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Locos Jornalismo literario *Heéris Arnt No século XIX Iiteratura e jornalismo io indissocidveis. Os maiores escritores do século XIX passaram pela imprensa e ‘muitos, antes de se tornarem romancis- tas, foram jornalistas, como Mark Twain, José’ de Alencar, Dickens, Ma- chado de Assis entre outros. A participa- 40 dos escritores como editores, articu- Tistas, cronistas e autores de folhetim foi de tal ordem que podemos qualificar este Periodo como do jornalismo lteravo. 0 termo jornalismo literdrio, na acepedo que damos neste trabalho, refe te-se ao perfodo que comecs em meados de 1830 € vai até 0 final do século ¢ que se caracteriza pela preseaca macica de escritores na imprensa, melhorando @ qualidade do texto, levando os jornais @ grandes tiragens ¢ criando um piblico para a literatura, Esta forma de conceber ¢ fazer jomal que se desenvolveu no sé- culo XIX se earacterizou pela militincia de escritores na imprensa, levando a Ii- teratura para as paginas dos jomais ea critica sutil 4 sociedade e costumes da Epoca. O jornalismo literario possibilitou um tipo de informacao mais sutil sobre a sociedade, interferindo no préprio cami ‘oho percorrido pela literatura, e determi- nando o tipo de jomalismo do século XX — informativo e atraente. © jomnalismo do século XIX recebe a influéncia dos es- critores, mas esta passagem dos escrito- res pela imprensa vai refletir, também, na hiteratura, © jomalismo literatio nio se refere & imprensa especializada em literatura, {que foi um fendmeno que apareceu no sé culo XVIL e que perdura, hoje, nos jor- nais crevistas especializados em lteratu- +a, nos suplementos de livros ¢ na eritica literéria, A caiticaliterdria comege aver feita na Franga em 1665, trinta-anos depois da primeira gazeta politica. O Journal des ‘Savants tinha 0 objetivo de anunciar os livros novos, dar uma idéia de seu con- teddo e divuigar e documentar as novas descobertas cientificas. Esta € primeira ‘vez que aparece o termo jornal para de- signar um periédico. Na‘origem, jornal quer dizer exclusivamente um periddigo especializado em literatura, conforme aparece no diciondrio da Academia Francesa de 1684. Interessante €0 fato «de um journal (diério) ser semanal ou quinzenal. Este jornal representou um grande avanco no sentido da informacao, do compromisso da imprensa com a divul- agagio de fatos importantes que interfe- ram na vida do homem comum. O Jour- nnal des Savants foi o primeira periddico ‘que comecou a divulgdr as invengdes Cientificas, que até entio 86 eram divul- gadas através de correspondéncia pes- soal entre cientistas de diversos paises. Este modelo de jornal foi imitado e co- piado imediatamiente e floresceu por to- dos 0s paises da Europa, Le Journal des Savants deu uma outra ccontribuicdo importante: durante um cur- to periodo, dirigido por Desfontaines, adotou pela primeira vez na histéria da imprensa uma linha de critica literéria nilitante e agressiva. Ele eriticava os fi losofos do siecle des lumigres, sobre: do Voltaire, por sua influéncia na Acade- mia Francesa. Desfontaines teve 0 grande mérito de trazer a discussdo literaria para 0 pablico em geral trando a exclusividade dos eft- culos literérios. Outro seguidor deste ti pode jornal foi Fréron, que criticava a li- teratura institucionalizada e patrocinada pela Academia, sobretudo Voltaire, por sua proximidade com os poderosos. Vol- {aire tinha ddio de Fréron, a quem fazia injdrias através de seu teatro, e contra cle escreveu 0 poema La Pucelie 0s jomnaisliterdrios se desenvolveram por toda a Europa, comecando entio a parecer géneros hibridos, jornais politi- 60s que continham critica literaria, Os jomais literirios que se desenvolveram a0 longo do século XVIII eram essencial mente criticos 2 literatura e aos homens de letras, e ndo contavam com a part pacio dos proprios escritores. Esta part Cipacio s6 acorreria na séeula XIX. pri ‘meiramente na Alemanha O despertar intelectual que se produ- iu na Alemanha no século XVIMI permi- tiv que aparecessem ao lado dos jornais, politicos a imprensa lieriria, Os primei tos jomalistas dedicados 2 critica lterd- sia, na Alemanha, foram Lessing, Nico- laie Wieland. Nicolai passou para a pos- teridade como um personagem ridicula- rizado por Schiller ¢ Goethe. Na verdade ele foi um grande critico, que fundou di- versas gazetas ¢ revistas e durante 30 ‘anos influenciou o pablico Tetrado ale~ mao, Foi Nicolai quem teve o talento de agrupar grandes colaboradores, € quem conseguiu a adesio de escritores que comecaram a escrever artigos para seus jornais Fstava pronto 0 terreno, na Europa, para o fenbmeno caracteristico dam Prensa do século XIX, que foi a parici- Dacio ativa de escritores na imprensa, fuer como editors, articulistas, cronis- ths ou esertores de fothetins. Dickens cobra o Partamento inglés, Machado de Assis Senado brasileiro Mark Twain paso ports o scores de umjornal, Victor Hugo, Balace Zola passaram pelo joralismo, Dostoevskt trou Crime e Castigo das pss crimi- nats dos jomais, Ha mais informagdes nas cronies politicns de Machado de Av Sis, Dicken e Seba Smith (Major Jack Doiwing do qc ns pasinasexacerbades dos panquins polis. Atraves da ogo fica gun pena io rativa nem doclragament erica, en- Contras a mats rica informa sobre osoulo XiKe acriteaprofunda aos cos tumes epoca No Brasil o joralismo iter fo partcularmentelmporante porque ono- Mimento editorial de Ivros ea aco nao {xstiam gris e o ros tnham gu Ser impressos em Portugal © Londres Praticamente todos ov esritores passa ‘am pea imprensa: Alois de Azevedo, Raul Pompeis, Visconde de Taunay. Joaquim Mancel de Macedo, Jose dé Alencar, Manoel Antnio de Almeida Machado de Asis, Bulides da Comba nite outos [Nos Estados Unidos, apesar de ter ha- vido um movimento editorial bastante desenvolvido, os escritores s6 tinham possibilidade de publicar suas obras atra- vvés da imprensa. As editoras nao public ccavam os autores americanos — sempre um risco editorial — preferindo publicar vvers6es piratas dos clissicas ingleses, ue tinham publico assegurado. Os Esta- dos Unidos foram os grandes infratores dos direitos autorais do século XIX, jf {que os autores ingleses nada recebiam pela publicagdo americana de suas obras. Sir Walter Scott, criador de Ivanhoé, foi uuma vitima deste sistema, Apesar de ter seus livros constantemente reeditados nos Estados Unidos, morreu na miséria, sem nunca ter recebide direitos de autor. 23 Locos 0 jornalismo europeu viveu no século XIX, principalmente a partir da segunda metade, a efervescéncia do aumento do rndimero de leitores, devida & ascensio das massas urbanizadas & alfabetizacio. s jornais em poucos anos passaram 3 ‘Brandes tiragens, suprindo a necessidade de cultura dos novas consumidores. O folhetim foi a grande forga de apelo aos novos leitores. O livro ainda era muito caro para ser consumido pelos assalariae dos, € 0 jornal vai ocupar este espaco pu blicando folhetins, romances e contos. Alguns jomais franceses chegaram a publicar simultaneamente seis folhetins. Nenhum jornal pode fugir do esquema dos folhetins, desde os conservadores, voltados para’ uma elite burguesa. como foi 0 caso do tradicional jornal Figaro, até o jornal socialista L’Humanité. Qua- ‘se todas os escritores do século XIX vao escrever para os jornais. O fendmeno francés vai se repétir em toda a Europa Quando 0 desenvolvimento industrial tornou possivel 0 aumento das tiragens dos jomais e 0 barateamento dos custos. hhavia por tris uma forte pressio popular das geragdes recentemente alfabetiza- das, vidas por leitura, que permitiu 0 fumento da circulagao. A publicagio de ‘obras literdriasintegrou uma nova eama- ida da populacao no circulo de leitore. A participagio de escritores na vida cotidiana dos jornais foi um fendmeno Universal, no Brasil deixou um legado & cultura brasileira, com a publicagio de lum grande nimero de obras literirias Contudo, 0 fendmeno no Brasil ndo con- tava com a participacio da massa da po- pulagéo que, condeniada a0 analfabetis ‘mo, ni tinka acesso & cultura letrada. ‘Ao longo de sua hist6ria, o Brasil tem tomado de empréstimo idéias européias sem respaldo no seio da sociedade. Os movimentos literdrios europeus esto tembasados em modificagdes profundas no quadro social. No Brasil, as duas coi- sas Necessariamente no precisam vir juntas. Isto ocorreu em relacao a0 jorna- lismo literdrio, que teve uma grande in- fluéncia na vida cultural brasileira, langando os fundamentos do romance brasileiro, com José de Alencar; permitiu ‘aprodugio de um romance picaresco co- mo Memérias de um sargento de mi cas, a portade entrada do povo na liters tura,¢ possibilitou o aparecimento de um dos maiores escritores brasileiros, Ma- chado de Assis; $6 que este movimento. no representou urna maior participagao social nos bens culturais 24 O movimento de massificago da cul- tura comeca com o folhetim oferecido pelos editores de jornais, a precos bai- os, para o grande-pablico, Af comeca 0 fosso entre © Brasil ¢ os outros pafses. O jornalismo literério no Brasil nao tinha por trés um movimento de affabetizagio 49 pova. O nosso folhetim rio represen- tava acesso dos proletirios & cultura le- trada, O folhetim brasileiro estava volta- do para a propria burguesia, que em ter- ‘mos culturais vivia em autareia — pro- «duzindo e consumindo para ela mesmo. 0 jornalismo literario no Brasil foi ri- _quissimo; produziu em termos relativos uma literatura to rica quanto em outtas partes do mundo, mas sem respaldo na evolugio do movimento social, néo re- presentou um avango da cultura letrada. A influéncia dos escritores no joma- lismo determinou um estilo de jornal. Es- ta forma de conceber e de fazer 0 jomal representa uma perfeita sintese entie opi- ‘igo e informagao. O jornalismo literario € informativo: Machado de Assis deixou profundos conhecimentos sobre a socie- dade brasileira; Dickens fez uma pintura sem retoques da sociedade inglesa na passagem para o sistema capitalist; Bal- - zae foi ohistoriador da sociedade france- Sa As erOnicas, os follietiny sv foutes de informagao inesgotiveis sobre as $o- ciedades que retratam. Criticos da socie- dade de sua época, os escritoresjjomnalis- tas, através de todos os géneros a que se dedicaram, deixaram uma andlise sutil sobre usos e costumes, que servem de ‘material de estudo para historiadores € pesquisadores. E mais do que isto, a 0b- servagdo minuciosa da sociedade que os cercava, levaram esses escritores a fazer profunda andlise da natureza humana. A influéncia das escritores no jorna- limso ndo foi unilateral: ndo s6 0s es- critores determinaram o tipo de jomalis- mo literirio, como a literatura sofreu in- flugncia do jornalismo, Através das cr nicas e folhetins, os escritores criticavam scostumes, a politica, as instituigdes da ;noea. combinando eritica com informa- ‘Gao, Mas, preso & materia de jomal, o Produto literirio vai sofrer as presses que o atrelam a uma forma narrativa de total envolvimento como leitor. A litera tura do século XIX publicada nos jomais estard profundamente enraizada na re dade, no cotidiano, nas reais agruras dos seres humanos. 5 jornais do século XIX aindd nao tém 0 compromisso com a informagéo objetiva e imparcial, que seria o sonho perseguido no século XX pelos homens de imprensa, mas comeca a se fastar do pasquim de opinigo tendenciosa de gru- pos e faccdes. So 0s escritores que vio buscar isencao, elevando os debates pa rao nivel das idéias — as instituigbes se- ao questionadas e analisadas em profun- didade, Enquanto Machado de Assis em tom irdnico analisava as entranhas da nossa vida politica, fazendo a cobertura do Senado, Dickens fazia o mesmo no Parlamento inglés, Seba Smith criticava © Congresso norte-americano, Balzac ironizava o governo da Restauracao, Dostoievski Softia constrangimentos de toda sorte (prisdo, pagamento de multa) ‘em conseqiéncia dos artigos que es crevia, Alem da missio de dendncia, a ‘que todos mais ou menos se propunham ‘Dickens de maneira obsessiva, Balzac de forma atormentada e Machado de As- sis de maneira mais velada — eles assu- miam, também, a funedo de educar. O folhetim do século XIX tinha um com- ppromisso com a massa recentemente al- fabetizada, e pretendia levara cultura le- ‘ada para um grande nlimero de pessoas. © cronistalescritor fazia erénica de opi- niio— foram eles que melhor eriticaram aa sociedade de seu tempo — mas as croni- ‘cas eram também informativas. O escri- tordo eéculo XIX fazia do seu offcio uma profissio de f€ na verdade. Conscientes do papel de historiadores do momento fugaz, cles informavam o que se passava seu redor com a intencdo de deixar uma {estemunho para a posteridade, ( jornalismo determinou e moldou os ‘umos da literatura, que nunca mais pode privilegiar a reflexdo em detrimento da aco, Em todos os escritores que passa- ram pela imprensa hd algo em comum — estes escritores no deixam de observara Vida, A partir da andlise da influéncia do jornalismo na literatura, conclui-se que 0 movimento realista esti inteiamente li {gado a0 joralismo. Toda a matéia de jal, doantincio a0 folhetim, tem com- promisso com a informagio, No joral, ido informa. Ao buscarom a objtivide de, ao tentarem retratar em seus per sonagens as caractristicas universais do Ser humano, 40 se arvorarem o papel de historiador dos movimentos sociais de que sao testemunhas, nao estdo 0s es- eritores levando para a fiecao os funda- ‘mentos do jomalismo? “ARNT, Héris, Profesora da Faculdade de Co- ‘municago Social da UERJ — Dept de Jorn Tismo, Mestre Em Comnicogio/ UPR.

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