhas muito puras —
Mal sugeria imagem de vida
(Embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina amarelo-suja.
Os meus olhos, de tanto a olharem,
Impregnaram-na da minha humanidade irônica de tísico.
Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos, recompus a
figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo mordente da pá-
tina...
Hoje este gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

A própria imagem do gesso, tal como a do barro, sugere a tran-


sitividade, a contemporaneidade, escapando à representação essencia-
lista da estátua de bronze, ou mármore, que, evocando conceitos ou
acontecimentos heróicos universais e atemporais, remete à idéia de
imobilidade, de impassibilidade. O “gessozinho comercial” da estátua
doméstica de Bandeira evoca a possibilidade de vida, na medida em
que sua porosidade permite sua impregnação pela “humanidade irôni-
ca de tísico” do poeta, assim como não se mostra imune à contamina-
ção do tempo, que, “com suas feridas”, escurece “ainda mais o sujo
mordente das pátinas”. Em Não sei dançar, de Libertinagem (1930),
Bandeira assume o aqui e agora da terça-feira gorda de Carnaval, mos-

37 Bandeira, 1993:193-4. O ritmo dissoluto foi publicado em 1924, em Poesias, junto

com A cinza das horas e Carnaval.


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trando-se familiarizado com o “salão de sangues misturados” que “pa-


rece o Brasil”:

Uns tomam éter, outros cocaína.


Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...
Abaixo Amiel!
E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.


Perdi a saúde também.
É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.

Uns tomam éter, outros cocaína.


Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda.

Mistura muito excelente de chás...


Esta foi açafata...
— Não, foi arrumadeira.
E está dançando com o ex-prefeito municipal:
Tão Brasil!

De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil...


Há até a fração incipiente amarela
Na figura de um japonês.
O japonês também dança maxixe:
Acugêlê banzai!

A filha do usineiro de Campos


Olha com repugnância
Para a crioula imoral.
No entanto o que faz a indecência da outra
É dengue nos olhos maravilhosos da moça.
E aquele cair de ombros...
Mas ela não sabe...
Tão Brasil!

Ninguém se lembra de política...


Nem dos oito mil quilômetros da costa...
O algodão do Seridó é o melhor do mundo?... Que me importa?
Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos.
A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.
Eu tomo alegria!
(Bandeira, 1993:203.)
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Bandeira sublima esse tipo de experiência humilde, povoada por


tocadores de jazz-band, por autoridades, por moças da elite e da ple-
be, associando-a ora à melancolia, ora à alegria. Apesar de moderno,
diz-se inspirado, tomado pelo estado poético. Mas trata-se de um alum-
bramento que advém do corpo, e não da alma, como se vê em Evoca-
ção do Recife (1925):

[...]
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
[...] (Bandeira, 1966:116.)

Este tipo de sensibilidade aparece com freqüência no samba


desenvolvido nos morros do Rio de Janeiro no final dos anos 20, que
se concentra na temática da orgia, malandragem ou vadiagem, suge-
rindo, segundo Decio de Almeida Prado, um universo de “mulheres e
pensões baratas, bebidas fortes, homens sem ganha-pão definido”.
Almeida Prado vê uma sensibilidade semelhante na marchinha que se
desenvolve na mesma época e que, tal como o samba, consagra a ci-
dade, em particular o Rio de Janeiro. De fato, o samba e a marcha se
tornaram hegemônicos a partir de 1930, substituindo a modinha e o
maxixe, que vigoravam até então. Figuras associadas aos gêneros an-
teriores, como a “cândida sertaneja”, foram então substituídas por
tipos menos ingênuos, como a “mulata do morro” e a “moreninha da
praia”. Almeida Prado cita o exemplo de Fita amarela, samba de Noel
Rosa, de 1932, que incorpora a própria morte ao espírito carnavales-
co: “O choro fúnebre virava assim o chorinho de flauta de milhares de
seresteiros, capadócios, vadios e boêmios anônimos” [...] (Prado,
1989/90:18-21).
Não há como negar as experimentações realizadas na marchi-
nha, em que letra e melodia, cúmplices na defesa do espírito carnava-
lesco, comentam-se uma à outra de maneira magistral. Mas sua forma
musical simples e suas letras de um ingênuo teor malicioso destoam da
sensibilidade gauche dos sambistas. As marchinhas se mostram mais
compatíveis com um espírito carnavalesco pequeno-burguês, mais afei-
to ao prazer regrado, domesticado. Ao contrário do samba, que é pro-
duzido nos morros, a marchinha, segundo José Ramos Tinhorão
(1974:121), é criada nos anos 20 por compositores da classe média.
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Esses músicos teriam sofrido grande influência das marchas portugue-


sas aqui difundidas, no início do século, por companhias de teatro mu-
sicado, e posteriormente do ragtime norte-americano. De acordo com
os pesquisadores, ela aparece no final do século — mais precisamente
em 1899, com Ó abre alas, de Chiquinha Gonzaga —, com um ritmo
marcado pela observação da dança negra e de uma forma diferente da
que se configurou sob a influência portuguesa. Lúcio Rangel (1965)
chama a atenção, no entanto, para o ritmo lento e para a melancolia
dessa marcha-rancho de Chiquinha Gonzaga, o que a diferencia bas-
tante das alegres e irreverentes marchinhas que surgem no final dos
anos 20, definitivamente associadas ao carnaval e a um padrão mais
próximo da classe média. Era comum nessa época os compositores de
marchinhas e sambas se dedicarem à sátira ou à paródia política, tal
como descreve Rangel:

Freire Júnior, autor da letra de Ai, Seu Mé, passou momentos de aperto em
uma delegacia policial por ter brincado com o presidente Artur Bernar-
des; Washington Luís foi cantado em Paulista de Macaé e em O Barbado
foi-se ; Rui Barbosa, em Côco de respeito e Papagaio louro; Getúlio Vargas,
em Tenha calma, Gegê, do negro Getúlio Marinho [...] (1965:244).

Os compositores de marchinhas carnavalescas constroem uma


identidade bastante diferente da apresentada pelo sambista, constituí-
da basicamente a partir do estranhamento dos padrões associados ao
universo pequeno-burguês. Enquanto os músicos do morro criam um
espaço alternativo, onde exercitam de maneira radical não apenas a
arte da malandragem como a linguagem adequada a ela, os autores de
marchinhas destilam o veneno da irreverência, sem pretender, no en-
tanto, abalar as bases do seu próprio mundo. O alvo do desacato é
tanto o personagem político, que, quando afrontado pelo senso de
humor fino e moderado do fazedor de marchinhas, tende até a tirar
proveito da brincadeira, utilizando-a para construir uma persona mais
popular, quanto as figuras banais do cotidiano do compositor, como a
“velhinha” cantada por Lamartine Babo em 1934:

Não mostres a vovó minha conta da pensão


Deixa a velhinha viver na ilusão
Não vás dizer a ela que um mil-réis vale um tostão
Deixa a velhinha viver na ilusão.
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98 O v i ol ão a zu l

Estribilho

Respeita a idade dela


Está quase no fim.
Castigo anda a cavalo
Mas viaja em Zeppelin.
[...]

Bide, integrante da primeira geração de músicos do Estácio,


adapta-se bem ao perfil de sambista conformado nos meios boêmios. A
malandragem, sua música de estréia, gravada por Francisco Alves em
1927, já denota uma sensibilidade pouco compatível com o modelo
bem-comportado dos “almofadinhas”:

A malandragem eu vou deixar


Eu não quero saber da orgia
Mulher do meu bem-querer
Esta vida não tem mais valia

Mulher igual para a gente é uma beleza


Não se olha a cara dela
Porque isso é uma defesa
Arranjei uma mulher
Que me dá toda vantagem
Vou virar almofadinha
Ou tentar a malandragem

[...]

Esses otários que só sabem


É dar palpite
Quando chega o carnaval
A mulher lhe dá o suíte
Você diz que é malandro
Malandro você não é
Malandro é Seu Abóbora
Que manobra com as mulhé

Esta composição de Bide é bastante representativa do momen-


to de transição do samba maxixado para o novo tipo, marcado pelos
batuques. Quando se ouve a gravação de época, percebe-se, no en-
tanto, que A malandragem foi criada num registro ainda muito preso
ao desenvolvido por Donga em Pelo telefone e por outros sambistas
da primeira geração. A letra — carregada de gírias e construída sem
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maiores preocupações com coerência — e a música não apresentam


nenhuma sofisticação, nem tampouco trazem marcas de uma autoria
individual, assemelhando-se às criações coletivas que caracterizavam
os sambas produzidos no terreiro da Tia Ciata. Francisco Alves, ao in-
terpretar esse samba, parece se dar conta de que a composição pede
um registro mais coloquial, diferente do tom grave que costuma ado-
tar em suas diluições do bel canto. O arranjo, no entanto, tal como o
dos sambas-maxixados, é tosco, semelhante ao das bandas de core-
tos do interior. Na ficha técnica do disco, informa-se, por exemplo,
que a ausência, nesta faixa, “de um acompanhamento mais adequado
ao samba, como pandeiro, violão etc.”, deve-se à precariedade da tec-
nologia da época, o que demandava “a utilização de uma orquestra
(incluindo sopros, como a tuba, aqui empregada para marcar o rit-
mo)”.38
Claudia Matos, em sua análise da temática da malandragem no
Rio de Janeiro (1982:13-4), aborda a questão de maneira cuidadosa,
evitando, por exemplo, interpretar a figura do malandro de maneira
muito colada ao contexto social. Assim, segundo ela, se o malandro
tem ligação com seu personagem homônimo da vida social, não se
confunde inteiramente com ele. A autora se propõe concentrar a aten-
ção no texto malandro, apesar de admitir as relações íntimas entre
esse tipo de texto e o contexto social e político, o que a faz examinar
as condições históricas em que se produziu o fenômeno da malan-
dragem.
A partir dessas reflexões iniciais, Matos (1982:39-43) afirma que
no final dos anos 20 não só o personagem propriamente dito do ma-
landro surge na música popular como esta própria noção de malan-
dragem associa-se à de sambista, principalmente o referenciado à
nova geração do Estácio. Esses sambistas do Estácio, juntamente com
os de outros morros — todos descendentes de escravos —, teriam
sido os primeiros a assumir, com orgulho, a denominação “malan-
dros”. Esse tipo de postura, além da temática intimamente ligada à boe-
mia, tornava-os alvo de críticas dos sambistas pertencentes à geração
anterior.
De fato, quase todos os pesquisadores de música popular re-
conhecem a precedência do Estácio quanto à criação da escola de

38
Ver História da música popular brasileira: Bide, Marçal & Paulo da Portela. São
Paulo, Abril Cultural, 1982.
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1 00 O vi olão azu l

samba e do ritmo que a acompanha, assim como quanto à iniciação


da prática da malandragem. Roberto Moura afirma que os manguei-
renses sempre trataram os sambistas do Estácio como mestres, pro-
curando-os para vários tipos de aconselhamento musical. O próprio
termo “escola”, que foi cunhado pelo bloco carnavalesco Deixa Falar,
do Estácio, configurando a primeira experiência de escola de samba,
revela que seus componentes tinham veleidades de “respeitabilida-
de” e de “ascensão social através do samba” (Moura, 1988:30). De
acordo com Tinhorão, o Estácio seria “o maior celeiro de sambistas de
fins da década de 20 até o início da II Guerra Mundial”, ressaltando a
importância da geração pioneira representada principalmente pelos
irmãos Alcebíades (Bide) e Rubem Barcelos, por Ismael Silva, Nílton
Bastos, Baiaco e Brancura. Uma das circunstâncias que confeririam ao
bairro condições propícias para abrigar compositores populares seria
a existência, nas proximidades, da zona de prostituição do Mangue.
Os “bambas da zona” se reuniriam nos bares fronteiros do largo do
Estácio, exercendo uma espécie de atividade empresarial que explo-
rava o jogo e a prostituição e que lhes permitia, entre um expediente
e outro, se dedicarem à vida boêmia e à composição de músicas car-
navalescas (Tinhorão, 1982a:1-2).
O Estácio teve portanto precedência não só no desenvolvimento
de um samba mais apropriado aos ranchos carnavalescos como tam-
bém na constituição de uma boemia musical que extraía sua matéria
deste tipo de vivência cotidiana em que se cultivava e se cultuava o pra-
zer (MPB Pesquisa, 1982d:3). Além do Café Apolo e do Bar Pavão,
constantemente citados como redutos boêmios do Estácio, Bide, em
seu depoimento para o Museu da Imagem e do Som, refere-se também
a uma sinuca da praça Tiradentes, bastante freqüentada por ele e ou-
tros sambistas, assim como descreve a maneira improvisada de se fazer
os sambas nos botequins, onde as melodias saíam “de cabeça”. Depre-
ende-se de seu relato que o sambista, nesse universo, era um dublê de
compositor e “valente”, apto para a prática de capoeira e habituado ao
porte de armas.
Ismael Silva, cujo compromisso sempre foi com o samba e o
carteado, é outra figura que — “simpática e sorridente, terno branco
imaculado, camisa de colarinho impecavelmente engomado” (Tinho-
rão, 1982a:1-2) —, compõe com bastante força essa atmosfera marca-
da pelo desregramento e avessa a um tipo de ordem pequeno-bur-
guesa. Ismael é também citado como precursor do samba que se
desenvolve nos morros, atribuindo-se às suas invenções melódicas o
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estabelecimento de outros parâmetros para este gênero musical. O


compositor teve várias composições gravadas pela dupla Francisco
Alves-Mário Reis entre o final dos anos 20 e o início dos 30, e mais
tarde fez várias parcerias com Noel Rosa (MPB Pesquisa, 1982c).
Tanto Ismael quanto Bide desenvolveram, desde o início de suas car-
reiras, a temática da malandragem. Ismael Silva utiliza esse tema ao
escrever a letra de Se você jurar, de 1931, em parceria com Francisco
Alves e Nilton Bastos.
E cumpria às escolas de samba recém-instituídas — e ao samba
que nelas se desenvolvia — aglutinar compositores provenientes de re-
dutos diferentes. Assim é o caso dos sambistas Bide, Armando Marçal e
Paulo da Portela, tal como relata Sérgio Cabral: “Bide no Estácio, onde
nasceu a primeira escola de samba, a Deixa Falar; Marçal na Leopoldi-
na, de onde saiu a Escola de Samba Recreio de Ramos; Paulo da Por-
tela em Oswaldo Cruz, de onde surgiu a Escola de Samba da Portela”. E
complementa: “Todos compondo a mesma música e lançando-se como
instrumentistas de percussão, tendo Bide ainda a seu crédito a inven-
ção do surdo e da marcação”. Bide e Marçal, em parceria e individual-
mente, gravaram mais de 100 músicas, cujos intérpretes foram cantores
bastante reconhecidos na época, como Francisco Alves, Mário Alves,
Carmen Miranda e outros. Mas a produção da dupla que realmente se
celebrizou foi o samba Agora é cinza, gravado originariamente por
Mário Reis em 1933 (Cabral, 1982:2).
Atribui-se também comportamento boêmio a Cartola (Angenor
de Oliveira), da Mangueira, assim como sempre se traça seu perfil de
malandro — inscrito, aliás, no próprio apelido do compositor, já que
o chapéu compunha o traje completo que o malandro gostava de
usar. Relatando sua trajetória na Mangueira, Cartola diz que no início
(final dos anos 20) havia no morro dois tipos de blocos: os de “sujo”,
aos quais ele pertencia, e os familiares, aos quais o acesso lhe era in-
terditado. Segundo ele, seu grupo fazia o carnaval “à vontade”, sain-
do “pra qualquer negócio, a fim de briga”, o que provocava o des-
prezo das moças de família (Moura, 1988:23). Roberto Moura
descreve esse aspecto marginal de Cartola e de outros “bambas” do
morro:

[...] gente inquieta e aventureira que nos anos 20 circulava pela Cidade
Nova e Saúde; puxava samba no Morro da Favela e Gamboa; arranjava
biscate no Catumbi e Morro da Providência; agitava em São Carlos e pelo
Estácio. Perto da praça Onze, ele [Cartola] conheceu um ponto famoso de
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1 02 O vi olão azu l

batuqueiros e sambistas junto à balança de pesagem de mercadorias [...]


— lugar onde se arranjava uma grana descarregando caminhões, e que à
noite reunia os bambas do local. As casas dos rancheiros, das grandes tias
baianas, como a casa famosa da Tia Ciata, na Visconde de Itaúna, era mais
pra gente “de origem”, aparentada. Para a gente sem eira nem beira das
favelas era mais fácil chegar às reuniões do Bar do Apolo, onde se en-
contravam Ismael Silva, Bide, Francelino, Brancura, Baiaco, Tibério, o
grande Rubem Barcelos, gente que estava fazendo um samba novo, que
não era mais coisa de rancho, nem mesmo parecido com o samba ama-
xixado que Sinhô lançara [...] (1988:29).

Claudia Matos observa que as trajetórias de vida de alguns des-


ses músicos citados, pertencentes aos redutos malandros dos morros
do Rio de Janeiro, são bastante reveladoras desse tipo de comporta-
mento desregrado e colado à sua imagem romântica. Por exemplo, Nil-
ton Bastos (parceiro de Ismael Silva) e Rubem Barcelos (irmão de Bi-
de), morreram muito jovens, por conta de uma tuberculose; o primeiro
aos 32 anos e o segundo aos 23. Baiaco, em 1935, morreu com uma úl-
cera estomacal; Brancura, no mesmo ano, morreu enlouquecido; e
Mano Edgar foi assassinado em pleno Natal de 1931 durante um jogo
de cartas. Enquanto estes sambistas cumpriram um destino trágico, os
músicos da geração anterior, como Donga, Pixinguinha e João da Bahi-
ana, adotaram um estilo de vida mais comportado e chegaram até a ve-
lhice (Matos, 1982:44).
Os músicos do morro representaram, portanto, de maneira
exemplar, um estilo de vida marcado pelo imponderável em diversos
planos, quer se trate da vida amorosa, do café da manhã regado a ca-
chaça, ou até mesmo da sobrevivência à custa dos mais diversos ex-
pedientes — do pequeno biscate diário à composição musical produ-
zida em mesa de bar e ali mesmo negociada, por uns poucos
trocados. A dramatização desse tipo de experiência pelos sambistas
em muito coincide com a imagem que projeta o Rio de Janeiro, nos
anos 20, como a cidade do carnaval e da preguiça. Constrói-se esse
tipo de representação num momento de franca competição cultural
entre Rio e São Paulo, em que a capital federal aparece como o lugar
por excelência do lazer, em contraposição a São Paulo, que se orien-
taria pelo ideal de seriedade e pela valorização do trabalho. Monica
Pimenta Velloso mostra que, embora com um teor diferente, preso a
certo tipo de determinismo geográfico, essa imagem do Rio de Janei-
ro já é esboçada por Euclides da Cunha, que atribui ao “habitante do
litoral” a tendência a consumir tudo o que é importado, das idéias às
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O api to d a fáb r i ca d e teci d os 1 03

modas. A partir de 1920, entretanto, principalmente através das crô-


nicas e charges publicadas pelo Correio Paulistano, a cidade do Rio
de Janeiro é qualificada historicamente, e não apenas por suas carac-
terísticas climáticas e metropolitanas. Este jornal paulista passa então
a denunciar “a promiscuidade das praias do Rio, a futilidade dos há-
bitos cariocas, o aspecto anárquico da economia, a violência e a amo-
ralidade do carnaval” (Velloso, 1993). Menotti del Picchia se destaca
nas páginas do Correio Paulistano, salientando a capacidade de São
Paulo de reunir “energias aparentemente contraditórias”, como a ação
e a criação, e de ser “simultaneamente Hércules e Apolo”, ou, em ou-
tras palavras, um “titã com miolos de Minerva” (apud Velloso, 1993).
Mas retomemos a questão do estilo desenvolvido por essa se-
gunda geração de sambistas, pois há ainda outro ponto a ser conside-
rado. Trata-se do fato de que, apesar da linguagem “baixa” que assu-
mem — coerente com suas atitudes na maioria das vezes irreveren-
tes —, a criação desse tipo de concepção musical propiciou os conta-
tos entre a cidade e os morros, que, a partir dos anos 20, se tornaram os
principais redutos do samba batucado. Os compositores do Estácio e
da Mangueira, por exemplo, foram ampliando cada vez mais seus con-
tatos com músicos das classes média e alta da cidade. Noel Rosa, ao
que consta, teria sido um dos primeiros músicos desse segmento bran-
co e de classe média a subir os morros, como os da Mangueira e do Es-
tácio, e conviver com os sambistas desses redutos. Para me livrar do
mal, samba que Noel fez em parceria com Ismael Silva em 1932, é re-
presentativo desse tipo de encontro. O compositor do Estácio teria
apresentado a Noel a primeira parte do samba, que Noel concluiria “em
tom menor e num andamento mais cadenciado” (Moura et alii,
1988:132). Mas os sambistas do morro relatam que, pelo menos no iní-
cio, eles se submeteram ao poder econômico e ao status de composi-
tores e intérpretes divulgados no rádio e em discos, como Francisco
Alves e Mário Reis, negociando com eles a parceria de suas músicas. É
bastante citado, por exemplo, o fato de Bide ter vendido a Francisco Al-
ves, em 1927, a parceria do samba A malandragem, tornando-se, a par-
tir desta transação comercial, um dos primeiros compositores de escola
a gravar samba em disco (Valença, 1982a). De qualquer maneira, se-
gundo os relatos da maioria dos historiadores, foi a partir dos anos 20
que o samba produzido nos morros começou a ser valorizado como
mercadoria e a ser consumido por segmentos das classes alta e média
da cidade.
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1 04 O vi olão azu l

Com a criação dos desfiles carnavalescos, por exemplo, os


sambistas descem do morro para a avenida. O samba passa a contar
com um público cada vez mais heterogêneo, que o consome não só
através dos espetáculos dos desfiles, como também através dos
novos meios de comunicação de massa, como o rádio, a indústria fo-
nográfica tecnicamente aperfeiçoada e o cinema. Claudia Matos lem-
bra que o filme musical de Humberto Mauro, de 1933, Voz do car-
naval, inaugura “o ciclo carnavalesco da indústria cinematográfica
brasileira”, que chega ao seu apogeu com o musical Alô, alô, carna-
val, de 1936.39 O carnaval, a propósito, permite a aproximação do
“elevado” com o “baixo”, principalmente a partir do final da década
de 20. Em 1929, por exemplo, sob a promoção da revista O Cruzeiro,
vários músicos eruditos — como Luciano Gallet e Lorenzo Fernan-
dez — e escritores da Academia Brasileira de Letras — Adelmar Ta-
vares, Humberto de Campos e Olegário Mariano — se reúnem para
premiar as melhores canções para o carnaval do ano seguinte (Va-
lença, 1981). O evento conta com a participação de Jaime Ovalle,
que atua como secretário (Cabral, 1990). A partir dos anos 30 o pró-
prio Estado interveio nas festividades carnavalescas e nas manifesta-
ções musicais populares em geral; o carnaval se oficializou, por
exemplo, em 1933, quando a Prefeitura do Rio de Janeiro se encar-
regou de uma série de promoções (Matos, 1982). A partir de 1932,
Pedro Ernesto, então prefeito, concedeu subvenções aos blocos, so-
ciedades e escolas de samba, como a Deixa Falar, que se apresentou
no desfile promovido pelo Jornal do Brasil com o enredo “A prima-
vera e a Revolução de Outubro”, numa alusão nítida aos aconteci-
mentos políticos de 1930. Segundo Sérgio Cabral (1979:57-8), come-
çava assim um “namoro” entre Vargas e o carnaval carioca. Cabral
refere-se também ao fato de cantores populares, como Mário Reis e
os integrantes do Bando da Lua, terem freqüentado, à época, as re-
cepções promovidas por Vargas no Palácio Guanabara. Roberto
Moura afirma que também nesse momento começaram a se interes-
sar pelos desfiles carnavalescos representantes do mundo intelectual
como Nássara e Orestes Barbosa, que divulgavam o evento através
do jornal Mundo Sportivo. Em 1932, este jornal se encarregou de
compor uma comissão julgadora para o desfile, cujos convidados

39 Ver Matos, 1982:34-45.


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foram o casal Eugênia e Álvaro Moreira, Orestes Barbosa, Raimundo


Magalhães Jr. e outros (Moura, 1988).
E é justamente na década de 30, com a ascensão de Vargas ao
poder, que o samba se transforma em símbolo nacional. Hermano
Vianna (1994:9-20) argumenta que, nessa década, o Brasil passa a en-
contrar no Rio de Janeiro os ingredientes para a construção de sua
identidade, entre os quais o samba se destaca por seu valor emblemáti-
co. É curioso observar que os ideólogos da “unidade nacional” tomam
como emblema justamente um gênero musical que, por sua natureza
carnavalesca, pouco tem em comum com as linguagens musicais sisu-
das que se prestam a rituais totalizantes, como, por exemplo, a tradição
do hinário, ou mesmo a do samba-exaltação, que, como veremos mais
adiante, inaugura-se no final dos anos 30 com a monumental Aquarela
do Brasil, de Ari Barroso.
Retomando o argumento de Vianna, ele mostra que, nos anos
30, recorre-se ao mito da “descoberta” do samba, como se, de certa
forma, o morro contivesse o samba em essência, “esperando que os
outros brasileiros fossem escutá-lo para, como que numa súbita ilu-
minação, ter reveladas suas mais profundas raízes” (1994:217-8). Não
só o samba, como também o Brasil, passam a ostentar uma natureza
carnavalesca. E o que torna o fenômeno mais curioso é o fato de se
tomar como símbolo nacional justamente uma estética que se pauta
pela simplicidade, levando-se em conta, naturalmente, as configura-
ções muito particulares que assume essa estética em nossa música po-
pular. Porque se trata de uma simplicidade que se realiza ao estilo
franciscano, conciliando o humilde com o excessivo. Nada é mais ex-
cessivo, por exemplo, que as orquestrações dos sambas e das mar-
chinhas carnavalescas dos anos 30, com sua profusão de metais. Os
compositores carnavalescos recorrem à linguagem comum para o ex-
travasamento do humor, seja através do procedimento satírico, seja
do parodístico. Só no final da década é que o samba deixa de ser va-
lorizado em sua “naturalidade”, pois o gênero começa a sofrer uma
série de retoques, responsáveis em grande medida pelo surgimento
do samba-cívico, ou samba-exaltação. Essa nova modalidade de
samba projeta-se com muita força, num viés mais sinfônico e monu-
mental, a partir de Aquarela do Brasil, que Ari Barroso compõe em
1939. Mas a análise da monumentalidade no samba será desenvolvi-
da no próximo capítulo.
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1 06 O vi olão azu l

E o meu d esper tad or é o gu ar d a-ci vi l


É provável que Noel, entre os compositores de sua geração,
seja o mais arredio aos procedimentos estéticos que se pautam pelo
excesso ou por uma atitude de reverência para o que se desvie de
seus dois únicos cultos: Vila Isabel e as mulheres, principalmente as
notívagas. Demonstra contenção na forma de desenvolver suas com-
posições — que por si sós pedem arranjos mais simples, com o con-
curso de poucos instrumentos — e na maneira intimista de interpretá-
las. Noel não deixa de ser um introdutor da performance do “banqui-
nho e violão”, com a qual os músicos da bossa nova, muitas décadas
depois, vão se mostrar bastante à vontade. Mas apesar de sua locu-
ção afinada com um certo estilo de sofisticação urbana, Noel mostra-
se eclético na escolha de seus intérpretes. Marília Baptista teria sido
uma de suas intérpretes preferidas. Fina (de origem aristocrática),
com um estilo leve e caracterizado pela discrição, Marília contrasta vi-
sivelmente com Aracy de Almeida, outra intérprete muito apreciada
por Noel que, suburbana, pobre e mulata, desenvolve um estilo mais
popular:

[...] Esta [Marília] tem voz de timbre suave, pouco extensa, mas que apren-
derá a usar com adequação. A voz de Aracy é anasalada, mas consistente,
com certo acento triste que lhe dá cor muito própria. Não aprenderá na-
da: nasceu sabendo. Marília tem ouvido privilegiado (e graças a ele ainda
será melhor compositora do que cantora). O ouvido de Aracy é duro. Sua
memória musical, fraca. Tem dificuldade para aprender músicas de har-
monizações complicadas. Marília domina a técnica, Aracy é artista intui-
tiva [...] (Máximo & Didier, 1990:322).

Noel assume também uma atitude eclética ao entregar suas com-


posições a Mário Reis e a Francisco Alves, que fazem um curioso con-
traste: Mário tende ao distanciamento irônico e sofisticado, Chico a uma
adaptação bastante vulgarizada do operismo. Mas Noel, segundo cons-
ta, não se mostraria tão flexível ao lidar com outros casos, rejeitando,
por exemplo, o tipo de mudança que Carmen Miranda promovia no
samba, tornando-o diferente do executado no Estácio. Mais habituada
às marchas, Carmen tenderia a imprimir ao samba seu estilo pessoal, de
uma maneira talvez excessivamente estilizada para os critérios de Noel
(Máximo & Didier, 1990). Tenho um novo amor, samba de Noel e Car-
tola (1933), teria sido gravado por Carmen “sem calor, aos arranques”, e
com alterações na letra original que remetem ao universo lúmpen fre-
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O api to d a fáb r i ca d e teci d os 1 07

qüentado por Cartola e Noel (Máximo & Didier, 1990). Vejamos a pri-
meira versão dos compositores:

Tenho um novo amor


Tenho um novo amor
Que vive pensando em mim
Não quer me ver sujo nem rasgado
Gosta que eu ande assim bem trajado.

As modificações que Carmen introduz na letra atenderiam, se-


gundo Máximo e Didier (1990), ao gosto de uma platéia menos tole-
rante com esse tipo de imaginário boêmio e excessivamente popular. A
composição torna-se assim mais bem-comportada:

Tenho um novo amor


Tenho um novo amor
Que vive pensando em mim
Não quer me ver triste nem zangada
Gosta que eu ande assim engraçada.

Se a irreverência de Noel remete a seu estilo gauche, descom-


prometido com os aspectos oficiais da vida burguesa, pode-se, por
outro lado, atribuir sua estética simples, desprovida de ornatos, à sua
interpretação muito pessoal das modificações que se promovem na
cidade. Noel recorta desse repertório renovado que se apresenta no
Rio de Janeiro as peças constituídas no submundo da prostituição, do
jogo, da trapaça e do ócio em geral, contrapondo-o ao mundo cada
vez mais racionalizado do trabalho. Dito de outro modo, pode-se afir-
mar que Noel desenvolve um tipo de sensibilidade que remete ao
“baixo”, pois ele dialoga com o ambiente boêmio dos morros para a
construção da estética da simplicidade. E a despeito da sofisticação de
sua linguagem, compatível com o modelo coloquial sugerido pelos
modernistas, Noel tende a se embriagar tanto com as novidades in-
troduzidas pela vida urbana quanto com os aspectos provincianos da
vida suburbana, o que provoca o seguinte comentário de Decio de Al-
meida Prado:

Noel Rosa também cantou [...] os amores frustrados (Último desejo), como
não deixou de celebrar a graça suburbana (Feitiço da Vila) do bairro em
que nasceu. Mas, se era capaz de voltar-se para dentro de si mesmo à bus-
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1 08 O vi olão azu l

ca de inspiração, nunca perdia de vista, com olhar enternecido ou irô-


nico, a cidade do Rio de Janeiro, evocando seja a operária que teima em
preferir os apitos (Três apitos) da fábrica em que trabalha aos apelos amo-
rosos da buzina do carro do compositor, seja o homenzinho exigente [...]
instalado na mesinha de um bar vagabundo (Conversa de botequim) co-
mo se estivesse no comando de um grande escritório comercial [...] (1989/
90:21).

Noel, de fato, trabalhou a música popular de maneira diferente


do que se fazia antes, abrindo um leque de alternativas mais amplo que
incluía as novidades discursivas introduzidas na vida urbana. O com-
positor começou a ensaiar os novos passos a partir do samba Com que
roupa? (1929). Este samba já tematizava aspectos do estilo de vida ca-
rioca através da letra, que incorporava a linguagem cotidiana de certos
segmentos da cidade, assim como mostrava, através do ritmo e de uma
maneira mais intimista de cantar, com um acompanhamento sustenta-
do apenas por bandolim e violões, um tom que parecia mais adequado
ao imaginário urbano que então se delineava. Noel, nessa música, foge
ao rebuscamento provinciano, embora a maneira com que ele se ex-
pressa denote familiaridade com um registro citadino muito particular,
associado a um mundo povoado por pessoas que destoam do estilo de
vida pequeno-burguês, como o “cabra trapaceiro” fugindo da figura do
“urubu”.
Essa sensibilidade de Noel para captar as interlocuções urbanas é
ressaltada por João Máximo e Carlos Didier, que contrapõem, por exem-
plo, a experiência de Almirante com o Bando de Tangarás — que “ainda
pensam nos cocos e nas emboladas” — à de Noel — que “vai subir mui-
tas vezes o morro, beber em sua fonte, experimentar parcerias com seus
compositores, aprender com eles”. Máximo e Didier (1990:196) comen-
tam que Noel foi amigo de Cartola, da Mangueira, e de outros composi-
tores, como Canuto, do Salgueiro, e Bide e Ismael Silva, do Estácio, fa-
zendo várias parcerias com eles. Luiz Tatit também analisa esse aspecto
da estética de Noel, cujas músicas passavam a impressão de naturalida-
de, como se ele não despendesse o menor esforço ao criá-las. Esse pro-
cedimento, segundo Tatit (1996:35), imprimia um “caráter coloquial ur-
bano” nas composições de Noel e as diferenciava do “semi-eruditismo e
da nostalgia bucólica da canção sertaneja”.
Noel não se limitou a tematizar a vida urbana; procurou também
conformar a linguagem musical à modernização emergente. O que se
restringiu à tematização foi o samba que se configurou na segunda dé-
cada do século: Pelo telefone, por exemplo, primeira composição regis-
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O api to d a fáb r i ca d e teci d os 1 09

trada como samba, em 1916, de Donga e outros autores, apresentava


uma letra em que motivos regionais (contidos no estribilho) convivem
com uma linguagem típica da cidade do Rio de Janeiro, como a usada
pela burocracia policial para a intervenção nos ambientes de jogatina
(Almirante, 1963:19-20). Mas este primeiro samba, com um ritmo muito
mais próximo do maxixe do que daquele que se convencionou reco-
nhecer como samba alguns anos depois, tem uma letra ainda bastante
mesclada de temas regionais e urbanos. Pelo telefone apropriou-se de
motivos populares nordestinos de uma composição anterior de Catulo
da Paixão Cearense, Ignácio Rapôso e Paulino do Sacramento, O mar-
roeiro (Almirante, 1963).
Noel veio também romper com o diletantismo do artista de clas-
se média, assumindo, ao profissionalizar-se, a condição de músico po-
pular. Até então, como relata Almirante, não havia lugar para o músico
popular entre os segmentos das classes média e alta devido às discri-
minações ao ofício, considerado desclassificado e associado a negros e
marginais. Essas interdições levariam o músico popular a adotar uma
postura dissimulada, como é o caso de Braguinha, que, sendo de fa-
mília tradicional, e temendo assim “arrastar seu nome para o campo
ainda malvisto da música popular”, acabou adotando o pseudônimo de
João de Barro (Almirante, 1963).
Walnice Nogueira Galvão ressalta a importância de Noel Rosa
para que o samba saia de seu confinamento nos morros e nos redutos
negros, ganhe respeitabilidade e penetre nas casas da Zona Norte.
Mas se Noel assumiu a especialização, atuando de acordo com um re-
gistro mais individualista, não adotou o estilo de vida burguês. É
assim que Galvão analisa o lugar ocupado por ele naquele mundo
que então se delineava, como um observador da modernização da ci-
dade, de seus deserdados, seus joões-ninguém, mas colocando-se de
fora, “pelas fímbrias da sociedade, sem qualquer intenção de nela se
integrar”. Tal recusa não resulta, no entanto, na absorção do perfil do
malandro — “aquele de lenço no pescoço e navalha na mão, antes
lúmpen que operário” —, “assim como não se enquadra na pasma-
ceira virtuosa de sua própria classe”. A autora conclui que “Noel Rosa
é, em sua biografia e sua obra”, uma “figura exemplar”: “Boêmio,
antes de mais nada, é pequeno-burguês branco de Vila Isabel” (Gal-
vão, 1982:8).
Noel atuou, portanto, não só como cronista da modernidade,
mas também como um seu protagonista típico: o artista especializado,
que assumiu sua vocação de músico popular. Coerente com esse pa-
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1 1 0 O vi olão azu l

pel, o compositor rapidamente se adaptou ao trabalho no rádio, como


contra-regra, cantor e posteriormente em programa humorístico e em
revistas radiofônicas, nas quais parodiava composições populares e
operísticas. Mas a adesão à mídia não lhe apagou o perfil de boêmio,
alheio aos valores de sua própria classe e a quaisquer preocupações de
cunho construtivo. Tudo indica que Noel constrói sua identidade artís-
tica a partir de modelos fornecidos pela tradição romântica, em que se
configura o culto do artista como gênio. Ele se afasta do ideal de vo-
cação weberiano, muito próximo, segundo Harvey Goldman, de uma
discussão literária que tem seu início com Flaubert. O escritor francês
defendia a idéia de que o artista deveria dedicar a vida a seu ofício, pra-
ticando assim uma verdadeira religião ascética da arte. Flaubert seria
então o primeiro a praticar a arte de escrever como vocação burguesa
sistemática. Thomas Mann daria continuidade a essa tradição inaugu-
rada por Flaubert, assumindo uma identidade burguesa e pautando sua
arte pela idéia de vocação. Mann procuraria soluções para o problema
da identidade do artista através da criação de Tonio Kroeger, que re-
presenta um filho desviante da classe burguesa que reencontra sua vo-
cação em moldes burgueses, deslocando-a do campo da competição
econômica para o campo da arte. Esse tipo de perspectiva então incor-
porada à postura do artista justifica-se pelo argumento de que não há
arte que possa viver sem contato íntimo com a vida (no caso, a bur-
guesa, mas no sentido de homem do burgo, que se opõe ao estilo do
campo).
Ao contrário, portanto, de muitos de seus contemporâneos que
negam a atitude burguesa e incorrem no niilismo, Tonio Kroeger ama a
vida burguesa, acreditando que este amor é a fonte de sua capacidade
de servir à vida. Mas as exigências da vocação o separam do estilo de
vida das pessoas que vivem sem autoconsciência e sem necessidade de
compreender. Cabe portanto à vocação — uma modalidade burguesa
com relação à arte — fazer uma intermediação entre este estilo de vida
das pessoas que não se orientam pela consciência estética e a vida ar-
tística. Em Tonio Kroeger, a vocação se assemelha à redenção cristã,
pois é preciso morrer para a vida para renascer para a arte; trata-se de
uma postura tão ascética e culpada com relação ao trabalho quanto a
dos protestantes. Tonio Kroeger vive o dilema do artista que não pode
se comunicar com as pessoas comuns, não conscientes, e que evita, da
mesma forma, o convívio com as pessoas que lhe são semelhantes. Sua
aspiração é a vida “em sua banalidade sedutora”, e não o extraordiná-
rio e o demoníaco da tradição romântica (Goldman, 1989).
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Ora, as várias narrativas da vida de Noel Rosa ressaltam justa-


mente sua busca do extraordinário, do demoníaco, assim como sua
aversão pelos valores e ambientes de classe média. João Máximo e Car-
los Didier (1990:276), por exemplo, comparam a vivência de Noel com
a dos outros integrantes do Bando de Tangarás: enquanto estes últimos
assumiam o modelo bem-comportado e, coerentemente com ele, pre-
feriam as mulheres “vespertinas” — moças de família —, Noel freqüen-
tava com assiduidade os bordéis da Lapa e só se sentia à vontade com
as mulheres “noturnas”, o que deixou explícito em várias de suas com-
posições, como Dama do cabaré. Filosofia, samba que Noel compôs
com André Filho em 1933, exibe esse tipo de sensibilidade do com-
positor:

O mundo me condena
E ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber
Se eu vou morrer de sede
Ou se eu vou morrer de fome
Mas a filosofia
Hoje me auxilia
A viver indiferente, assim
Nessa prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim. [...]

Se Noel desenvolveu uma linguagem impregnada e estruturada


pelos elementos do mundo burguês com que se deparou na sua expe-
riência, ao mesmo tempo se contrapôs a ele, tanto na vida — colocan-
do-se de fora —, quanto na arte — fazendo uso da ironia e da paródia.
O orvalho vem caindo (samba de 1933, em parceria com Kid Pepe) é
criado através de um procedimento bem-humorado, em que a figura do
sem-teto substitui os objetos familiares à vivência burguesa pelos ele-
mentos que povoam as noites cariocas: a cama “é uma folha de jornal”,
o cortinado “é o vasto céu de anil” e o despertador “é o guarda-civil”. A
atmosfera urbana então emergente no Rio de Janeiro, com os novos
segmentos de classe média, de mendigos e de operários, foi captada
por Noel à maneira baudelairiana, através de movimentos de introver-
são. Três apitos, composição de 1931, é reveladora desse tipo de sen-
sibilidade, na medida em que o mundo representado na canção — no
qual o trabalho se contrapõe à arte, a máquina, ao piano — correspon-
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1 1 2 O vi olão azu l

de à relação que o poeta estabelece com o mundo. Enquanto os poetas


modernistas, como Oswald de Andrade, se vêem como participantes e
cantores da modernidade,40 o poeta de Três apitos, embora inserido
nesse mundo moderno, se exclui do universo do trabalho fabril que o
caracteriza: se a operária “faz pano”, ele faz versos. Para ele, o mundo
só interessa enquanto espaço para a sua vida interior e sentimental. A
fábrica apita para chamar as operárias às máquinas, mas o poeta toca a
buzina do seu carro para chamar a operária para junto de si. Na con-
dição de ser “do sereno”, uma espécie de guarda-noturno, o poeta se
opõe ao diurno mundo do trabalho, assim como às galerias luminosas
que banalizam as noites, fazendo jus à observação de Oswald de An-
drade de que o contrário do burguês, ao invés do proletário, seria o bo-
êmio (apud Vasconcellos, 1977).
Simplicidade, humor e contemporaneidade, nessa linha de ra-
ciocínio, andam de mãos dadas. Chega-se a esta conclusão quando se
analisa a estética de Noel Rosa, percebendo-se sua faceta modernista —
ainda que opere numa pauta mais individualista, ou seja, não vincula-
da a um projeto coletivo — e os pontos de convergência — quanto à
conciliação que promove entre arte e vida e quanto ao aspecto da ino-
vação formal — que podemos estabelecer entre o compositor e Oswald
de Andrade. Pois também para Noel “a poesia existe nos fatos” (Andra-
de, 1972a:5-12), principalmente nos que ocorrem em seu cotidiano bo-
êmio. A sensibilidade de Noel mostra-se em consonância com as atu-
alizações românticas empreendidas pelos escritores modernistas, que
sofreram, entre outras influências, a de Blaise Cendrars, com quem
mantiveram um contato estreito. Em 1913, ao publicar La prose du
Transsibérien, Cendrars proclama a vinculação da arte com a vida em
manifesto:41

Não sou poeta. Sou um libertino. Não tenho qualquer método de traba-
lho. Tenho um sexo. [...] E se escrevo, será talvez por necessidade, por hi-
giene, como se come, como se respira, como se canta. [...]

40 Quanto a esta questão, ver Nunes (1979:29), que analisa, por exemplo, a influência
de Blaise Cendrars sobre Oswald de Andrade, através da síntese que promove entre o
primitivo (“a imprevisibilidade, o irracional”), e o moderno (“a previsão que ordena, a
razão que organiza, a ‘prática culta da vida’, cujo regime a civilização técnico-indus-
trial impunha”).
41 Blaise Cendrars publica este manifesto no periódico de vanguarda berlinense Der

Sturm, em setembro de 1913. Ver Perloff, 1993:42.


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O api to d a fáb r i ca d e teci d os 1 1 3

A literatura faz parte da vida. Não é qualquer coisa “à parte”. Não escrevo
por ofício. Viver não é um ofício. [...] Fiz os meus mais belos poemas nas
grandes cidades, no meio de 5 milhões de homens — ou a 5 mil léguas
sob os mares, em companhia de Júlio Verne, para não esquecer os mais
belos jogos da minha infância. A vida inteira não é mais que um poema,
um movimento. [...]

Amo as lendas, os dialetos, os erros de gramática, os romances policiais,


a carne das meninas, o sol, a Torre Eiffel, os apaches, os bons negros, e
esse astucioso europeu que zomba da modernidade. Aonde vou? Não te-
nho idéia, pois entro até nos museus. [...]

Não deixa de ser paradoxal, no entanto, o fato de Noel conciliar


aquela atitude gauche com a imersão radical no mercado emergente
propiciado pelo desenvolvimento do rádio e das novas técnicas de gra-
vação. Tanto na estética quanto na vida, Noel é irreverente para com os
valores burgueses, embora se mostre receptivo para com os estímulos
do dia-a-dia, para com os embates trazidos pelo seu tempo, correspon-
dendo assim ao próprio espírito do início do modernismo. Klaxon
(1922), já no seu primeiro número, anuncia a vida presente em mani-
festo:

Klaxon sabe que a vida existe. E, aconselhado por Pascal, visa o presente.
Klaxon não se preocupará de ser novo, mas de ser atual. Essa é a grande
lei da novidade.

Noel assume a contemporaneidade, embora essa orientação não


o leve a aceitar radicalmente, tal como as vanguardas italianas, o espí-
rito anti-sublime do mundo industrial. Mas permite-lhe, pelo menos,
lidar com algumas concepções materialistas desse universo, principal-
mente com a idéia de que a obra de arte, longe de ser autônoma, é in-
vestida de valor de troca como qualquer mercadoria.42 Já comentei an-
teriormente que os modernistas brasileiros, em virtude de um
prognóstico próprio de nossa inserção na modernidade, fazem restri-
ções não só ao mercado capitalista como à especialização do artista.
Representativa dessa atitude extremamente cautelosa para com o novo
perfil de público que se delineia — referenciado à “massa” — é a ob-
jeção modernista à música popular divulgada pela mídia. Talvez se

42 Ver Fabris, 1994:99.


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1 1 4 O vi olão azu l

possa então dizer que os músicos populares, ao aceitarem essa diretriz


do mercado, se mostram mais afinados com o espírito futurista que os
eruditos, apesar da forma extremamente radical com que os artistas ita-
lianos expõem suas idéias sobre o valor da arte. Em “Pesos, medidas e
preços do gênio artístico — manifesto futurista”, de 1914, por exemplo,
Corradini e Settimelli declaram:

1. A arte é uma secreção cerebral exatamente mensurável;

2. É necessário pesar o pensamento e vendê-lo como uma mercadoria


qualquer [...] (apud Bernardini, 1980:139).

Noel se mostra atento em captar não apenas as questões, mas


também a forma adequada ao momento histórico em que vive, conce-
bendo o despojamento como a linguagem adequada ao seu tempo.
Esse procedimento se vê nas letras de suas canções, nas quais o liris-
mo, sempre mesclado com a ironia, se mostra desprovido de qualquer
excesso, de qualquer tipo de idealização. Tal como Baudelaire, que re-
vela em seus poemas uma consciência aguçada do presente, Noel de-
senvolve uma estética compatível com a concepção da beleza no tran-
sitório, na vida que corre no dia-a-dia.43 E tal como Manuel Bandeira,
cuja subjetividade poética se estilhaça em cacos jornalísticos ou rotinei-
ros do cotidiano, Noel, através do estilo simples que desenvolve, cons-
trói um eu lírico fragmentado, não suscetível de completude. Suas
musas são palpáveis, fáceis de localizar: podem estar em algum ponto
de Vila Isabel — em casa ou na fábrica — ou mesmo num cabaré da
Lapa. Claudia Matos compara, por exemplo, o lirismo de Noel com o li-
rismo derramado de outros compositores seus contemporâneos, como
Cartola, Nelson Cavaquinho e Lupicínio Rodrigues. Segundo a autora,
os poetas de cabeceira de Cartola teriam sido Olavo Bilac, Castro Al-
ves, Gonçalves Dias. Matos (1982:46) complementa:

Este detalhe vem confirmar algo nitidamente observável nas letras dos
sambas não apenas de Cartola, mas de todos aqueles que versaram da
musa lírico-amorosa naqueles anos: a influência de um discurso literário,
branco, burguês, que se faz notar no rebuscamento das metáforas como
nas colorações idealizantes [...] que marcam sua visão de mundo.

43 Ver Calinescu, 1987.


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Noel é despojado também quando interpreta. Sua voz fraca e seu


estilo descontraído contrastam com os dós de peito dos grandes canto-
res de rádio da época, como Francisco Alves e Vicente Celestino. Tal es-
tilo interpretativo, por sua vez, recorre a um acompanhamento adequa-
do. Os instrumentos orquestrais em profusão, característicos dos
arranjos da época, cedem lugar a instrumentos de corda mais camerís-
ticos, como o bandolim e o violão (Máximo & Didier, 1990:156). Tinho-
rão afirma que o grande trunfo de Noel foi o de ter sabido, na convi-
vência com músicos, conciliar os extremos. Assim, partilhava, em seu
cotidiano boêmio, da companhia de compositores semi-analfabetos,
como Ismael Silva, Canuto e Antenor Gargalhada, com os quais com-
punha sambas batucados. Mas também convivia com músicos sofistica-
dos, como Romualdo Peixoto (Nonô) e Osvaldo Gogliano (Vadico), o
que lhe permitia aprimorar suas composições e “adiantar-se ao gosto
médio do seu tempo”. Tinhorão também atenta para a correção prosó-
dica das composições de Noel. Segundo ele, Noel promoveu a integra-
ção definitiva dos versos à música, procedimento que o levou a produ-
zir “pequenas obras-primas da linguagem coloquial”, como o samba
Pra que mentir, composto em 1935 em parceria com Vadico (Tinhorão,
1982b:1-2). Quanto a essa questão, é interessante observar que, se Noel
se tornou bastante conhecido como letrista — ou até mesmo como po-
eta, segundo alguns críticos —, jamais se descuidou da parte musical de
suas canções, que “se adequava perfeitamente ao espírito dos versos”.
Assim, ela é “brejeira”, por exemplo, em Com que roupa ? e é “lenta e
melancólica” em Último desejo e em outras composições. Mas sem dú-
vida Noel também se destacou como letrista. De acordo com os orga-
nizadores de MPB Pesquisa, “Noel foi um poeta inovador”: “rompeu
com as convenções poéticas, renovou o vocabulário, encontrou rimas
surpreendentes, trouxe novos temas, permanecendo como um dos mai-
ores letristas da música popular brasileira”.44 Charles Perrone chama a
atenção para o fato de que, embora Noel não tivesse contato com o
mundo literário, se discute a qualidade literária de suas letras. Perrone
(1988:18) cita a análise de Afonso Romano de Sant'Anna, segundo a
qual a “dosada linguagem coloquial” dos sambas de Noel corresponde-
ria, em alguns aspectos, ao primeiro modernismo.
E é exatamente por isso, aliás, que quando lida com uma estética
que recorre ao excesso, como no caso do repertório operístico, Noel o

44 Ver “A vida, esse triunfo difícil”, 1982:5.


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1 1 6 O vi olão azu l

faz parodiando. O barbeiro de Niterói, de 1935, exemplifica essa pos-


tura: a revista radiofônica, elaborada para o programa humorístico
Clube da Esquina, da Rádio Clube do Brasil, é uma paródia da ópera
O barbeiro de Sevilha, de Rossini. O sucesso de O barbeiro de Niterói o
teria animado a criar outras revistas radiofônicas, como Ladrão de ga-
linha (1935) e A noiva do condutor (1936). João Máximo e Carlos Di-
dier lembram que o procedimento parodístico é recorrente em Noel e
citam alguns exemplos, como Com que roupa?, composição que parte
de uma brincadeira com o Hino Nacional, e outras composições escri-
tas sobre algumas melodias, como Cheek to cheek, Diga-me esta noite,
Gigolette etc.45

É fu tu r i smo, men i n a

Lamartine Babo apresenta algumas semelhanças com Noel Rosa


quanto à sensibilidade para captar a vida presente da cidade e as lin-
guagens dos diversos segmentos sociais; também de maneira parecida
com Noel, Lamartine não dispensa o humor, principalmente na criação
de marchinhas carnavalescas. Representativa da acuidade do composi-
tor para captar os modismos que assolam o Rio de Janeiro é a marcha
Os calças largas (em parceria com Francisco Gonçalves de Oliveira), de
1926, que satiriza a “moda das calças de boca larga e paletós curtos e
cintados, lançada na Inglaterra pelo príncipe de Gales, [...] e logo ado-
tada no Brasil pelos almofadinhas da avenida Central”. Esta marchinha
foi muito cantada no carnaval do ano seguinte e se tornou tão popular
que inspirou título de revista montada por Freire Júnior em 1927 no
Teatro Carlos Gomes (Valença, 1981:46).
Além de compositor versátil, aventurando-se em diferentes gê-
neros, como valsas, operetas, músicas juninas, sambas, tangos, foxes e
outros, Lamartine costuma ser citado como um divisor de águas do car-
naval brasileiro, exibindo, com suas marchinhas, um perfil paradigmá-
tico de folião. De acordo com relatos de músicos desta geração de 20 e
30, como Braguinha, os meses que antecediam o carnaval, no início da
década de 30, eram de expectativa com relação às próximas criações de
Lamartine Babo (Valença, 1981). E citam-se, além de O teu cabelo não

45 Ver “A vida, esse triunfo difícil”, 1982:5; Enciclopédia da música brasileira, 1977; e

Máximo & Didier, 1990:375.


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nega, marchas carnavalescas de Lamartine que tiveram grande popu-


laridade no período, como Linda morena, ao som da qual o composi-
tor, no carnaval de 1933, teria sido carregado por foliões cariocas em
um longo percurso pela cidade. Outra marcha citada é História do Bra-
sil, a qual, interpretada por Almirante e com acompanhamento dos Di-
abos do Céu, foi gravada em disco no final de 1933 e lançada para o
carnaval de 1934. O sucesso desta marchinha foi comprovado pela en-
cenação da revista Foi seu Cabral, que, montada em 1934 no Teatro
João Caetano, usava como título um verso da composição de Lamarti-
ne. Em 1935, propagaram-se por todos os cantos da cidade as marchas
Grau dez, de Lamartine Babo e Ari Barroso, e Rasguei a minha fanta-
sia, de Lamartine (Valença, 1981:115-21).
Em 1939, quando publicou Lamartiníadas, Lamartine, tal como
Noel, mostrou-se afinado com o espírito humorístico e irreverente do
modernismo, como se vê em Língua... com batatas..., em que ele te-
matiza, de maneira jocosa, a reforma ortográfica da época e seus efei-
tos sobre as palavras, que perdem sua aura:

Mais uma vez lá venho eu, senhores,


gritar contra a fonética mal... dita.
Falem de mim, ou não, os inventores
dessa mania de atrasar a escrita...

Uma escrita atrasada traz perigos,


sérios perigos, fáceis de prever,
A Língua Pátria vai sofrer castigos
com os efes e os erres do sofrer.

Quanto doutor, de óculos azuis, solenes,


na escrita antiga abria o dicionário
Só para ver a quantidade de enes
cabíveis na palavra aniversário!...

[...]

Foi só por isso que a Reforma veio,


porque, afinal, pouco trabalho dá...
É ela própria quem nos mostra em cheio,
que a fantasia está no P e H...

Fantasma sem o P e sem o H


nem papão chega a ser; foge tremendo...
Perde-se a fantasia de um rajá,
e fica o verbo haver letras devendo...
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1 1 8 O vi olão azu l

Sei que perco o latim nessas tolices


ao lhes fazer aqui certas perguntas:
— Não é tão belo o nome próprio Ulisses,
Letras a gancho... consoantes juntas?
[...] (apud Valença, 1981:153-4.)

Ao reportar-se ao universo das palavras escritas com dois enes


e com ph, dos doutores “de óculos azuis, solenes” e dos falantes do
latim, Lamartine, bem à maneira de Oswald de Andrade no “Mani-
festo da poesia pau-brasil”, investe contra a solenidade vazia da
forma bacharelesca. Mas Lamartine foi mais longe com a irreverên-
cia, chegando a parodiar a própria estética modernista. Que pequena
levada! (s.d.), por exemplo, foi concebida por ele e por José Fran-
cisco de Freitas como um “foxtrote passo Marinetti”. E a marcha A-B-
surdo, de 1931, que compôs em parceria com Noel Rosa, é toda ela
uma brincadeira com a suposta incompreensibilidade da poesia fu-
turista, como se qualificava toda e qualquer poesia não-acadêmica na
época:

Nasci na praia do Vizinho oitenta e seis


Vai fazer um mês
Vai fazer um mês
A minha tia me emprestou cinco mil-réis
Pra comprar pastéis
Pra comprar pastéis

Coro
É futurismo, menina
É futurismo, menina
Pois não é marcha
Nem aqui nem lá na China

Depois mudei-me para a praia do Caju


Para descansar
Para descansar
No cemitério toda gente pra viver
Tem que falecer
Tem que falecer

Seu Dromedário é um poeta de juízo


É uma coisa louca
É uma coisa louca
Pois só faz versos
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O api to d a fáb r i ca d e teci d os 1 1 9

quando a lua vem saindo


Lá do céu da boca
Lá do céu da boca

Se Noel Rosa operava basicamente com sambas e marchas, La-


martine foi mais eclético; além de se aventurar nos mais diversos gê-
neros de composição popular — da valsa romântica à irreverente
marchinha carnavalesca —, Lalá (como era conhecido por seus con-
temporâneos) não se furtou a outras experiências. Além das obras hu-
morísticas que o notabilizaram, Lamartine produziu obras de extremo
lirismo, como a valsa Eu sonhei que tu estavas tão linda, de 1941, e os
sambas-canções Serra da Boa Esperança, de 1937, e No Rancho Fun-
do, que compôs com Ari Barroso em 1931. Enquanto Lamartine tra-
balhava suas composições líricas de maneira dramática, Noel Rosa,
como vimos, confundia os gêneros musicais ao conferir tanto aos
sambas quanto às marchinhas carnavalescas um tom ao mesmo
tempo lírico e irônico, como se o humor não fosse incompatível com
a ternura, ou mesmo com o sofrimento. Ao desenvolver, porém, uma
estética muito definida pelo intimismo, Noel constitui uma exceção
num período caracterizado pela multiplicidade de estilos na música
popular.
Mas sem dúvida o humor marca tanto a obra quanto a persona de
Lamartine Babo, que se autoparodiava no cotidiano, brincando com a
própria magreza ou com a própria feiúra e, no carnaval, compondo di-
ferentes tipos. Assim, a partir de 1922, como relata seu biógrafo, La-
martine passou a integrar o bloco Foi Ela Que Me Deixou, no qual sem-
pre se fantasiava de viúva. E em 1924 tornou-se membro do bloco Tatu
Subiu no Pau, organizado por Eduardo Souto. Mas o lado clown de La-
martine não se limitou ao carnaval, como relata Nestor de Holanda no
Diário de Notícias:

Lamartine senta à mesa do bar e mostra melodias aos amigos, imitando


qualquer conjunto instrumental: puxa o trombone do canto direito da bo-
ca, o saxofone do canto esquerdo, o pistom do meio, o violino sai pelo
nariz, belisca o pescoço e faz “pizzicatos”, aperta uma narina e imita sur-
dina e, castigando a mesa, pratos, copos e talheres, é melhor que qual-
quer equipe de ritmistas (apud Valença, 1981:35).

Lamartine notabilizou-se por sua facilidade de inventar piadas e


trocadilhos, o que o levou a trabalhar, ainda nos anos 20, como co-
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laborador da revista D. Quixote — voltada para a sátira de costumes46


— e como compositor de teatro de revista (MPB Pesquisa, 1982a:3-6).
Zuza Homem de Mello (1982:2) ressalta o talento de Lamartine para
absorver temas e expressões de época, “aplicando interjeições, apor-
tuguesando ditos estrangeiros, parodiando, descrevendo e filosofan-
do”, assim como sua vocação para captar o aspecto “baderneiro” do
brasileiro, o que o levava a “avacalhar” com tudo. A imagem alegre de
Lalá — cantando Linda morena — foi propagada pelo filme A voz do
carnaval, de 1933, dirigido por Ademar Gonzaga e Humberto Mauro.
Carmen Miranda participou do filme interpretando Moleque indiges-
to, marchinha de Lamartine que fez muito sucesso no carnaval daque-
le ano.47 Diga-se de passagem que, ao representar o clown no coti-
diano, incorporando-o à sua persona, Lamartine evoca os bufões e os
bobos medievais, que, como descritos por Bakhtin, não restringem
seu desempenho ao momento carnavalesco ou ao espaço teatral. En-
carnando uma forma de vida que os situava na fronteira entre a arte e
a vida, fugiam portanto às definições de “excêntricos” e “estúpidos”,
ou mesmo à configuração específica de “atores cômicos” (Bakhtin,
1987b).
Esse gosto pelo gênero humorístico o levou desde cedo a com-
por operetas, como Cibele, de 1920, e outras que foram produzidas
logo depois, como Viva o amor e Lola. Em 1934, parodiando o estilo
operístico, compôs a marchinha Ride palhaço. Lamartine não se con-
tinha nem mesmo quando trabalhava com versões de músicas estran-
geiras. Conseguiu se comportar ao traduzir Night and day, de Cole Por-
ter, mas na maioria das vezes esse trabalho foi mero pretexto para dar
vazão ao seu extraordinário senso de humor, pois chegava, em alguns
casos, a alterar completamente o sentido original da letra. O tango Yira,
Yira, por exemplo, foi transformado por ele em A família Orangotan-
go (MPB Pesquisa, 1982a:3-6).
Se a faceta mais conhecida de Lalá é a do folião, não se pode
dizer que ele seja figura noturna, gauche. Ao contrário de Noel, Lamar-

46 Em estudo sobre o modernismo no Rio de Janeiro, Monica Pimenta Velloso (1996)


faz uma análise aprofundada da revista D. Quixote.
47 Valença, 1981. Lamartine reapareceu no cinema em 1935 (em Alô, alô, Brasil,

filme de João de Barro, Alberto Ribeiro e Wallace Downey) e em 1936 (em Alô, alô,
carnaval, de João de Barro e Alberto Ribeiro, produzido por Wallace Downey),
também ao lado de vários cantores, como Francisco Alves, Mário Reis, Carmen Mi-
randa e Almirante, que interpretaram suas composições (Valença, 1981).
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tine mostra um humor ingênuo, uma alegria mais mediada pelo lirismo
do que propriamente por uma sensibilidade irônica. Pequeno-burguês
autêntico, não dá mostras de estar mal com a vida. Luiz Tatit observa, a
propósito, as dicções opostas dos dois compositores, pois Noel, segun-
do ele, “programa seus segmentos em função das figuras”, enquanto La-
martine o faz “em função dos temas”. Por figura Tatit refere-se ao re-
curso pelo qual “o cancionista projeta-se na obra, vinculando o
conteúdo do texto ao momento de sua execução”, aproximando a can-
ção do discurso oral, exacerbando o “vínculo simbiótico entre o texto e
a melodia” (Tatit, 1996:21) — por exemplo, utilizando subidas e desci-
das na melodia em pontos estrategicamente importantes da letra, de
modo que esta seja ouvida como um discurso falado do cantor dirigido
ao ouvinte, no aqui e agora da execução. Esse recurso, característico da
obra de Noel, é menos comum em Lamartine, que trabalha com temas
— isto é, motivos previamente dados, tanto no sentido musical de uma
estrutura melódica repetida no decorrer da canção quanto no de um
motivo cultural, como a mulata, o torcedor de futebol etc. Assim, Noel
“encontra os seus motivos a partir da fala, do relato, da experiência”, en-
quanto Lamartine parte “dos motivos musicais já devidamente estrutu-
rados” (Tatit, 1996:63). Torna-se mais fácil entender, através dessa dife-
renciação entre os dois compositores, o fato de Lamartine, ao contrário
de Noel em suas criações líricas, ser menos confessional em suas com-
posições. Seus tipos são idealizados, como a morena de Linda morena
(1933) e a mulata de O teu cabelo não nega (1932), ou representam per-
sonagens em voga no momento, como em Seu Voronoff (1928, em par-
ceria com João Rossi) ou em Saias curtas (1927, em parceria com Lírio
Panicali), que tematiza as melindrosas. Seu Voronoff, por exemplo, a
partir da própria classificação do gênero como “marcha-enxerto”, sati-
riza as experiências, muito divulgadas à época pela imprensa, que Ser-
gei Voronoff — médico russo radicado em Paris — realizava com glân-
dulas de animais, enxertando-as em seres humanos para fins de
rejuvenescimento (Valença, 1993).
Uma sensibilidade parecida com a de Noel se vê em Assis Valen-
te, cuja faceta marcante, segundo Ary Vasconcelos (1982:1), é a do “ob-
servador crítico — às vezes mesmo sarcástico — de costumes e aconte-
cimentos”. Essa sensibilidade crítica confere muita densidade ao que faz,
mesmo quando retrata situações burlescas do cotidiano ou — o que é
muito comum em sua obra — quando atua na pauta da exaltação do
prazer. Assim, em Alegria, samba de 1937, feito em parceria com Durval
Maia, ele incorpora o Dioniso que se esforça “pra deixar de padecer”:
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1 22 O vi olão azu l

[...]
Alegria
Pra cantar a batucada
As morenas vão sambar
Quem samba tem alegria
Minha gente
Era triste, amargurada
Inventou a batucada
Pra deixar de padecer
Salve o prazer, salve o prazer
[...]

Em Boas-festas (marcha de 1933), o que parece de início ser uma


marcha evocativa do espírito natalino toma um caminho inusitado, amar-
go, em que a tradicional singeleza das canções de Natal cede lugar a uma
crítica mordaz ao que seria uma má distribuição da felicidade:

[...]
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
Bem assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem
[...]

Assis Valente não se preocupa, no entanto, com a inovação for-


mal. Boas-festas é gravada por Carlos Galhardo numa interpretação la-
murienta, trágica, que não dá vazão à ironia contida na letra e se mos-
tra inapropriada ao próprio espírito humorístico inerente ao gênero
marcha. Mas nem tudo é amargo na estética deste compositor. Quando
recorre a um humor mais irreverente, é capaz de captar certos aspectos
lúdicos do imaginário popular, como em E o mundo não se acabou
(samba-choro de 1938) e em Camisa listrada (samba-choro de 1937),
onde Assis Valente já antecipa a temática da inversão carnavalesca de-
senvolvida por Ari Barroso dois anos depois com Camisa amarela
(conforme veremos mais adiante):
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Vestiu uma camisa listrada


E saiu por aí
Em vez de tomar chá com torrada
Ele tomou Parati
Levava um canivete no cinto
E um pandeiro na mão
E sorria quando o povo dizia
Sossega leão, sossega leão

Tirou o seu anel de doutor


Pra não dar o que falar
Saiu dizendo
Eu quero mamar
Mamãe eu quero mamar [Bis]

Levava um canivete no cinto [...]

Levou meu saco de água quente


Pra fazer chupeta
Tirou minha cortina de veludo
Pra fazer uma saia
Abriu meu guarda-roupa
E apanhou minha combinação
E até do cabo de vassoura
Ele fez um estandarte para o seu cordão
[...]

Se Ari Barroso, em Camisa amarela, tematiza um folião dos re-


dutos populares, Assis Valente, neste samba-choro, retrata a inversão
promovida pelo “doutor” no carnaval, trocando o tradicional chá com
torrada pela cachaça, a identidade masculina pela feminina e assim por
diante. E num procedimento semelhante ao de Ari Barroso no samba
mencionado, Assis Valente recorre, para a construção de Camisa lis-
trada, à citação da marchinha carnavalesca Mamãe eu quero, gravada
no mesmo ano e de autoria de Vicente Paiva e Jararaca. A exaltação do
prazer e do burlesco chega a ser programática em Minha embaixada
chegou (samba de 1935):

Minha embaixada chegou


Deixa meu povo passar
Meu povo pede licença
Pra na batucada desacatar
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1 24 O vi olão azu l

Vem vadiar no meu cordão


Cai na folia meu amor
Vem esquecer tua tristeza
Mentindo a natureza
Sorrindo a tua dor
[...]

Mesmo as composições de Assis Valente de cunho mais patrió-


tico, como Brasil pandeiro (samba de 1940), dão à brasilidade um tra-
tamento humorístico bastante diferenciado do tom grandiloqüente com
que se costuma tratar os temas cívicos:

Chegou a hora dessa gente bronzeada


Mostrar seu valor
Eu fui à Penha
E pedi
À padroeira para me ajudar
Salve o morro do Vintém
Pendura a saia
Eu quero ver
Eu quero ver o Tio Sam
Tocar pandeiro
Para o mundo sambar
[...]

Baiano radicado no Rio desde 1927, de origem obscura e com


uma trajetória de vida marcada pela boemia e um tanto folhetinesca,
Assis Valente teria se projetado nos meios musicais através de Carmen
Miranda, que gravou em 1933 sua composição Etc., um samba-exalta-
ção em homenagem à Bahia. Sua carreira teria começado a entrar em
declínio a partir de 1939, com a ida de Carmen Miranda — sua maior di-
vulgadora — para os Estados Unidos. Segundo consta, a cantora teria
se recusado a gravar Brasil pandeiro — samba que o compositor pre-
parou para sua nova fase na América do Norte —, temendo talvez a ir-
reverência da letra. Dando continuidade aos aspectos folhetinescos de
sua trajetória, atira-se em 1941 do morro do Corcovado, cometendo sua
primeira tentativa de suicídio.48

48 Assis Valente morre em 1958 depois da terceira tentativa de suicídio (MPB Pesqui-

sa, 1982b:6).
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Quanto ao seu aspecto gauche, Assis Valente mostra-se próximo


de Noel Rosa, embora lhe faltasse a cor branca e a origem pequeno-
burguesa do compositor de Vila Isabel. Por outro lado, enquanto Assis
Valente manifesta revolta em seus sambas por não encontrar a “felici-
dade” que tanto busca, Noel — muito mais cético — nunca demons-
trou tê-la procurado. Em Elogio da raça (marcha de 1933), por exem-
plo, Assis Valente denuncia o preconceito racial e exalta a negritude;
em Boas-festas, faz-se paladino da causa da “criança pobre e infeliz”
(Vasconcelos, 1982:1). Noel, pelo contrário, só é exaltativo com rela-
ção a Vila Isabel, embora o faça galhofeiramente, sem o menor com-
promisso com a seriedade. É como se Assis Valente assumisse a atitude
gauche a contragosto, enquanto Noel o fizesse por opção.

Com su sten i d os e b emói s/ d esen h ad os n a mi n h a voz


Talvez também se faça necessário mencionar Mário Reis, cujo de-
sempenho específico como cantor assegura-lhe um lugar equivalente
ao de Noel; de fato, ambos se destacam no cenário da música popular
por levarem às últimas conseqüências a utilização de procedimentos
simples. Dublê de artista e grã-fino49 — chegando a abandonar a car-
reira de cantor em 1936 para ocupar o cargo de chefe de gabinete do
prefeito Olímpio de Melo —, Mário Reis marca decisivamente o cenário
musical com o tom intimista que confere às canções.50 Os parcos re-
cursos vocais — a despeito de uma enorme afinação e da maneira sin-
copada de cantar — não o impediram de criar um estilo de interpreta-
ção distanciado, irônico e bem-humorado. Iniciando seu aprendizado
na música popular como aluno de violão de Carlos Lentine e depois de
Donga e Sinhô, no final dos anos 20, Mário já em 1928 grava seu pri-
meiro disco com duas composições de Sinhô: O que vale a nota sem o
carinho da mulher e Carinhos de vovô. Tárik de Souza (1994) descreve
a entrada de Mário Reis na vida artística “sacudindo os alicerces do bel
canto num cenário dominado por gargantas poderosas como as de Vi-
cente Celestino, Gastão Formenti, Augusto Calheiros ou Francisco Al-
ves”. Esse primeiro disco do cantor foi bem recebido por Cruz Cordei-

49
Segundo Tárik de Souza (1994), Mário Reis era “filho do sócio de uma loja de fer-
ragens e descendente da família que controlava a tecelagem Bangu”.
50 Cabral, 1979. Sérgio Cabral lembra que João Gilberto, quando surgiu no cenário

musical, foi saudado como “um novo Mário Reis”.


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ro, o crítico musical da Phono-Arte, que ressaltou a originalidade de sua


interpretação: “O artista realiza uma espécie de canto sincopado muito
expressivo e que, se à primeira vista nos impressiona mal, pouco de-
pois agrada-nos imensamente” (apud Cabral, 1979:109). Esse tipo de
estranhamento provocado por Mário Reis em muito se deve também ao
fato de ele — um “rapaz fino” — gravar as músicas de Donga, de quem
foi aluno, num estilo diferente, mais colado à forma como os sambistas
dos morros cantavam.51
A partir desse primeiro sucesso, Mário Reis gravou muitos dis-
cos, lançando músicas de vários compositores, como Sinhô, Caninha,
Ismael Silva, Heitor dos Prazeres, Paulo da Portela, Brancura, Donga,
Nilton Bastos etc. (Cabral, 1979). Sérgio Cabral (1979) argumenta que
Mário Reis foi o primeiro intérprete a tirar partido do sistema de gra-
vação elétrica que surge no período. Se ao tempo das gravações me-
cânicas exigia-se do cantor voz forte o suficiente para aparecer, agora
podia-se explorar um registro vocal menos possante e diferente do
operístico. Mas é importante observar que a criação de um estilo dis-
tanciado do bel canto não esgota a criatividade de Mário Reis, que se
notabilizou por conferir um tom de conversa às suas interpretações,
como se falasse em vez de cantar. O musicólogo Mozart de Araújo
chega a dizer que Mário Reis, na verdade, apenas teria dado conti-
nuidade ao estilo interpretativo criado por Sinhô. Este músico, já bem
antes do aparecimento de Mário Reis, teria se notabilizado pelo em-
prego de células melódicas curtas em suas composições, como é o
caso do samba Jura, cujo tema principal consiste em apenas duas no-
tas. Segundo Mozart de Araújo (1994:91), a partir de Sinhô “o samba
cantado a pleno pulmão não teve mais vez”, assim como a ele se deve
a expressão “dizer um samba”. A própria descoberta de Mário Reis
como intérprete é creditada a Sinhô, que, como vimos, foi seu instru-
tor musical.
É difícil, portanto, entender a grande ligação profissional de
Mário Reis com um intérprete que, na verdade, era o seu oposto:
Francisco Alves. Se Mário Reis conferia sempre humor e ironia às suas
interpretações, Chico recorria a um tom lacrimoso, mesmo nos casos
de sambas e marchas que exigiam uma leitura alegre ou mais distan-
ciada. Ao contrário de Mário Reis, Chico Alves exibia uma voz poten-
te. E se a postura de dândi compunha a persona de Mário Reis, Chico

51 Ver Moura, 1988:58.


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O api to d a fáb r i ca d e teci d os 1 27

encarnava a própria figura do “grosso” e deselegante, tanto nas ma-


neiras quanto na forma de se vestir. Em depoimento a Sérgio Cabral,
Mário Reis conta que mesmo depois de ganhar dinheiro com a vida
musical, Chico Alves “continuava a fazer seus ternos no alfaiate da rua
Maxwell”: “Ombro torto, calça malfeita, uma coisa horrorosa” (Ca-
bral, 1979:110).
Um contraste também importante entre os dois intérpretes refe-
re-se à opção estética. Mário Reis sempre se mostrou muito criterioso
na escolha dos gêneros — tendendo à marcha e ao samba — e das
composições, ao passo que não se nota o mesmo procedimento em
Francisco Alves, que se aventurava nos mais diversos gêneros, da ale-
gre marchinha carnavalesca aos tangos e operetas (Cabral, 1979). Nin-
guém mais apropriado que Chico Alves, portanto, para gravar Aquare-
la do Brasil, de Ari Barroso, uma composição que se notabilizou por
combinar registros díspares: o monumental e o edificante, o excessivo
e o carnavalesco.52
Talvez nenhum cantor tenha se mostrado mais afinado com a co-
loquialidade modernista que Mário Reis. Pode-se dizer que ele foi a
contrapartida dos poetas do movimento no terreno da interpretação
popular. Se não se concebe uma declamação de um poema de Oswald
de Andrade, também se torna difícil conceber uma interpretação plan-
gente de um samba de Noel. Assim como os poetas modernistas pro-
curaram a linguagem adequada ao tempo presente, destituída do ranço
bacharelesco, Mário Reis imprimiu à interpretação uma simplicidade
até então nunca vista. Seu estilo coloquial, como argumenta Tárik de
Souza, aproximava suas gravações “do idioma do samba das ruas e dos
morros, geralmente pasteurizado na adaptação dos estúdios”. Tárik de
Souza (1994:1) o vê também “como um antecipador das modernidades
da bossa nova, na divisão de síncopas e no fraseado enxuto capaz de
realçar o teor das letras”.
Várias das composições interpretadas por Mário Reis cujas le-
tras apresentam um teor dramático ganhariam outro tom — mais pas-
sional — nas vozes de outros cantores. Assim é o caso, por exemplo,
de sua gravação de Você me maltrata, de Xavier de Souza, Arlindo
Marques Jr. e Roberto Roberti, em que, a despeito de uma letra que te-
matiza desencontros amorosos, Mário não só faz uma interpretação
distanciada como também introduz uma entonação de riso, de brin-

52 Francisco Alves gravou Aquarela do Brasil na Odeon, em 18-8-1939 (Cabral, s.d.).


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cadeira, como se no fundo não levasse a sério os “maltratos” que a


musa lhe dirige. No mais das vezes, porém, o cantor opta por marchi-
nhas e sambas bem-humorados condizentes com seu estilo. Além dis-
so, não se descuida dos arranjos, muitos dos quais elaborados por Ra-
damés Gnattali ou por Pixinguinha. Nas marchas que interpreta, por
exemplo, há sempre uma profusão de sopros e metais — para não
falar das famosas introduções — que lhes conferem um clima carna-
valesco.
Esse tipo de sensibilidade caracterizada por um humor alegre e
pouco corrosivo aproximou bastante Mário Reis de Lamartine Babo,
tornando-o um dos principais intérpretes das marchinhas e outros gê-
neros carnavalescos deste compositor. Em 1939, por exemplo, os dois
se tornam as maiores estrelas de um espetáculo beneficente denomi-
nado Joujoux & balangandãs, realizado no Teatro Municipal e orga-
nizado por Darcy Vargas, então primeira-dama. Lamartine criou vári-
as músicas para o evento. Uma delas — a marcha Joujoux &
balangandãs — foi interpretada por Mário Reis e Mariah. E Lamartine
criou um samba — Voltei a cantar —, especialmente para registrar a
volta de Mário Reis aos palcos, dos quais tinha se afastado desde
1936:

Voltei a cantar
Porque senti saudade
Do tempo em que eu
Andava na cidade

Com sustenidos e bemóis


Desenhados na minha voz
E a saudade rola, rola
Como um disco de vitrola

Começo a recordar
Cantando em tom maior
E acabo no tom menor

Oh! Meu Samba


Velho amigo
Novamente estou contigo
Tua vida me transtorna
Bom filho à casa torna
De ti nunca me esqueci
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O api to d a fáb r i ca d e teci d os 1 29

Esta composição, embora alegre, denota delicadeza e um senti-


mento de amizade muito forte, recebendo portanto uma interpretação
lírica e comovida de Mário Reis. Fez-se um arranjo primoroso para a
gravação desse samba, utilizando-se de metais, percussão e piano; na
introdução e no final da música, lança-se mão de recursos que criam
um clima apoteótico. Nota-se, principalmente na segunda estrofe, um
diálogo intenso entre música e letra. O verso “com sustenidos e be-
móis” prepara o ouvinte para o acidente melódico que se segue no
verso seguinte; assim, a variação harmônica incide na palavra “voz” do
segundo verso. Da mesma forma que a voz do intérprete é evocada, há
também a referência ao “disco de vitrola”, o meio físico que a armaze-
na e reproduz. Na terceira estrofe, o comentário da letra relativo ao
“tom maior” e ao “tom menor” é uma descrição literal do percurso har-
mônico da peça até aquele ponto.

O poéti co e o pr osai co

Seria possível, então, registrar pelo menos duas maneiras pelas


quais a simplicidade se manifesta em nosso contexto modernista.
Vinculada à proposta literária do movimento, ela se estrutura atra-
vés de certos princípios básicos de composição que correspondem a
um projeto compartilhado por vários escritores, embora eles apresen-
tem diferenças entre si tanto de fundo quanto de forma. O universo
da música popular, por sua vez, desenvolve a simplicidade de outra
maneira, isenta de programas e à mercê da criatividade individual.
Com relação à simplicidade em sua configuração literária, con-
vém observar que a existência de um projeto, no campo literário, não
leva seus ideólogos a tentações totalizantes, como se dá com a música.
A imagem da colagem, em sua acepção pictórica e escultural, talvez
seja a mais apropriada para nos ajudar a entender como operam alguns
escritores do movimento, como Oswald de Andrade e Manuel Bandei-
ra. Tal como aparece, por exemplo, em 1912, nos trabalhos de Picasso
(Natureza-morta com palha de cadeira) e Braque (Prato de frutas), e
logo depois em várias pinturas e esculturas futuristas, a colagem pres-
supõe, como procedimento básico, a recorrência a certas tradições ori-
ginais, cujos elementos são deslocados, sem perder, porém, sua alteri-
dade. Ao se promover, no entanto, a transferência de sintagmas de um
contexto para outro, o texto original — ou o mundo imitado — é ques-
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tionado, assim como se dá uma descontinuidade lingüística. Marjorie


Perloff (1993:103-4) descreve o processo:

A colagem também subverte todas as relações convencionais de figura-


fundo, pois aqui nada é figura ou fundo; mais exatamente, a colagem jus-
tapõe itens “verdadeiros” — páginas de jornal, ilustrações coloridas de
maçãs e peras tiradas de um livro de figuras, as letras “URNAL” (de JOUR-
NAL) com a metade do U cortado, detalhes de granulados de madeira ou
de papel pintados — a fim de criar uma superfície pictorial curiosamente
enigmática. Pois cada elemento na colagem tem uma função dual: refere-
se a uma realidade externa, ainda que o seu impulso composicional seja
o de socavar a própria referencialidade que parece afirmar.

Não só se quebra, através da colagem, a linearidade ou a unida-


de do referente anterior, como também se lida com um repertório va-
riado de objetos vulgares, como “uma canção barata”, “um verdadeiro
selo postal”, “um pedaço de jornal” etc.53 Marjorie Perloff diz que em-
bora a colagem seja por definição um conceito visual ou espacial, foi
prontamente assimilada por poetas e músicos. Assim, o Zang Tumb
Tuuum de Marinetti teria aberto caminho para os Calligrammes de
Apollinaire, o Kora in hell de William Carlos Williams ou The waste
land de T. S. Eliot, poema que também teria resultado, de certa forma,
das experiências feitas por Ezra Pound, “o grande mestre da forma de
colagem em inglês” (Perloff, 1993:139).
Nota-se essa predisposição para fragmentar, típica do processo
de colagem, em Oswald de Andrade. Oswald, de maneira singular den-
tro do modernismo literário brasileiro, tende a criticar radicalmente
uma prática recorrente nas nossas manifestações culturais, vinculada à
tradição do excesso, ou à do sublime. Se Oswald se exime de promo-
ver uma ruptura com todas as peças do repertório cultural, assumindo,
por exemplo, os elementos populares “marginalizados pelo idealismo
doutoresco da intelligentsia nacional no século XIX” (Nunes, 1979:33),
ele assume, porém, bem mais do que seus companheiros de movimen-
to, uma certa vocação moderna para simplificar a linguagem, para tra-
balhá-la de forma mais enxuta.54 Mas mesmo quando nega o obsoleto

53
Guilhaume Apollinaire apud Perloff, 1993:108.
54
Segundo Benedito Nunes (1979:11), Oswald, com “a sua impaciência teórica, com
a sua particular avidez do novo e da novidade [...] foi, dos nossos modernistas, aque-
le que mais intimamente comungou do espírito inquieto das vanguardas européias”.
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ou o excessivo em nome do despojamento, Oswald não propõe um


procedimento purificador nos moldes puritanos, e sim através da “mais
alegre das destruições”.55 No poema Amor, por exemplo, expõe de ma-
neira concisa a vocação peculiar do Brasil de conciliar o sentimento
com a graça, com o espírito, desenvolvendo assim um lirismo carnava-
lizado:

amor

humor
(Andrade, O., 1966:141)

De maneira semelhante, Oswald expõe, no “Manifesto da poesia


pau-brasil”, sua visão ao mesmo tempo sintética e abrangente das po-
tencialidades nacionais, que conciliam o primitivo e o moderno, o bár-
baro e o tecnicizado:

Temos a base dupla e presente — a floresta e a escola. A raça crédula e


dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira
e do chá de erva-doce. Um misto de “dorme nenê que o bicho vem pegá”
e de equações.

Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas
usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu
Nacional. Pau-Brasil (Andrade, 1972a:9).

Mas é particularmente importante para o argumento que desen-


volvo o fato de Oswald de Andrade proceder como no processo de co-
lagem, recolhendo peças do repertório cultural com o propósito de
dispô-las em consonância com uma síntese coerente — “O minério. A
cozinha. O vatapá, o ouro e a dança” (Andrade, 1972a:5) —, porém
não-totalizante. Este método, tão recorrente na poética de Oswald, é
fácil de ser exemplificado em sua obra, como se pode notar com o
poema Música de manivela, do livro Pau-brasil, de 1925:

Sente-se diante da vitrola


E esqueça-se das vicissitudes da vida
Da dura labuta de todos os dias

55 Mário de Andrade apud Nunes, 1979:8.


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Não deve ninguém que se preze


Descuidar dos prazeres da alma

Discos a todos os preços


(Andrade, 1972b:61-2.)

Neste poema, Oswald justapõe, num processo de colagem, dois


discursos antagônicos: um sentencioso, de um romantismo diluído, que
exalta a espiritualidade da música e seu poder de se contrapor ao pro-
saísmo do dia-a-dia, e outro pragmático, vinculado à lógica da publici-
dade, que se choca violentamente com o anterior. Haroldo de Campos,
a propósito, observa na obra de Oswald de Andrade, particularmente
no “Manifesto da poesia pau-brasil”, um “movimento pendular destrui-
ção/construção”. O aspecto destrutivo da poética de Oswald, ou “des-
sacralizante”, é bem representado pelos poemas-paródia, em que ele in-
veste contra as obras das nossas tradições romântica e parnasiana, como
se vê em meus oito anos, publicado em Primeiro caderno do aluno de
poesia Oswald de Andrade, de 1927, paródia do poema homônimo de
Casimiro de Abreu:

Oh que saudades que eu tenho


Da aurora da minha vida
Das horas
De minha infância
Que os anos não trazem mais
Naquele quintal de terra
Da Rua de Santo Antônio
Debaixo da bananeira
Sem nenhum laranjais

Eu tinha doces visões


Da cocaína da infância
Nos banhos de astro-rei
Do quintal de minha ânsia
A cidade progredia
Em roda de minha casa
Que os anos não trazem mais

Debaixo da bananeira
Sem nenhum laranjais
(Andrade, 1972b:100-1.)
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Já o aspecto construtivo de Oswald, segundo Haroldo de Cam-


pos, dever-se-ia à maneira de o poeta recorrer ao ready-made lingüís-
tico, tal como Marcel Duchamp aplicou o termo, no início da década de
10, a objetos deslocados de seu contexto original e expostos como obra
de arte, como o porta-garrafa (1912), a roda de bicicleta (1913) e o uri-
nol batizado de Fonte (1917): “a frase pré-moldada do repertório colo-
quial ou da prateleira literária, dos rituais quotidianos, dos anúncios, da
cultura codificada em almanaques”. Campos (1972:xxxi) também con-
sidera a possibilidade de o ready-made conter em si elementos contra-
ditórios de destruição e de construção; assim, ao mesmo tempo em que
é utilizado para promover a desordem, é acionado também para a rein-
venção de uma nova ordem.
Manuel Bandeira, apesar de não rejeitar, como Oswald, a tradi-
ção do sublime, conciliando-a com o humilde, também recorre a um
princípio de estruturação poética semelhante ao da colagem. Através
de um procedimento incorporativo, Bandeira recorre a materiais de
proveniência diversa; podem vir de rimas de “fundos de gaveta”, de su-
gestões fornecidas por situações cotidianas ou extracotidianas, e de
textos eruditos ou triviais, clássicos ou modernos. Se os textos recolhi-
dos pertencem a tradições rejeitadas pelos modernistas brasileiros,
como a parnasiana, eles se prestam à paródia; se, pelo contrário, sua
atemporalidade é valorizada, na acepção mesma da idéia de clássico,
são meramente citados. E ocorre também ao poeta operar de maneira
mais ampla, utilizando-se da intertextualidade, como em Balada das
três mulheres do sabonete Araxá, em que a citação de Shakespeare co-
existe com a do anúncio comercial.56
Diferentemente dos escritores modernistas, que lidam com a
simplicidade de maneira conceitual, apelando para o “primitivo” e o
“moderno”, no caso de Oswald, ou para o “humilde” e o “sublime”,
como se vê na estruturação poética de Bandeira, os músicos popula-
res do período analisado trabalham ao sabor das contingências. Um e
outro tipo de artista prezam de igual modo as informações acumula-
das, o domínio das tradições, tanto textuais quanto vividas, mas la-
vram o material de maneira diversa. Lévi-Strauss, em O pensamento
selvagem, levanta algumas questões sobre a arte que são bastante su-

56
Ver Arrigucci, 1990. O poema é de 1931, do livro Estrela da manhã, impresso em
1936 com tiragem de apenas 47 exemplares para subscritores (Bandeira, 1993).
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gestivas para a análise deste ponto. Ele argumenta que a arte se colo-
ca “a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento
mítico ou mágico”, já que o artista tem algo em comum ao mesmo
tempo com o cientista e com o bricoleur. O cientista (ou “engenhei-
ro”), na acepção de Lévi-Strauss, caracteriza-se pelo fato de recorrer a
um projeto que define, desde o início, as matérias-primas e os instru-
mentos a serem utilizados. O bricoleur, ao contrário, dispensa planos
preconcebidos; assim, o conjunto de meios que utiliza se define ape-
nas por sua instrumentalidade (Lévi-Strauss, 1989:32-3). Dito de outro
modo, o bricoleur tende a recolher materiais de maneira aleatória, par-
tindo apenas do princípio de que teriam alguma utilidade. Se tem con-
dições de realizar os mais diferentes tipos de trabalho, ele conta, no
entanto, com um universo instrumental fechado, recorrendo, segun-
do Lévi-Strauss (1989:33), a

um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteró-


clitos, porque a composição do conjunto não está em relação com o pro-
jeto do momento nem com nenhum projeto particular mas é o resultado
contingente de todas as oportunidades que se apresentaram para renovar
e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construções
e destruições anteriores.

Ao fazer uso de meios artesanais, o artista atuaria, portanto, à ma-


neira do bricoleur; ao elaborar “um objeto material que é também um
objeto de conhecimento”, ele procederia também como o cientista
(Lévi-Strauss, 1989:32-8). A questão se torna mais complexa quando
Lévi-Strauss estabelece uma classificação que compreende a arte eru-
dita, a aplicada e a primitiva, todas elas se definindo em função “do
confronto entre a estrutura e o acidente, em buscar o diálogo, seja com
o modelo [arte erudita], seja com a matéria [arte primitiva], seja com o
usuário [arte aplicada]”. Porém o mais instigante nesta análise é o fato
de Lévi-Strauss referir-se à probabilidade de a colagem, nascida “num
momento em que o artesanato expirava”, ser “apenas uma transposi-
ção do bricolage para o terreno dos fins contemplativos” (1989:46). A
colagem realiza, nesta acepção de Lévi-Strauss, uma trajetória que é pe-
culiar a um certo tipo de “arte moderna”, ou “modernista”, deslocando-
se com desenvoltura pelos domínios das artes erudita e primitiva. Lévi-
Strauss, pois, mostra-se sensível ao modo pelo qual o modernismo —
com o advento da colagem (que necessariamente privilegia o diálogo
tanto com o material quanto com o modelo) — ocasiona uma dissolu-
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ção das fronteiras rígidas entre aquelas classificações tradicionais men-


cionadas.
Essa análise de Lévi-Strauss das formas artísticas pode auxiliar na
abordagem do modus operandi do músico popular brasileiro dos anos
20 e 30, que, embora opere numa pauta diferente da utilizada pelo ar-
tista modernista, tende também a modificar a hierarquia estética nor-
malmente estabelecida. Em seu trabalho, ele não se limita a dialogar
com o modelo, como na concepção clássica de arte, nem com a maté-
ria, como se dá com a arte primitiva, nem tampouco com o usuário,
como na arte aplicada. Levanto então a hipótese de que o músico po-
pular do universo pesquisado busca uma interlocução mais polifônica,
desenvolvendo portanto a simplicidade de maneira original. Diferente-
mente da colagem modernista, que envolve um controle — inclusive
do repertório a ser selecionado —, a composição popular resulta de um
trabalho até certo ponto desordenado, relativamente descontrolado,
em certos aspectos monstruoso, incorporando dicções e estilos bem di-
versos, que muitas vezes sequer se pautam pela simplicidade. Por
exemplo, por conta da estratégia narrativa, Noel Rosa foi apresentado
neste capítulo como uma figura paradigmática da simplicidade. Deixei,
porém, de explorar outros aspectos de sua estética, marcadamente po-
lifônicos, que refletem o contato de Noel com um número muito maior
de influências e de pressões. Mas este argumento será retomado no
próximo capítulo.
Não se pode deixar de observar que normalmente se exige dos
músicos populares requisitos diferentes — até mesmo opostos — dos
que se exigem dos eruditos. Espera-se destes últimos uma devoção ab-
negada ao seu ofício, através de muita disciplina e preparação. Dos po-
pulares, ao contrário, espera-se, como argumenta Luiz Tatit, que mos-
trem um “dom inato”, um “talento antiacadêmico” e uma “habilidade
descompromissada com qualquer atividade regular”. Naturalidade, es-
pontaneidade e instantaneidade são portanto “valores preciosos ao
cancionista”, pois ele cria um texto musical muito colado à vida (Tatit,
1996:17-20).
O projeto com o qual os músicos eruditos se comprometem leva-
os a adotar uma perspectiva estilística mais uniforme e a contar com
um público também homogêneo, que se confunde, em certo sentido,
com partidários de uma seita. O compositor modernista, nesse caso, é
comparável ao autor de teatro de corte francês do período clássico,
preso a um só patrono e a uma linguagem nobre que lhe é exigida por
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1 36 O vi olão azu l

seu público aristocrático. Já a posição do músico popular, no contexto


abordado por esta pesquisa, é equiparável à de Shakespeare na época
elisabetana, que contava com um público mais diferenciado e não se
encontrava vinculado a um produtor específico. Shakespeare, não por
acaso, incorporava a seu texto expressões coloquiais bem próximas das
faladas pelo povo que o assistia.57
Luiz Tatit associa a figura do cancionista à do malabarista, cri-
ando assim uma metáfora que remete à própria natureza do ofício do
músico popular. Tatit descreve um artista que é ao mesmo tempo equi-
librista e improvisador, pois se dele se exige “equilibrar a melodia no
texto e o texto na melodia”, isso tem que ser feito aparentemente sem
esforço, com “habilidade, manha e improviso” (Tatit, 1996:9). Esse as-
pecto merece ser enfatizado, pois evoca a condição do músico popular
do Rio de Janeiro nos anos 20 e 30, atuando num universo complexi-
ficado, em que o mercado, e não o mecenas, é que dita as regras. Em
vez de contar com ouvintes seletos, sua legitimidade cultural é confe-
rida por um público heterogêneo e sujeito a modas e a mudanças de
opinião. O músico popular se vê, portanto, em condições de atuar com
maior flexibilidade que o erudito, não só comprometido com sua pla-
taforma político-cultural como também com a permanência de sua po-
sição de produtor de cultura “erudita”, ou “legítima”, para usar a ex-
pressão de Pierre Bourdieu (1968:128).
Tatit (1996:14) levanta outra questão que considero particular-
mente importante. Apesar de afirmar que, em se tratando de canção po-
pular, a maneira de dizer é mais importante do que o que é dito, ele
mostra que, diferentemente da canção erudita, em que prevalece uma
forte preocupação com a sonoridade, convertendo-se a voz em instru-
mento musical, a canção popular, pelo menos a brasileira, não se des-
cuida da inteligibilidade. Dito de outro modo: na canção popular se dá
mais atenção à prosódia do que na erudita. Refiro-me aqui ao signifi-
cado não-musical de prosódia, que indica, segundo o Aurélio, “pro-
núncia regular das palavras, com a devida acentuação”. Isso decorre do
compromisso do compositor popular com os temas em voga no mo-
mento, as personalidades em destaque, e com a própria forma concre-
ta da língua falada de seu tempo; pois é justamente na medida em que
capta essas realidades e as expressa na forma da canção que ele se va-
lida enquanto cancionista.

57 Ver Bourdieu, 1968.


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Outro problema que se coloca é o da recepção diferente dos


domínios erudito e popular. Não pretendo enfatizar essa questão na
minha análise, mas não se pode deixar de levar em conta que os ar-
tistas eruditos — tanto músicos quanto poetas —, numa atuação se-
melhante à dos movimentos vanguardistas em geral, têm ouvintes e
leitores seletos, que constituem uma espécie de aristocracia intelec-
tual. Renato Poggioli compara, por exemplo, a atitude vanguardista
— do criador e do público — com a do hierofante e do neófito gre-
gos, que se colocavam numa posição privilegiada como detentores
de um conhecimento raro e oculto, e se opunham ao mundo do pro-
fano e dos não-iniciados, onde imperaria uma ignorância generaliza-
da. Os vanguardistas contemporâneos atualizariam essa relação cri-
ando uma tensão antagonística não mais entre conhecimento e
ignorância, mas entre a “cultura do rebanho” e a “cultura dos isola-
dos”, entre “aqueles que desdenham” e “aqueles que prezam” um
valor desconhecido anteriormente. Cria-se aí uma situação parado-
xal, na medida em que esse tipo de atitude vanguardista só é possível
historicamente nas sociedades democráticas, as únicas em condições
de admitir uma arte de exceção, que se proclama antidemocrática e
antiburguesa. Como cultura minoritária, atenta aos valores qualitati-
vos, a vanguarda combate a cultura majoritária que floresceu na so-
ciedade moderna como “cultura de massa” (Poggioli, 1968:92-102). Já
os músicos populares, em virtude do tipo de comunicação direta que
desenvolvem, assim como de sua predisposição para entrar sem res-
salvas no mercado e para utilizar as novas técnicas de informação,
contam com um público amplo e heterogêneo. Se resolvem questio-
nar — sem programas coletivos, mas a partir de sua subjetividade lí-
rica, ou mesmo jocosa — a civilização representada pela cultura de
massa, eles o fazem, contraditoriamente, utilizando os próprios ca-
nais gerados por esta civilização e beneficiando-se do pluralismo es-
tilístico engendrado por ela.
Essa maneira de operar dos músicos populares evoca as inter-
pretações de Mikhail Bakhtin da cultura popular que se desenvolve
na Idade Média e no Renascimento. Ao contrário, por exemplo, da es-
tética monumental, que (como vimos no capítulo anterior) tende a re-
forçar a cultura oficial e a adotar um tom sério, o riso popular que se
manifestava nos períodos medieval e renascentista, principalmente
nas festas carnavalescas, punha-se justamente a questionar as autori-
dades religiosas e feudais, com a ajuda de diversos atores e figuran-
tes, como os bufões, os gigantes, os anões, os monstros e os palhaços
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1 38 O vi olão azu l

de diversas estirpes. A praça pública era o locus por excelência do de-


senvolvimento de uma gestualidade e de um vocabulário que abo-
liam as formas convencionais, vinculadas às hierarquias constituídas.
Esse tipo de contexto, segundo Bakhtin, teria propiciado a criação de
linguagens carnavalizadas, em que se destaca a obra literária de Ra-
belais. Bakhtin mostra-se crítico, no entanto, para com o procedimen-
to corrente de modernizar grosseiramente o riso popular medieval,
associando-o ao espírito da literatura cômica moderna, ou mesmo a
um tipo de humor negativo vinculado a essa forma de escrita. Este
tipo de interpretação, segundo ele, incorreria no erro de ignorar uma
das principais características da comicidade antiga, que é a de intei-
rar-se completamente com o mundo, ao invés de vê-lo de maneira
distanciada e negativa, como fazem muitos dos autores modernos. As-
sim, o humor popular é dotado de uma ambivalência constitutiva,
pois adota-se a atitude de rir de um mundo no qual se está envolvido
(Bakhtin, 1987a).
Mas, ao adotar uma postura de certa forma inaugural de valorizar
a cultura cômica popular da Idade Média, Bakhtin (1987a) critica a con-
cepção estreita dos pré-românticos e românticos, como Herder, que ex-
cluíam o humor popular e outras manifestações da praça pública. E ao
desenvolver essa crítica do romantismo, Bakhtin ao mesmo tempo
questiona o sistema de valores que releva a poética e propõe que se
considere uma prosaica em duas acepções: a de uma teoria da literatu-
ra que privilegia a prosa em detrimento da poesia e a de uma forma de
pensamento que toma como pressuposto a importância do cotidiano,
do comum. Bakhtin atribui uma postura excludente com relação à pro-
saica particularmente ao formalismo russo, que tenderia a tratar o artís-
tico como sinônimo de “poético”, a prosa como sinônimo de “discurso
não-literário”, o discurso não-literário como “prático” e “habitual”, e a
linguagem prática como “homogênea”, “não-criativa” e “automatiza-
da”. Assim, os formalistas incorreriam no erro de desvalorizar o próprio
cotidiano, pois se a linguagem que nele se desenvolve é automatizada é
porque lhe faltaria vitalidade. Ao afirmar, portanto, que é no cotidiano
que se dá a criação, Bakhtin parte de um pressuposto contrário ao dos
formalistas. Ao invés da atitude dos formalistas e futuristas, que valori-
zavam o romantismo boêmio e “a bofetada no rosto do gosto do pú-
blico”, Bakhtin incentiva o artista a se inteirar com o cotidiano, com a ri-
queza do mundo comum (Morson & Emerson, 1990:15-23).
Esta discussão é relevante para o tema que desenvolvo, pois a
prosaica proposta por Bakhtin, cuja premissa inicial é a desconfiança
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O api to d a fáb r i ca d e teci d os 1 39

na idéia de sistema, fornece subsídios para contrapor a cultura que se


desenvolve na praça pública ao ideal de cultura proposto pela tradição
alemã da Bildung. A crença em sistemas, segundo Bakhtin, supõe a
imagem de uma grande hierarquia que mantém todos os elementos
inter-relacionados e que confere sentido à aparente desordem da vida
cotidiana. Essa perspectiva tende a ser monológica, privilegiando a idéia
de que tudo se relaciona a um todo único, cujo significado pode ser de-
cifrado desde que se conheça o código. Assim, o mundo cultural apre-
sentaria forças centrípetas (oficiais) e centrífugas (não-oficiais); aque-
las tenderiam a impor a ordem num mundo essencialmente caótico e
heterogêneo, enquanto estas se encarregariam constantemente de per-
turbar a ordem, de maneira proposital ou não. Mas são justamente os
acontecimentos da vida cotidiana os responsáveis pela heteroglossia,
isto é, as perturbações e alterações constantes do dia-a-dia que, na me-
dida em que vão se somando com o tempo, ameaçam a integridade do
idioma. Assim, o que configura tanto a linguagem quanto a cultura são
as alterações não-sistemáticas. Se os totalitários semióticos pressu-
põem que a desordem demanda explicação, os defensores da prosaica
partem do pressuposto contrário: o que necessita ser explicado é a in-
tegridade (Morson & Emerson, 1990:28-32).
Bakhtin afirma, pois, que o mundo não é apenas caótico, mas
também “aberto, inovador, cheio de surpresas, potencialidades e li-
berdade”. E é a partir dessa concepção de mundo que o diálogo faz
sentido. Não se trata de uma interlocução, como se interpreta tradi-
cionalmente, entre duas mônadas. Esse tipo de explicação tende a en-
carar os eventos como prisioneiros de um conjunto de regras; assim,
partindo do mundo da teoria para chegar ao mundo dos eventos,
perde-se a historicidade do evento. Bakhtin rebate, portanto, esse
tipo de explicação essencialista, mostrando que as entidades sociais e
psicológicas são de natureza processual. Quando se trata de entida-
des individuais e sociais, a existência não se separa da comunicação,
pois, neste sentido, ser significa comunicar. De maneira semelhante,
não se poderia tratar o indivíduo, ou a entidade social, como môna-
das, pois tanto um quanto o outro se apresentam como entidades in-
definidas e caóticas; o eu não é auto-suficiente, mas depende de in-
terações. O diálogo envolve, pois, uma redefinição constante dos
interlocutores, não permitindo que se emita uma palavra final (Mor-
son & Emerson, 1990:36-52).
Não foi, portanto, por acaso que Bakhtin se interessou pelos fes-
tejos medievais, pois neles percebeu o desenvolvimento de uma lingua-
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1 40 O vi olão azu l

gem expressiva da percepção carnavalesca do mundo. Dispensando


idéias de acabamento, de imutabilidade e de eternidade, esta visão se
manifestaria através de formas de expressão “dinâmicas e mutáveis (pro-
téicas), flutuantes e ativas”. Desviando-se também do ideal de perfei-
ção, tais formas carnavalescas tenderiam a representar o avesso através
de diversas formas de profanações, constituindo-se como uma espécie
de “segunda vida” que se constrói no mundo popular e configurando-se
como paródia da vida ordinária. Mas Bakhtin (1987b:9-10) lembra que
esse tipo de procedimento carnavalesco em muito se diferencia da pa-
ródia moderna, que se caracteriza pelo negativismo e pelo formalismo; a
paródia carnavalesca tende a ressuscitar e a renovar, não se contentan-
do com a negação pura e simples.
A simplicidade que se manifesta em nosso contexto modernista,
em sua versão popular, apresenta portanto pontos de contato com a
sensibilidade carnavalesca medieval analisada por Bakhtin; de maneira
semelhante, remete também à noção do estilo humilde franciscano, ana-
lisada por Auerbach. Quando os músicos populares lidam com o hu-
milde, eles tendem, à sua maneira, a promover uma degradação do su-
blime, embora não o façam de modo tão radical como no realismo
grosseiro da Idade Média. Mas talvez nossos compositores comparti-
lhem com esses autores medievais a recusa a promover a oposição entre
corpo e alma — ou entre céu e terra —, tal como na tradição cristã, em
que sempre se valoriza o primeiro termo e se rebaixa o segundo. Neste
sentido conferido por Bakhtin, o termo “rebaixar” perde o teor depre-
ciativo conferido pelo cristianismo medieval, passando a significar uma
“comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao
mesmo tempo, de nascimento: quando se degrada, amortalha-se e se-
meia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e me-
lhor” (Bakhtin, 1987b:19). Se esse ideal de despojamento popular tem
em comum com o erudito — isto é, com alguns escritores modernistas
— a recusa aos esquemas totalizadores, dele se afasta, no entanto, com
relação às suas premissas básicas. É impossível, como vimos, operar no
registro popular sem fazer uso da vivacidade, do espírito lúdico e de
uma boa dose de improviso.
No plano erudito, o ideal de simplicidade refere-se basicamen-
te à busca de uma linguagem mais concisa e objetiva, a despeito de
suas atualizações locais. Na música francesa modernista, como a do
Grupo dos Seis, a simplicidade remete radicalmente à objetividade;
aqui, na experiência literária do período, a simplicidade se concilia
com um lirismo subjetivista, que, ainda que se pretenda moderno,
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O api to d a fáb r i ca d e teci d os 1 41

não deixa de ser romântico. Mas também esse intimismo tende a pre-
servá-la, na maioria das vezes, de tentações totalizantes. Os poetas
que, a exemplo de Manuel Bandeira, abraçam a simplicidade não se
colocam, em sua poética, como porta-vozes da nação, mas de redu-
tos ligados à sua experiência, como a Lapa e outros espaços boêmios
que, quando retratados, denotam familiaridade e não estranhamento.
Esse tipo de atitude em muito se assemelha à dos artistas franceses do
final do século, como Baudelaire e Toulouse-Lautrec, que de certa
forma tomam contato com questões “modernas” através do bas-
fond.58
A simplicidade, em sua acepção musical francesa, também se
pauta pela concisão; no Brasil ela se harmoniza, no plano literário, com
o excesso. Mas tal como na França, aqui também se valoriza o popular
sem grandes transfigurações. Os manifestos de Oswald de Andrade são
bastante representativos dessa tendência. Ao invés de adotar a perspec-
tiva essencialista e grave assumida pelo projeto musical nacionalista,
Oswald insurge-se, no “Manifesto antropófago” (1928), contra todas as
catequizações e todos os sistemas:

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de se-


nador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar
cheio de bons sentimentos portugueses (Andrade, 1972a:16).

E ao contrário da vertente romântico-iluminista alemã, que valo-


riza a tradição enquanto depositária de uma natureza coletiva cristali-
zada, Oswald rebela-se contra a “Memória, fonte do costume”, em
nome da “experiência pessoal renovada” (1972a:18).

58 Ver Velloso, 1996.


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3
A ci d ad e fr agmen tad a

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções


de velhos vegetais. E nunca soubemos o que
era urbano, suburbano, fronteiriço e continental.
Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Oswald de Andrade, “Manifesto antropófago”

A per er eq u i ce melód i ca d i fíci l


Conforme observei no capítulo anterior, alguns músicos populares,
como Noel Rosa e Lamartine Babo, atualizaram sua forma musical em fun-
ção das expressões criadas no dia-a-dia, no mundo diurno do trabalho ou
no noturno dos bares; ou então apreenderam as gírias trazidas pelos meios
de comunicação de massa, como o cinema falado e o rádio, e pela moda.
Registram-se também o surgimento de performances afinadas com um
ideal de familiaridade com códigos pretensamente urbanos, como no
exemplo do Bando de Tangarás. Seus componentes, preocupados em es-
tabelecer uma certa uniformidade na apresentação — tal como se fazia,
por exemplo, na linha dos jazz-bands —, trocaram as roupas típicas nor-
destinas usadas à época do Flor do Tempo pelo terno escuro (Almirante,
1963:83). Convém observar, quanto ao Tangarás, que esse conjunto teve
uma trajetória curiosa: se, por um lado, seus integrantes se dedicaram a
perpetuar a estética sertaneja em vigor desde o início do século (como ve-
remos mais adiante), por outro, fizeram verdadeiro exercício vanguardista
em 1929, ao utilizarem os instrumentos de percussão das escolas de samba
na gravação de Na Pavuna, do compositor Homero Dornellas.
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1 44 O vi olão azu l

De fato, a trajetória desse conjunto é reveladora das mudanças


operadas não só na música popular do período, como também na pró-
pria condição do músico branco, de classe média ou alta que, como no
caso de Noel Rosa, tende a abandonar a postura do diletante e assumir
a especialização. Constituído originariamente numa versão rural, como
o Flor do Tempo, e integrado por alunos do Colégio Batista, na Tijuca
— Braguinha, Henrique Brito, Álvaro Miranda Ribeiro, Erasmo Vol-
lmer, Edmundo e Alfredo Vidal —, aos poucos o conjunto foi incorpo-
rando novos membros, como Almirante e o próprio Noel Rosa, e se
profissionalizou de vez com a formação do Bando de Tangarás. Bra-
guinha e Noel se projetaram mais como compositores; Almirante teve
uma carreira diversificada, como intérprete, locutor e apresentador de
programas de rádio (Cabral, 1990).
Os Oito Batutas, conjunto formado em 1919 que contava com a
participação de Donga e Pixinguinha, antecipou esse processo viven-
ciado pelo Tangarás, promovendo uma urbanização não só no ritmo
como também no figurino. Em foto reproduzida por Carlos Calado
(1990:236-7), com data provável de 1927, quando Os Batutas — com o
nome já modificado, pois não eram mais oito os seus integrantes — fi-
zeram uma turnê a Buenos Aires, nota-se que os integrantes se vestiam
de maneira idêntica: “terno escuro, camisa branca e gravata xadrez”. A
representação de informalidade e uma certa afetação compatível com o
registro citadino dos anos 20 são exibidas nessa foto.
O tema da “urbanização” dos registros populares sempre evoca a
figura de Lamartine Babo. Um dos episódios mais citados na histo-
riografia musical é o relacionado à marcha O teu cabelo não nega, que,
interpretada por Carmen Miranda em 1932, com acompanhamento de
vários músicos, como Gastão Formenti, Almirante, Pixinguinha e Don-
ga, entre outros, tornou-se um grande sucesso carnavalesco (Valença,
1981). Segundo consta, a música brejeira que chegou ao Rio de Janeiro
— de autoria dos irmãos Valença, de Pernambuco — adquiriu ares ci-
tadinos quando passou pelas mãos de Lamartine. Vejamos uma das ver-
sões da história:

A marcha também ficou famosa pela disputa de direitos autorais que ge-
rou. Tratava-se, inicialmente, de música dos irmãos Valença, de Pernam-
buco, que a enviaram à Victor com o título Mulata. A linguagem dos ver-
sos era muito regional; em vista disso, a gravadora pediu a Lamartine que
adaptasse a composição ao gosto carioca. E ele mudou radicalmente o
original: alterou o ritmo, modificou a letra e acrescentou uma introdução
que ficou famosa. A marchinha, finalmente, foi gravada como “motivo do
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A cidade fragmen tada 1 45

Norte com arranjos de Lamartine Babo” e editada como de sua exclusiva


autoria. Os Valença levaram a questão à Justiça, que lhes deu ganho de
causa, e passaram à (legítima) condição de parceiros de Lamartine Babo.59

Noel Rosa, por seu lado, parece se orientar por um entendimento


muito particular do estilo de vida carioca. É como se ele vislumbrasse, a
partir da modernidade emergente, a necessidade de uma linguagem mu-
sical mais simples e desprovida de ornamentos. Assim, a modernidade é
associada a despojamento. Mas trata-se de um despojamento que, embo-
ra desenvolva formas intimistas, próximas de um padrão que se entende
como sofisticado, se compromete com as linguagens “baixas” que proli-
feram na cidade. O pendor pelo requintado não exclui, portanto, uma
certa inclinação para o rudimentar. Se Noel radicaliza na utilização de
procedimentos estéticos mais simples, não deixa, porém, de abrir possi-
bilidades para a configuração do excesso, proveniente, na maioria das
vezes, de registros mais humildes. Entende-se, assim, o fato de a voz ras-
cante e plebéia de Aracy de Almeida se alternar com a voz suave e aris-
tocrática de Marília Baptista na interpretação dos sambas de Noel.
Apesar dos exemplos citados de padronização de performances
e figurinos, além da criação de linguagens musicais condizentes com a
babel que se configura no Rio de Janeiro nos anos 20 e 30, seria apres-
sado afirmar que um gosto urbano se teria tornado hegemônico no pe-
ríodo, substituindo inteiramente, por exemplo, um tipo de sensibilida-
de provinciana e afeita ao rural. Também seria difícil imaginar que uma
linguagem “moderna” prevaleceria completamente sobre formas “anti-
gas”, ou que o sublime cederia de vez terreno para uma interlocução
inteiramente voltada para o coloquial. Seria mais correto dizer que a in-
trodução de novidades teve muito mais o efeito de ampliar o mercado,
de torná-lo mais complexo, do que propriamente de promover substi-
tuições, ou de recortar rigorosamente o repertório musical de acordo
com padrões previamente estabelecidos. Também se pode argumentar
que a música popular passa a operar com um registro mais polifônico,
abrindo cada vez mais espaço para a emergência do ambíguo, assim

59 MPB Pesquisa, 1982a:5. O teu cabelo não nega gerou outra questão controvertida
com relação à autoria: se a célebre introdução incorporada à música é do próprio La-
martine ou de Pixinguinha. Alguns, como Sérgio Cabral (s.d.), a atribuem a Pixingui-
nha; outros, como Suetônio Soares Valença (1981), acham mais provável que o autor
seja o próprio Lamartine.
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1 46 O vi olão azu l

como para a conformação de estéticas que, de tão excessivas, beiram o


monstruoso.
Vejamos algumas maneiras pelas quais esse tipo de ambigüida-
de se manifesta. É certo, por exemplo, que o samba e a marcha tende-
ram a consagrar a cidade, ou alguns de seus redutos, assim como in-
corporaram em sua linguagem temas associados à modernização ou ao
cotidiano das grandes cidades. Mas foram divulgados pela mídia junto
com outros gêneros — emergentes ou não — de formato rural, ou ser-
tanejo, como é o caso do estilo roceiro da região Centro-Sul denomi-
nado “moda de viola”, que apareceu nos anos 30 e teve bastante re-
percussão. Esse estilo, na verdade, já é prenunciado desde que a toada
Tristeza do Jeca, composta por Angelino de Oliveira em 1926, alcança
grande repercussão na cidade e introduz a forma de apresentação das
duplas caipiras. José Ramos Tinhorão (1974:196-7) lembra a importân-
cia de Cornélio Pires para o sucesso desse empreendimento, pois o
poeta e estudioso da vida rural é responsável pela vinda a São Paulo
das primeiras duplas caipiras e pela produção de discos do gênero.
Registra-se também na música popular desse período a coexis-
tência de linguagens “baixas” e “elevadas”, ora de maneira alternada —
como, por exemplo, um samba simples e conciso de Noel seguido,
numa programação de rádio, de uma composição piegas de Cartola —,
ora no interior da própria canção, através de uma atitude conciliatória
para com padrões musicais distintos. As possibilidades são muitas, o
que permite uma série de cruzamentos, ou configurações. Uma das ma-
neiras, por exemplo, de os músicos populares se pautarem pelo regis-
tro do sublime é recorrer a uma dicção provinciana, pouco afeita à in-
corporação das linguagens modernizadas da metrópole. Promove-se,
nesse caso, a própria sublimação dos elementos não corrompidos pelo
processo civilizador que se desenrola nas grandes cidades. De certa for-
ma, quando desenvolvem esse estilo ruralizado, eles se mostram afina-
dos com a estética musical do modernismo, muito embora os popula-
res já esboçassem esse gesto negador da vida urbana desde o início do
século. De acordo com a historiografia sobre o assunto, os músicos po-
pulares teriam encontrado, a partir desse momento, um campo propí-
cio para o desenvolvimento de temas folclóricos, a começar pelas re-
formas feitas por Catulo da Paixão Cearense na modinha, adaptando-a
“ao gosto pelo exótico nacional ” (Tinhorão, 1974:185-6). Tinhorão lem-
bra, porém, que essa atitude incorporativa dos gêneros musicais rurais
de caráter folclórico, assumida pelos compositores urbanos, remonta
ao século XIX, quando o público do teatro de revista começou a se in-
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A cidade fragmen tada 1 47

teressar pelos temas do campo. E destaca Chiquinha Gonzaga como a


primeira figura dos meios musicais a promover uma “estilização cons-
ciente” de um gênero de música rural.
Tinhorão enfatiza a importância, “como ponto de partida para o
interesse dos cariocas pelos exotismos rurais”, da Exposição Comemo-
rativa do Centenário da Abertura dos Portos, realizada no Rio de Janei-
ro em 1908, com seus “estandes com produtos típicos de todos os es-
tados brasileiros”. Menciona também a embolada Cabocla de Caxan-
gá, de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco, que alcançou
grande popularidade em 1914. Neste mesmo ano, Pernambuco formou
um conjunto com vários músicos, como Donga, Pixinguinha e Cani-
nha, que adotou o nome de Grupo de Caxangá. Fantasiados de nor-
destinos, seus integrantes saíam no carnaval tocando em ritmo de cho-
ro não só toadas sertanejas, como Cabocla de Caxangá, mas também
gêneros urbanos compostos pelo grupo. Tinhorão (1974:192-4) enfati-
za o sucesso carnavalesco de Cabocla de Caxangá e da toada Luar do
sertão (arranjo de João Pernambuco sobre motivo popular, com letra de
Catulo), chamando a atenção para o fato de que esse fenômeno em
muito teria contribuído para o surgimento, a partir de 1915, da voga da
canção sertaneja.
Tinhorão refere-se também à experiência teatral carioca do iní-
cio do século, em que se destacou Eduardo das Neves, incluindo em
seu repertório tanto as modinhas e os lundus, gêneros típicos do final
do século, quanto os gêneros regionalistas então em moda, como de-
safios sertanejos, cateretês, canções sertanejas etc. E registra a criação,
por Monteiro Lobato, da figura do Jeca Tatu, que se tornou conhecida a
partir de 1919 como uma caricatura do homem rural. Almirante, ao
abordar esse tema, comenta a onda regionalista que teria assolado o
país a partir de 1912, com reflexo na música tocada nos centros urba-
nos, principalmente o Rio de Janeiro — como as canções da dupla João
Pernambuco e Catulo da Paixão Cearense, e posteriormente do com-
positor Marcelo Tupinambá (pseudônimo de Fernando Lobo). Relata
que Ernesto Nazaré, impressionado com a estética sertaneja de Tupi-
nambá, compôs dois tangos brasileiros em homenagem ao composi-
tor: Tupinambá (1916) e Matuto (1917). Os efeitos dessa onda regio-
nalista seriam sentidos igualmente no teatro, no carnaval — que aderiu
aos temas nordestinos, desde o ritmo às roupas típicas — e na produ-
ção de obras de pesquisa folclórica que datam da virada e do início do
século, como Cantos populares do Brasil, de Sílvio Romero (1987), Fes-
tas e tradições populares, de Mello Moraes Filho (1901), Cancioneiro do
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1 48 O vi olão azu l

Norte, de Rodrigues de Carvalho (1903), Folclore pernambucano, de


Pereira de Mello (1908), Os nossos brinquedos e Cantigas das crianças e
do povo, de Alexina de Magalhães Pinto (1909 e 1911) e O Norte (im-
pressões de viagem), de Osório Duque-Estrada (1909). Almirante cita as
conferências proferidas por Afonso Arinos, em 1915, sobre temas fol-
clóricos, chegando a promover, em dezembro desse mesmo ano, sob o
patrocínio da Sociedade de Cultura Artística, no Teatro Municipal de
São Paulo, a apresentação de autos e danças dramáticas tradicionais. O
autor também menciona as pesquisas folclóricas promovidas por Villa-
Lobos, que passou a viajar pelo Nordeste, e por João Pernambuco, que,
financiado por Arnaldo Guinle, andou por vários lugares à cata de ma-
terial (Almirante, 1963).
Esse gosto pelo sertanejo teria continuidade na década de 20,
dando o tom para a maioria dos conjuntos musicais que se constituí-
ram no período, como Os Oito Batutas, o Flor do Tempo e o Bando de
Tangarás. Os Oito Batutas apresentavam um repertório constituído de
maxixes, lundus, canções sertanejas, corta-jacas, batuques, cateretês
etc. e se notabilizaram por suas apresentações musicais na sala de es-
pera do Cine Palais. A repercussão foi tanta que chegou a influenciar a
formação de outros conjuntos musicais do mesmo gênero, como os Tu-
runas Pernambucanos, que tinham como integrantes Jararaca e Rati-
nho.60 A mesma inspiração regionalista (de formato rural) acompanha-
ria o Flor do Tempo — sugerida até pelos apelidos com conotação
sertaneja dos integrantes do conjunto, como Zé Bodão, Belarmino dos
Cabritos, Bartulino, Juca Pega Boi etc. — e o Bando de Tangarás. É im-
portante lembrar que ambos os conjuntos contaram com a participação
de Almirante, que sempre declarou sua preferência por cocos e embo-
ladas (Cabral, 1990:45).
Consta que o grupo sertanejo pernambucano Turunas da Mauri-
céia despertou interesse no Rio de Janeiro durante todo o ano de 1927.
E de acordo com Almirante, a substituição, a partir de 1927/28, da
moda americanista ou “inglesista” de chás dançantes pelas músicas re-
gionais deveu-se em grande parte à iniciativa do Correio da Manhã,

60 Segundo Almirante (1963:30), os Turunas Pernambucanos (originários de Pernam-


buco, como indica o próprio nome do grupo) vieram para o Rio em abril de 1922,
“exibindo-se também no Cine Palais”. “Eram anunciados como ‘músicos do Norte',
‘caboclos brasileiros', ‘cantigas do sertão', ‘emboladas e desafios'.” Aos poucos, ou-
tros componentes se uniram aos Turunas, como João Pernambuco.
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A cidade fragmen tada 1 49

que promoveu o concurso “O que é nosso”, que teve grande repercus-


são. O autor complementa: “Os violões plangiam pelos salões mais ele-
gantes do Rio e vozes rústicas enchiam de encantamento as mais exi-
gentes platéias” (Almirante, 1963:41).
Decio de Almeida Prado diz que por volta de 1930 celebrava-se
ainda a “beleza intocada” e a “pureza de costumes não poluída pela ci-
vilização das plagas sertanejas”, através tanto de toadas cujas letras se
construíam a partir do trinômio choça-roça-palhoça, quanto de can-
ções criadas num registro entre o erudito e o popular por músicos
como Joubert de Carvalho e Heckel Tavares, que formavam parcerias
com escritores de teatro e poetas, como Luís Peixoto, Joracy Camargo,
Paschoal Carlos Magno e Olegário Mariano. O autor também argumen-
ta que mesmo as marchinhas carnavalescas do período apresentavam
um ranço muito forte de um mundo rural que nunca deixou de rondar a
cidade. Seus textos preservariam, portanto, vestígios de cantos folcló-
ricos, recorrendo sempre à tematização de animais familiares, como a
barata, o boi e outros. Almeida Prado (1989/90:18-20) conclui então seu
artigo dizendo que o universo musical do período 1900-30, preso a
uma sensibilidade típica do século XIX, assim como às suas raízes ru-
rais e folclóricas, não corresponderia mais ao de um país prestes a se in-
dustrializar.
O próprio Noel Rosa, que se notabilizou por uma temática e por
um intimismo mais associados à sensibilidade urbana, começou sua car-
reira musical compondo uma embolada (Minha viola, de 1929) e par-
ticipando do Bando de Tangarás, cujo repertório abrangia vários gêne-
ros regionais. Almirante, ao comentar esta incursão de Noel pelo
universo das canções sertanejas, afirma que o “filósofo do samba” de-
morou a se interessar pelos motivos e ritmos cariocas. Ainda no final
dos anos 20 e início dos 30, Noel compôs três canções no gênero ser-
tanejo — Festa no céu (1929), Mardade da cabocla e Sinhá Ritinha (am-
bas de 1931) (Almirante, 1963:69, 71-3).
E Lamartine Babo, que se destacou pelo ecletismo, foi responsá-
vel por um verdadeiro ciclo junino, a começar por No rancho fundo, que
fez em parceria com Ari Barroso em 1931 (Valença, 1981). Além de ou-
tras composições do gênero, Lamartine Babo criou duas cantigas juninas
que se tornaram muito conhecidas: Chegou a hora da fogueira (1933) e
Isto é lá com Santo Antônio (1934), num momento em que produzia uma
série de canções de formato mais urbano (Hungria, 1969).
Assis Valente foi outro músico expressivo da época que, além de
outras temáticas, dedicou-se também às composições juninas, como
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1 50 O vi olão azu l

Cai, cai, balão (1933), Acorda, São João (1934), Mais um balão e
Olhando o céu todo enfeitado (ambas de 1935).
Seria possível interpretar a preservação dos gêneros de feitio mais
rural como um desvio da tendência reinante na música popular de te-
matizar o urbano, atribuindo então ao compositor que ainda reluta em
abandonar a província uma certa insensibilidade para captar os signos
modernizantes do imaginário carioca. Mas uma segunda reflexão me
leva a sugerir que a própria existência de um mercado no Rio de Janeiro
para esse gênero musical demonstra que as fantasias de modernização
não excluiriam outros registros, como se poderia supor. Aliás, a pressu-
posição de que a partir de um certo momento da história do Rio de Ja-
neiro um tipo de linguagem urbana necessariamente se tornaria hege-
mônico me parece uma atitude reificadora dessas próprias projeções de
uma modernidade emergente. Mesmo porque o processo de urbaniza-
ção do mundo ocidental, principalmente após as revoluções econômi-
cas do século XVIII, não tendeu a promover uma homogeneidade no
plano cultural; pelo contrário, criou condições para o aparecimento de
diferenças acentuadas nos costumes e mentalidades. Gilberto Velho
(1995:229) argumenta que se a grande cidade não inaugura a heteroge-
neidade, ela se apresenta, associada ao capitalismo e à Revolução Indus-
trial, como “locus paradigmático da diferenciação de domínios e papéis
sociais”. Velho aprofunda essa discussão lembrando que, se por um lado
não há como negar que o processo universal de expansão do capitalis-
mo tende a estabelecer certos direcionamentos, particularmente o refe-
renciado à racionalização da vida, por outro, este mesmo processo per-
mite que os indivíduos ganhem flexibilidade para o deslocamento entre
domínios e papéis. Esse tipo de “mobilidade de identidade”, que o autor
denomina metamorfose, teria o poder de relativizar “racionalidades es-
pecíficas em trajetórias e contextos localizados” (Velho, 1995:229-30).
Não se nota, por exemplo, um empenho, por parte dos músicos
populares, em criar uma estética padronizada, que remetesse à idéia de
um estilo carioca. A tendência predominante na música popular é, ao
contrário, para fragmentar, suburbanizar, atribuindo-se — como é o
caso de vários compositores populares — identidades bem definidas a
certas localidades, como a Pavuna, o bairro de Vila Isabel, o morro do
Estácio e assim por diante. Feitiço da Vila, samba que Noel compõe
com Vadico em 1934, é representativo do espírito bairrista que move os
compositores no período. Esse samba dá início a uma polêmica musi-
cal entre Noel e Wilson Batista, no momento em que Wilson, através do
samba Conversa fiada, cita ironicamente Feitiço da Vila:
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A cidade fragmen tada 1 51

É conversa fiada
Dizerem que o samba
Na Vila tem feitiço.
Eu fui ver para crer
E não vi nada disso.
A Vila é tranqüila
Porém eu vos digo: cuidado!
Antes de irem dormir,
Dêem duas voltas no cadeado.

Eu fui na Vila ver o arvoredo se mexer


E conhecer o berço dos folgados
A lua nessa noite demorou tanto
Me assassinaram um samba
Veio daí o meu pranto.

Noel aceita a provocação e responde a Wilson Batista com o


samba Palpite infeliz, de 1936:

Quem é você que não sabe o que diz?


Meu Deus do céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém.
Só quer mostrar que faz samba também.
[...]

A marcha Cidade maravilhosa, composta por André Filho em


1934, registra mais a exceção do que a regra. E ironicamente o “poeta
da Vila” compõe em 1936 Cidade mulher, marcha exaltativa do Rio de
Janeiro que lhe é encomendada para o filme do mesmo título, de Car-
men Santos (Máximo & Didier, 1990):

Cidade de amor e ventura


Que tem mais doçura
Que uma ilusão
Cidade mais bela que o sorriso
Maior que o paraíso
Maior que a tentação
Cidade que ninguém resiste
Na beleza triste
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1 52 O vi olão azu l

De um samba-canção
Cidade de flores sem abrolhos
Que encantando nossos olhos
Prende o nosso coração

Cidade notável
Inimitável
Maior e mais bela que outra qualquer
Cidade sensível,
Irresistível,
Cidade do amor, cidade mulher!

Cidade de sonho e grandeza


Que guarda riqueza
Na terra e no mar
Cidade do céu sempre azulado
Teu sol é namorado
Das noites de luar
Cidade padrão de beleza
Foi a natureza
Quem te protegeu
Cidade de amores sem pecado
Foi juntinho ao Corcovado
Que Jesus Cristo nasceu

Tenta-se também na música popular, através de vários arran-


jos, preservar os aspectos interioranos na metrópole, como é o caso
da música junina, ou das próprias músicas carnavalescas, como a
Marchinha do grande galo, que Lamartine Babo compôs em parceria
com Paulo Barbosa em 1936. Se o gênero marcha ganhou configura-
ção no Rio de Janeiro dos anos 20 e 30 e passou a ser consumido prin-
cipalmente por uma classe média ávida por novidades, a Marchinha
do grande galo leva a crer que as fantasias de modernização, por
parte desses segmentos, conviviam com uma certa nostalgia do cam-
po. Esta marcha não apresenta nenhuma sofisticação — quer na letra,
quer na melodia —, e seu famoso refrão cai inteiramente no gosto do
público:

Có, có, có, có, có, có, ró!


Có, có, có, có, có, có, ró!
O galo tem saudade
da galinha carijó!
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A cidade fragmen tada 1 53

A marchinha Cantores do rádio, que Lamartine fez em parceria


com João de Barro e Alberto Ribeiro em 1936, tematiza, ao contrário, o
novo mundo criado para o artista popular com o advento do rádio.
Mas, a despeito da abordagem de um Rio de Janeiro transformado
pelos meios de comunicação de massa, a linguagem da música, apesar
de uma alegria contagiante, não adota um tom dessacralizado. O que
notamos é que os compositores poetizam a mídia, conferindo aura e
subjetividade a um mundo pretensamente objetivado:

Nós somos os cantores do rádio


Levamos a vida a cantar
De noite embalamos teu sono
De manhã nós vamos te acordar
Nós somos os cantores do rádio
Nossas canções cruzando o espaço azul
Vão reunindo num grande abraço
Corações de norte a sul

Canto
Pelos espaços afora
Vou semeando cantigas
Dando alegria a quem chora
Bum bum bum bum bum bum
Bum bum bum bum
Canto
Pois sei que a minha canção
Vai dissipar a tristeza
Que mora no teu coração

Canto
Para viver mais contente
Pois a ventura dos outros
É a alegria da gente
Bum bum bum bum bum bum
Bum bum bum bum
Canto
E sou feliz só assim
Agora peço que cantes
Um pouquinho para mim

A idéia de radiodifusão é aqui representada pela imagem de “can-


ções cruzando o espaço azul” — imagem de vôo ressaltada pela linha as-
cendente da melodia, com prolongamento da sílaba tônica de “azul”. Em
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1 54 O vi olão azu l

seguida, o “nós” da primeira estrofe (cantada em coro) é substituído pelo


sujeito singular de “canto” (estrofe cantada por solista), que reforça a re-
lação individual (e sentimentalizada) entre seu canto e o ouvinte singu-
larizado: entre “minha canção” e “teu coração”. Reforçando essa relação,
a parte do solista termina com um convite para que o ouvinte cante “um
pouquinho para mim”, verso que introduz a repetição da estrofe inicial,
em que o sujeito plural de “Nós somos...” inclui o próprio ouvinte, a can-
tarolar junto com o rádio. Como acontece em outros casos exemplares da
nossa canção popular, há uma interação estreita de música e letra, tor-
nando impossível conceber o texto inserido em outra melodia ou outro
ritmo. Os momentos mais líricos fazem a coincidência entre um e outro
elemento da composição parecer perfeita, o que também se dá com a
parte mais carnavalesca, muito bem representada pelo “bum bum bum
bum”. A música exige um cuidado e uma sensibilidade muito especiais
por parte dos intérpretes, porque o tom alegre não pode dispensar a de-
licadeza, a ternura.
Os sambas e as marchinhas carnavalescas não obedecem, por-
tanto, a um critério fixo, orientando-se tanto pelo grotesco quanto pelo
romântico. Pierrô apaixonado, por exemplo, marcha de 1936 de Noel
Rosa e Heitor dos Prazeres, assim como Rasguei a minha fantasia,
marcha de Lamartine Babo (1935), caracterizam-se pelo lirismo e por
uma certa melancolia, fugindo do padrão cômico do gênero (Rangel,
1965). E se o samba e a marcha se mostram afinados com as linguagens
desenvolvidas no Rio de Janeiro nos anos 20 e 30, isso não significa ne-
cessariamente um corte com sensibilidades passadistas. Cartola, por
exemplo, ao contrário dos demais sambistas de morro que se atinham à
poética da malandragem, tendia a desenvolver em suas letras — pelo
menos no início de sua carreira — uma vertente de lirismo identifi-
cada com a linguagem rebuscada dos nossos poetas românticos do
século XIX. Divina dama, composição de 1933, exibe, por exemplo,
este tipo de registro:

Tudo acabado
E o baile encerrado
Atordoado fiquei
Eu dancei com você
Divina dama
Com o coração queimado
em chama
[...]
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A cidade fragmen tada 1 55

A linguagem excessiva de Divina dama, a propósito, é perfeita-


mente adequada à interpretação impostada que lhe foi dada por Fran-
cisco Alves, assim como o arranjo orquestral da Odeon, bastante con-
vencional, que deu pouca ênfase ao ritmo que se entende como samba.
Esse tipo de composição — e a forma como é apresentada ao público
— atesta a distância que separa a linguagem musical de Cartola da co-
loquialidade do dia-a-dia. Quanto a esta questão, Claudia Matos obser-
va que Cartola se deixou influenciar pelo “veio lírico-amoroso [que]
tem como principais temas o Amor e a Mulher, vistos numa perspectiva
idealizante e fatalista, no mais das vezes com expressão pessimista e la-
muriosa”.61
Luiz Tatit (1996:32) argumenta que a rejeição de alguns músicos
populares à linguagem do seu cotidiano deve-se ao fato de aspirarem a
um estilo poético erudito, que lhes conferiria uma certa sofisticação.
Pouco informados, no entanto, acerca dos rumos da arte erudita da
época, recorrem a um classicismo ultrapassado e mal assimilado, resul-
tando numa “linguagem empolada e [em] melodias que lembram árias
européias do século XIX, ainda que simplificadas e reduzidas no tama-
nho”. Essa tendência ao semi-eruditismo, segundo Tatit, remonta ao
início do século, tendo como principais representantes Catulo da Pai-
xão Cearense e Cândido das Neves, o que é visível nas letras das can-
ções destes compositores:

[...]
Prossegue embora em flóreas sendas sempre ovante
De glórias cheia no teu sólio triunfante
Que antes que a morte vibre em ti
Funéreo golpe seu... (Talento e formosura).62

André Gardel (1996:75-6) analisa esse tipo de estética desenvol-


vida por Catulo:

61
Matos, 1982:46. É curioso o fato de as canções mais despojadas de Cartola,
como Tive, sim (1968), ou Acontece (1978) — apesar da recaída piegas percebida
no verso “Acontece que meu coração ficou frio/ E o nosso ninho de amor está va-
zio” —, serem composições mais recentes, criadas no final da vida do compositor.
62 Catulo da Paixão Cearense e Cândido das Neves apud Tatit, 1996:32.
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1 56 O vi olão azu l

Líder do movimento sertanista na música, o “Vítor Hugo do sertão”, o


“Lamartine das serenatas”, epítetos que ele mesmo se dá, Catulo da Pai-
xão, poetastro modinheiro semiparnasiano, é, na verdade, o ícone má-
ximo da postura paternalista europeizante da elite brasileira diante da
arte popular e interiorana. Em meio à voga nacionalista de resgate de
canções folclóricas do Norte e Nordeste, que leva inclusive Donga, Pi-
xinguinha e Caninha, em início de carreira, cariocas negros e mestiços
da gema, a participarem do Grupo do Caxangá, junto com sertanejos co-
mo João Pernambuco, enchendo as ruas de cateretês, emboladas, toa-
das, no fundo apenas mais alguns elementos a comporem o todo hí-
brido das novas canções cariocas que surgem no período, Catulo vem a
ser o popular aceito pelas elites nas salas de concerto e casas de polí-
ticos e gente famosa, que ambicionavam ver de perto o pitoresco regio-
nal com puros olhos europeus, “emprestando ao Brasil pobre do campo
um lirismo que o compensaria do atraso”.

Tatit inclui nessa tendência semi-erudita parte da obra de Ores-


tes Barbosa — como Chão de estrelas —, de Lupicínio Rodrigues, Car-
tola, Nélson Cavaquinho e outros compositores. O autor (1996:33) re-
corre à análise de Beatriz Borges sobre o tema:

Atrás de um preciosismo, no entanto, é que a maioria dessas produções


segue, procurando se afastar o máximo possível da linguagem comum,
diária, coloquial. Atrás de palavras raras — pois é da escolha vocabular
refinada que depende a originalidade das letras e a capacidade de cau-
sar emoção —, atrás de palavras literárias, que exercem o mesmo fas-
cínio que despertam no seu autor, este, zeloso, prefere uma forma mais
rica, mais refinada para falar de seus mais refinados sentimentos, que
em nada podem se ligar à banalidade e à falta de brilho de sua exis-
tência.

Tatit (1996:33-4) refere-se também a Sinhô, que, mesmo “colo-


quial por excelência”, teria criado composições comprometidas com a
gramática, como Jura, em que promete à amada um “beijo puro na ca-
tedral do amor”. De fato, a produção de Sinhô é associada a um regis-
tro muito mais renovador do que retrógrado. Suas composições, inclu-
sive as sentimentais, primavam pela irreverência. E, em dois casos pelo
menos, suas sátiras políticas lhe renderam aborrecimentos. Fala, meu
louro, samba de 1919 inspirado num incidente com Rui Barbosa, teria
provocado um conflito na Faculdade de Direito da Bahia. A letra co-
menta de maneira sarcástica o uso da retórica e da linguagem bacha-
relesca por Rui Barbosa, como se vê no refrão:
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A cidade fragmen tada 1 57

Papagaio louro
Do bico dourado
Tu que falavas tanto
Qual a razão que vives calado

Em 1921, Sinhô criticava a atuação política de Artur Bernardes


com a marcha Fala baixo, o que lhe teria causado problemas com a po-
lícia. Em 1927, na Noite Luso-Brasileira, foi coroado “rei do samba”
(Mariz, 1985). Em Ora, vejam só, samba de 1927, ele já se antecipava
aos compositores dos morros, tematizando a malandragem:

A malandragem
Eu não posso deixar
Juro por Deus
E por Nossa Senhora
É mais certo
Ela me abandonar
Meu Deus do Céu
Que maldita hora.
[...]

Mas, a despeito de sua postura inaugural na música popular,


Sinhô não deixa de criar uma identidade contraditória, o que é muito
bem captado por Manuel Bandeira, que destaca em crônica sobre o en-
terro do compositor, em 1930, seu perfil de mediador entre os artistas da
“sociedade fina e culta” e as “camadas profundas da ralé urbana”. Ban-
deira (1965:454) aprofunda a descrição de Sinhô, chamando a atenção
para o seu lado afetado, cabotino e ao mesmo tempo fascinante: “O que
há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação
mais típica, mais genuína e mais profunda”. André Gardel (1996:77)
mostra como Sinhô chegou até mesmo a usar em várias composições a
dicção sertaneja em voga no momento, como em Disse me disse:

Capineiro marvado
Não capina capina aí
O capinzal é de meu bem
Onde canta o juriti

Às vezes recorre-se ao empolamento para a constituição da pró-


pria persona, como é o caso de Paulo da Portela, compositor bissexto
que costuma ser retratado como uma figura que teria exercido nos anos
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1 58 O vi olão azu l

20 e 30 grande liderança não só na Portela como nas escolas de samba


em geral. Ele é sempre descrito como um organizador da folia, ou
como uma espécie de moralizador, “tentando tirar as escolas da mar-
ginalidade”, para não serem vistas como “antros de malandros e desor-
deiros”. Dando continuidade a essa missão, encarregou-se de fazer a
mediação entre o morro e a cidade: segundo Sérgio Cabral (1982:2),
Paulo da Portela foi o sambista “mais entrevistado pelos jornais, por ser
uma espécie de relações públicas das manifestações artísticas das áreas
mais pobres do Rio de Janeiro”. A função “civilizadora” de que se in-
cumbiu acabou conferindo-lhe um perfil de dândi, como se recortasse,
entre os modelos disponíveis, aquele que mais se aproximava de um
padrão citadino de elegância. E embora ele procurasse se diferenciar
do malandro, recorreu a um estereótipo semelhante ao utilizado por
este, ao copiar o “terno branco impecável” do figurino burguês (Matos,
1982:56-7). Claudia Matos, ao distinguir o malandro do proletário —
sua antítese por excelência nos redutos populares —, analisa a condi-
ção caricatural e parodística do malandro com relação ao burguês:

E por ser uma paródia, seu modo de se apresentar inclui aspectos de exa-
gero e deformação tão evidentes que o próprio trajar elegante é um dos
elementos pelos quais a polícia o identifica como malandro [...].

Sua imagem visual se caracteriza pois por uma preocupação estética


(“gosto de andar na moda”), mas ao mesmo tempo pela ambivalência,
pela impressão de fantasia ou disfarce que transmite. Tal impressão ad-
vém da contigüidade de signos de uma modernidade pequeno-burguesa
com signos de outra ordem, relativos à condição negra e proletária [...], à
postura marginal em relação à sociedade bem comportada [...] e final-
mente à manutenção de uma tradição étnica e social (1982:56-7).

Em sua atitude reverente para com a linguagem “civilizada”,


Paulo da Portela acaba desenvolvendo, mesmo sem intenção, esse tipo
de representação caricatural do burguês, ao fazer uso de discursos re-
buscados e empolados, como o que pronuncia para o jornal A Pátria,
em janeiro de 1935:

Todas as minhas conquistas, eu digo, sem pejo de errar, devo-as à im-


prensa, esse poder inconfundível que honra e dignifica a nossa nacio-
nalidade. Porque só os imbecis se levantam contra aqueles que, até com
risco da própria vida, não recuam quando na defesa da causa justa (apud
Cabral, 1982:2).
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A cidade fragmen tada 1 59

Ernesto Nazaré, na condição de “pianeiro”, talvez seja o me-


lhor exemplo de semi-eruditismo na forma musical. Tornou-se co-
nhecido por suas apresentações de piano na sala de espera do Cine
Odeon, a partir de 1917, e algum tempo depois na casa comercial
Carlos Gomes, onde executava ao piano partituras solicitadas pelos
fregueses.63 Uma das características curiosas do compositor é exata-
mente seu trânsito quase ininterrupto pelos domínios delimitados
para o erudito e o popular, embora tenha certamente configurado um
estilo como compositor popular. Mas a familiaridade que adquiriu
com os mais variados repertórios europeus — das ingênuas valsas de
Strauss às peças românticas de Chopin — e nacionais — como o cho-
ro, a seresta carioca, o maxixe e outros — contribuiu bastante para o
tipo de engenhosidade exibida pelo compositor, ao deformar os rit-
mos originais e abrasileirá-los. É assim, por exemplo, que ele confere
uma forma menos diluída ao tango, interpretando-o como “tango bra-
sileiro”. Outro procedimento importante de Nazaré consiste em trans-
por para o piano a flauta, o violão, o cavaquinho, o oficleide e o bom-
bardino, usados nas interpretações do repertório popular carioca. O
musicólogo Mozart de Araújo (1994:169) afirma que Nazaré não criou
ritmos nacionais; o que ele fez de novo foi “a apresentação pianística
da rítmica do tango”. Essas incursões de Nazaré pelo território da mú-
sica erudita contribuem para a popularização do piano, justamente
num momento em que a classe média começa a se tornar expressiva
(Valença, 1989/90).
Mário de Andrade, em artigo de 1926, mostra-se perceptivo aos
melindres desse compositor de música fácil que aspira à “pererequice
melódica difícil”. Na avaliação de Mário, Nazaré geralmente consegue
operar no registro difícil a que se propõe, o que diferencia sua obra de
outras composições populares: “É mais artística do que a gente imagi-
na pelo destino que teve, e deveria estar no repertório dos nossos re-
citalistas” (Andrade, 1963). E Nazaré, segundo Mário, ao criar uma obra
de caráter instrumental e antivocal, distancia-se dos músicos popula-
res, na medida em que estes concebem a música em função da poesia e
da dança. Complementando a análise de Mário de Andrade, Mozart de
Araújo ressalta o aspecto anticoreográfico das músicas de Nazaré, aten-
to ao fato de que, embora a obra desse compositor se componha de
peças dançantes, ele não foi um autor de músicas para dançar. Araújo

63 Ver Enciclopédia da música brasileira, 1977.


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1 60 O vi olão azu l

diz que Nazaré se coloca numa posição intermediária entre o erudito e


o popular. Se ele não foi um “autor de rua”, tampouco foi um “autor de
concerto”, já que seus recursos musicais não eram suficientes para tan-
to. As incursões do compositor pelos domínios do erudito teriam ren-
dido “peças de circunstância, de valor secundário, sem maior significa-
ção dentro do padrão geral que imprimiu à sua obra”. Nazaré teria
optado por ser “um bom músico popular”, em vez de “um medíocre
músico erudito”. Araújo (1994:154-9) não deixa de mencionar, no en-
tanto, o fato de que Darius Milhaud, em sua passagem pelo Rio, em
1917, ouviu Nazaré executando suas composições no cinema Odeon e
elogiou seu talento.

À mer en cór i a lu z d a lu a
Configura-se, portanto, na música popular do período analisado
— anos 20 e 30 — um tipo de democracia musical que tende a refletir
uma percepção de cidade, ou de país, de certa forma semelhante à de al-
guns escritores modernistas. Tudo indica que os compositores popula-
res se mostram mais sensíveis — ou mais receptivos — que os eruditos
para captar os signos modernizantes da cidade. Mas, em vez de adotar
um procedimento excludente, criando fórmulas padronizadas de com-
posição de acordo com determinado registro citadino, esses músicos,
cada um à sua maneira, acionam um leque variado de opções, abrindo
espaço tanto para as novidades quanto para os repertórios associados ao
passado. Assim, torna-se mais fácil entender a coexistência, numa deter-
minada composição, de procedimentos formais em tese incompatíveis
entre si. Como vimos, é comum, nas músicas de Cartola, as letras de teor
melodramático não se adequarem ao espírito inovador da melodia, ou
do ritmo; ou então, como nas marchinhas carnavalescas de Lamartine,
motivos rurais, contidos na letra, invadirem um tipo de forma musical as-
sociada à cidade. Em estudo sobre a diversidade cultural no Rio de Ja-
neiro dos anos 20, André Gardel (1996:45) afirma:

As estruturas comunitárias propiciam ao Rio de Janeiro um contato en-


tre o espírito provinciano e o primitivo, ambos envoltos na alma mo-
derna que a condição de capital federal impõe. Não há o abandono da
província em nome de um imaginário distante, indígena, como em São
Paulo, para a consecução do bárbaro tecnizado emergente da grande
metrópole da vertente da modernização radical. A cultura popular ur-
bana carioca em sua ambiência celebrativa possui o elemento negro, as
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A cidade fragmen tada 1 61

culturas negras afro-baianas e locais, com sua rica tradição folclórica de


ritmo e dança aberta a toda sorte de misturas, tanto intercomunitárias
quanto com as modas despejadas na cidade vindas de fora, o que pro-
duz sínteses culturais específicas, gerando uma brasilidade carioca na
qual a diversidade é costurada pela unidade negra, primitiva mas de
abertura moderna e cosmopolita.

E se grande parte dos compositores, ao adotar este procedimen-


to, foi movida pelo apego a uma linguagem poética — pretensamente
elevada — há muito arraigada no senso comum, alguns, como Ari Bar-
roso, se orientaram pelo espírito nacionalista, principalmente quando
começou a desenvolver, a partir dos anos 30, um tipo de música que se
tornou conhecido como samba-exaltação, ou samba-cívico. Ao fazer
uso desse estilo, Ari, de certa maneira, criou um tipo de concepção mu-
sical compatível com a do modernismo, ou com o tipo de estética na-
cionalista de cunho monumental que Villa-Lobos desenvolveu princi-
palmente a partir dos anos 30. De fato, desde que se converteu ao ideal
de brasilidade, Ari procurou se aproximar dos músicos eruditos que de-
senvolviam o projeto musical modernista, engajando-se nas campa-
nhas de canto orfeônico concebidas por Villa-Lobos (Tatit, 1996).
Nos anos 20 e 30, Ari alternava composições líricas, intimistas,
com marchinhas carnavalescas. A partir do final da década de 30, co-
meçou a se dedicar à composição de músicas de exaltação regionalista,
como Na Baixa do Sapateiro (1938), Aquarela do Brasil (1939) e Terra
seca (1943), elaborando-as num registro próximo ao do hino (Gru-
newald, 1965). Aquarela do Brasil, com seu tom encomiástico e gran-
diloqüente, aproxima-se do espírito da epopéia. Tal como Os Lusíadas,
por exemplo, ao evocar a “Terra de Nosso Senhor”, a letra da canção
remete à idéia de povo eleito; e, seguindo a linha do relato épico, alude
ao passado, embora não tematize, como faz a epopéia, feitos de ante-
passados:

[...]
Ah! Abre a cortina do passado
Tira a mãe preta do cerrado
Bota o rei-congo no congado
Brasil, pra mim
Deixa cantar de novo
O trovador
À merencória luz da lua
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1 62 O vi olão azu l

Toda canção do meu amor


Quero ver essa dona caminhando
Pelos salões arrastando
O seu vestido rendado
[...]

Outro procedimento épico que se nota em Aquarela do Brasil é a


construção dos personagens sem o concurso do tempo. O “mulato in-
zoneiro” e a “morena sestrosa”, convertidos em tipos nacionais, são fi-
guras congeladas num eterno presente, estereotipadas e sem densida-
de. Processo semelhante se vê na construção da Odisséia. Erich
Auerbach chama a atenção para o fato de que os heróis homéricos, ao
contrário das figuras do Velho Testamento — “mais plenas de desen-
volvimento, mais carregadas da sua própria história vital e mais cunha-
das na sua individualidade” —, não apresentam desenvolvimento na
construção de suas identidades ou de suas trajetórias de vida. Esse tipo
de construção a-histórica faz com que os personagens aparentem uma
idade prefixada e que se recorra a uma narrativa em que o desfile dos
fenômenos se dá no primeiro plano, isto é, “sempre em pleno presente
espacial e temporal”. E complementa: “falei [...] do estilo homérico
como de ‘primeiro plano' porque, apesar de muitos saltos para trás ou
para diante, deixa agir o que é narrado, em cada instante, como pre-
sente único e puro, sem perspectiva” (Auerbach, 1987:5-14).
Tárik de Souza (1982) observa que a estética de Aquarela do
Brasil combina com o espírito do nacional-socialismo de Hitler que ins-
pirava o Estado Novo de Vargas. E Sérgio Cabral (1979:59) alude a uma
espécie de “namoro” de Vargas com o governo alemão, ao se referir ao
episódio de janeiro de 1936, em que a edição do programa oficial Hora
do Brasil “foi transmitida diretamente para a Alemanha, apresentando
sambas da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira”. Tárik de
Souza lembra que, em 1931, Ari Barroso já havia começado a tematizar
a Bahia de maneira exaltativa; a partir de 1934, esse tema se torna re-
corrente. O crítico musical mostra-se perceptivo à sensibilidade ufanis-
ta de Ari, devotando-se desde jovem à produção de hinos: Ubaenses
gloriosos, Meu pampa lindo, Hino do Colégio Cataguases e Hino do Co-
légio Pedro II (Souza, 1982). Já se percebe também nas cartas que Ari,
quando jovem, escreve para Ivone,64 sua namorada, o tom bachareles-

64 Ver Cabral, s.d.


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A cidade fragmen tada 1 63

co de seu discurso, provavelmente influenciado por sua formação em


direito. Ari utiliza esse tipo de linguagem triunfalista em depoimento
para o Diário de Notícias (outubro de 1958), em que descreve seu es-
tado de espírito ao conceber Aquarela do Brasil. Segundo ele, sentado
ao piano de sua casa, em 1939, teria sido “acometido não só de inspi-
ração mas também de um sentimento patriótico inarredável”. E com-
plementa:

Senti, então, iluminar-me uma idéia: a de libertar o samba das tragédias


da vida, do sensualismo das paixões incompreendidas, do cenário sen-
sual já tão explorado. Fui sentindo toda a grandeza, o valor e a opu-
lência da nossa terra, “gigante pela própria natureza”. Revivi, com or-
gulho, a tradição dos painéis nacionais e lancei os primeiros acordes, vi-
brantes, aliás. Foi um clangor de emoções. [...] De dentro de minh'alma,
extravasara um samba que eu há muito desejara, um samba que, em so-
noridades brilhantes e fortes, desenhasse a grandeza, a exuberância da
terra promissora, da gente boa, laboriosa e pacífica, povo que ama a ter-
ra em que nasceu. Esse samba divinizava, numa apoteose sonora, esse
Brasil glorioso.65

O estilo monumental de Aquarela do Brasil não se restringe à le-


tra. A música, tal como o arranjo que a acompanha, corrobora o clima
solene que lhe empresta o texto. Embora o ritmo sincopado seduza o
ouvinte para a dança e o componente excessivo da parte musical re-
meta também ao universo carnavalesco, há um prolongado suspense
harmônico — incomum no samba e na música popular em geral — que
começa à altura do verso “Deixa cantar de novo o trovador” e só retor-
na à tônica muitos compassos (ou cinco versos) depois, em “O seu ves-
tido rendado”. Assim, ao contrário de Noel Rosa, que inaugura proce-
dimentos simples, desde a composição à interpretação, Ari instaura a
grandiosidade, tanto na obra quanto no significado que lhe confere.
Vasco Mariz (1985:91) afirma que Ari “imprimiu novo impulso à orques-
tração da música popular, ampliando-a com alentados conjuntos, em
contraste com a singeleza tímida de Noel Rosa”. E retoma a compara-
ção entre os músicos: “Sinhô, Noel e Pixinguinha foram cantores de de-
terminados bairros cariocas e de estados de espírito da boemia do Rio
de Janeiro; Caymmi trouxe-nos a melancolia das toadas praianas do
Norte, mas só Ari Barroso fez cantar o Brasil inteiro em uníssono, de

65 Ari Barroso apud Cabral, s.d.:179.


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1 64 O vi olão azu l

peito estufado por ser bem brasileiro, deste Brasil ‘do mulato inzonei-
ro'”. Claudia Matos chama a atenção para o fato de que Aquarela do
Brasil acaba se tornando um modelo para o samba-exaltação. E desen-
volve: “Em termos musicais, o samba-exaltação caracterizava-se pela
imponência dos arranjos orquestrais, enquanto o samba, até então, nor-
malmente se fazia acompanhar de um simples regional” (1982:52).
Esse aspecto cívico da obra de Ari levanta outra questão: a cor-
respondência entre vida e obra em Ari e Noel. A música de Noel reflete
sua trajetória circular — nada heróica — pelos diversos bares de Vila
Isabel, da Lapa, dos morros e do subúrbio do Rio de Janeiro, à procura
do prosaico que marca o cotidiano. Já a estilização promovida no
samba por Ari, tornando-o “sinfonicoso”, a par de letras com teor cívi-
co, corresponde a uma vida devotada às questões públicas, como as
atividades políticas junto à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, para a
qual elegeu-se vereador pela União Democrática Nacional.
Apesar de mineiro de Ubá, Ari é figura marcante no cenário mu-
sical do Rio de Janeiro a partir dos anos 20. Sua trajetória profissional,
bastante eclética, é sem dúvida marcada por sua personalidade inquie-
ta, contraditória, ou, como descreve Mariúza, sua filha, “ao mesmo
tempo carismática, marcante e controvertida” (Cabral, s.d.:97). Começa
sua carreira, por exemplo, nos anos 20, como pianista de jazz, ao
mesmo tempo em que estuda direito. Chega a assumir por pouco tempo
(15 dias) o cargo de juiz municipal e retorna à vida artística, caracteriza-
da por grande diversidade: pianista, regente de orquestra, compositor
(inclusive de músicas para peças teatrais) e escritor de espetáculos de tea-
tro de revista. Ingressa definitivamente no rádio a partir de 1932, tornan-
do-se uma figura inovadora nesse veículo, lançando programa de calou-
ros, escrevendo crônicas e quadros humorísticos para Horas do Outro
Mundo, programa em que divide o microfone com Renato Murce, e mais
tarde assumindo a função de locutor esportivo. Em 1935, inicia suas ati-
vidades de jornalista, escrevendo uma seção diária no Correio da Noite
sob o título “Falando a todo mundo”, ocupando-se principalmente em
comentar o rádio e a música popular. A diversidade da atuação de Ari
Barroso por volta de 1936 é relatada por Sérgio Cabral:

Na Rádio Cruzeiro do Sul transmitia jogos de futebol, apresentava um


programa esportivo diário, participava de programas humorísticos, con-
duzia o Calouros em Desfile, escrevia quadros para os radioatores e, de
vez em quando, sentava-se ao piano para tocar uma música ou para
acompanhar um cantor. Não abandonava o teatro e não largava o Fla-
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A cidade fragmen tada 1 65

mengo, freqüentando o clube e participando da política interna, em en-


contros no Café Rio Branco. Na música popular, estava sempre em con-
tato com os colegas compositores e com os cantores, seja nos estúdios
das emissoras de rádio e das gravadoras, seja nos bares da boemia cario-
ca, com destaque para o Casa Nice, que a posteridade guardou com o no-
me de Café Nice.66

Quanto à sua sensibilidade como compositor, Ari, tal como La-


martine, se revela múltiplo, criando desde marchinhas carnavalescas
bem-humoradas até sambas exaltativos e exuberantes no feitio de
Aquarela do Brasil. Quando decide ser simples, é quase imbatível, o
que é demonstrado por algumas de suas composições, como Camisa
amarela, de 1939. Este samba tematiza com lirismo e humor situações
do cotidiano boêmio da cidade e, ao mesmo tempo em que trabalha
com uma linguagem bastante coloquial, exibe sofisticação na forma. A
letra merece transcrição:

Encontrei o meu pedaço na avenida


de camisa amarela
Cantando a Florisbela, oi,
a Florisbela
Convidei-o a voltar pra casa
em minha companhia
Exibiu-me um sorriso de ironia
E desapareceu no turbilhão da galeria
Não estava nada bom
o meu pedaço
Na verdade estava bem mamado,
bem chumbado, atravessado
Foi por aí cambaleando,
se acabando
num cordão, de reco-reco na mão
Mais tarde o encontrei num café zurrapa
do largo da Lapa
Folião de raça
bebendo o quinto copo de cachaça
Isso não é chalaça

66 Sérgio Cabral (s.d.:165, 197) também informa que, nos anos 40, Ari Barroso cria a fi-

gura de repórter de campo e a função de comentarista de futebol.


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1 66 O vi olão azu l

Voltou às 7 horas da manhã,


mas só na quarta-feira
cantando a Jardineira, oi,
a Jardineira
Me pediu, ainda zonzo, um copo d'água
com bicarbonato
O meu pedaço estava ruim de fato
pois caiu na cama e não tirou nem o sapato
Roncou uma semana, despertou de mau humor
quis brigar comigo, que perigo,
mas não ligo
Meu pedaço me domina,
me fascina
Ele é o tal, por isso não levo a mal
Pegou a camisa, a camisa amarela
botou fogo nela
Gosto dele assim
acabou a brincadeira e ele é só pra mim
Meu Senhor do Bonfim

A música de Camisa amarela, com transições harmônicas com-


plexas e uma linha melódica elaborada, se adapta plenamente à temá-
tica. Além da prosódia perfeita — o acento da melodia coincide sem-
pre com o da letra —, a linha melódica é marcadamente ascendente
sempre que os versos reproduzem os refrãos carnavalescos (“A Jardi-
neira” e “A Florisbela”) cantados pelo folião que é o protagonista. Ca-
misa amarela capta, por um ponto de vista feminino, uma maneira ca-
rioca de falar e um ethos específico de um tipo de boemia da cidade.
Observe-se, por exemplo, que a voz feminina da letra é totalmente
isenta de juízos de valor; ela se limita a descrever a situação por um
prisma ao mesmo tempo irônico e amoroso.
Ari também não se furtou a experimentar a paródia. Em 1935,
por exemplo, compôs a marcha carnavalesca Cavalhada franciscana,
numa nítida alusão ao melodrama operístico Cavalleria rusticana, de
Pietro Mascagni:

[...]
Este estribilho
Original
Ouvi lá no Municipal
[...]
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A cidade fragmen tada 1 67

Ari Barroso, também por usar deste procedimento, chega a ter


problemas com a censura, que proíbe a divulgação de Garota colossal
— marcha de 1935 que compõe em parceria com Nássara — por esta
apresentar dois compassos baseados na melodia do Hino Nacional e
por sua abertura constituir uma reprodução do Hino à Bandeira (Ca-
bral, s.d.).
No rol dos músicos populares que despontaram na virada dos
anos 20, ninguém foi mais contraditório que Ari, tanto no plano esté-
tico quanto no pessoal. E segundo depoimentos de vários contempo-
râneos do compositor, ou de pesquisadores de música popular, nin-
guém foi mais carismático, como demonstra José Lino Grunewald
(1965):

Fez rádio e, como poucos e raros, dando uma enorme vivacidade ao mi-
crofone. Seus programas de calouros marcaram época. Sua participação
no esporte, apaixonada, instigante, sacudia os torcedores, irradiando e
comentando o futebol, com ardor, com mordacidade. E quando a te-
levisão começou a ocupar a sua faixa própria, lá estava ele: música, es-
porte, política, humorismo. Entre os nossos compositores — não resta
dúvida — pode não ter sido o maior sob um ângulo de visão estrita-
mente inventivo, mas foi, de todos, aquele que teve maior presença,
maior personalidade como profissional em situação.

Sérgio Cabral, ao lidar com este aspecto de Ari Barroso, ressalta


sua faceta udenista e comenta que ele era “dado a exageros e afirma-
ções radicais”. Se esse perfil do compositor é construído, por um lado,
de maneira factual, numa referência explícita a sua carreira política
como vereador pela UDN no final dos anos 40, por outro, não se pode
negar que o qualificativo “udenista” remete a um significado mais am-
plo, relativo à própria constituição de sua personalidade cheia de nu-
anças. Mas, sem dúvida, dentre todos os compositores do período, nin-
guém se dedicou mais à vida pública. Sabe-se que Ari, além da
atividade político-partidária, atuou também na Liga de Futebol do Rio
de Janeiro, a partir de 1937, como secretário, e em atividades sindicais,
como na reivindicação dos direitos autorais dos compositores na Sbat
(Sociedade Brasileira de Autores Teatrais).67

67 Ver Cabral, s.d.


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1 68 O vi olão azu l

Quando Ari Barroso e outros músicos populares de sua geração


se atêm ao estilo humilde, ganham em flexibilidade, abrindo-se espaço
para um sujeito lírico e para um bufão muito próximos da sensibilidade
de alguns escritores modernistas, como Manuel Bandeira. Assim, algu-
mas canções de temática amorosa de Ari, como Camisa amarela, dis-
pensam a linguagem empolada utilizada por várias gerações de músi-
cos e poetas, e adotam o tom coloquial proposto e experimentado
pelos poetas modernistas. As composições humorísticas de Ari são re-
presentativas do procedimento parodístico na música popular. Mas o
fato é que a estética de Ari Barroso não se presta a uma definição pre-
cisa, e a dificuldade para rotulá-lo não se deve apenas ao seu trânsito
pelos diferentes gêneros musicais. Talvez sua sensibilidade múltipla se
deva mais ainda às maneiras diferentes com que aborda figuras e mo-
tivos populares. Às vezes se orienta pela vida, por suas paixões, ou
mesmo pelo contato com a afetividade que brota nos bares e em ou-
tros recantos que freqüenta no cotidiano; outras vezes entrega-se a idea-
lizações. Quando opta pela experiência, desenvolve um sujeito lírico
muito próximo ao de Noel. Camisa amarela, por exemplo, estrutura-se
através das alternâncias entre envolvimento e distanciamento, mostran-
do uma sensibilidade afeita tanto ao amor quanto à percepção irônica
do próprio sentimento. Quando incorre em idealizações, mostra-se
próximo de Lamartine. Um e outro lidam com tipos generalizáveis,
como a “lourinha” ou a “mulata”, no caso de Lamartine, ou a “baiana”
tão decantada por Ari a partir de final dos anos 30. Ao recorrer a este-
reótipos, ambos se distanciam do procedimento singularizador de Noel
Rosa, que tende a retratar personagens ligados à sua vivência cotidiana
e a espaços bem demarcados da cidade do Rio de Janeiro.
Ao desenvolver o gênero samba-cívico, Ari Barroso revela uma
espécie de comprometimento, no plano cultural, com os ideais nacio-
nalistas e unificadores do Estado Novo, que instauram uma atmosfera
de gravidade e reverência para com um passado mítico e grandioso,
assim como enaltecem o meio natural exuberante. Já os músicos po-
pulares que se orientam pela vida cotidiana, com suas paixões, seus re-
veses e seus imponderáveis, tendem a adotar uma linguagem musical
simples e fragmentária. A atitude reverente cede lugar a procedimentos
humorísticos que, como vimos, se realizam em forma de sátira, de pas-
tiche ou paródia. Desenvolvem uma percepção carnavalesca do
mundo que não se restringe, portanto, aos três dias consagrados ao ri-
tual. Porém seria difícil interpretar algumas obras de Lamartine Babo e
Ari Barroso a partir de critérios de alternância entre o sério e o humo-
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A cidade fragmen tada 1 69

rístico, mesmo porque esses compositores embaralham os dois regis-


tros. Como observei no capítulo anterior, Lamartine brinca com a tra-
dição do hinário. De maneira semelhante, Lamartine e Ari tematizam,
em algumas composições, tipos e motivos idealizados, muito mais
compatíveis com a linguagem grave da tradição monumental do que
com signos atualizados com a vida contemporânea. Mas ao adotarem
esse procedimento, desenvolvem uma forma muito peculiar na música
brasileira, abordando elementos típicos da estética monumental de ma-
neira carnavalizada.
Talvez o exemplo mais significativo dessa postura seja a marcha
Teu cabelo não nega, “urbanizada” por Lamartine em 1932 e desde
então associada definitivamente ao carnaval, a começar pela introdu-
ção melódica, que se tornou o prefixo carnavalesco por excelência. Em
Hino do carnaval brasileiro, de 1939, Lamartine radicaliza esse proce-
dimento, conclamando — e carnavalizando — tipos raciais brasileiros
do sexo feminino:

Salve a morena! —
A cor morena do Brasil fagueiro
Salve o pandeiro!
Que desce o morro pra fazer a marcação...
São são são são...
Quinhentas mil morenas!
Louras, cor de laranja, cem mil...
Salve! Salve! Meu carnaval Brasil!

Salve a lourinha!
Dos olhos verdes — cor das nossas matas...
Salve a mulata!
Cor do café — a nossa grande produção...
São são são são...
Quinhentas mil morenas!
Louras, cor de laranja, cem mil...
Salve! Salve!
Meu carnaval Brasil!

Nesta marcha, Lamartine parodia — mesmo sem fugir ao seu es-


tilo conciliador — o espírito ufanista predominante no período, que
cultiva a idéia de um Brasil pujante, cuja riqueza se mede também pela
variedade de raças, pela miscigenação e por uma “democracia racial”
sem precedentes. Interpretada pela voz vigorosa e ao mesmo tempo
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1 70 O vi olão azu l

bem-humorada de Almirante, a marcha é arranjada com todos os ins-


trumentos da banda militar, como tambores e cornetas, numa alusão
explícita ao Estado Novo. Além da orquestração excessiva, ouve-se
também um coro que se alterna com a voz de Almirante ao cantar o re-
frão. Lamartine consegue criar um clima inusitado nesta composição,
em que o tom militar — que não dispensa uma longa passagem instru-
mental que se confunde com o próprio hino — convive perfeitamente
com a atmosfera carnavalesca.
Ari Barroso, num estilo talvez menos carnavalizado que o de La-
martine, consegue também abordar temas e figuras oficializados pelo
Estado Novo sem trair sua vocação para a alegria e o lúdico. No batu-
que que compõe, por exemplo, em 1937, intitulado No tabuleiro da
baiana, Ari se mostra bastante familiarizado com o procedimento re-
corrente, no período, de se utilizar símbolos regionais como emblemas
da nação:

— No tabuleiro da baiana tem...


— Vatapá, oi, caruru
Mungunzá, tem umbu
Pra Ioiô
— Se eu pedir você me dá
O seu coração, seu amor de Iaiá?
— No coração da baiana tem...
— Sedução, ô, canjerê
Ilusão, ô, candomblé...
— Pra você
— Juro por Deus
Pelo Senhor do Bonfim
Quero você
Baianinha, inteirinha pra mim
— E depois
O que será de nós dois?
Seu amor é tão fugaz
e enganador!
— Tudo já fiz
Fui até num canjerê
Pra ser feliz
Meus trapinhos juntar com você
— E depois
Vai ser mais uma ilusão
No amor quem governa é o coração
[...]
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A cidade fragmen tada 1 71

Mas embora trabalhe com emblemas da nacionalidade, Ari


constrói a letra apelando para o duplo sentido; assim, ao mesmo
tempo em que exalta a Bahia, cria um forte clima de erotismo. Na le-
tra, a relação dos diversos quitutes expostos no tabuleiro da baiana é
entremeada com um discurso de sedução, evocando de modo implí-
cito o sentido sexual do verbo “comer” (o qual, aliás, não aparece no
texto), os quitutes atuando talvez como metáforas para os diferentes
atributos físicos da baiana. Há um diálogo perfeito entre música e le-
tra, melodia e ritmo, reforçando o sentido duplo do texto. Assim, em
“Se eu pedir você me dá/ O seu coração, seu amor de Iaiá?”, a pausa
entre os versos, separando verbo de objeto, reforça a leitura intransi-
tiva (e erótica) de “dá”, mais uma vez evocando o ausente verbo “co-
mer” em suas duas acepções. O elemento religioso — “Senhor do
Bonfim”, “canjerê” — entra como mais um recurso na argumentação
sedutora. No final, fica claro que a baiana, embora claramente não
convencida da sinceridade dos sentimentos do sedutor — “Vai ser
mais uma ilusão” —, termina cedendo assim mesmo, porque “No
amor/ Quem governa é o coração”. Ou seja: desde o início não era
necessário seduzi-la, pois, ao oferecer seus quitutes, ela já estaria si-
nalizando sua disponibilidade para o amor; o diálogo de sedução é
puro ritual lúdico.

Alô, alô, car n aval

É difícil adotar critérios rígidos para analisar a música popular do


período modernista, já que ela se pauta tanto pelo humilde quanto pelo
sublime, tanto pelo simples quanto pelo excessivo, tanto pelo rural
quanto pelo urbano. E mesmo quando algum compositor, como Noel,
tende mais que os outros a captar os sinais modernizantes da metró-
pole, essa apreensão não é isenta de ranços provincianos, tendendo
mais a uma sensibilidade suburbana do que propriamente urbana. Re-
lativamente aos valores da época, pode-se dizer que essa sensibilidade
bairrista dos compositores citadinos conferia-lhes uma marca bastante
diferente da que caracterizava os músicos modernistas, basicamente
comprometidos com o projeto nacional. Mário de Andrade, por exem-
plo, concebia qualquer tipo de atitude particularista como nociva ao
ideal de unidade. Elizabeth Travassos (1996:193), a propósito, mostrou
a equivalência promovida por Mário entre os indivíduos e as regiões; na
acepção de Mário, o “regionalismo cioso de sua diferença” seria “o
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1 72 O vi olão azu l

equivalente coletivo do egoísmo individual”. Mário contrapunha por-


tanto o “amor da humanidade” à “egolatria”, que ele via sob a forma do
“apego a facções, bairros ou nações”.
Essa questão evoca mais uma vez as análises de Bakhtin dos gê-
neros literários que se desenvolveram na Antigüidade. Os gêneros ofi-
ciais, ou sérios, como a epopéia, a tragédia, a história e a retórica clás-
sica, opunham-se aos gêneros cômico-sérios, profundamente envol-
vidos com o folclore carnavalesco. Se a literatura séria se predispunha
a reforçar a tradição e o ideal de unidade e perenidade, o cômico-sé-
rio, impregnado de cosmovisão carnavalesca, era dotado de uma força
vital e transformadora. Dito de outro modo: enquanto os gêneros sé-
rios se comprometiam com a preservação do passado, baseando-se na
lenda, o cômico-sério se colocava a serviço da vida, fundando-se na
experiência e na fantasia viva. O cômico-sério só recorria à lenda para
dar-lhe um tratamento crítico, parodiando-a na maioria das vezes. E
diferentemente da unidade estilística que caracterizava os gêneros sé-
rios, os gêneros carnavalizados se singularizavam pela pluralidade de
estilos e pela variedade de vozes, fundindo o sublime com o vulgar, o
sério com o cômico, e exibindo uma narrativa politonal (Bakhtin,
1981:92-3).
Dentre os gêneros cômico-sérios, o que mais interessa a esta dis-
cussão é a sátira menipéia,68 cujas origens remontam ao folclore car-
navalesco. Ela teria exercido, segundo Bakhtin, grande influência na li-
teratura cristã antiga e na bizantina, assim como teria se desenvolvido,
sob diversas variantes, em épocas posteriores, chegando até a moder-
nidade. Bakhtin ressalta o aspecto protéico desse gênero, o qual lhe
dava condições de penetrar em outros gêneros. Essa qualidade poli-
morfa da sátira menipéia a aproxima da estética musical dos anos 20 e
30, no Brasil, em sua versão popular, que se realiza com a coexistência
de várias linguagens — sublime e vulgar, rural e urbana, monumental e
simples — e de várias vozes (Bakhtin, 1981).
Há ainda um ponto que gostaria de rediscutir, relativo à incor-
poração, por alguns compositores populares, de padrões fornecidos
pela cultura erudita, como o romântico e o parnasiano. Esse procedi-
mento, como vimos, leva-os a ornamentar a linguagem musical com
letras difíceis e empoladas e com interpretações plangentes, tanto vo-

68 A denominação advém de Menipo de Gadare, filósofo do século III que deu forma

clássica a esse tipo de sátira (Bakhtin, 1981).


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A cidade fragmen tada 1 73

cais quanto instrumentais. Esses autores aspiram a um estilo poético


erudito e, impossibilitados de se atualizarem sobre os rumos desse
tipo de estética, acabam desenvolvendo um arremedo de classicismo
fora de época. Este é o caso de Catulo, que exibe esse tipo de sensi-
bilidade desde o início do século; de Cartola, que se mostra influen-
ciado, no início de sua carreira, pela linguagem floreada de Olavo
Bilac e de outros poetas parnasianos; de Ari Barroso, que utiliza for-
mas difíceis na confecção da letra de Aquarela do Brasil, e de vários
outros músicos. E não seria possível deixar de citar Chão de estrelas,
canção composta em 1937 por Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, que
leva esse ideal de rebuscamento às últimas conseqüências. Embora se
deva tomar uma série de cuidados ao comparar estéticas configura-
das em momentos históricos muito remotos com formas de arte de-
senvolvidas mais recentemente, acredito que se poderia tomar em-
prestado alguns modelos fornecidos por Bakhtin e utilizá-los um
pouco para refletir sobre a sensibilidade exibida por esses composi-
tores populares, a meio caminho entre o popular e uma arte preten-
samente erudita. Em sua análise de Rabelais, Bakhtin examina, por
exemplo, as diferenças que se esboçaram na Renascença entre os ideais
estéticos do realismo grotesco, que se orientavam pelo inacaba-
mento, e os que se formaram a partir da retomada dos princípios da
Antigüidade clássica, fundados na idéia de completude, perfeição e
acabamento. As imagens que aparecem, por exemplo, na obra de Ra-
belais são ambivalentes e contraditórias, contrariando a percepção
da estética clássica de uma vida cotidiana preestabelecida e completa.
Dito de outro modo, as imagens do realismo grotesco são carregadas
de historicidade, o que lhe permite trabalhar com elementos tradicio-
nais — como “o coito, a gravidez, o parto, o crescimento corporal, a
velhice, a desagregação e o despedaçamento corporal etc.” — no sen-
tido da incompletude. Assim, do ponto de vista clássico, que lida com
a idéia de um “corpo humano perfeito e em plena maturidade, depu-
rado das escórias do nascimento e do desenvolvimento”, as imagens
do realismo grotesco são “monstruosas e horrendas” (Bakhtin,
1987b:22).
Retomando a questão da música popular, a análise de Bakhtin
nos sugere que a opção dos compositores citados pelo sublime e por
formas que se orientam por um ideal clássico de beleza e perfeição re-
vela, num certo sentido, uma recusa à percepção histórica do mundo.
Esses artistas fazem portanto um vivo contraste com os autores das mar-
chas e sambas analisados, como Noel, Lamartine e o próprio Ari, que,
capitulo3 final.fm Page 174 Thursday, December 13, 2007 2:03 PM

1 74 O vi olão azu l

ao se inteirarem com o mundo, ou com a cidade, assumem em sua es-


tética a transitoriedade do cotidiano. É a partir dessa perspectiva que
combinam o humilde com o “baixo”.
O cenário da música popular do período é marcado pela polifo-
nia, com os compositores se aventurando por diversos campos e ex-
perimentando diferentes dicções. Essa multiplicidade leva a arranjos or-
questrais mais complexos, que tendem para o excesso, com farta
utilização de cordas e metais, o que conduz a uma certa padronização:
qualquer que seja o gênero musical, a letra, o registro almejado pelo
compositor, os arranjos orquestrais pesados têm sempre o efeito de
abolir as diferenças. Há uma tendência, a partir do final dos anos 20, de
substituir os “regionais” — formações musicais constituídas de poucos
músicos e instrumentos — por grandes orquestras. E tende-se a imple-
mentar, no plano do acompanhamento musical, um tipo de estética
que se caracteriza basicamente pelo excesso. Pode-se dizer que as ex-
periências melódicas e orquestrais da nossa música popular muito se
devem aos ritmos norte-americanos que entraram no país a partir do
início do século, como o foxtrote, o charleston, o ragtime, o one-step,
o black bottom e a valsa americana (Valença, 1989/90). Em estudo
sobre a penetração do jazz no Brasil, Carlos Calado (1990) chama a
atenção para o fato de que a formação instrumental do jazz-band que
aqui se implantou teria sido mais importante do que o gênero musical
em si. O modelo viria do jazz New Orleans e dixieland, com seus trom-
petes ou pistões, clarinetes, trombones, saxofones, violinos, banjos, pia-
nos e seções rítmicas. Almirante (1963:41), ao descrever o período
1923-26, refere-se à intensa modificação no movimento melódico da
música popular, ressaltando a influência dos instrumentos do jazz-
band na nossa orquestração, desde os “trompetes com varas de quase
dois metros” a “esquisitos apetrechos”, como panelas, frigideiras, latas,
buzinas etc. Hermano Vianna Jr. (1994:167-8) argumenta que esse fas-
cínio pela música norte-americana já teria acometido Os Oito Batutas,
que, após viagem a Paris em 1922, encantaram-se pelo jazz, o que mo-
tivou Arnaldo Guinle a presentear Pixinguinha com um saxofone. E
Mozart de Araújo chega a dizer que o choro “é a orquestra típica bra-
sileira que corresponde ao jazz americano”. E complementa (1994:87):

Partindo do “terno” — flauta, violão e cavaquinho — e passando pelos


grupos mais numerosos chamados de “pau e corda”, pois que as flautas
eram de ébano, não tardaria que alguns instrumentos da banda se incor-
porassem ao choro, resultando daí as mais diversas formações instru-
capitulo3 final.fm Page 175 Thursday, December 13, 2007 2:03 PM

A cidade fragmen tada 1 75

mentais. Na generalidade os choros passaram a ser constituídos de flauta,


pistom (trompete), trombone, saxofone, clarineta ou bandolim, como so-
listas; de oficleide, bombardino ou bombardão, na marcação dos baixos
e no contracanto; além de instrumentos de “centro” — violão, cavaqui-
nho, bandola — e de percussão — ganzá, pandeiro.

Talvez nenhum outro gênero contribua mais que o choro para a


consolidação do excesso na música popular, pois sua riqueza, segun-
do Araújo (1994:186), consiste “não só na diversidade de formas e gê-
neros, como na diversidade de ritmos, não apenas na variedade de ins-
trumentos musicais que emprega, como no virtuosismo de sua exe-
cução, onde reponta como característica fundamental a capacidade de
improvisação”.
Da geração de compositores que se projetam no final dos anos
20, duas figuras se mostram bastante familiarizadas com os ritmos
norte-americanos: Ari Barroso e Lamartine Babo. Ari sobrevivia no
Rio de Janeiro no início da década de 20 tocando nos cinemas Íris e
Odeon, fazendo fundo musical de filmes mudos. Começou depois a
integrar grandes orquestras, como a Trianon, a American Jazz e a Jazz
Band. De acordo com Sérgio Cabral, Ari Barroso e Custódio Mesqui-
ta,69 com suas harmonias requintadas, teriam disputado “um lugar
que imaginavam existir para um ‘Gershwin brasileiro'”.70 Segundo
matéria de O Globo, de 17-2-1974, Ari teria produzido em 1929 — só
para a peça teatral Laranja da China, de Luiz Peixoto — seis foxtro-
tes.
Lamartine Babo já estaria compondo foxtrotes desde 1915, quan-
do participou de concurso musical promovido pelo Colégio São Bento,
para o qual criou Pandoram utilizando-se somente de três notas (Va-
lença, 1981:28). Mais tarde, por volta de 1928, dedicou dois foxes à can-
didata brasileira ao concurso de Miss Universo, ambos com o título Miss
Brasil. Nos dois casos atuou como letrista.71 Mas sua composição mais
conhecida no gênero é Canção para inglês ver, de 1932, qualificada por
Zuza Homem de Mello (1982:2) como uma das peças de Lamartine

69 Custódio Mesquita (1910-45) foi compositor, instrumentista, regente e ator. Estu-


dou com Luciano Gallet no Instituto Nacional de Música (Enciclopédia da música
brasileira, 1977).
70 Ver Cabral, s.d.
71 Segundo Valença (1981:49), coube a Aristeu Motta a música do fox-canção e a Au-

gusto Vasseur a do fox-marcha.


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1 76 O vi olão azu l

“onde o nonsense atinge um nível jamais alcançado por qualquer outro


compositor brasileiro”. Essa onda norte-americana tem continuidade
nos anos 30, bastante impulsionada pelo cinema falado que tem início
nessa década, em que se destaca a filmografia produzida nos Estados
Unidos.72
Os ritmos norte-americanos contribuem, portanto, para a confor-
mação da estética do excesso em nossa música popular. A influência do
jazz-band sobre os músicos brasileiros concorre principalmente para
dotar nossos arranjos daquela profusão de sopros e metais caracterís-
tica das orquestrações norte-americanas. Sérgio Cabral (1990:187) rela-
ta, a propósito, que em 1933 tenta-se criar o que seria uma espécie de
orquestra típica brasileira, com um som tão vigoroso quanto o dos
norte-americanos. Essa orquestra chega a fazer uma apresentação na
Rádio Clube do Brasil, sob a regência de Pixinguinha:

Era uma idéia de Orestes Barbosa, endossada pelo cantor Mário Reis, que
se valeu de seus conhecimentos com integrantes do governo Getúlio Var-
gas para levar dois ministros para assistirem, pessoalmente, à exibição da
orquestra. Mas a idéia não foi adiante. Pixinguinha era [...] o nome mais
indicado para conduzir aquela orquestra, pois, além dos conhecimentos
teóricos de música, tinha uma extraordinária vivência como instrumen-
tista de choro, gênero que pretendeu enriquecer de várias maneiras, in-
clusive com arranjos audaciosos. Chegou a ser acusado de andar “influen-
ciado pelo ritmo e pela melodia de jazz ”, segundo escreveu Cruz Cor-
deiro, na revista Phono-Arte, em novembro de 1929, ao comentar a sua
gravação de Carinhoso. Mas a influência do jazz apontada pelo crítico
não passava de efeitos de instrumentos de sopro que Pixinguinha estava
experimentando e que seriam muito usados nos arranjos que faria na Vic-
tor, quando passou a fazer as orquestrações da gravadora.

A gravadora Victor Talking Machine of Brazil, instalada no país


em novembro de 1929, torna-se desde o início promotora de arranjos
inovadores para a música popular. Muda-se a concepção de acompa-
nhamento musical, passando-se a valorizar orquestrações exuberantes,
e não mais a simplicidade que vigorava até então. As formações pe-
quenas de instrumentos, que constituíam os “regionais” predominan-
tes até o momento, são substituídas pelo padrão sinfônico, para o qual
concorrem os mais diversos tipos de cordas, metais, teclados e percus-

72 Ver Prado, 1989/90.


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A cidade fragmen tada 1 77

sões. Bastante afinado com esse registro, Pixinguinha é contratado


nesse mesmo ano pela Victor, passando a orquestrar grande parte dos
discos carnavalescos lançados pela gravadora. O tipo de arranjo criado
por ele realça o tom carnavalesco das músicas, o que muito contribui
para a repercussão popular das composições. Pixinguinha organizou
mais tarde (em 1932), também na Victor, a orquestra Diabos do Céu,
que acompanhou vários compositores, e atuou também como regente
e arranjador na orquestra da Columbia.73
Radamés Gnattali, operando permanentemente no registro do
excesso, promoveu, talvez mais ainda que Pixinguinha, uma verdadei-
ra revolução nos arranjos musicais. Também contratado pela Victor, en-
carregou-se da função de orquestrador permanente da gravadora a par-
tir de 1935. No ano seguinte, assumiu na recém-inaugurada Rádio
Nacional — onde atuou durante 30 anos, desenvolvendo tanto a mú-
sica erudita quanto a popular — inúmeras funções, como as de pianis-
ta, recitalista, solista de orquestra, regente, membro de conjunto de câ-
mara, compositor e arranjador.74
Algumas orquestrações de Radamés tornaram-se famosas, como
as de 1937 para os choros Carinhoso (com letra de João de Barro) e
Rosa, de Pixinguinha, gravados por Orlando Silva, e as de 1938 para as
marchas A jardineira, de Benedito Lacerda, e Meu consolo é você, de
Nássara e Roberto Martins. Segundo Sérgio Cabral (1990), utilizaram-se
no arranjo de Carinhoso violinos, violas e violoncelos. Quanto às duas
marchas, consta que Radamés, ao orquestrá-las com três saxofones e
flauta, promoveu uma inovação no acompanhamento instrumental de
discos carnavalescos. E também como Pixinguinha, Radamés, a convi-
te de João de Barro (Braguinha), então diretor artístico da Columbia, in-
gressa nesta gravadora em 1938, onde permanece até 1943 realizando
várias orquestrações.75
As transformações promovidas por Radamés — um músico de
formação erudita76 — na música popular são atestadas por Bide em de-

73
Ver Enciclopédia da música brasileira, 1977.
74 Ver Enciclopédia da música brasileira, 1977:313.
75 Ver Enciclopédia da música brasileira, 1977:313.
76 A despeito de sua grande incursão pela música popular, Radamés nunca deixou de

compor no registro erudito, atividade para a qual se formou ao longo de muitos anos.
Assim, atuou nas duas áreas ao mesmo tempo: “como compositor de música clássica
e concertista e como instrumentista e arranjador de música popular” (Enciclopédia da
música brasileira, 1977).
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1 78 O vi olão azu l

poimento para o Museu da Imagem e do Som de 21-3-1968, em que ele


diz que as primeiras orquestrações da Rádio Nacional, a cargo de Ra-
damés, conferiam “um desenho de ritmo diferente” à batida original do
samba. Se esse procedimento já era comum nos estúdios, coube a Ra-
damés, segundo Bide, promover essa alteração no ritmo original de
maneira mais criativa. Bide cita como exemplo o arranjo de Radamés
para Jura — composição de Sinhô interpretada por Mário Reis e grava-
da pela Continental em 1928 —, que teria dado “vida ao samba”. Bide
qualifica os sambas de Sinhô de “quadrados”, “amaxixados”, muito di-
ferentes do ritmo que se desenvolvia no Estácio. Assim, o que “enfei-
tava” as músicas de Sinhô eram os arranjos de Radamés.
Luiz Carlos Saroldi e Sonia Virginia Moreira (1984:20) afirmam
que Radamés deu uma “outra moldura” aos cantores brasileiros, antes
limitados pela extrema simplicidade dos arranjos regionais. O procedi-
mento comum à época seria os instrumentos de sopro desenharem a
melodia, enquanto a percussão se limitaria a cadenciar as composi-
ções. Luciano Perrone, um dos colaboradores de Radamés, teria suge-
rido a ele mudar a função dos instrumentos de sopro, fazendo com que
os metais se encarregassem da parte rítmica.
Uma das criações mais conhecidas de Radamés é a orquestração
original de Aquarela do Brasil. Não se limitando ao arranjo, ele se ocupa
também da introdução que ajudou a consagrar a música de Ari Barroso.
Radamés concebe uma instrumentação exuberante para Aquarela do
Brasil; numa determinada entrada do tema, por exemplo, substituem-se
os contrabaixos por cinco saxofones (Cabral, 1990:188). Com Aquarela
do Brasil, em que se inaugura o procedimento de utilizar instrumentos
de sopro no samba, Radamés se compromete de vez com a estética do
excesso. Assim, já numa perspectiva nacionalista, Radamés dá continui-
dade à tradição dos chorões, que, tal como os instrumentistas do jazz-
band, valorizam as grandes orquestrações. O programa Curiosidades
Musicais, de Almirante, transmitido pela Rádio Nacional em 27-11-1939,
tematiza a interferência de Radamés na música popular:

Hoje, queremos mostrar toda a arte que pode haver num arranjo de sam-
ba. O samba, esse ritmo que tem sido injustamente combatido por alguns
críticos esnobes que só vêem valor na música estrangeira, é, como gênero
musical, tão bom ou melhor do que o fox americano, o tango argentino,
a canção napolitana ou a valsa vienense. A questão [...] é que essas mú-
sicas dão a impressão de serem melhores, porque são tratadas musical-
mente de maneira mais elevada do que a nossa canção popular. Tudo se
resume, no entanto, numa questão de roupagem, de apresentação. [...]
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A cidade fragmen tada 1 79

Radamés Gnattali emprega no samba todos os recursos da técnica mu-


sical que têm sido os principais fatores da popularidade da música típica
de outros países.77

Calado (1990:241) lembra que os jazz-bands brasileiros, seguin-


do a tendência norte-americana do final dos anos 20, reforçaram-se
cada vez mais com numerosos instrumentos de sopro, formando-se
grupos de saxofone, trompetes e trombones que acabaram evoluindo
para as big bands.
Pixinguinha, um dos músicos mais influentes do choro, utiliza
bastante o modelo jazzístico para introduzir modificações na música po-
pular brasileira. Tal como Sinhô, Pixinguinha freqüentava a legendária
casa da Tia Ciata e incumbia-se de divulgar a música popular entre as eli-
tes. Projetou-se principalmente como compositor de choros, instrumen-
tista e orquestrador. A partir de sua experiência como músico da orques-
tra do Cine Palais, organizou seu próprio grupo — Os Oito Batutas. Este
conjunto, segundo Mariza Lira (1965:447-52), teria alterado “velhos há-
bitos sociais do Rio”, pois passou a ser contratado para animar as festas
da alta sociedade. Arnaldo Guinle, por exemplo, é sempre evocado
como uma espécie de mecenas quando se fala da trajetória de Pixingui-
nha, pois, além de promover várias exibições dos Batutas em sua pró-
pria casa, ajudou a organizar a excursão do grupo a Paris, em 1922, a
partir da qual Pixinguinha se deixou influenciar pelo jazz.
A atuação de Pixinguinha como arranjador, de acordo com os re-
latos historiográficos, teria dado “alma nova” às gravações empreendi-
das pela Victor a partir de 1931. São bastante representativas as orques-
trações de O teu cabelo não nega e Linda morena, de Lamartine Babo.
Pixinguinha produziu uma obra bastante numerosa, calculada em torno
de 600 peças, em que se destaca sobretudo o samba-choro Carinhoso,
de 1928 (Mariz, 1985).
A incorporação dos ritmos norte-americanos por músicos brasilei-
ros, como Pixinguinha, foi analisada por Júlio Medaglia (1989/90:71), se-
gundo o qual reagiu-se aqui de maneira positiva “às provocações vivas da
cultura musical popular”, apresentando “soluções próprias e originais”:

À forte e rica instrumentalidade jazzística, nós reagimos com os nossos


endiabrados pianeiros — Nazaré, Carolina Cardozo, Tia Amélia, Chiqui-

77 Almirante apud Cabral, 1990:187.


capitulo3 final.fm Page 180 Friday, December 14, 2007 4:55 PM

1 80 O vi olão azu l

nha (esta Scott Joplin de saias) — e demais virtuoses chorões — Pixin-


guinha, Benedito Lacerda, Dilermando e tantos outros. E se, naquele país
do norte, uma infinidade de intérpretes vocais relatava com melancólico
vigor em tom de blues uma realidade social e, com uma inédita e ritmada
alegria, um canto religioso afro-americano, nós aqui, em tom de blague
e sofisticada crônica de costumes — com Noel, Lamartine, Kid Moren-
gueira e outros —, procurávamos não levar a sério a nós mesmos naquela
descontraída nação pré-milagre econômico.

O procedimento incorporativo com relação a diferentes tradições


contribui para que se consolide em nossa música popular a tradição do
excesso. Mas trata-se de um excesso referenciado ao carnaval, ao hu-
mor; o registro monumental, quando utilizado, sofre todas as deforma-
ções parodísticas. Nada mais revelador desse tipo de irreverência do que
a deformação parodística que a marchinha carnavalesca promove no seu
modelo original, a marcha militar (Rangel, 1965). Pode-se utilizar o mes-
mo argumento com relação aos hinos futebolísticos criados por Lamar-
tine Babo para diversos clubes do Rio de Janeiro. Ao contrário do hino
militar — marcial, grave, monumental —, o hino futebolístico de Lamar-
tine, de uma alegria contagiante, lida de maneira lúdica com o próprio
espírito competitivo. Lamartine concorre de maneira peculiar para a es-
tética do excesso na música popular, mostrando muito cuidado na cria-
ção de introduções, principalmente para as marchinhas carnavalescas.
Suetônio Valença (1981:194-5) lembra que a música de carnaval de La-
martine “tinha, sempre e invariavelmente, alguns compassos iniciais de
clarinadas e ritmo que traziam a marca registrada de seu talento”.
A apresentação de Almirante e Carmen Miranda em Recife, em
1932, descrita pelo Correio da Manhã, é bastante representativa desse
espírito humorístico:

[...] Pessoalmente, Carmen Miranda não só encanta pela maviosidade da


voz, como também pela beleza de sua mímica, irresistivelmente graciosa.
E Almirante, que, nos discos, prende pela originalidade das emboladas,
no palco, além de prender, faz rir continuamente pelo humor sadio das
anedotas. [...] Almirante abriu o programa cantando Cabelo branco. É
uma embolada interessantíssima [...]. Seguiram-se Galo garnizé, outra
embolada [...] e Sussuarana, uma paródia que foi bisada. Almirante can-
tou esses números, intercalando-os com anedotas.78

78 Correio da Manhã apud Cabral, 1990:85.


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A cidade fragmen tada 1 81

A saudação de Ascenso Ferreira, poeta pernambucano vincula-


do ao movimento modernista,79 a Carmen Miranda, na abertura desse
mesmo evento, é reveladora do fato de que poetas e músicos popula-
res compartilham um ideal de sociedade carnavalizada:

Carmen Miranda. Nada de Carmens de toreadores, com pontadas de


lanças, castanholas, marradas, punhais... Nidra! Com ela a tragédia foi
morta pelo bom humor; a tristeza nativa mudou-se em festa de batuques
e bombos, ingonos, maracás... E ela, triunfalmente, empolga a alma da
gente, convidando-nos a ser felizes [...] (apud Cabral, 1990:87).

A d i tad or a sor r i d en te d o samba


Não é só no que se refere à questão dos arranjos que fica evi-
dente — através do excesso — a coexistência de vários estilos. A
mesma questão reaparece, até com mais força, numa cantora como
Carmen Miranda. Ao contrário da performance intimista de Mário
Reis, Carmen Miranda surge no cenário dos anos 20 recorrendo ao
excesso, construindo uma persona associada à alegria e à vitalidade
e desenvolvendo uma forma ruidosa de interpretar. Martha Gil-Mon-
tero (1989:63), biógrafa da cantora, mostra como ela, ainda Maria do
Carmo, em meados dos anos 20, vai inventando “pacientemente” a
figura de Carmen Miranda, assim que ingressa na vida artística. No
início, a moda baiana de Carmen Miranda seria ridicularizada; já em
1933 usava “uma roupa ousada que expunha a nudez do estôma-
go”, considerada “vulgar e deselegante”. Mas a incorporação defini-
tiva da Bahia a sua persona só acontece em 1938, quando Carmen
interpreta O que é que a baiana tem?, de Dorival Caymmi, no filme
Banana da terra, produzido pelo americano Wallace Downey.
Construindo a imagem da baiana de acordo com a letra da canção de
Caymmi, a cantora usa “um torso de seda, brincos de ouro, saia en-
gomada, sandálias enfeitadas, braceletes e balangandãs”. E segundo
Gil-Montero (1989:62), a partir daí Carmen não mais abandona a
imagem baiana, passando a adotar os trajes, os “gestos sedutores” e
a “alegria tropical”.

79
Ascenso Ferreira (1895-1965), poeta pernambucano, “integrou-se ao movimento
modernista (1922), grupo da Revista do Norte, que lançou Catimbó, em 1927” (La-
rousse Cultural. São Paulo, Universo, 1988. p. 317).
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1 82 O vi olão azu l

Aloysio de Oliveira (1982:72-3) diz que Carmen Miranda mante-


ve a imagem da baiana nos Estados Unidos a partir de 1939. Segundo
Aloysio, o espetáculo da cantora naquele país com o Bando da Lua,
conjunto do qual ele participava, consagrou-a definitivamente junto ao
público norte-americano, ao ponto de Carmen lançar moda:

Uma das mais importantes lojas de Nova York, o Sacks Fifth Avenue, de-
dicou todas as suas vitrines aos lançamentos da moda baseada na baiana
Carmen. Os manequins das vitrines tinham o seu rosto e os seus gestos.
[...] As sapatarias exibiam os mesmos tipos de sapatos que ela usava, de
sola e saltos bem altos, que havia criado para compensar a sua estatura.
E as joalherias passaram a criar pulseiras e colares de fantasia à la ba-
langandans. Caymmi nunca poderia ter imaginado que a letra do O que
é que a baiana tem viria a ser exposta nas vitrines da 5ª Avenida.

A estética excessiva de Carmen Miranda também é cuidadosa-


mente construída. A cantora não se limita a escolher o repertório, preo-
cupando-se além disso em selecionar os músicos e em opinar sobre o
acompanhamento musical. É assim que ela passa a contar, desde o iní-
cio de suas gravações na Victor, com a orquestra regida por Pixingui-
nha e com os arranjos exuberantes criados pelo compositor. E a partir
de 1934, com a sua primeira turnê a Buenos Aires, Carmen forma uma
duradoura parceria com o Bando da Lua, conjunto musical carioca que
contava, entre outros integrantes menos conhecidos, com Aloysio de
Oliveira.
Carmen grava seu primeiro disco em 1929, mas é em 1930, quan-
do interpreta Taí, composição de Joubert de Carvalho, que se torna re-
almente conhecida. Passa então, segundo Gil-Montero (1989:38), a ser
“a mais famosa artista de discos na década de 30”. Em 1932, quando
entra em contato com Assis Valente e começa a gravar suas músicas, ela
muda de estilo, deixando de lado as marchinhas e dedicando-se mais à
interpretação de sambas.
Sua voz também é das mais irradiadas no país na década de 30,
sobretudo pela Rádio Mayrink Veiga. Já em 1933 César Ladeira, princi-
pal locutor da Mayrink, a batiza de Ditadora Sorridente do Samba. Um
ano depois, o mesmo locutor a intitula de A Pequena Notável.80 Parece
que não é por acaso que César Ladeira vê semelhanças nas represen-

80 Ver Gil-Montero, 1989:43.


capitulo3 final.fm Page 183 Friday, December 14, 2007 4:55 PM

A cidade fragmen tada 1 83

tações de Carmen Miranda e de Getúlio Vargas; o presidente, um “pe-


queno notável” à sua maneira, sem dúvida encarna a figura do “ditador
sorridente”. Martha Gil-Montero observa que a vitalidade e a alegria da
cantora combinam de maneira perfeita com o “sorriso carismático” de
Vargas e que, conscientemente ou não, ela em muito teria contribuído
para a propaganda de seu governo. Gil-Montero lembra que Carmen se
encontrava em turnê em Buenos Aires quando Vargas, em 1935, visi-
tava o presidente argentino. Esta coincidência teria favorecido a trans-
missão de um programa propagandístico do Brasil pela Rádio El Mundo
de Buenos Aires. E de acordo com o comentário de César Ladeira — lo-
cutor oficial da comitiva de Vargas —, “havia dois nomes brasileiríssi-
mos, campeões de popularidade e da simpatia argentina pelo nosso
país. Eram Getúlio Vargas e Carmen Miranda” (Gil-Montero, 1989:77-
80).
A interpretação de Carmen Miranda tende à exuberância, ao exa-
gero, com uso de ênfases vocais, gesticulação expressiva e uma profu-
são de adereços que a colocam na fronteira do grotesco; sob muitos as-
pectos, sua persona é uma caricatura da mulher, imagem de uma
feminilidade levada às raias do absurdo, o que explica sua popularida-
de como ícone, a partir do início dos anos 70, entre os homossexuais,
que a elegem representante máximo da estética camp. De fato, nada
mais próximo da sensibilidade camp — cuja essência, segundo Susan
Sontag, é o amor pelo antinatural, pelo artifício e pelo exagero — que a
estética e a persona de Carmen Miranda. Como nada no estado natural
pode ser campy, a maioria dos objetos campy são urbanos. Camp é
então uma visão do mundo estilizada, que se manifesta ao assumir o
gosto pelo exagero, pelo off, pelo não-autêntico, ou fake. E também é
importante observar que, segundo Sontag, o camp é fundamentalmen-
te anti-sério, antitrágico e jocoso.81
Nada poderia ser mais diferente do registro intimista, cool, de
Mário Reis; enquanto Carmen articula as palavras com uma supera-
bundância de meneios de toda a espécie, Mário canta como se esti-
vesse falando. No entanto, ambos os intérpretes, cada um a seu
modo, desenvolvem uma linguagem carnavalesca e humorística. O
excesso, no caso de Carmen, chega ao humor através de um proce-
dimento autoparodístico, como se ela se divertisse com o ato de in-
corporar extravagâncias à própria imagem; em Mário, a simplicidade

81 Sontag, 1983:108.
capitulo3 final.fm Page 184 Friday, December 14, 2007 4:55 PM

1 84 O vi olão azu l

e a contenção irônica do dândi acabam tendo efeito semelhante, na


medida em que o intérprete dá a impressão de não levar a sério o
texto da letra. Não é por acaso, portanto, que Carmen Miranda e
Mário Reis fazem dupla em algumas gravações, como em Chegou a
hora da fogueira (1933), e em Isto é lá com Santo Antônio (1934),
ambas de Lamartine Babo. Também não é sem razão que Carmen se
torna a grande estrela dos filmes carnavalescos, nos quais sempre
aparece cantando, como Carnaval de 1932 (semidocumentário), A
voz do carnaval (1933), Alô, alô Brasil (1935), Estudantes (1935, em
que chega a atuar como atriz), Alô, alô carnaval (1936) e Banana da
terra (1939). Observa-se que o repertório de Carmen Miranda nos
anos 30 apresenta uma certa homogeneidade, uma vez que as com-
posições que interpreta têm sempre um teor humorístico, ou mesmo
satírico. É o caso, por exemplo, de várias músicas de Assis Valente
gravadas pela cantora, como Minha embaixada chegou, Good-bye,
boy, e de composições de outros autores, como Lamartine Babo, Ari
Barroso e Josué de Barros.
Mas nunca é demais observar, considerando os três intérpretes
em questão — Mário Reis, Chico Alves e Carmen Miranda —, que se a
introdução do microfone na música popular contribuiu em muito para
o desenvolvimento de uma estética mais intimista e menos operística,
próxima do ideal de simplicidade, ela não criou um padrão hegemô-
nico. Mário Reis aderiu de imediato à nova maneira de colocar a voz,
dando continuidade à tradição inaugurada por Sinhô. Carmen Miranda
também não ficou imune à inovação tecnológica. Consta que a cantora
teria começado sua carreira imitando Araci Côrtes, famosa vedete do tea-
tro de revistas que, como toda cantora de palco, sem microfone, tinha
que usar de todos os recursos vocais para poder ser ouvida pelo pú-
blico. Com o passar dos anos, porém, e principalmente a partir dos
anos 30, Carmen acabou trocando o registro agudo de soprano pelo de
mezzo (Gil-Montero, 1989). Mas essa mudança de registro em nenhum
momento implicou uma alteração em sua persona e em sua represen-
tação performática. Quanto a Chico Alves, o uso do microfone não lhe
provocou mudanças substanciais; apenas ampliou-lhe as possibilida-
des, permitindo-lhe, em determinados momentos, atuar de forma dife-
rente, como nas marchinhas carnavalescas que gravou sozinho ou com
Mário Reis. Dentre os intérpretes de sua geração, Chico foi talvez o que
mais deu continuidade ao estilo de Vicente Celestino (1894-1968), que
chegou a representar papéis de personagens operísticos, como o Ra-
damés de Aída.
capitulo3 final.fm Page 185 Friday, December 14, 2007 4:55 PM

A cidade fragmen tada 1 85

A representação tropicalista da cantora, com seus turbantes e


seus remelexos, invoca a imagem tanto de uma mulher sensual, im-
previsível e exuberante, quanto a de uma natureza e uma cultura tin-
gidas pelo excesso. Se Carmen passa a ser identificada, principalmen-
te a partir do final da década de 30, com figuras totalizantes e
estereotipadas, como a “mulher brasileira”, ou a “latino-americana”,
não é exatamente assim que ela constrói sua imagem nos anos 20 e
30. Em uma cena, por exemplo, do filme Alô, alô carnaval, de Walla-
ce Downey, de 1936, Carmen e Aurora Miranda cantam juntas Can-
tores do rádio, de Lamartine Babo. A maneira de se trajarem e se apre-
sentarem é uma citação explícita dos filmes de Marlene Dietrich,
usando ambas “cintilantes smokings de lamê e cartolas” (Gil-Montero,
1989:57). Sem dúvida, fazem uma adaptação tropical desse estilo ci-
nematográfico alemão dos anos 30. É recorrente a aparição de Mar-
lene Dietrich no cinema entoando canções de cabaré e representan-
do uma mulher sensual, porém masculinizada, quase andrógina.
Também não se notam grandes alterações na expressão facial da atriz
alemã, que mantém um ar frio e distanciado. Carmen e Aurora brin-
cam com este modelo, como se o uso de roupas masculinas só refor-
çasse a sua feminilidade. A aparência cool de Marlene Dietrich é subs-
tituída por sorrisos rasgados, e o tom melancólico e ao mesmo tempo
irônico da chanson é modificado pelo clima carnavalesco e ao mesmo
tempo lírico da marchinha de Lamartine. Quando, ainda no Brasil,
Carmen recorre ao perfil da baiana para criar sua persona artística, ela
o faz exibindo uma performance divertida, atuando muito mais como
uma espécie de emissária do desacato e do prazer do que propria-
mente como significante denso e grave da nacionalidade. O próprio
sentido de símbolo nacional, na verdade, evoca uma representação
que procura dar forma unitária a uma realidade que tende a ser dife-
renciada, complexa. Ao contrário, portanto, de uma interpretação de
senso comum que vê Carmen Miranda evocando a brasilidade por
todos os poros, prefiro entender sua estética como fragmentária. Não
me refiro, porém, a uma porção em busca de um todo perdido; trata-
se de um fragmento que tem vida própria, tal como o que se utiliza no
processo de colagem.
Carmen, ao lidar com o excesso, parece se dar conta de que o
kitsch é uma nova possibilidade de construção estética tropicalista. Nin-
guém, à época, se mostrou mais familiarizado do que ela com os novos
instrumentos introduzidos pela mídia, assim como com a maneira ideal
de explorá-los para divulgar a própria imagem. Carmen assumiu radi-
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1 86 O vi olão azu l

calmente as regras do jogo, recorrendo aos procedimentos inerentes ao


mundo da cultura de massa, como a banalização e a repetição, mas
conseguiu fazê-lo de maneira criativa. Criou uma persona alegre e ao
mesmo tempo irônica, utilizando imitações e réplicas de um repertório
popular associado ao extraordinário, à fantasia e ao extracotidiano. Ao
invés de optar por um estilo interpretativo, assumindo um dos pólos de
uma pretensa oposição entre Mário Reis e Francisco Alves, ela aceita
tanto um quanto outro, devorando-os e recriando-os.
À sua maneira — polifônica — e sujeita às contingências do tra-
balho de intérprete popular, Carmen realiza, num certo sentido, a pro-
posta antropofágica de Oswald de Andrade. Quanto ao poeta, sua in-
serção no domínio erudito não o impediu de utilizar, num procedi-
mento próximo ao da colagem, elementos kitsch inscritos na nossa pró-
pria linguagem, inclusive a oficial. O que os diferencia, além do fato de
atuarem em domínios diferentes, é a maneira com que lidam com o
componente excessivo da tradição cultural. Carmen, mesmo ironizan-
do, tende a aceitar e a incorporar esse repertório de maneira incondi-
cional, utilizando-o inclusive na construção de sua persona. E Carmen
seleciona seus adereços e repertórios sem compromisso com um pro-
jeto harmônico, ao contrário de Oswald, que mesmo estabelecendo cli-
vagens dentro do modernismo opera do ponto de vista de membro de
um movimento.
Mas o fato é que nossos artistas — eruditos e populares — se
permitem uma poética própria, menos comprometida com a estrita
objetividade e com a precisão extrema que se vêem nos exemplos
franceses citados. No caso da conversação, uma concepção de har-
monia perfeita orienta a forma francesa, protegendo-a do concurso
do excesso em quaisquer de suas manifestações: a obscuridade, o
peso, a ênfase, a técnica e a afetação (Fumaroli, 1994). Esse tipo de
atitude clássica não vigorou no modernismo literário brasileiro. Ma-
nuel Bandeira, sem dúvida, adota um tom humilde, porém compatí-
vel com o sublime. Gilberto Freyre, como vimos, embora adote o des-
pojamento da linguagem anglo-saxã, critica neste modelo o excesso
de concisão, a esterilidade de um mundo que se pauta pelo preto-e-
branco, mostrando uma sensibilidade que rejeita a disciplina purita-
na.
Em História do Brasil, Oswald, num procedimento vanguardista,
parodia a carta de Pero Vaz de Caminha, cujo estilo excessivo remete à
pujança da nova terra, como se vê em Gandavo:
capitulo3 final.fm Page 187 Friday, December 14, 2007 4:55 PM

A cidade fragmen tada 1 87

riquezas naturais

Muitos metaes pepinos romans e figos


De muitas castas
Cidras limões e laranjas
Uma infinidade
Muitas cannas daçucre
Infinito algodam
Também há muito páo brasil
Nestas capitanias
(Andrade, O. de, 1966:74).

O próprio clown de Mário de Andrade, motivado no cotidiano


circense, remete ao arlequinal excessivo, multicolorido, histérico. No
“Prefácio interessantíssimo”, Mário proclama o excesso em manifesto:

Que Arte não seja porém limpar versos de exageros coloridos. Exagero:
símbolo sempre novo da vida como do sonho. Por ele vida e sonho se ir-
manam. E, consciente, não é defeito, mas meio legítimo de expressão. [...]
(Andrade, M. de, 1966:18).

A interjeição “arlequinal!” que pontua tantos poemas de Pauli-


céia desvairada aponta para o excesso e a heterogeneidade como va-
lores positivos. São Paulo é uma “cidade arlequinal”, um “traje de lo-
sangos” que é ao mesmo tempo “Paris”, “minha Londres de neblinas
finas” e “palco de bailados russos”; e o poeta-clown é “um tupi tangen-
do um alaúde” (Andrade, M. de, 1966:32-46). A cidade é o lugar de
todos os lugares, convergência de todos os contrários, e é justamente
no que ela tem de desmedido que reside sua beleza. O poeta, longe de
ser o artesão que trabalha sua matéria-prima de modo objetivo, é arle-
quim — misto de palhaço e apaixonado, figura lacrimosa que provoca
o riso — a contemplar a abundância do mundo urbano e moderno com
um arrebatamento sentimental que, no entanto, não deixa de conter
um toque de ironia.
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4
À gu i sa d e con clu são:
tími d o e espalh afatoso

Sou tímido e espalhafatoso


torre traçada por Gaudí
Caetano Veloso, Vaca profana

O en gen h ei r o e o br i coleu r
Em análise da música do período modernista, José Miguel Wisnik
desenvolve um aspecto que merece ser aprofundado. O autor distingue,
na tradição européia do modernismo, dois procedimentos estéticos dife-
rentes: um rigor construtivo, como o de Webern,82 que recorre ao mito do
engenheiro — na análise de Jacques Derrida sobre O pensamento selva-
gem, de Lévi-Strauss, “um sujeito que fosse a origem absoluta do seu pró-
prio discurso e o construísse ‘com todas as peças’” —; e o recurso à brico-
lagem, tão caro a Stravinski, Villa-Lobos e a outros compositores da época.

82 Wisnik (1983) refere-se ao compositor Anton Webern (1883-1945), discípulo de


Schönberg e seu continuador na composição atonal. Paul Griffiths refere-se a Webern
como um músico obcecado pela concisão: “Sempre o contrário de um compositor
prolixo [...], ele se sentia incapaz, em 1911-14, de criar peças de duração muito su-
perior a um minuto”. Comenta Griffiths (1994:47-8): “Sua escala de tempo e sua enig-
mática quietude — tão diversas do movimento dinâmico presente em quase todas as
obras atonais de Schönberg — equivalem às do haicai”.
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1 90 O vi olão azu l

Esta classificação de Wisnik nos leva a pensar que o mito do engenheiro


não teve lugar na experiência modernista brasileira, pois tanto os músi-
cos quanto os poetas do movimento tenderam a assumir uma postura an-
tropofágica — semelhante à preconizada por Oswald de Andrade
(1972a) em manifesto —, ajustando-se então ao perfil do bricoleur deli-
neado por Lévi-Strauss: um tipo de produtor que se define pela maneira
incorporativa de realizar suas operações, utilizando sempre os instru-
mentos já disponíveis, ao contrário do engenheiro, que subordina cada
tarefa específica “à obtenção de matérias-primas e de utensílios conce-
bidos e procurados na medida do seu projeto” (Lévi-Strauss, 1989:33).
Tomamos, no entanto, algumas precauções ao lidar com essas ca-
tegorias levantadas por Wisnik — o bricoleur e o engenheiro — , tratan-
do-as metaforicamente, sem o rigor conceitual com que foram construí-
das por Lévi-Strauss. As imagens fortes trazidas à baila por Lévi-Strauss,
como a do caleidoscópio, nos ajudam a pensar na possibilidade moder-
nista de se atingir a modernidade sem recorrer à tábula rasa, procurando-
se, ao contrário, criar o “tipo novo” através de arranjos que atualizam re-
pertórios variados, porém finitos, de nossa tradição cultural (Lévi-Strauss,
1989:52). O que mais nos interessa, nessa discussão, é justamente ressal-
tar o fato de que os músicos e os poetas modernistas, no Brasil, partilha-
vam uma mesma visão do país — a de um universo inesgotável de infor-
mações culturais, tanto arcaicas quanto contemporâneas, tanto regionais
quanto universais. A esta imagem de pujança seguia-se, naturalmente, a
idéia de tentar incorporar a riqueza cultural ao trabalho artístico.
Esse procedimento includente dos modernistas não escapou aos
estudiosos da literatura. Silviano Santiago (1987), por exemplo, obser-
vou que os modernistas brasileiros pautaram sua prática por um imenso
valor conferido a grande parte da tradição, tentando lê-la como novida-
de. De fato, não há como negar que os nossos modernistas, se rejeitaram
a cultura bacharelesca e acadêmica inspirada nos padrões franceses, in-
corporaram grande parte do repertório cultural brasileiro, como demons-
tra a viagem a Minas de Oswald, Mário, Tarsila e Cendrars, à procura do
passado barroco e primitivo. Santiago (1983:25) ressalta esse aspecto do
modernismo, chamando a atenção para o caráter aberto do movimento,
na medida em que se predispunha a absorver as mais variadas manifes-
tações artísticas, inclusive as que contestavam os ideais modernizadores
da Semana de 22. Eduardo Jardim de Moraes, como vimos, também ar-
gumenta que a concepção de ruptura é incompatível com a idéia de mo-
dernidade proposta pelo movimento modernista. Ao invés, portanto, de
se promoverem descontinuidades com relação ao passado, tenta-se
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À g u i sa d e c on cl u são: tím i d o e esp al h a fa toso 1 91

atualizar esse passado em prol da brasilidade. A própria categoria raça


se constitui no pensamento de Mário de Andrade associada ao processo
de tradicionalização, ou seja, se a raça é o conteúdo básico da nacio-
nalidade, é a tradição que lhe confere identidade. Esse projeto de mo-
dernização à brasileira lida com uma dimensão homogeneizadora de
tempo, o que complexifica o problema. Não se trata, por exemplo, de
submeter o presente ao passado, ou vice-versa, mas de constituir uma
temporalidade própria que abole a cronologia, diluindo “no eterno pre-
sente da vida brasileira as marcas da descontinuidade”. Nesta linha de ra-
ciocínio, Mário de Andrade, no Ensaio sobre a música brasileira, confere
grande peso ao “populário” musical; por sua dimensão folclórica, esse
elemento do repertório cultural em muito contribui para a manutenção
da identidade nacional, na medida em que exerce “forte pressão tradicio-
nalizadora”. Em suma, a tradicionalização, como interpreta Moraes
(1983:123-34), “é um processo de anulação das distâncias temporais que
se manifesta no elemento folclórico”.
Talvez Macunaíma seja o caso mais ilustrativo de bricolagem na
literatura modernista, embora Gilda de Mello e Souza, em O tupi e o
alaúde, associe o procedimento de Mário de Andrade muito mais ao
processo criador do músico popular do que à atividade do bricoleur.
Contudo, mantendo a acepção figurativa da palavra e a oposição à ima-
gem do engenheiro, podemos utilizar os próprios argumentos da autora
para demonstrar a postura incorporativa de Mário de Andrade neste ro-
mance-rapsódia. Mello e Souza mostra como Macunaíma se constrói a
partir de uma infinidade de textos preexistentes, “elaborados pela tradi-
ção oral ou escrita, popular ou erudita, européia ou brasileira”. E o mais
surpreendente nesta obra de Mário é a interpenetração dos processos li-
terários e musicais. Mello e Souza argumenta, a propósito, que, em vez
da utilização tradicional de textos literários, Mário de Andrade recorre às
formas básicas da música ocidental, erudita e popular, como o “princí-
pio rapsódico da suíte” e o “princípio da variação”. Ao primeiro princí-
pio corresponderia, por exemplo, o bailado Bumba-meu-boi e ao se-
gundo, o improviso do cantador nordestino. A autora também chama
atenção para o fato de que, quando a música erudita se nutre do reper-
tório popular, utiliza o procedimento da variação.83

83
Mello e Souza, 1979:10-2. O princípio da variação, segundo a autora, consiste em
“repetir uma melodia dada, mudando a cada repetição um ou mais aspectos consti-
tutivos dela, de forma que, apresentando uma fisionomia nova, ela permaneça sem-
pre reconhecível na sua personalidade”.
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1 92 O vi olão azu l

Júlio Valadão Diniz (1995:4-5) registra o procedimento inaugu-


ral de Mário de Andrade de relacionar a música com a literatura, lem-
brando que em várias obras ficcionais do autor encontram-se idéias
provenientes de sua musicologia. Assim, romances “viram rapsódias
(Macunaíma), poemas são transformados em improvisos (Improviso
do rapaz morto), modas (Moda dos quatro rapazes), rondós (Rondó
do tempo presente), acalantos (Acalanto do seringueiro), cocos (Coco
do major), cantigas (Cantiga do aí ), cantadas (As cantadas), canções
(Canção), lundus (Lundu do escritor difícil), toadas (Toada do Pai-
do-Mato), noturnos (Noturno)”. Diniz lembra que, por volta de 1926,
Mário de Andrade teria procurado Pixinguinha à cata de informações
para escrever Macunaíma. Com base nos relatos do músico sobre as
festas e os rituais religiosos africanos na casa da Tia Ciata, que fre-
qüentava habitualmente, Mário escreveu Macumba, sétima variação
de Macunaíma.84
Essa convergência da música e da literatura é também analisada
por outro ângulo, como o da proposta poética de Mário esboçada no
“Prefácio interessantíssimo”, concebida a partir das atualizações musi-
cais. Assim, tanto a poética romântica quanto a parnasiana são equipa-
radas a linhas melódicas “de previsibilidade absoluta, construções for-
mais que apontavam para uma tradição monotônica de seus conteúdos”.
Seguindo esse raciocínio, Mário diz que, se a música moderna se liber-
tou do regime horizontal da melodia adotando o verticalismo polifônico,
também a poesia deveria abandonar “a prática discursiva da sucessivida-
de das palavras e dos versos”, adotando a atitude “de combinação das
palavras em versos simultâneos” (Diniz, 1995:14-5).
Mas não pretendo apenas reafirmar a incidência de um procedi-
mento mais includente em nossa estética modernista, e sim verificar de
que modo nos singularizamos ao adotarmos tal procedimento. Mesmo
porque torna-se difícil, ou mesmo impossível, entender esse procedi-
mento em sua configuração brasileira adotando-se uma perspectiva di-
cotômica, como se tentássemos congelar e reproduzir aqui a vivência
dos modernistas europeus. A antiga disputa desses artistas, por exem-
plo, entre o belo e o útil — redefinida, no cenário modernista, na con-
traposição entre o procedimento lúdico dos dadaístas, surrealistas e ou-
tros, voltados para uma performance escandalosa, e as ações progra-
máticas e mais racionais dos movimentos construtivistas, como as dos

84 Ver Diniz, 1995.


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À g u i sa d e c on cl u são: tím i d o e esp al h a fa toso 1 93

adeptos da Bauhaus, comprometidos com a idéia de revolução ou de


reforma (Argan, 1992) — não se reproduziu aqui da mesma forma. No
que se refere ao caso brasileiro, não poderíamos partir do pressuposto
de que o construtivismo, por definição, incorre na seriedade — ou
então na estrita racionalidade —, porque, dadas as peculiaridades his-
tóricas locais, o modernismo que aqui se instalou caracterizou-se, no
geral, tanto por uma forte disposição construtiva quanto por uma plura-
lidade de modelos.
Silviano Santiago (1977:1-7) observa quanto a Oswald de An-
drade, por exemplo, que seu empenho construtivo não lhe apaga o
perfil lúdico, porque seu projeto utópico, longe de se mostrar exclu-
dente, apropria-se de tudo. Tal como Duchamp, que, ao invés de
propor, à maneira futurista, uma queima das obras do Louvre, tenta
ver essas obras de maneira diferente — uma Mona Lisa de bigodes e
cavanhaque —, Oswald recupera grande parte da tradição para paro-
diá-la.
Davi Arrigucci (1990:57, 103) também argumenta que as solu-
ções dos modernistas brasileiros, extraídas da junção do prosaico com
a técnica, embora apresentem um teor irônico, não são tão negativas
quanto as européias. Aqui, segundo ele, a busca do prosaico significa
muito mais uma atitude de curiosidade para com novos aspectos da
vida brasileira do que propriamente uma crítica aos estereótipos da
vida moderna. Assim, nossos escritores, ao se mobilizarem pelas idéias
tanto de integração nacional quanto de modernização da inteligência,
acabam mudando o sentido da técnica que assimilam, atualizando-o
em função de um teor construtivo. Com relação especificamente a Ma-
nuel Bandeira — cuja poesia analisa em seu livro —, Arrigucci afirma
que o achado estético do poeta é também “o achado de um país, pois
equivalia a tratar esteticamente uma visão do Brasil”. Equipara, então, a
estética de Bandeira à concepção de Oswald do poema pau-brasil:
“forma simplificada, de síntese fulgurante, capaz de fixar, através de
uma drástica redução alegórica, um retrato da contraditória realidade
nacional, apanhada sobretudo na confluência desencontrada de primi-
tivismo e modernismo”.
Annateresa Fabris (1990), a propósito da influência futurista no
Brasil, analisa as adaptações locais ao movimento italiano. Uma das
questões levantadas pela autora, de caráter estético, é a da apropriação
pelos modernistas de procedimentos futuristas, como a colagem, a li-
bertação das palavras nos textos literários, a linguagem programática e
ao mesmo tempo poética dos manifestos e a performance vanguardista
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1 94 O vi olão azu l

na Semana, destacando-se aí a representação combativa de Oswald de


Andrade. Além do inegável legado estético, o futurismo, de acordo com
Fabris, em muito contribui, em torno de 1921/22, para a articulação de
estratégias que conferem visibilidade ao movimento, como as atitudes
escandalosas e de antagonismo para com o público. O que é rejeitado
explicitamente pelos intelectuais brasileiros é a proposta de tábula rasa,
em que a recusa do passado é representada pela destruição de museus
e bibliotecas, assim como não se assume aqui a exaltação do militaris-
mo e da guerra. Para os modernistas brasileiros, a memória é um dado
bastante significativo, lidando-se aqui com a idéia de um “passado re-
descoberto, enraizado numa consciência nacional em fase de elabora-
ção”. Quanto à poesia das máquinas vislumbrada por Marinetti, seria
mais fácil encontrá-la na teoria oswaldiana do homem natural tecnici-
zado do que na obra de Mário de Andrade. Em Macunaíma, por exem-
plo, o universo fabril é tratado negativamente; o romance-rapsódia pro-
jeta uma civilização fundada no “ócio criador”. E como observa
Massimo Canevacci (1993), a proposta futurista de se edificar uma “ci-
vilização das máquinas”, contraposta à idéia de barbárie, é atualizada
pelo modernismo nativo através da imagem de um “futurismo multié-
tnico e multicultural”.
Cria-se aqui, portanto, uma imaginação moderna aberta à idéia
de repetição histórica e pouco condizente com o ethos revolucioná-
rio das vanguardas européias, que dramatizam a idéia de progresso e
o pensamento utópico desenvolvidos no Ocidente a partir do século
XVIII, com sua conseqüente desvalorização do passado e sua fé no mo-
vimento linear e progressivo da história rumo à redenção futura.85 As-
sim, a palavra “invenção”, tão apropriada, segundo Renato Poggioli
(1968:14), para designar a consciência criadora do artista de vanguar-
da, não poderia ser proferida no contexto de nosso modernismo. No
caso brasileiro, a proposta de mudança cultural, em vez de remeter à
idéia de se conceber algo inexistente até então, lida com a noção de
descobrir algo preexistente. Trata-se de um conceito de modernidade
que não descarta, como Nietzsche, o apego à história (concebida como
memória), em nome do ato livre referenciado à vida.86 A metáfora me-
cânica utilizada por Baudelaire — que sentia aversão pelas plantas e
fascínio pela cidade e pelas máquinas — também não se aplica ao

85
Ver Paz, 1984; Calinescu, 1987.
86 Ver Nietzsche, 1985.
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À g u i sa d e c on cl u são: tím i d o e esp al h a fa toso 1 95

nosso ideal de modernidade, mais próximo da visão romântica de arte


como processo orgânico (Calinescu, 1987).
Na tradição do modernismo, o humor muitas vezes se realiza
através da paródia, contrariando portanto uma certa tendência van-
guardista que só admite a confecção de textos compatíveis com a
idéia de uma nova era. A perspectiva crítica de Karl Marx, por exem-
plo, tal como esboçada no preâmbulo tantas vezes citado de O 18
Brumário de Luís Bonaparte, ao condenar a farsa histórica dos acon-
tecimentos de 1848 na França — na medida em que não passariam de
uma imitação da Revolução Francesa —, faz ao mesmo tempo uma
objeção explícita ao procedimento metaliterário. É como se só a tra-
gédia servisse, pelo menos nesse contexto de dominação burguesa,
aos intentos revolucionários, relegando-se à paródia as meras práti-
cas de bufonaria. De maneira semelhante, assim como espera que o
homem livre da propriedade privada e da divisão do trabalho crie
uma nova representação das relações sociais, Marx exige que o ar-
tista, na sociedade que se erige como socialista, crie um texto intei-
ramente novo, sem o menor vínculo com tradições passadas. Ou,
como argumenta Renato Janine Ribeiro (1993:128), a revolução so-
cialista, segundo Marx, deveria buscar “sua poesia no futuro e não
mais nos tempos idos”, como teriam feito os revolucionários france-
ses de 1789, ao se voltarem para a Antigüidade e recorrerem ao neo-
classicismo.
Pode-se perceber uma correspondência entre o movimento fu-
turista (tanto o italiano quanto o russo), em sua fase inicial e utópica, e
o socialismo de meados do século XIX, tal como esboçado por Marx,
quanto à percepção de se estar às vésperas de uma nova era. Marjorie
Perloff lembra, a propósito da versão italiana do futurismo, suas ori-
gens anarco-sindicalistas esquerdistas, seu anticlericalismo, seu antimo-
narquismo e sua oposição à burguesia liberal. E argumenta:

Não foi por coincidência que o manifesto de 1909 de Marinetti foi pu-
blicado primeiro na Itália, na revista esquerdista de Ottavio Dinale, La
Demolizione. Por outro lado, deve-se notar que o jovem Boccioni, cuja
carreira foi abortada pela guerra, era um marxista convicto; que os ar-
tistas Carlo Carrà e Luigi Russolo eram anarquistas e Balla, um socialista
humanitário [...] (Perloff, 1993:81).

Os futuristas italianos, em nome das “palavras em liberdade”,


prescrevem uma fórmula literária compatível com sua visão de moder-
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1 96 O vi olão azu l

nidade, caracterizada pela “nova linguagem de telefones, fonógrafos,


aeroplanos, cinema, o grande jornal”.87 Antonio Gramsci, em artigo de
1921 para L'Ordine Nuovo, intitulado “Marinetti revoluzionario?”, tam-
bém afirma o teor revolucionário do movimento italiano:

[Os futuristas] perceberam aguda e claramente que a nossa era, a era da


grande indústria, da grande cidade proletária e da vida intensa e tu-
multuosa, precisava de novas formas de arte, filosofia, comportamento
e linguagem. Essa idéia agudamente revolucionária e absolutamente
marxista lhes veio à mente quando os socialistas não estavam sequer va-
gamente interessados em tal questão, quando os socialistas certamente
não tinham uma idéia precisa em política e economia [...] No seu campo,
o da cultura, os futuristas são revolucionários. Nesse campo é provável
que se passe um longo tempo antes que as classes trabalhadoras possam
lograr qualquer coisa mais criativa do que os futuristas fizeram (apud
Perloff, 1993:30).

No “Manifesto técnico da literatura futurista”, de 1912, Marinetti


propõe a abolição da velha sintaxe herdada de Homero, do adjetivo,
“inconcebível para nossa visão dinâmica”, do advérbio, que “conserva
à frase uma enfadonha unidade de tom”, da pontuação, “sem as pausas
absurdas das vírgulas e dos pontos”, e de outros procedimentos asso-
ciados a um mundo em extinção. As “palavras em liberdade” devem
também ser proferidas sem a interferência do “eu” lírico, pois “o
homem completamente avariado pela biblioteca e pelo museu não ofe-
rece mais nenhum interesse” (apud Bernardini, 1980:81-7). Assim,
deve-se, segundo Marinetti,

Surpreender por meio dos objetos em liberdade e dos motores birrentos


a respiração, a sensibilidade e os instintos dos metais, das pedras, da ma-
deira. Substituir a psicologia do homem, já esgotada, com a OBSESSÃO
LÍRICA DA MATÉRIA.

Cuidado para não emprestar à matéria os sentimentos humanos, mas an-


tes procurar adivinhar seus diferentes impulsos diretores, suas forças de
compressão, de dilatação, de coesão e de desagregação, seus bandos de
moléculas em quantidade ou seus turbilhões de elétrons (apud Bernar-
dini, 1980:84).

87 Perloff, 1993:116.
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À g u i sa d e c on cl u são: tím i d o e esp al h a fa toso 1 97

Em vez dessa camisa-de-força futurista, os escritores modernis-


tas brasileiros — com a importante exceção de Oswald de Andrade —
aderem, quando muito, ao verso livre, adotando uma coloquialidade
comprometida com a velha sintaxe, a pontuação, os advérbios e os ad-
jetivos. De maneira semelhante, intervém na escrita um “eu” lírico den-
so, construído através de uma perspectiva existencial. Luiz Costa Lima
mostra-se perceptivo a esse aspecto do modernismo brasileiro, compa-
rando o espírito de boemia dos nossos escritores, sua “irreverência gra-
tuita”, com a postura combativa — ou mesmo “terrorista” — dos dada-
ístas, “na sua revolta absoluta contra a razão e o discurso”:

[...] Suas atitudes seriam antes comparáveis a de adolescentes malcom-


portados, usufruindo entre júbilo e inconseqüência do vigor da idade. E
a freqüência tanto em Bandeira como em Mário dos poemas-de-circuns-
tância, das breves cenas realistas, do lirismo sentimental consumido pelo
humor demonstra a diferença da situação a que eles e os demais res-
pondiam.

Enquanto para o jovem artista europeu a I Grande Guerra apresentava a


face mais cruel de uma realidade que as palavras e os costumes polidos
escondiam, o desmascaramento sangrento da euforia burguesa da belle
époque e da crença subjacente no infinito progresso da razão e do ho-
mem, as modificações infra-estruturais operadas no Brasil do começo do
século ainda se mantinham restritas e disfarçadas para que delas ressal-
tem conflitos dramáticos. [...] Estas situações diferenciadas geram assim
não só uma diferença dos seus pontos de partida, como a dessemelhança
de suas trajetórias. [...] No Serafim Ponte Grande bem dizia Oswald de
Andrade: “a situação revolucionária desta bosta mental sul-americana
apresentava-se assim: o contrário do burguês não era o proletário — era
o boêmio” (Costa Lima, 1995:49-50).

Lida-se aqui com uma idéia de transformação cultural que não


prescinde de eras passadas, o que leva nossos ideólogos modernistas a
recorrer aos textos legados por diferentes tradições, principalmente
através do procedimento parodístico. Manuel Bandeira, nesta acepção,
é um bricoleur típico, na medida em que desenvolve sua criação artís-
tica de maneira bastante livre, usando com desenvoltura os materiais a
que tem acesso, quer o texto vinculado à tradição ou ao contexto con-
temporâneo, quer os meios técnicos introduzidos no rol das novidades.
Arrigucci (1990:139) arrola os diversos procedimentos metaliterários
adotados por Bandeira, como a imitação, o pastiche, o plágio, a paró-
dia, a tradução, a citação ou a incorporação. Os sapos (do livro de poe-
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mas Carnaval, de 1919), por exemplo, é uma paródia antiparnasiana


que se converte em manifesto modernista na Semana de 22. Bem a pro-
pósito, Mário de Andrade, em carta a Manuel Bandeira de 6-2-1922, es-
tabelece uma correspondência entre Os sapos e algumas composições
de Satie, como Minuete, Aubade e Morceaux en forme de poire.88
Oswald e Mário são também citados como parodistas; Oswald
em seus poemas, romances e manifestos (Campos, 1971) e Mário prin-
cipalmente em Macunaíma (Monegal, 1980). Retomemos aqui a ques-
tão levantada por Gilda de Mello e Souza sobre a “carnavalização do
nobre” nesse romance-rapsódia de Mário de Andrade. A autora argu-
menta que Macunaíma é “a carnavalização do herói do romance de ca-
valaria”, embora ela diferencie o personagem de Mário de Andrade do
“cavaleiro andante carnavalizado” por excelência criado por Cervan-
tes. Dom Quixote é construído a partir da hipertrofia das qualidades do
cavaleiro. A intenção caricatural do autor não retira, porém, do perso-
nagem a coragem, que é seu traço distintivo. Se o ato de coragem torna
o personagem ridículo, isto se deve ao anacronismo do gesto, elevado
em excesso relativamente à pequenez dos obstáculos. O herói de Mário
de Andrade, ao contrário, é covarde; a carnavalização em Macunaíma
realiza-se através da atrofia do projeto cavaleiresco, de sua negação pa-
rodística. Assim, Macunaíma — “dominado pelo medo” — é “o avesso
do Cavaleiro da Triste Figura, representando a carnavalização de uma
carnavalização”:

[...] o herói brasileiro representa uma personagem bem mais ambígua e


contraditória: é um vencido-vencedor, que faz da fraqueza a sua força, do
medo a sua arma, da astúcia o seu escudo; que, vivendo num mundo
hostil, perseguido, escorraçado, às voltas com a adversidade, acaba sem-
pre driblando o infortúnio (Mello e Souza, 1979:89).

Mello e Souza completa seu raciocínio dizendo que Macunaí-


ma é uma retomada “carnavalizada” do núcleo da Demanda do Santo
Graal:

[...] a muiraquitã é uma pedra de cor verde, que Ci, a Mãe do Mato, tira do
colar e antes de subir para o céu dá ao amante, como lembrança dos dias
de plenitude erótica que passaram juntos no Uraricoera; Macunaíma per-

88 Ver Andrade, 1967:24.


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de o amuleto logo em seguida e a sua procura, cheia de riscos e peri-


pécias, constitui o núcleo básico do romance. [...] o episódio da muira-
quitã representa — como o episódio do Graal no romance cavaleiresco
— a busca da identidade perdida, o símbolo da iniciação à vida; no en-
tanto, a narrativa brasileira vira pelo avesso a iniciação viril do romance
arturiano, carnavalizando-a e transformando-a no seu oposto, isto é, nu-
ma iniciação desfibrada, cheia de recuos e tergiversações (1979:91-2).

Oswald de Andrade, porém, supera os companheiros de movi-


mento tanto na utilização da paródia quanto na atitude irreverente que
assume ao lidar com tradições consagradas. Oswald recorre à paródia
até para expressar sua opinião crítica em textos jornalísticos, ou
mesmo em atitudes performáticas. O conhecido episódio, relatado na
primeira parte deste livro, referente ao ataque de Oswald a Carlos
Gomes no Correio de São Paulo, às vésperas da Semana de Arte Mo-
derna, é elucidativo de como ele utiliza esse procedimento. Annatere-
sa Fabris (1994:150-1) mostra, com relação a este caso, como Oswald
investe ao mesmo tempo — nesse artigo totalmente desprovido de
moderação — contra a figura de Carlos Gomes e contra a própria tra-
dição operística, povoada de “tenores cheios de rouge e de tombos fi-
nais” e por “sopranos roliças e estranguladas de hipocrisia lírica”. Fa-
bris (1994:122-3) mostra também como foi importante para o desen-
volvimento desse tipo de procedimento mais lúdico a opção dos
modernistas brasileiros pela vertente florentina do futurismo italiano,
representada sobretudo pelas idéias de Papini e Soffici, que se dife-
renciam do estilo mais ortodoxo de Marinetti. Os florentinos contra-
poriam aos dogmas de Marinetti, entre outras, categorias como a “es-
pontaneidade”, a “máxima liberdade dentro da mais espontânea ori-
ginalidade”, a “rebelião contra escolas organizadas em ritos e liturgias
literárias”. Assim, por exemplo, a imagem do clown, idealizada por
Soffici, tanto poderia se aplicar ao Arlequim, figura recorrente na Pau-
licéia desvairada, de Mário de Andrade, quanto à própria representa-
ção de bufão de Oswald de Andrade. A autora faz ainda referência às
influências florentinas — ou, mais propriamente, às idéias que Pa-
lazzeschi expõe no manifesto “Contrador” — em Klaxon, revista do
início do movimento modernista, que proclama em manifesto:

Queremos construir a alegria [...]. Molhados, resfriados, reumatizados por


uma tradição de lágrimas artísticas, decidimo-nos. Operação cirúrgica.
Extirpação das glândulas lacrimais. [...] (apud Fabris, 1994:198.)
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A paródia — no sentido que lhe empresta Bakhtin, próximo da


idéia de carnavalização — remete a um comportamento irreverente,
pronto a romper, através do riso, com determinados cânones culturais.
Mas a maneira pela qual os modernistas a utilizam é bastante reveladora
do estilo próprio que desenvolvem. Habituamo-nos a atribuir os proce-
dimentos metaliterários a autores que, como Borges, se confinam em bi-
bliotecas. Nossos modernistas, porém, cultivam a rua, embora alguns só
freqüentem o seu espaço boêmio e se mostrem alheios à vida pública,
como Bandeira. Mário de Andrade, por exemplo, dentre os modernistas
o mais público, chega a afirmar em carta a Manuel Bandeira (de 1925):

E você sabe muito bem que não sou indivíduo de gabinete. [...] sou um
sujeito que vive na extensão gostosa da palavra. Nada de gabinete. Ho-
mem na rua. [...] Tenho um poder de festas, de convites, amizades, pas-
seios que satisfaço religiosamente. Não dou pra celebridade e eternização
do meu nome a mínima importância. [...] Se escrevo é primeiro porque
amo os homens (1967:115).

Na crônica “Esquina”, Mário tematiza o que observa de sua janela


na rua do Catete; assim também procede Bandeira, que, apesar de afas-
tado da vida pública, manteve, nos inúmeros quartos que habitou, uma
janela sempre aberta para o mundo. Arrigucci (1990:62-4) argumenta
que, embora a poesia de Bandeira seja bastante marcada por um eu lí-
rico denso, ele não é exatamente um “poeta da vida privada”. Ao con-
trário, a matéria trabalhada pelo poeta tem mais a ver com o mundo de
fora do que com o espaço da interioridade. Seu quarto “é um espaço
arejado, onde o mundo penetra enquanto dimensão social e enquanto
natureza”. Em ambos os casos — de Mário e de Bandeira —, a casa é in-
vadida pela rua.
Isso nos leva de volta ao tema das singularidades do modernis-
mo brasileiro, no qual as experiências de radicalização típicas das van-
guardas européias se alternam com projetos construtivos. Assim, pro-
cedimentos formais como a paródia, que costumam ser associados a
posturas transgressoras ou de ruptura com uma ordem vigente,89 con-
vivem muito mais, em algumas obras literárias do movimento, com o
ideal de afirmação — da nação, da cultura brasileira etc. — do que
propriamente com um contexto de negação. Fabris (1994) observa que

89 Ver Jameson, 1985.


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a negação contundente do “humano, demasiadamente humano”, afir-


mada no texto futurista de Palazzeschi, é atenuada por Mário de An-
drade. O temperamento construtivo de Mário, assim como sua visão
das singularidades locais não lhe permitem partir para uma experiên-
cia radical de dessublimação. Se Mário compartilha com o artista flo-
rentino a idéia da redenção através do riso, não se trata, no entanto, de
uma risada sarcástica, inteiramente desprovida de afetividade. Trata-se
de um riso que não dispensa a ternura, tal como se vê no exemplo es-
colhido pelo próprio Mário: o personagem Carlitos, de Chaplin.
Nosso clown, portanto, se mostra mais humano. Seria difícil, por
exemplo, visualizar uma atualização local das formulações nietzschia-
nas de Valentine de Saint-Point em seu “Manifesto futurista da luxúria”,
de 1913, tais como:

Paremos de achincalhar o desejo [...], camuflando-o com as vestes pie-


dosas das velhas e estéreis sentimentalidades.

Não é a luxúria que desagrega, dissolve e aniquila; são antes as com-


plicações hipnotizadoras da sentimentalidade, os ciúmes artificiais, as
palavras que embevecem e enganam, o patético das separações e das fi-
delidades eternas, as nostalgias literárias: o histrionismo todo do amor.

Destruamos os sinistros trapos românticos, margaridas desfolhadas, due-


tos ao luar, ternuras pesadas, falsos pudores hipócritas.

[...]

É preciso ser consciente diante da luxúria. É preciso fazer aquilo que um


ser refinado e inteligente faz de si mesmo e de sua própria vida; é preciso
fazer da luxúria uma obra de arte. Fingir a inconsciência, o arrebata-
mento, para explicar um gesto de amor é hipocrisia, fraqueza, estultice
(apud Bernardini, 1980:97-8).

Este culto à clareza, à objetividade e ao gesto consciente, total-


mente isento de “véus sentimentais”, não encontra receptividade no
modernismo brasileiro. Tomando o “Prefácio interessantíssimo” como
exemplo, Luiz Costa Lima (1995:51) lembra que, neste texto-manifesto,
Mário de Andrade assume como diretrizes o elogio do inconsciente, a
valorização do papel desempenhado pela subjetividade na deforma-
ção necessária à obra de arte e a atribuição de uma posição secundária
ao “objetivo”, associado ao belo natural e portanto inadequado à con-
cepção de belo artístico. É a partir dessas premissas que Mário rejeita,
no “Prefácio”, o rótulo de “futurista” que lhe foi dado por Oswald:
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Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida
atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto (apud Costa Li-
ma, 1995:52).

Tal como Noel Rosa, Mário de Andrade filtra subjetivamente a mo-


dernização, o que nos leva a crer na existência de uma tendência co-
mum entre os artistas brasileiros da época — eruditos e populares — a
atualizar de maneira muito própria e em grande medida através do “tra-
ço psicologizante” as transformações promovidas tanto na vida quanto
na linguagem. O ideal de contenção, inerente às propostas vanguardis-
tas européias, só encontra portanto algum sentido na crítica a um tipo de
sentimentalismo mórbido que vigorou no século XIX, associado por
Mário de Andrade ao cultivo da dor e à idéia do destino trágico do ar-
tista, dada a sua natureza doentia. Elizabeth Travassos (1996:37) lembra,
a propósito, a influência de Nietzsche sobre os modernistas no tocante à
elaboração da crítica ao romantismo. Nietzsche, por exemplo, considera
a música de Wagner equívoca, grandiloqüente, uma música “que tira o
espírito de seu rigor e alegria”, estimulando a “obscura nostalgia”. Esse
tipo de música, segundo ele, “desenerva, amolece, efemina”. Também
no Brasil rejeita-se o drama romântico, mas acolhe-se a atitude gauche,
compatível com a imagem de clown que Bandeira recolhe de sua vivên-
cia boêmia, bastante afinada com a licença poética a que se permitem al-
guns de seus companheiros de movimento:

Quero antes o lirismo dos loucos


O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare [...]
(Bandeira, 1993:207.)

No campo musical, discute-se a configuração própria do nosso


humor, incompatível, segundo Sérgio Milliet (1923:53), com o sorriso à
francesa, contido e refinado:

Um bailado é uma música sobre a qual caiu um sopro de vida. [...] No pal-
co, as Bodas de Stravinski impressionam tal [como] um trecho religioso.
Força, calma, serenidade, que só se encontram numa grande fé ou num
profundo ceticismo: resulta ser uma fé às avessas. Já Parade, de Satie, en-
tra em cena com sorriso e com beijos à francesa. As danças do malaba-
rista, do palhaço etc. [...] são duma síntese e sutileza tão civilizadas que o
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gênio ainda selvagem da nossa raça não a apreende. O nosso povo, como
o povo russo e em geral todos os povos recém-nascidos, necessita ainda
de um sentimento trágico da vida. A alegria fina e pousada, a tristeza me-
dida, o pudor bem-humorado parecem-lhe sentimentos pouco honrados
de gente decadente.

Os modernistas brasileiros não rejeitam apenas o lirismo contido


do passado parnasiano relativamente recente, comprometido com um
gosto clássico pelas formas vernáculas. Recusa-se também aqui o ex-
cesso de concisão que caracteriza, segundo Milliet, o modernismo fran-
cês. Manuel Bandeira propõe, então, em vez do português castiço do
Parnaso, ou do ideal de refinamento francês,

[...] Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais


Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis [...]90

Embar alh an d o classi fi cações


Se os modernistas brasileiros operam todos à maneira do brico-
leur, o que os distingue é o uso que fazem da tradição. Como vimos no
primeiro capítulo, quando se tem em mente um projeto de totalidade
compatível com o ideal da Bildung, como no caso dos músicos ligados
ao movimento, recorre-se, principalmente através da citação, aos tex-
tos do passado, ou então a um presente mitificado. Assume-se aqui, no
entanto, uma atitude que tende a consagrar o legado da tradição, o que
faz com que a linguagem musical se torne reverente e grave, realizan-
do-se em grande parte através do monumental. Alguns escritores mo-
dernistas, como Manuel Bandeira e Oswald de Andrade, orientados
pela busca de uma síntese que não se confunda com um projeto de to-
talidade, experimentam a intertextualidade à maneira da colagem. In-
corpora-se a tradição, neste caso, sem a austeridade do exemplo ante-
rior, mas de maneira lúdica, utilizando-se basicamente o procedimento
parodístico. Uma terceira forma de incorporar a tradição, nesse contex-
to histórico, é a dos músicos populares. Enquanto realizações musicais
modernistas como as de Villa-Lobos tendem, principalmente a partir de

90 Bandeira, 1993:207. Poética foi publicado em Libertinagem, em 1930. Os poemas

que compõem o livro foram produzidos entre 1924 e 1930.


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204 O vi olão azu l

1930, a trabalhar o repertório folclórico (principalmente o sertanejo,


ou o rural) e a operar no registro do sublime, a música popular adota
outros critérios. Em vez de se pautar pelo corte rural/urbano, opta por
um estilo polifônico (no sentido bakhtiniano do termo) que inclui
ambos os repertórios, abrindo espaço tanto para a tradição quanto
para as novidades introduzidas pelo processo de urbanização. A pos-
tura dos músicos populares, tal como a dos eruditos, é incorporativa,
mostrando-se também muito mais predisposta a preservar do que
propriamente a romper com o legado estético. Assim, mesmo que se
promovam determinados recortes na tradição cultural, privilegiando-
se representações mais condizentes com o mundo moderno, o lugar
tradicionalmente reservado ao sublime costuma ser assegurado, em-
bora, na maioria das vezes, até para dar conta das inovações, ele se
combine com o humilde.
Os eruditos e os populares são incorporativos — e estes últimos
tendem ao procedimento polifônico —, mas os dois tipos de músicos
assumem atitudes diferentes ao lidar com a tradição. Os músicos mo-
dernistas, vinculados a um projeto construtivo e, portanto, a uma pla-
taforma coletiva, reverenciam o legado estético como depositário dos
traços nacionais. Os artistas populares, ao contrário, mesmo quando
fazem incursões no sublime, produzem lamentações do mais puro in-
dividualismo. Quando operam com o humilde — na maioria das vezes
conciliando-o com o sublime —, desenvolvem uma atitude semelhante
à dos nossos escritores modernistas, como Manuel Bandeira. E tanto os
escritores quanto os compositores populares se mostram próximos, no
tocante a certos aspectos, da sensibilidade modernista francesa, com re-
lação à maneira de perceberem e representarem uma nova realidade
que vêem como descontínua e em constante transformação. No campo
musical, os compositores franceses assumem abertamente as inova-
ções — sofisticadas ou vulgares — trazidas pela vida urbana, eximindo-
se do esforço de transfigurá-las excessivamente. Nos demais planos da
produção estética, os artistas e intelectuais franceses promovem a re-
classificação de determinados valores culturais construídos em torno
das contraposições entre o “ocidental” e o “não-ocidental” e entre a “al-
ta” e a “baixa” cultura, recorrendo a justaposições e a fragmentações de
ordens tradicionalmente estáveis.
James Clifford argumenta que esse tipo de atitude — que de-
nomina “surrealismo etnográfico” — assumida tanto pelos artistas ini-
cialmente ligados a André Breton quanto pelo primeiro núcleo de et-
nógrafos, constituído basicamente por Paul Rivet, Lucien Lévy-Bruhl e
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Marcel Mauss, pôs-se a questionar as classificações tradicionais como


uma realidade “a ser subvertida, parodiada e transgredida”. Assim, da
mesma forma que se passou a atribuir cultura a todas as sociedades
existentes, conferiu-se valor artístico a objetos não-ocidentais até
então vistos como exóticos, arcaicos e primitivos. Mas o mais relevan-
te para o assunto em questão é a análise de Clifford de que uma das
características da atitude surrealista é a tendência a representar o
mundo de maneira condizente com a percepção da realidade pós-I
Guerra — estilhaçada, desestabilizada, descontínua. Se a realidade se
encontra fracionada, uma forma estética que se ativesse à continuida-
de e ao esboço de configurações totalizantes não seria condizente
com sua representação. A forma que então se exige não só é frag-
mentária, como também dá conta de uma nova provocação advinda
da vida urbana emergente: a transformação do familiar em estranho.
A etnografia e o surrealismo se desenvolveram, portanto, de forma
muito aproximada na França dos anos 20 e 30. Os surrealistas, tal
como os etnógrafos, se interessavam pelos mundos exóticos, nos
quais incluíam uma “certa Paris”. Mas, segundo Clifford (1988:117-21),
a atitude dos surrealistas teria invertido o procedimento dos etnógra-
fos; assim, em vez de tentarem tornar o não-familiar compreensível,
tentaram tornar o familiar estranho.
Talvez então se possa dizer que os limites impostos pela classifi-
cação erudito/popular se tornam mais tênues no caso da literatura, já
que os textos poéticos e ficcionais de alguns escritores modernistas ten-
dem a assumir os registros associados à “baixa cultura”. Blaise Cendrars,
por exemplo, um dos inspiradores do modernismo literário no Brasil, ao
defender a equação entre arte e vida, propõe ao mesmo tempo um acor-
do entre a arte “elevada” e a “popular”, dando assim continuidade à tra-
dição de certa forma inaugurada na poesia por Rimbaud:

Eu gostava de pinturas idiotas, painéis de portas, cenários de palco, telas


de saltimbancos, letreiros, gravuras populares, literatura fora de moda, la-
tim de Igreja, livros eróticos com má ortografia, romances de nossas avós,
contos de fadas, pequenos livros de infância, velhas óperas, refrões tolos,
ritmos ingênuos (apud Perloff, 1993:43).

A poesia modernista e a música popular do período acabam em-


baralhando — através das novas formas que passam a desenvolver — a
distinção entre homem natural e homem cultural promovida pelo mo-
dernismo musical, configurada na supremacia do erudito sobre o po-
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pular. Mas esse tipo de consideração tende a ser problemático, na me-


dida em que não se pode deixar de distinguir — no que diz respeito
não só à literatura modernista, mas também à literatura em geral — os
planos da autoria e da recepção. Assim, mesmo que o texto se realize
através dos mais simples procedimentos formais, como o verso livre no
caso de Cendrars, ele desconsidera o gosto do leitor tradicional, habi-
tuado aos torneios de linguagem e de versificação em suas acepções
parnasianas ou bacharelescas. E há quem argumente, como Silviano
Santiago, que a escrita modernista apresenta-se obscura para o leitor
comum, pelo fato de se orientar pelo emprego da elipse e pelo aban-
dono de qualquer excesso na utilização de palavras. Assim, tanto o
poema quanto a prosa modernista se incompatibilizariam, desde o iní-
cio, com a inclinação do público para uma escrita mais convencional.
Obra de fruição difícil, a estética modernista obriga então o leitor a apri-
morar-se. O trocadilho de Oswald de Andrade — “A massa ainda co-
merá do biscoito fino que fabrico” — vem bem a propósito para ilus-
trar este aspecto da discussão (Santiago, 1983:27).
Calinescu (1987) localiza um dos paradoxos da modernidade
nesse tipo de desencontro entre o escritor — liberto da tradição — e o
público — aprisionado aos velhos hábitos. Por um lado, constata-se
que o público não está preparado para consumir o que realmente pre-
cisaria e, por outro, não se espera do artista que tente agradar este pú-
blico, mas que assuma uma postura combativa em prol da transforma-
ção da obra de arte. Atribui-se o despreparo do público à influência do
academicismo e a seu apego às tradições passadas, o que o impediria
de tomar consciência do presente; caberia portanto ao escritor, mesmo
correndo o risco de chocar o leitor, lutar pela instauração generalizada
da consciência histórica e pela eliminação do efeito inibidor do hábito
sobre a imaginação. Dataria desse momento a analogia militar do papel
do artista, que é a origem do termo vanguarda.
Outra questão diferencia músicos populares e poetas: os primei-
ros operam com os meios de comunicação de massa, assumindo radi-
calmente o mercado e as novidades introduzidas no setor. Luiz Tatit
(1996:62) lembra que a canção de carnaval se apresenta no Brasil como
utilitária, já que é feita sob encomenda e moldada segundo padrões
comerciais. Na virada dos anos 20 e início dos 30 os compositores já a
concebiam como um produto de consumo imediato. Na falta de um co-
nhecimento musical mais rigoroso, esses músicos, em contrapartida,
desenvolveram até as últimas conseqüências a “habilidade do cancio-
nista”. Os poetas, apresentando um comportamento típico das van-
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guardas em geral, lidam com um público reduzido e seleto, tendo vá-


rias de suas publicações de teor programático uma natureza não-
comercial. Vale para a comparação da poesia erudita com a música po-
pular a oposição que Poggioli assinala entre o periódico de vanguarda
e o popular. Tal como a canção popular, o periódico comercial se abs-
tém de guiar a opinião pública, visando apenas a satisfazer as paixões
da multidão. E como argumenta Poggioli, embora as manifestações da
arte moderna sejam mais identificadas com a idéia de “movimento”, al-
gumas, devido a atitudes de enclausuramento tomadas por seus mem-
bros, acabam mais próximas do conceito clássico de “escola”. Assim,
constituem-se grupos fechados que se autodenominam “círculos”,“cha-
pelles” ou “cenáculos”, visando, com tais nomenclaturas, a distinguir
sua natureza aristocrática e solitária, assim como seus espaços especí-
ficos, como os ateliês populares, os cabarés e os cafés da vanguarda
boêmia. Mas a despeito dessa atitude elitista, que se realiza contradito-
riamente em locais associados ao espírito democrático, há uma diferen-
ça muito grande entre esses cenáculos e os salões artísticos do Antigo
Regime. Lugar de encontro por excelência de artistas e cortesãos, esses
salões não passariam, segundo Poggioli (1968), de uma versão munda-
na do espírito de escola. De qualquer maneira, convém enfatizar que se
o modernismo brasileiro não se posiciona de maneira tão radicalmente
iconoclasta quanto as vanguardas européias, ele assume, no entanto,
através de sua própria perspectiva de renovação formal, a atitude van-
guardista de antagonismo com relação ao público.
Por outro lado, um ponto que reforça sem dúvida a distinção
entre as músicas erudita e popular do período — e possibilita a apro-
ximação das composições populares com a literatura modernista — é a
questão das novas dramatizações do urbano empreendidas por músi-
cos populares e poetas, a desenvolver formas que captam as experiên-
cias fragmentadas do dia-a-dia, as interlocuções interrompidas e a lin-
guagem dessublimada. Trata-se de um tipo de atitude estética muito
próxima à do romancista, e que utiliza a linguagem do cotidiano, o dis-
curso familiar e as formas profanadoras — ao contrário da epopéia, por
exemplo, que adquire um “ar oficial” ao idealizar o passado em gêne-
ros elevados (Bakhtin, 1987a:20). E tanto a poesia quanto a canção po-
pular, quando elaboradas no registro parodístico, atualizam de manei-
ra crítica o texto da tradição que lhes serve de fonte.91

91 Ver Bakhtin, 1981.


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208 O vi olão azu l

Porém, a despeito dessas diferenças de posições entre devora-


dores e devorados, da falta de popularidade dos primeiros e da popu-
laridade dos últimos, escritores e músicos populares compartilham não
só da postura experimental, mas da sensibilidade boêmia, da valoriza-
ção da experiência, do risco, desenvolvendo uma atitude que rompe
com a distinção clássica entre arte e vida. Rejeita-se a regularidade e
tenta-se proceder em conformidade com a percepção da imprevisibili-
dade da vida contemporânea, sujeita ao acaso e desprendida de rotei-
ros lineares, previamente traçados.92 Poggioli (1968) analisa o caso do
artista moderno, em que é comum o abandono do estilo de vida mar-
cado pela ambiência familiar para a inserção no meio artístico. Ao invés
de uma identidade construída através da herança racial, ou de classe,
opta-se por uma condição desclassificada, que muitas vezes se realiza
plenamente na boemia. Recorre-se ao universo da libertinagem como a
uma espécie de limbo social, onde seria comum a inversão de normas
de conduta, tendendo portanto o artista a um comportamento classifi-
cado como excêntrico.
Na contramão do modernismo musical, tendente a compartilhar
valores e linguagens com outros movimentos que recuperam e cultuam
o passado em nome da construção do futuro, os músicos populares do
período, desvinculados de projetos coletivos, atuam com maior flexi-
bilidade. Ao adotarem dicções mais despojadas, descomprometidas
com programas de ação, mostram-se munidos de valores dionisíacos e
de um espírito afirmativo da contemporaneidade e do transitório só en-
contrável nos cotidianos diferenciados por uma pluralidade de expe-
riências. Essa variedade de experiências nas sociedades complexas mo-
dernas corresponde, segundo Reginaldo Gonçalves (1996a:2-3), às
variações discursivas. Nesse tipo de sociedade, os gêneros de discurso
associados aos grupos dominantes tendem a centrar-se na espirituali-
dade, na imaterialidade, na hierarquia e na etiqueta, enquanto os gê-
neros associados aos grupos não-dominantes centram-se no corpo, na
materialidade, na irreverência e no riso. O universo coberto por esta
pesquisa, referenciado à música popular do Rio de Janeiro nos anos 20
e 30, é o da criação de uma coloquialidade, nos domínios públicos e
privados, cujos elementos constitutivos também são dados pela tradi-
ção. Os discursos proferidos nesse cotidiano urbano não se constroem,
portanto, apenas através de práticas modernizantes e excludentes para

92 Ver Seigel, 1992:356.


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À g u i sa d e c on cl u são: tím i d o e esp al h a fa toso 209

com a província. Configura-se um tipo de artista que capta as nuanças


— assim como as linguagens — do nosso processo singular de moder-
nização, em que fantasias rurais, ou associadas a outros modelos tradi-
cionais, também povoam a cidade, convivendo com o deslumbramen-
to provocado pelo cinema falado, pelo rádio, pelas calças largas dos
“almofadinhas” da avenida Central. Pouco afeito a representar a atitude
blasée puritana, esse artista mostra-se bastante sensível ao excesso de
estímulos com que se depara na sua experiência, tanto familiares quan-
to estranhos, tanto racionais quanto afetivos, tanto tímidos quanto es-
palhafatosos. O apego ao excessivamente familiar não lhe tira, porém,
a disposição para experimentar.
O músico popular realiza, assim, mais que qualquer outro artis-
ta, essa vocação para empreender mudanças formais sem se incompa-
tibilizar com o público. Tampouco busca elevar-lhe o gosto; pelo con-
trário, desenvolve, de maneira errática e descompromissada, uma
relação carinhosa com ele. Quanto ao modernismo musical brasileiro,
seu compromisso com a linguagem culta acaba condenando-o a um
novo tipo de cristalização. Não se trata mais de eternizar o passado clás-
sico-romântico, mas de congelar um presente idealizado, ou uma certa
tradição revalorizada. Cria-se uma hierarquia representada simbolica-
mente por uma espécie de Apolo, ou “músico missionário”, que tenta
de certa maneira pacificar — ou domesticar — a arte dionisíaca dos re-
dutos boêmios da música popular.

O n oi r e o solar

Tanto os modernistas brasileiros quanto os músicos populares


procedem, ainda que por caminhos muito diferentes, quase opostos,
à maneira do bricoleur: recorrem à citação, à paródia, ao pastiche e a
várias outras formas que lhes permitem incorporar a tradição, mesmo
que seja — como no caso do parodista — para negá-la. O mito do
engenheiro, por sua vez, não corresponde aos ideais dos escritores e
músicos que buscam a modernidade através de processos adaptati-
vos, contornando os acidentes legados pela tradição e incorporando-
os ao seu projeto, em vez de removê-los. Associado à figura do de-
miurgo, o engenheiro, ao contrário de quem lida com a incorpora-
ção dos resíduos deixados pelo tempo, se não projeta um futuro in-
teiramente renovado — pois há sempre algo da tradição a ser
incorporado —, promove, pelo menos, através de um plano de ação
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21 0 O vi olão azu l

objetivo e racional, descontinuidades entre passado e presente. O


mito do engenheiro faz mais sentido no país a partir dos anos 40,
com as representações artísticas desenvolvidas sobretudo na música
e na poesia.
O grupo Música Viva, que se constitui em 1938 sob a liderança
de Hans Joachim Koellreutter e que, em manifesto de 1944, se autode-
fine como um “núcleo de estudos e de renovação musical”, é represen-
tativo dessa nova concepção estética. Procedente da Alemanha nazista,
de onde sai em 1937 por questões políticas, após rápida passagem pela
Suíça, Koellreutter chega ao Rio de Janeiro, onde forma um círculo de
músicos e introduz os princípios estéticos do dodecafonismo. Apesar
de seu grupo levar em conta a realidade política e cultural brasileira dos
anos 40 ao formular seu projeto musical, Koellreutter mantém algumas
idéias básicas que tem em comum com os músicos dodecafônicos eu-
ropeus, como a ruptura com a tradição romântica, a independência da
música em relação ao ideal de beleza e a valorização de uma atitude
universalista — “a música nova deveria expressar nossa época, mesmo
que não refletisse coisas específicas de uma nacionalidade” (Wolff,
1986:113-24).
A postura dodecafônica remete ao mito do engenheiro: em vez
de aproveitar de modo quase indiscriminado todas as informações de
que dispõe, como faz um Stravinski ou um Villa-Lobos, Schönberg de-
limita seu material de trabalho por meio de um rigoroso processo de
exclusão. A própria lógica do sistema dodecafônico visa a dificultar ao
máximo o estabelecimento de um centro tonal e a fugir de um melo-
dismo fácil; mesmo as soluções harmônicas permitidas pelas regras do
novo sistema — e que são devidamente aproveitadas por Alban Berg,
seu discípulo menos rigoroso — devem ser evitadas se puderem ser er-
roneamente lidas pelo ouvinte como tonais.93
E é justamente nos anos 40 — mais precisamente em 1945 — que
João Cabral inaugura seu estilo maduro com a publicação de seu se-
gundo livro, O engenheiro:

O lápis, o esquadro, o papel;


o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.

93 Ver Abraham, 1979:834-5.


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À g u i sa d e c on cl u são: tím i d o e esp al h a fa toso 21 1

(Em certas tardes nós subíamos


ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro.)

A água, o vento, a claridade,


de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.
(Mello Neto, 1994:196.)

Como um músico dodecafônico, Cabral delimita rigorosamente


seus materiais, definidos em função de seu projeto estético — a rejei-
ção da subjetividade romântica: a redondilha maior e a rima toante, por
serem pouco musicais, e as imagens duras, cortantes e desérticas. Tais
recursos são os mais apropriados a seus fins, tendo em vista a expres-
são tradicional do sentimento em termos de musicalidade, suavidade e
umidade. Luiz Costa Lima (1995:208) explica que O engenheiro inau-
gura uma nova fase na obra poética de Cabral, porque entram no livro
“duas configurações poemáticas opostas”:

À primeira chamaremos de configuração de tipo lunar, noturno, fundada


na tradição simbolista, nutrida pelo surrealismo, embora desde já nem
simbolista nem surrealista. À segunda chamaremos de tipo concreto-so-
lar, através da qual será levada a cabo a reformulação da tradição mallar-
maica, agora arrancada das névoas simbolistas.

Ao analisar o poema, Costa Lima chama a atenção não só para os


objetos que constituem o sonho do engenheiro — “superfícies, tênis,
um copo d'água, o lápis, o esquadro, o papel, o desenho, o projeto, o
número” — como também para a “igualdade semântica de que surgem
os intrumentos”, pois são “todos substantivos concretos, sem nenhuma
alusividade” (1995:212-3).
Bastante significativo para o tema que analiso é o poema Os pri-
mos, obra paradigmática, segundo Costa Lima, da estética “concreto-so-
lar” de Cabral:

Meus primos todos


em pedra, na praça
comum, na rua
de nome indígena.
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21 2 O vi olão azu l

No gesso branco,
os antigos dias,
os futuros mortos.
Nas mãos caiadas,
as impressões digitais
particulares, os gestos
familiares. Os movimentos
plantados em alicerces,
os olhos bulindo
de vida presa.
Meus primos todos
em mármore branco:
o funcionário, o atleta,
o desenhista, o cardíaco,
os bacharéis anuais,
nos olhando nos olhos
cumprimentando nossas
duras estátuas.
Entre nossas pedras
(uma ave que voa,
um raio de sol)
um amor mineral,
a simpatia, a amizade
de pedra a pedra
entre nossos mármores recíprocos.
(Mello Neto, 1994:70-1.)

A imagem do gesso, tal como a interpreta Luiz Costa Lima, não


evoca, por certo, a aceitação romântica da morte; tampouco remete à
idéia de congelamento da vida, de decadência de estado. O que Cabral
pretende é alcançar a subjetividade, “convertê-la em um objeto parale-
lo ao pictórico, da música cobiçando não sua fluidez, mas o corte rít-
mico” (Costa Lima, 1995:220-1). Poderia acrescentar a esta análise o ar-
gumento de que os primos representados pelas estátuas de mármore
branco não se prestariam ao culto essencialista da perspectiva monu-
mental. Em vez de antepassados heróicos, são os futuros mortos, figu-
ras de impressões digitais particulares, de gestos familiares, aos quais a
estatuária de mármore não retira a transitoriedade da condição huma-
na, a idéia do pó original e final.
Essa postura, que valoriza a economia e se opõe radicalmente à
idéia de excesso, ganha força no cenário cultural do país a partir dos
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À g u i sa d e c on cl u são: tím i d o e esp al h a fa toso 21 3

anos 50, principalmente com a poesia concreta e a bossa nova. Com


relação à poesia concreta, Luiz Costa Lima mostra que esta dá conti-
nuidade à poética de Cabral, principalmente ao promover, tal como a
obra do poeta pernambucano, a desmistificação do lirismo. O projeto
construtivo do período, no qual se insere a produção concretista, tem
como uma de suas postulações básicas a instauração da objetividade
como procedimento estético. Essa perspectiva objetivista pressupõe,
num primeiro momento, uma visão positiva do mundo contemporâ-
neo, o que envolve, apesar de algumas contradições, a aceitação da
cultura de massas. Em texto de 1956, Haroldo de Campos declara:

a poesia concreta é a linguagem adequada à mente criativa contempo-


rânea
permite a comunicação em seu grau + rápido
prefigura para o poema uma reintegração na vida cotidiana semelhante à
que o Bauhaus
propiciou às artes visuais: quer como veículo de propaganda comercial
(jornais,
cartazes, cinema etc.) quer como objeto de pura fruição (funcionamento
da arquitetura, p. ex.), com o campo de possibilidades análogo ao do ob-
jeto plástico
substitui o mágico, o místico e o maudit pelo útil 94

Em outro artigo, datado de 1957, Haroldo afirma:

Jules Monnerot descreve o poeta como “um mágico sem esperança”. A


poesia concreta elimina o mágico e devolve a esperança. Desaparece o
“poeta maldito”, a poesia “estado-místico”. O poema passa a ser um ob-
jeto “útil”, consumível, como um objeto plástico. A poesia concreta res-
ponde a um certo tipo de forma mentis contemporânea: aquele que im-
põe os cartazes, os slogans, as manchetes, as dicções contidas no ane-
dotário particular etc. O que faz urgente uma comunicação rápida de ob-
jetos culturais. A figura romântica, persistente no sectarismo surrealista do
poeta “inspirado”, é substituída pela do poeta factivo, trabalhando rigo-
rosamente sua obra, como um operário um muro.95

94
Campos, Campos & Pignatari, 1975:48.
95
Campos, Campos & Pignatari, 1975:52.
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21 4 O vi olão azu l

Ancorados nessa perspectiva positiva, os concretos encontram


interlocutores que comungam na mesma visão de arte, e isso principal-
mente entre os artistas plásticos e arquitetos, e não propriamente no
meio literário. Ronaldo Brito (1985) afirma, por exemplo, que é comum
às tendências concretistas e neoconcretistas nas artes plásticas a visão
de arte como instrumento de construção da sociedade. Esse estranha-
mento entre o concretismo e as propostas vigentes no meio literário de-
ver-se-ia, segundo os concretos, à forte presença, no período, da “ge-
ração de 45”, que reagiria contra o clima libertário do modernismo e
tenderia a retomar formas antigas.
É comum aos artistas construtivos uma avaliação um tanto res-
tritiva das experiências vanguardistas da virada do século. Por mais que
admirem os procedimentos radicais de ruptura com a arte canônica
adotados pelos surrealistas, futuristas e dadaístas, fazem objeções às
suas propostas estéticas. No caso dos futuristas, admiram o gesto, mas
discordam da forma, por causa da falta de “organização construtiva”
que resulta de sua “cinemática descritiva”, seu “freneticismo subjetivis-
ta” e seu “ultra-romantismo hipostasiado na máquina”; no caso dos da-
daístas, por sua postura niilista; e no dos surrealistas, por seu irracio-
nalismo, seu “automatismo psíquico”, seu “caos poético individualista e
indisciplinado, que não conduz a qualquer tipo de estrutura e permite
[...] uma espécie de comunismo do gênio”.96
Os maiores antagonistas, portanto, são os cultores da subjetivi-
dade, em qualquer forma que se expresse, e os artistas que se conten-
tam com a rebeldia, sem maiores compromissos com a pesquisa de
uma forma adequada ao mundo contemporâneo. E essa forma, segun-
do os concretistas, seria uma poesia mais visual e menos discursiva, na
medida em que fazem uma leitura do espírito contemporâneo como
“antidiscursivo e objetivo por excelência”. Os procedimentos rejeita-
dos são associados a uma produção do tipo artesanal, anacrônica de-
mais para dar conta da complexidade de um mundo em constante
transformação, o que leva os concretistas a postular uma produção in-
dustrial. O Bauhaus, por exemplo, se converteria no melhor exemplo
de atualidade e positividade, pois teria realizado, segundo Pignatari, o
encontro do útil com o belo.97

96
Campos, Campos & Pignatari, 1975:97-100.
97
Campos, Campos & Pignatari, 1975:99, 109.
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À g u i sa d e c on cl u são: tím i d o e esp al h a fa toso 21 5

A valorização do momento presente pelos concretistas não pres-


supõe simplesmente uma visão evolutiva das formas artísticas; pelo
contrário, o paideuma que constroem incorpora também uma perspec-
tiva sincrônica. Em outras palavras, os poetas que compõem a sua ge-
nealogia são valorizados pelo que cada um representou em termos de
inovação em seu tempo específico. Assim, por exemplo, Mallarmé e
Pound se igualam aos concretistas na tentativa de falar a linguagem de
sua própria época, o que requer sempre, de cada um deles, uma boa
dose de criatividade e um espírito combativo contra os tenazes cultores
do passado. É nesta acepção que Haroldo de Campos diz que “a tradi-
ção viva é moderna”.98
O paideuma concretista se desenha, portanto, nesse período de
gestação de uma nova proposta estética, a partir de Pound, com suas
produções e seus ensaios críticos, de Fenollosa e sua recuperação do
ideograma chinês, de Apollinaire e seus caligramas, de Cummings etc.
Entre os brasileiros, valorizam-se alguns representantes da tradição mo-
dernista — como o Mário de Andrade de Macunaíma e Oswald de An-
drade, por sua poética antimetafórica e suas formulações estéticas — e
João Cabral, que teria proferido o “primeiro ataque lúcido contra o jar-
gão lírico e a peste metafórico-liriferante que assola a poesia nacional e
mundial”.99
Coerentes com sua perspectiva sincrônica de avaliação do passa-
do, os concretistas não promovem uma ruptura com toda a tradição li-
terária, como se sua proposta significasse uma edificação totalmente
nova a partir de um ponto zero. Rompem, na verdade, com certas tra-
dições, como a retórico-discursiva, representada, por exemplo, pela li-
teratura ornamental do início do século, que funcionaria, segundo Ha-
roldo de Campos (1966), como um “jargão de casta”, e a subjetivista,
configurada pelo lirismo romântico. E se o modernismo, principalmente
o de Oswald, é bastante valorizado, os concretistas não relegam ao es-
quecimento procedimentos anteriores, como os associados ao barroco
mineiro. Assim, reafirmam a análise de Lúcio Costa segundo a qual a ar-
quitetura de Niemeyer se compara à arte barroca do Aleijadinho.100
Em suma, a tradição literária, para os concretistas, é constituída
exclusivamente de um conjunto de obras que dialogam entre si. Al-

98
Campos, Campos & Pignatari, 1975:150.
99
Campos, Campos & Pignatari, 1975:65.
100 Campos, Campos & Pignatari, 1975.
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21 6 O vi olão azu l

guns aspectos sociológicos — como a tematização de determinados


elementos sociais, a formação de um gosto e a existência de um públi-
co — não fazem parte da literatura, que é concebida em termos exclu-
sivamente estéticos. O que importa é a presença de determinados ele-
mentos de forma e de atitude perante a obra de arte — uma postura
inaugural, construtiva, objetivista, não-expressionista. As obras que
apresentam esses elementos, independentemente da época em que te-
nham sido produzidas, são vistas como inventivas e atuais.
A postura construtivista implica uma integração estética com o
mundo. Mas se o mundo em princípio é aceito, parte-se do pressu-
posto de que ele não se encontra concluído; pelo contrário, o que se
delineia é um mundo — singular, projetado e almejado — em cons-
trução. Sociologias à parte, a vanguarda concretista acredita na exis-
tência de um modelo de sociedade — o industrial — que se tornou
predominante e seguiu sua marcha inexorável desde a I Guerra Mun-
dial.
Ana Maria Belluzo (1990:27) estabelece uma correspondência
entre essa espécie de surto construtivo na América Latina, nesse pe-
ríodo, de viés racional e utilitário, e o projeto social da Bauhaus:

Participam das esperanças no desenvolvimento industrial brasileiro e


antecipam-se a ele, despendendo recursos para a modernização da so-
ciedade. A clara divisão entre projeto e obra, as operações seriadas, a
cor plana, a economia dos elementos de produção do quadro e do ob-
jeto, os estudos da forma e da contraforma, a concepção da obra múl-
tipla não escondem a elaboração da estética industrial.

Augusto de Campos (1968:167-8) enfatiza a característica revolu-


cionária da década de 50, em que se configura, junto com a sensibilida-
de vanguardista, a valorização da racionalidade. Campos cita vários fe-
nômenos que marcam a época, como a experiência do “após-Bomba” e
as seguintes revoluções sucessivas: o be-bop, o LP, a TV, os sputiniks, o
XX Congresso e a desestalinização, a Revolução Cubana, Brasília, a poe-
sia concreta, a música eletrônica e a bossa nova.
A bossa nova, de fato, ao introduzir um registro musical intimis-
ta — mais para ouvir do que para dançar — semelhante ao do be-bop,
harmoniza-se com esse ideal de racionalidade. Essa nova forma desen-
volvida pelo jazz nos anos 40 amplia o território harmônico e as es-
calas tradicionais, introduz acordes dissonantes e se apresenta como
uma experiência musical marcadamente inovadora, em muitos proce-
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dimentos semelhante à música erudita de vanguarda, como o impres-


sionismo de Debussy e Ravel e o atonalismo de Schönberg em sua fase
pré-dodecafônica, como se observa em Pierrot lunaire. Tal como no
be-bop, a bossa nova opta por um procedimento mais despojado, fu-
gindo do histrionismo que marcou o repertório popular, notadamente
nas décadas de 40 e 50, e envereda por uma linha mais contida e fun-
cional. Ao desenvolver esse tipo de estética, a bossa nova converge
com outras manifestações dos anos 50, como a arquitetura de Nie-
meyer e a poesia concreta.
Relativamente ao padrão anterior da música popular, que prima
pelo excesso, o da bossa nova remete a uma idéia de assepsia. Uma as-
sepsia que condiz com o surgimento de um novo tipo de público, aten-
to às harmonias mais requintadas do jazz. Joaquim Aguiar analisa o fe-
nômeno da substituição de costureiras, operárias, trambiqueiros e
marginais, vinculados à música popular de períodos anteriores, pelos
“jovens de formação musical e acadêmica” da bossa nova:

Logo, o bom uísque derrama a ardida cachaça. Assim como a vida “ra-
cionalizada” dos apartamentos impõe-se ao barraco e ao “rancho-fun-
do”, o bas-fond da Cinelândia, com suas melodias grandiloqüentes so-
bre amores descabelados, é trocado pela boate cara, pela voz educada
e pelo brando e contido amor [...] (1989/90:65).

A bossa nova insurge-se contra toda uma tradição associada ao


excesso: os arranjos grandiosos de violinos e de metais inaugurados
por Radamés e Pixinguinha, o estilo operístico de Francisco Alves, o
ufanismo de Aquarela do Brasil e as dores-de-cotovelo derramadas que
datam dos anos 20 e atravessam os anos 40 e 50, principalmente no
samba-canção. De fato, no período anterior ao surgimento da bossa
nova predominavam o samba-canção e o bolero, gêneros veiculados
pelo rádio e cultuados nos night clubs. As composições de Antônio Ma-
ria, interpretadas por Nora Ney e Dolores Duran, criavam uma “atmos-
fera noir”,que matizava o conteúdo dramático das letras com uma pi-
tada de sofisticação. E figuras como Antônio Maria, por exemplo,
profundamente envolvidas naquele ambiente noturno impregnado ao
mesmo tempo por tiradas inteligentes e dores-de-cotovelo, vivencia-
vam o teor das canções.101

101 Ver Castro, 1991.


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21 8 O vi olão azu l

Retomando a questão das descontinuidades promovidas pela


bossa nova, é importante esclarecer que, ao me referir ao estilo conci-
so e racional inaugurado por esta tendência musical, atenho-me basi-
camente à linha assumida por João Gilberto, o principal expoente
dessa forma estética. Pois foi ele realmente que, à maneira de um de-
miurgo, deu forma à bossa nova, mesmo porque este tipo de criação
musical não resultou de um projeto compartilhado por vários músicos.
Dito em outras palavras, a bossa nova não constituiu um movimento,
mas foi obra de um autor individual. Se tudo indica, por exemplo, que
João Gilberto captou o gosto emergente pelo jazz camerístico, não há
dúvida, por outro lado, de que a nova forma musical da bossa nova em
muito se deveu à obsessão deste músico por um ritmo e uma harmonia
inteiramente novos, compatíveis com sua interpretação dos tempos
modernos (Castro, 1991). Assim, João Gilberto incorporou repertórios
tradicionais, recriando, rítmica e harmonicamente, sambas de diversos
autores através da fusão com o jazz. Por outro lado, ele rompeu com os
gêneros associados ao excesso em várias de suas manifestações na mú-
sica popular, como o sentimentalismo dos boleros e dos samba-can-
ções, as interpretações operísticas, ao estilo de Dalva de Oliveira, e os
arranjos que recorriam a orquestrações.
Poder-se-ia argumentar que, ao enfatizar a atuação de João Gil-
berto na bossa nova, eu estaria negligenciando a contribuição de Tom
Jobim e de outros músicos para essa estética. A figura de Tom é de fato
indissociável do momento primordial da constituição da nova tendên-
cia musical, porque é ele que, em parceria com Newton Mendonça,
compõe as duas músicas que anunciam as novidades musicais: Desa-
finado (1958) e Samba de uma nota só (1960). Augusto de Campos
(1968:139-40), a propósito, destaca o procedimento isomórfico dessas
composições inaugurais da bossa nova, em que letra e música se co-
mentam. Os elementos de transgressão da bossa nova se encontram
presentes em Desafinado: no momento exato em que se pronuncia a
sílaba tônica da palavra “desafino”, ocorre, no plano da música, uma
nota inesperada, que representa uma transgressão aos padrões meló-
dicos da música popular convencional. No entanto, pelo que se depre-
ende do relato de Ruy Castro (1991), João Gilberto teria conseguido
impor seu estilo intimista seduzindo a dupla Tom Jobim-Newton Men-
donça para a realização do seu projeto musical. Refletindo sobre essa
informação fornecida por Ruy Castro, acho que faz bastante sentido a
idéia de Tom Jobim — muito mais propenso a melodias exuberantes,
dando continuidade à tradição inaugurada por Radamés Gnattali — ter
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sido de certa forma “domesticado” por João Gilberto para operar num
registro mais conciso e racional. Basta acompanhar a trajetória de Tom
para ver que esse argumento tem razão de ser, pois logo após o perío-
do inicial da bossa nova o compositor parece romper seus grilhões com
um projeto fechado, voltando a compor no estilo sinfônico e retoman-
do sua vocação para o excesso.
A narrativa de Ruy Castro sobre a produção do LP Canção do
amor demais (1958), considerado um marco da bossa nova, é bastante
reveladora das sensibilidades diferentes de João Gilberto e Tom Jobim.
Na prática, o disco resultou de uma superprodução, pois demandou
muito trabalho para sua concepção e realização, assim como contou com
uma equipe de artistas já consagrados, como João Gilberto, Tom Jobim,
Vinícius de Moraes, Elizete Cardoso, além de instrumentistas importan-
tes, que se encarregaram do acompanhamento. As diferenças entre os
músicos se fizeram sentir desde o início. Foi a partir dessa gravação, por
exemplo, que João Gilberto apresentou em algumas faixas a sua nova
batida ao violão, produzindo um tipo de ritmo que, diferentemente do
samba convencional, permitia ao músico maior liberdade para experi-
mentações harmônicas. No entanto, enquanto João Gilberto buscava
novas linguagens, os demais integrantes do grupo se orientavam por um
estilo mais convencional (pelo menos na visão de João Gilberto). De
acordo com Ruy Castro, João Gilberto não gostava “da gravidade com
que a Divina [Elizete] tratava as músicas, como se fossem peças de algum
repertório sacro — talvez porque as letras fossem de um poeta impor-
tante, Vinícius de Moraes”. João insistia para que Elizete cantasse de ma-
neira mais descontraída (no que não foi ouvido). De modo semelhante,
João Gilberto não apreciava a letra de Vinícius para Serenata do adeus,
que considerava de mau gosto (Castro, 1991:177):

Ah, mulher, estrela a refulgir


Parte, mas antes de partir
Rasga o meu coração
Crava as garras no meu peito em dor
E esvai em sangue todo o amor
Toda a desilusão.

De qualquer maneira, nesse disco é que foi lançada Chega de


saudade, composição de Tom Jobim e Vinícius de Moraes que mais
tarde se tornaria famosa, principalmente quando passou a ser interpre-
tada por João Gilberto. Mas esse gosto de João Gilberto pela concisão
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220 O vi olão azu l

explica em grande parte o interesse demonstrado por Augusto de Cam-


pos — poeta da tradição concreta — pela bossa nova, pois tanto os mú-
sicos dessa tendência quanto os concretos desenvolveram aversão à
prolixidade. Em 1968, por exemplo, Campos organizou uma coletânea
de artigos sobre música popular que tematizava a bossa nova, a ver-
tente de rock brasileiro conhecida como iê-iê-iê e o tropicalismo, e pu-
blicou-a sob o nome Balanço da bossa. Nesses artigos — vários de sua
autoria —, Campos atribuiu um procedimento moderno à bossa nova,
pelo rompimento com formas tradicionais como o “exibicionismo ope-
rístico”, valorizando portanto o intimismo que caracteriza as interpre-
tações de João Gilberto e de Nara Leão. Quando os músicos e poetas li-
gados à tendência, como Vinícius de Moraes, criavam uma estética mais
convencional, deixavam de interessar aos concretos.
Mas o que talvez seja mais relevante na análise que Augusto de
Campos faz da bossa nova é o fato de ele atribuir a João Gilberto e a ou-
tros músicos — por devorarem um produto estrangeiro como o jazz e
misturá-lo com o samba — um procedimento antropofágico, tal como
proposto por Oswald de Andrade. Campos (1968:48) desenvolveu a
esse respeito uma teoria muito comentada na época:

A expansão dos movimentos internacionais se processa usualmente dos


países mais desenvolvidos para os menos desenvolvidos, o que significa
que estes, o mais das vezes, são receptores de uma cultura de importação.
Mas o processo pode ser revertido, na medida em que os países menos
desenvolvidos consigam, antropofagicamente — como diria Oswald de
Andrade — deglutir a superior tecnologia dos supradesenvolvidos e de-
volver-lhes novos produtos acabados, condimentados por sua própria e
diferente cultura. Foi isso o que sucedeu, por exemplo, com o futebol
brasileiro [...], com a poesia concreta e com a bossa nova, que, a partir da
redução drástica e da racionalização de técnicas estrangeiras, desenvol-
veram novas tecnologias e criaram realizações autônomas, exportáveis e
exportadas para todo o mundo.

Augusto de Campos percebe, portanto, convergências entre a poe-


sia concreta e a bossa nova, principalmente pelo fato de ambas as esté-
ticas lidarem com a concisão, com a objetividade e com a racionalidade.
Tanto uma quanto a outra promovem uma ruptura com tradições ante-
riores associadas ao excesso. No caso da poesia concreta, como obser-
vamos, repudia-se tanto o excesso romântico quanto o que se manifesta
em qualquer forma verbalizada. Em se tratando da bossa nova, o que é
rejeitado tem a ver com a diluição do operismo na música popular, com
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o seu sentimentalismo piegas; de igual modo, não mais se concebe a


criação de arranjos musicais com violinos plangentes ao fundo.
Só a partir da década de 60 se retomou, com a tropicália, uma
perspectiva mais includente, que não só recorreu ao excesso mas tam-
bém resgatou a monumentalidade do limbo a que fora confinada pelas
gerações dos anos 40 e 50. Os baianos inauguraram, com a tropicália,
uma nova relação com a diferença, assumindo uma postura afirmativa
e comprometendo-se de modo indiferenciado com todos os aspectos
captáveis do universo brasileiro, como o brega e o cool, o nacional e o
estrangeiro, o erudito e o popular, o rural e o urbano e assim por di-
ante. Paradoxalmente, a atitude tropicalista é híbrida quanto a seus pro-
cedimentos básicos: ao mesmo tempo que rompe com o conceito de
forma fechada — não existe uma fórmula de canção tropicalista, tal
como uma fórmula de canção bossa nova ou de samba-enredo — re-
toma, justamente em decorrência de sua postura includente, os próprios
elementos dessas formas fechadas, promovendo uma continuidade
entre iê-iê-iê e marchinha, rock e baião. Se a bossa nova reduzia tudo a
um estilo único, centralizador e altamente homogêneo, a tropicália, ao
contrário, incorporava sem escrúpulos os repertórios mais diversos,
conservando elementos originais seus, da temática ao ritmo.
Duas tradições antagônicas foram portanto incorporadas num
mesmo movimento: a do despojamento, vinculada à bossa nova, e a do
histrionismo do repertório popular tradicional. Em outras palavras, o
tropicalismo rompeu com os projetos de ruptura típicos das décadas
anteriores, inaugurando uma postura eclética e diferente da obsessão
pelo novo até então hegemônica. Assim, ao invés de promover des-
continuidades com a bossa nova, o tropicalismo proclamou em Saudo-
sismo, canção-manifesto de Caetano de 1969, a retomada da linha dis-
sonante inaugurada por João Gilberto:

Chega de saudade a realidade


é que aprendemos com João
pra sempre a ser desafinados

Mas, em vez de se pautar, como a bossa nova, por princípios fe-


chados de composição e de interpretação, o tropicalismo adotou uma
atitude eclética, abrindo um leque variado de opções. Junto com a
bossa nova, incorporou também os repertórios por ela desprezados em
nome de uma concepção de sofisticação e de bom gosto musical. Nara
Leão, a musa do intimismo bossa-novista, aparece modificada no LP
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222 O vi olão azu l

Tropicália, pois não só interpreta um bolero — Lindonéia, de Caetano


Veloso — como se permite pela primeira vez participar de uma grava-
ção que foge ao registro camerístico, com um arranjo em que abundam
os violinos. Lindonéia é a própria caricatura do sentimental, observan-
do-se o procedimento parodístico através da polaridade que se mani-
festa na composição: o bolero de letra sofisticada e de arranjo e estri-
bilho bregas recebe um tratamento cool com a interpretação de Nara
Leão.
Assim, ao contrário do estilo definido da bossa nova, a tropi-
cália optou por um não-ter-estilo. Em Tropicália — LP-manifesto do
movimento —, o registro intimista da voz de Nara Leão, a musa da
bossa nova, convive com o repertório brega de Vicente Celestino. Os
baianos foram ainda mais fundo nessa atitude ao se apresentarem na
Buzina do Chacrinha, programa de televisão que despertava o mais
profundo desprezo nos artistas e intelectuais engajados e bem-pen-
santes. Já a incorporação do nacional e do estrangeiro aparece niti-
damente na estruturação da estética tropicalista, com a junção dos rit-
mos brasileiros ao rock. A guitarra elétrica passou então a ter um
significado simbólico nesse contexto. Não foi sem razão que as pri-
meiras obras tropicalistas foram rejeitadas pela esquerda nacionalista,
que só admitia o uso de instrumentos considerados brasileiros, ou
“genuinamente nacionais”. Em algumas faixas de Tropicália, esse tipo
de junção nacional & estrangeiro é manifesto num estribilho como “Ê
bumba-iê-iê-boi” (de Geléia geral) e num título como Batmacumba.
Os tropicalistas tensionaram o campo cultural ao transitarem com de-
senvoltura pelos domínios do erudito e do popular. Ao incorporarem
elementos de música concreta, utilizarem compassos irregulares e
musicarem textos em verso livre, Caetano e Gil mostraram-se próxi-
mos de músicos eruditos contemporâneos como Rogério Duprat e
Júlio Medaglia. Em entrevista que me foi concedida em março de
1986, Augusto de Campos fez o seguinte comentário sobre Caetano
Veloso:

A riqueza do trabalho dele [Caetano Veloso] é justamente que ele, situ-


ando-se problematicamente nesse contexto [da música popular], não se
contenta em simplesmente cumprir as regras do jogo. Ele sempre enve-
nenou esse código com elementos infratores de outros códigos [...]. Então
ele tensionou esse arco da música popular tão longe que, muitas vezes
[...] chega a pontos-limites de aproximação com procedimentos que se-
riam dessa área erudita, tanto na música como na poesia.
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Parece lícito, pois, afirmar que a tropicália retoma o que há de


mais característico na estética modernista brasileira — a inclusividade
do bricoleur — após o período curto e relativamente atípico em que foi
dominante a atitude excludente do engenheiro. No período coberto por
esta pesquisa, que tem início nos anos 20, o excesso aparece quase
como uma vocação do país, realizando-se tanto pela vertente do subli-
me quanto pela do humilde. Tudo leva a crer que a configuração do
“engenheiro” representou pouco mais que um interregno.
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