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O que a clinica psicanalitica das psicoses nos ensina Leticia Balbi Esse trabalho é fruto de algumas reflexées a partir da experiéncia de supervisao e orientacao de monografia com alunos e residentes que vém falar de suas perplexidades di- ante de uma clinica que nos confronta de forma mais crua com a questao do bizarro e do estranho e, portanto, com a questao da alteridade e da diferenga. Uma estagiaria relata que notou um fenémeno estra- nho em seu paciente psicotico em atendimento no SPA/UFF ha mais ou menos 15 anos, ja estabilizado: ele repetia as ultimas palavras das frases que formulava, produzindo uma espécie de eco. Isso é notado justamente num momento de- licado, em que o paciente se encontra particularmente an- gustiado com a noticia de seu desligamento parcial do CAPS onde ele participa de algumas atividades - atividades vitais, diga-se de passagem, pois é a partir delas que um lugar lhe é reconhecido. Suas falas: “com essa saida do servic¢o, parece que eu fui usado e jogado fora, no lixo, lixo, lixo”; "o tal rapaz nao se cuida [...] mas quem sou eu para falar o que eu acho. Quem sou eu? sou eu, sou eu [...]” As vezes essas repe- tides sao apenas balbuciadas. Que situa¢ao! Seu desligamento do servicgo se deve ao fato de ele estar bem, estabilizado. Provavelmente deve haver pacientes mais graves precisando de atendimento. Ele esta bem. Esta bem. Esta bem?, penso eu, nado tanto para ecoar mas para interrogar. Eco de pensamento - lembro-me de Clérambault, que o inclui como um dos fendmenos tipicos do automatismo men- tal, juntamente com interrupgdes de pensamentos, pensa- mentos antecipados e outros. Clérambault, além de afirmar que esses fendmenos de duplicacéo do pensamento sao anideicos, isto é, nado se mantém numa ligacdo causal com outras idéias, destaca seu papel inicial na doen¢a. Trata-se de um fendmeno primeiro, a partir e ao redor do qual os outros fendmenos psicéticos, tais como alucinagao e delirio, se construiriam. Seria um indice entéo da desorganiza¢ao préxima do paciente? Na sessao seguinte, ele nado consegue Digitalizado com CamScanner Leticia Balbi : _ : falar, esta muito confuso. Depois relata que nao podia falar porque seu pensamento nao parava. O que essa situacaéo da psicose oe Ensina que se tiramos o lugar em que o sujeito se reconhece, ja gue ele esta bem, e pensamos até mesmo em alta, 0 paciente pode “desmoronar”, pois o que suportava sua construgao era jus- tamente esse lugar, por exemplo, o de ser reconhecido como bibliotecario de uma sala. E visto que isso nao pode ser sim- bolizado — como um neurético, que pode perder um lugar, um laco, podera, mesmo em sua nostalgia, buscar lugares substitutos — no caso da psicose, tira-se o lugar, “desmoro- na” o sujeito que ai se sustenta. O que a clinica psicanalitica das psicoses nos ensina? Ensina-nos, primeiramente, a abrir mao da suposi¢ao de um sujeito que compreende e se situa em relacao a sua propria experiéncia: ensina que 0 encontro com a alteridade nado se resolve simplesmente adequando a diferenga que o Paciente muito menos, nds oO compreendemos. Verificamos isso em nossa experiencia e verificamos isso também no que Lacan nos en- sina. Desde o seminario As Psicoses, Lacan enfatiza que a em é um instrumento de comunicacao, isto é, due alguemepamente ser compreendido mM suas significacdes. No entanto, m a a concep¢ao psiquiatrica mais mecanicista e organj~ ooghie' Pde que ha uma Personalidade. Nesse sentido, tanto rias organicistas quanto as Psicogenéticas Possuem pied teo: Posi¢do comum: um sujeito da compreensao. Ambas aes oe cepcoes referem-se 2 uma compreensibilidade supost: Son referéncia primeira a compreensibilidade serve Para Hee a minar 0 que justamente produz ruptura e se apresenta ek incompreensivel” (LACAN, 1985, p. 14). A questao raceme Possibilidade de restituicdo de sentido na cadeia dos’, £3 menos psicoticos. Isso nao é falso em si, diz Lacan fon % p. 14), Yo que é falso, é conceber que 0 sentido de ( 985, trata é aquele que se compreende”. E isso que & uma nis’ gem de nosso eu psicoterapeuta. Mira. 14 am =~ | ER Digitalizado com CamScanner O que a clinica psicanalitica das psicoses nos ensina Vejamos o caso de Clérambault: ao definir o carater anideico dos fenémenos de automatismo mental, ele supde que as idéias deveriam combinar-se de forma compreensivel. Supée, também, na base de suas explicagdes, um sujeito da consciéncia como centro da experiéncia humana. Os fend- menos psicoticos so sdo caracterizados como estranhos e anideicos em relacao a um sujeito supostamente unificado e unificante. Quando Clérambault analisa o carater anideico dos fendmenos elementares, a nocdo de personalidade nao é definida, mas é sempre suposta, pois é em referéncia a essa suposi¢ao que o fendmeno é definido como automatico. Se- gundo Lacan (1985, p. 45), trata-se da suposicao de "que ha um sujeito que compreende por si, e que se olha. Se assim nao é, como os outros fendmenos seriam apreendidos como estranhos?”. Essa critica nao impede que a doutrina de Clérambault seja revalorizada sobre um outro aspecto fundamental. A no¢ao de automatismo mental e o carater anideico dos fené- menos elementares sao validos se a referéncia nao é mais um sujeito transparente a si mesmo, mas sim uma estrutura defi- nida por relagées de vizinhanga e oposic¢ao: é a estrutura da linguagem que respondera agora pelo automatismo. Segundo Lacan, "o mérito de Clérambault é ter mostrado o carater ideicamente neutro, o que quer dizer, em sua linguagem, que esta em plena discordancia com as afei¢des do sujeito, que nenhum mecanismo afetivo basta para explica-lo; e, na nos- sa, que é estrutural”, ou seja, que é preciso “ligar de novo o nucleo da psicose a uma relacao do sujeito com o significante puro, e que tudo o que se constréi ai em torno sao apenas reagoes de afeto ao fenédmeno primeiro, [que é] a relagaéo com o significante” (LACAN, 1985, p. 284). Este, ent&o, é o segundo ensinamento da clinica das psicoses, um principio fundamental da clinica psicanalitica: © que é determinante no trabalho do analisante, seja ele Neurdético ou psicético, é a estrutura do significante e nao as significagdes. Esse principio clinico é correlato da tese lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem. No inicio do seminario As psicoses, Lacan nos adverte que o que esta em jogo na fala do psicdtico nao é somente o encadeamento significante tipico do simbdlico. Algo ocorre 15 Digitalizado com CamScanner Leticia Balbi ai que faz com que a significagao nao remeta a uma out, significagao mas somente aela ae que ermanece in’ favel e incomunicavel — seja na In! ¢ ‘eito, seja n que te um carter revelador e pleno para o sul , SeJa na reper" Go estereotipada e vazia do ritorneto. bordar, por exemplo, as intuigées delirantes — q, tipo 4 Biblia g abriu justamente na pagina em que era dito para mim algo de fundamental” — pela perspectiva qj significagdo é, de certa forma, participar da propria estry. tura delirante. De fato, se o sujeito Psicotico interpreta os acontecimentos que o rodeiam como signos, como tendo uma significacao que lhe é dirigida e que lhe concerne, isso nao nos autoriza a buscar ai uma significagéo compartilha- da. A significagéo ai é inefavel e estanque, nao remete a uma outra significagéo, nem muito menos a uma significa- Gao compartilhada. __5€ na histeria encontramos o valor enigmatico do significante causando a busca de interpretacdo e significa- Goes, na psicose, aquilo com o que nos deparamos é 0 prdoprio funcionamento automatico da estrutura significante, descar- nada de significacao. A perplexidade do sujeito frente ao fe- nomeno elementar é a prova disso. No entanto, do lado do analista, nao se trata de responder também com pe lexida- de mas de afinar sua escuta nado mais com o diay Leclitis is nificagao. Sua funcao preliminar é registrar e a ih sesee determinacao do sujeito por um funcionamento iene da linguagem. automatico Entdo, a escuta de pacientes psicgt;, . sustentar este principio que é também Opry Nos ensina a da neurose, de que o significante nao signifies © da clinica mesmo. Na neurose, ele vai significar no outro, . nada em si deado, relacional, metaférico e metonimico de ymrso80,enca- a outro, Ja na psicose, no fenémeno elementa Significante mostra é essa fun¢ao primaria do significante estar, ° que se nao opera a rede de significagées. Por mais que qoado, que nos fale que quer entender o que se passa com ele Paciente me por um entendimento, por estrutura, isso no 6 pase cla- Sua perplexidade se deve justamente a esse encontr; ssivel. estancamento da significacaéo. Como um paciente que lan ° que encontra pela frente, parecendo sempre buscar uma sie 16 ME Digitalizado com CamScanner O que a clinica psicanalitica das psicoses nos ensina nificagdo mas sem que ela jamais seja encontrada. E justa- mente isso que a psicose demonstra: 0 encontro com o estancamento da significagao, ou ainda, com seu buraco, por conta da forclusao do significante do Nome do pai e da elisdo da significacao falica, responsavel pelo compar- tilhamento da significagao. Na escuta clinica, é esse estancamento que revela a manifestacado do que Lacan cha- ma de estrutura primaria do significante. A certeza delirante também ilustra essa petrificagao da significagao, que nao se dialetiza. Nao ha como conven- cer um paciente psicotico, que tem certeza de que sua mae esta viva, de que ela jé morreu, mostrando-lhe o atestado de obito (ou a outro, que diz ter ganho na loteria, que isso nao aconteceu, como prova a Caixa Econémica). Entao, o trabalho com o psicotico seria o de escuta, de registro do significante e nao de preenchimento da falha de significa- ¢ao, com um “dado de realidade”, com nossas proprias significagdes, ou mesmo com elementos da propria historia do sujeito. Lacan demonstra que o que se elabora e se reconstréi no trabalho do delirio e de outras produces psicéticas nao é da ordem da significacao mas da funcado Primaria do significante, de nao se significar a si mesmo mas de compor- tar uma materialidade. Tratar as palavras como coisas revela essa fungado material do significante na linguagem dos psicdticos: por um lado, como o som que preside as rimas e conexées ritmicas de um significante a outro e que pode che- gar ao puro significante desencadeado que nao faz cadeia Mas que gira num funcionamento automatico, insensato e incessante; e, por outro lado, como letra, como materialidade que fixa e barra o deslizamento incessante do automatismo mental — permitindo uma escritura que pode funcionar tem- oe apaziguando o gozo mortifero que invade o sujei- Por que a escrita se Presta tao bem ao intenso traba- tho de estabilizagaéo que a psicose exige? Sem entrar na complexa teorizagéo de Lacan sobre a letra e a escrita, utilizo somente uma de suas primeiras definicdes: a letra é © suporte material do significante. E com esse elemento Material que sera possivel fazer uma escrita que funcione 7 Digitalizado com CamScanner Leticia Balbi ; elimitagao & fix qual o psicotico aco de uma borda em relacao a, como d é assujeitado. goz0 ao : ae fn do psicotico se a OM eg: Na clinica, © trabalho do Psien como Nome do pa =e itura e nat eriais, de escrituré ed Pao ne eriieratar as palavras COMO COKAP » aé}a no : , seja no trabalho do del. ropriamente de escrever, abal eae fa Construcao de qualquer outra supléncia, que sera possivel um reordenamento significante permita ao psicotico encontrar um lugar no campo do Outro. ial do significante é distinta da fun- cao significativa da comunicagao: “ha uso uae do significante a partir do momento em que, a0 nivel do recep- tor, o que importa nao é 0 efeito do contetido da mensagem, [..-] mas isto - que no ponto de chegada da mensagem, a mensagem é registrada para posterior utilizagao” (LACAN, 1985, p. 215). E esse registro que marca a funco significante: “E 9 certificado de recepcdo que é 0 essencial da comunica- Go enquanto tal, nao significativa mas significante” (p. 215). Ento, nao se trata de compreender, nem de fornecer signifi- cacées mas de acusar a recepcaéo da mensagem, autenticar 0 trabalho de coleta desses elementos materiais, letras, trapos ou quaisquer outros, no sentido de construir uma escrita ou uma rede, e até mesmo a teia de dejetos construida pelo personagem do filme Spider, de David Cronenberg pi Essa funcao materi Lembro-me de um outro paciey palavras, que recolhe de as panties ee ett falas de outros e dai constréi seus escritos, Estes escrit aS cionam para ele como “suporte que the permit escritos fun- mundo sem ficar louco com fuga de idéias” jo eaane lhe pedem para explicar 0 que escreveu, ele (sic). E quando plicar 0 que? Ja esta escrito”. Eo escrito Gucae: "EX: funcao de suporte e ndo as significaces que dai} Cumpre essa O paciente pede que a residente que o atende sam advir. escritos. E nesse enderegamento que se co! - digite seus transferencial. Ao aceitar esse lugar de transereeitut © laco os escritos do paciente, ela autentica um lugar Ver e digitar to, o de reciclador, como ele proprio chega a nem © sujei- r. Talvez seja somente a partir dessa autent; fornecida pelo outro que o sujeito podera se reconhe c8¢ao er, Te- 18 , re BE. Digitalizado com CamScanner O que a clinica psicanalitica das psicoses nos ensina conhecer seu lugar, como reciclador. Mas para isso é preciso que, primeiramente, o analista possa ler 0 que se escreve em sua escuta. Trata-se de uma leitura e de uma autenti- cagao do significante e nao das significagées. E nisso que Lacan insiste, em seu ensino, desde o seminario As psico- ses: E 0 passo que peco que vocés déem nesse seminario é o de me seguir quando thes digo que o sentido da descoberta analitica nao é simplesmente o de ter achado significagées, mas o de ter estado muito mais longe do que jamais se esteve em sua leitura, a saber, até o significante (LACAN, 1985, p. 225). Referéncias DE CLERAMBAULT. Definicao do automatismo mental. A clinica da psicose:Lacan e a psiquiatria. Revista Tempo Freudiano, Rio de Janeiro, v. 1: os fendmenos elementares, n. 3, 2004. LACAN, J. O Semindrio. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985. Livro 3: as psicoses. REYS, B. et al. Escrita e psicose. Cadernos pedagogicos e culturais, Niterdi, v. 4, n. 2, 1995. 19 Digitalizado com CamScanner

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