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PS. Lembre-se de
Paris
Copyright © 2021
Todos os direitos reservados.
Autora (Pseudônimo):
Valentina Ferreira
Revisão:
Tácira Bueno
Para os leitores que sempre acreditaram em mim.
E para Táci, obrigada por me apoiar incondicionalmente.
Capítulo um
Uma despedida de solteiro diferente
Paris é mais bonita que nas fotos, porém é mais suja. Se você não
está acostumado a ver ratos andando em plena luz do dia, pense
bem antes de ir a Montreal — lá, as ruas são lindas, no entanto, o
cheiro horrível dos esgotos vai revirar o seu estomâgo. É o maior
viveiro de ratos a céu aberto que eu já vi em toda a minha vida.
Se quiser visitar a Torre Eiffel para pedir a mão da sua
namorada em casamento ou apenas atualizar o feed do Instagram,
precisa ir bem cedo. A fila é de rodar os quarteirões, e dependendo
do clima, é uma espera torturante. Notre Dame é belíssima e tão
real que cheguei a acreditar que o Corcunda estava batendo os
sinos em algum lugar lá dentro, mas a missa é muito chata. “Pense
pelo lado positivo!”, minha consciência me alerta. Se você não
entender francês ou latim, a voz monótona do padre é um ótimo
sonífero.
Durante esses cinco dias de estadia, essas foram as
conclusões sobre a Cidade Luz que cheguei, porém só consegui
verbalizá-las enquanto atravessava a Boulevard Haussmann — uma
avenida movimentada e lotada de boutiques, no centro — na
companhia do meu noivo, do outro lado da linha. Com a mão livre,
impedi meus cabelos de grudarem no gloss labial. O sobretudo bege
voava por conta da brisa fresca e o som dos meus saltos tilintando
no concreto criaram o cenário perfeito na minha mente: a
protagonista de um filme de comédia romântica, aquelas que
passavam na Sessão da Tarde.
O sinal estava fechado, mas apressei o passo a fim de
concluir o trajeto a tempo. Os parisienses eram péssimos
motoristas, avançavam no verde, dirigiam acima do limite permitido
e xingavam aos montes, mais do que o considerado normal. Eu
estava curiosa para saber sob qual circunstância era dada uma
carteira de motorista para alguém que não reconhecia uma faixa de
pedestres.
— Até agora você só falou mal de tudo, Ana Júlia, como
posso pensar que está se divertindo? — contestou Caíque.
Pressionei o celular com mais força contra o ouvido.
— Você sabe que sempre vejo o copo meio vazio, amor —
respondi, desviando de um Sedan que buzinava intensamente,
como se assim, o sinal fosse ficar verde. — Mas me diz, como é aí?
Os cariocas são como as pessoas falam?
Alcancei o outro lado da avenida com um suspiro,
assentando os cachos rebeldes. A calçada estava abarrotada de
turistas tagarelando em vários idiomas, apontando para as fachadas
das lojas, ou apenas como eu, conversando no celular. No meio das
boutiques, uma padaria pitoresca chamou a minha atenção. O
cheiro de pão recém saído do forno me levou para dentro dela.
— Aqui é barulhento... — respondeu Caíque, sua voz se
misturava ao funk do momento. — E as pessoas estão peladas na
rua, achei que fosse coisa de novela.
— Não seja preconceituoso — retruquei.
— Vi com os meus próprios olhos uma garota com papel
higiênico colorido enrolado no corpo, em pleno calçadão — rebateu
ele, a voz oscilando em um começo de embriaguez.
— É carnaval, o que você esperava?
Na mesa de pães, várias opções saltavam aos olhos:
pãezinhos, broas, biscoitos doces e mais algumas massas com algo
doce. A padaria era pequena, mas estava cheia de gente.
— Como diz “Me dê essa broa, por favor” em francês?
— “Donne-moi ce pain, s'il te plait? — respondeu Caíque.
Aproximei-me do senhor responsável pelos pães e repeti o
comando, apontando para a broa desejada. Ele sorriu em resposta e
começou a embalá-la.
— E como se fala “sexo a três” em carioquês? — perguntou
Caíque, zombeteiro.
— Suruba? — arrisquei. — Eles falam português, Caíque,
apesar do chiado.
Ele gargalhou.
— Devo admitir que me irrita e... Ei! Espera aí! — Um som
abafado cortou a ligação. — Amor, depois eu te ligo!
Franzi o cenho.
— Caíque…?
— Te amo!
Ele encerrou a chamada.
Encarei a tela do celular com o cenho franzido, enquanto a
foto de Caíque na frente do Cristo Redentor me fitava de volta. Ele
imitava a pose característica de todo turista que se dispõe a pagar
caro para ver a estátua de perto.
Com a broa devidamente embalada, caminhei até o caixa,
mas uma vertigem me obrigou a parar e respirar fundo. Caíque deve
ter visto uma garota bonita, parecida com as blogueiras nas curtidas
em comum do Instagram dele ou, quem sabe, uma garota ousada
que o puxou para um beijo. Eu não o julgava, Caíque estava
aproveitando a despedida de solteiro, diferente de mim.
Empurrei esse pensamento para o fundo da minha mente,
entreguei a comanda ao atendente e abri a bolsa, procurando por
minha carteira.
Não a achei.
Ela devia estar no meio da bagunça de cartões postais e
notinhas de lojas guardadas durante esses cinco dias de estadia,
mas depois de segundos de desespero, somado a pressão do
atendente e da fila crescente atrás de mim, aceitei o ocorrido: perdi
a minha carteira. Meus olhos se encheram d’água, identidade e
outros documentos estavam lá.
Sem saber como explicar ao senhor do caixa o incidente,
engasguei com um inglês nervoso:
— Senhor… Me desculpe, é que...
O semblante do homem se fechou em uma carranca e, de
repente, uma pessoa surgiu ao meu lado, uma mulher. Ela tirou
algumas notas amassadas do bolso, entregou ao atendente e, após
uma conversa rápida com o francês, acompanhou-me para fora da
fila.
Se eu pudesse ficar vermelha estaria igual a um pimentão.
— Muito obrigada. Eu perdi a minha carteira e... Na verdade,
acho que fui roubada — expliquei em um inglês confuso. — É, eu fui
roubada.
A ficha caiu só naquele momento. Eu fui roubada.
Paramos na porta da padaria, eu hiperventilava:
— Eu nunca fui roubada antes, eu moro em uma cidade
pequena, sabe? Mas não costumo vacilar… — acrescentei, só que
dessa vez, em português.
A mulher assentiu, respondendo-me no mesmo idioma:
— Você pensa que ser assaltada envolve facas, uma arma ou
um pedido meio apressado para passar a bolsa, mas aqui eles não
fazem assim. Os assaltantes amam aplicar golpes furtivos em
turistas, todos estão encantados demais com as luzes para prestar
atenção na bolsa.
Pisquei algumas vezes, confusa.
— Você é brasileira?
Ela riu.
— Você sempre vai encontrar um onde quer que vá.
Ela tomou iniciativa para sair da padaria e eu a acompanhei
aos tropeços. A noite se mesclava ao dia, mas os postes de luz
ainda estavam acesos e lançavam um filtro amarelo ao entardecer.
Em algum ponto ao leste, o badalar de Notre Dame me lembrou de
fechar os botões do sobretudo, cobrindo o decote acentuado do
vestido. Paris nunca pareceu tão Paris como naquele momento, a
Paris romântica dos filmes.
A mulher parou de supetão, fitando-me com o cenho
franzido.
Ela esperava uma resposta para uma pergunta da qual eu
não ouvi.
— Me desculpe, poderia repetir? — pedi, envergonhada.
Deve ter sido tão fácil me roubar.
Ela sorriu mais largo, parecia fazer muito isso: sorrir. Só
nesses dois minutos em sua presença, não vi outra expressão a não
ser aquela. Os cabelos rosa pastel batiam nos ombros e a franjinha
rala realçava o rosto anguloso, já os olhos eram pequenos e os
cílios espessos. A pele marrom-avermelhada destacava-se contra a
luz noturna. Quanto às roupas, eram simples, mas ao mesmo tempo
expressavam um estilo premeditadamente desleixado. Diferente de
mim, que gastei minhas economias para parecer a nova versão da
Emily em Paris, aquela mulher vestia uma jaqueta de couro surrada,
calças jeans rasgadas e uma bota de cano médio.
— Eu disse que sim, moro aqui, mas temporariamente. — Ela
pulou para o ladrilho da calçada, os braços abertos, buscando
equilíbrio ao andar. — E eu perguntei onde você mora.
Coloquei-me a caminhar ao seu lado, encarando o chão.
— Moro no Brasil, Minas Gerais, mas estou passando uma
semana aqui.
Ela levantou uma sobrancelha.
— Eu sou mineira.
— Wow, que mundo pequeno!
Eu não sabia o porquê continuava a seguindo, talvez
esperava uma oportunidade para lhe agradecer de forma
apropriada.
— Fui embora de lá há muito tempo. Mas e você? Venho
passar as férias aqui?
— Despedida de solteiro. Minha, no caso. Vou me casar
daqui há quinze dias.
Ela arqueou as sobrancelhas, surpresa.
— Mas é uma longa história… — acrescentei, rindo.
Ela saiu de cima dos ladrilhos e começou a caminhar na
minha frente.
— Bom, acho que temos tempo.
Franzi o cenho.
— Tempo?
— É. — Ela olhou para cima, como se pudesse descobrir as
horas apenas analisando o céu azul escuro. — Ou você vai me
negar um pedaço dessa broa?
Lá estava aquele sorriso de novo e uma certeza estranha nas
palavras, como se fôssemos amigas há bastante tempo e
tivéssemos nos encontrado por acaso. Ela não precisou de uma
resposta, já estava a bons passos de distância.
— Ei, espera! Eu não sei o seu nome! — gritei.
— Laura! — respondeu ela, em meio ao riso.
Os cabelos rosa farfalharam em consequência do vento forte,
pegou-nos de surpresa, e os fios espalharam-se como plumas pelo
rosto dela.
— Prazer... — Apressei o passo para alcançá-la, engolindo
um arfar cansado. — Júlia!
Me manter em cima de um salto quinze nunca foi tão difícil.
Pareada a Laura, recebi seu olhar de esguelha.
— Vamos, Júlia, estou morrendo de fome.
Não tive outra alternativa a não ser acompanhá-la pelas ruas
movimentadas de Paris.
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Caíque falou durante toda a viagem de carro, foi bom, nada sairia
da minha boca nem se eu quisesse. Laura, sentada no banco de
trás, também aceitou de bom grado o falatório do irmão.
Irmão. Sim, eles eram irmãos.
Fitei-a pelo espelho retrovisor, mas Laura sequer devolveu o
olhar. Estávamos fingindo que nada tinha acontecido, como se
depois de uma conversa silenciosa a decisão fosse mútua: o que
aconteceu em Paris foi um sonho fantasioso demais para trazermos
para a vida real.
Voltei a fitar a estrada à minha frente, o farol iluminava a
passagem de terra tomada por mata fechada dos dois lados da
pista. A prioridade era me lembrar de respirar, de colocar os
pensamentos em ordem e não surtar.
Há menos de dois dias, eu tinha certeza de que nada do que
vivi em Paris interferiria no meu casamento. Há menos de dois dias,
Laura era apenas uma aventura de uma noite, uma aparição da qual
me lembraria com um sorriso no rosto. Agora, compartilhávamos o
mesmo carro a caminho da casa de meu noivo.
As coisas não estavam saindo como o planejado.
Poucas vezes, vi Caíque tão animado assim, ele queria fazer
uma tour com Laura pela cidade, mas a temporada baixa trouxe
turistas... Turistas lotam a cidade. Minha dor de cabeça aumentou
gradativamente durante esse tempo, parecia partir o meu cérebro
em dois. Como Laura apareceu assim sem avisar? Como Caíque
não me contou antes? Como eu não sabia dessa irmã perdida?
— Temos muitas coisas para conversar... — Caíque me fitou.
— Acredita que Laura também estava em Paris, amor?
Pisquei algumas vezes, prestes a desmaiar.
— O quê?
— Acredite se quiser... — Ele me cutucou, animado. — Ela
morava lá!
Laura afundou-se mais no assento, parecia querer se mesclar
ao couro do banco, como um camaleão.
— É, pois é… Eu… — Ela engoliu em seco, os olhos
brilhavam no escuro do carro. — Eu morava lá, mas... mas... Paris é
enorme, parece que não, mas é enorme, super grande e…
Maneei a cabeça.
— Super grande! É, tipo, impossível esbarrar em alguém lá,
não é? É cheia de turistas e parisienses… até porque…. porque…
— Comecei a hiperventilar. — Quem nasce em Paris é parisiense…
Caíque me olhou preocupado.
— Você está bem?
Afundei-me no banco.
— Estou com sono.
O silêncio se estendeu até chegarmos a casa de Caíque, a
casa onde eu morava temporariamente até nos mudarmos para a
nossa. Era uma pousada isolada, inspirada na clássica arquitetura
alpina: madeira e mais madeira. Ela tinha dois andares e era
revestida com tijolos de demolição e pedras de colônia, além de
possuir uma chaminé de tijolinhos e um jardim imenso. A vista para
a Serra da Mantiqueira, uma cadeia montanhosa imersa no
horizonte, era de tirar o fôlego.
A família de Caíque, os Grinberg, fundaram a cidade. O nome
do lugar foi uma homenagem ao sobrenome deles. Existia um
memorial no centro da cidade. Caíque estacionou na frente da
pousada e os ombros de Laura despencaram. Contudo, o meu noivo
não percebeu, saiu extasiado do carro e deixou um silêncio pesado
entre Laura e eu. Nossos olhares se encontraram.
Ela apertou o encosto do banco, impulsionando o corpo para
frente.
— Por que você não me contou que era noiva de Caíque? —
Sua voz oscilava entre desespero e raiva.
Soltei um arfar, virando-me no banco para vê-la melhor.
— Por que você não me contou que era irmã de Caíque? Ah,
me lembrei... Não tínhamos como saber! — sussurrei gritado. O
motivo da discussão pegava as malas, sem imaginar o que rolava
dentro do carro. — Foi você que omitiu informações, não eu!
Laura ergueu as sobrancelhas.
— Se me lembro muito bem, eu disse que era mineira.
— Não é essa a questão!
— Então, qual é? — retrucou ela.
Bem, nem eu sabia com certeza. Eu não perguntei nada
sobre a história dela e também não contei a fundo sobre mim, no
entanto, como eu poderia imaginar cair em um acaso desses? Eu
estava há milhares de quilômetros longe de casa, encontrar alguém
minimamente próximo era impossível. O mundo não era enorme,
porra?
Tombei a cabeça para a frente, choramingando.
— Você vai estragar o meu casamento, Laura. O casamento
que eu planejei por anos e...
Ela me fitou ressentida.
— Acha mesmo que eu quero estragar o seu casamento,
Júlia? Ou devo dizer Ana?
Caíque fechou o porta malas, alheio a nossa discussão
sussurrada. Limpei as lágrimas fujonas com o dorso da mão, me
sentia estranha, deslocada, culpada, fora de sintonia...
— Eu não menti para você, eu me chamo Júlia... — sussurrei
de volta. — Ana é o meu primeiro nome. Me chamo Ana Júlia.
Caíque bateu no vidro da janela. Pulamos de susto.
— Algum problema aí? — perguntou ele.
— Não, nada! — Laura respondeu por mim.
Se eu ficasse ali mais dois segundos poderia explodir. Abri a
porta do carona, chutei-a, na verdade. Caíque se assustou com o
meu drama, mas dei-lhe um empurrão e entrei na casa. Não
cheguei a correr, andei muito rápido. Entrei pela porta da frente e
não parei para cumprimentar a mãe dele, não parei até chegar ao
meu quarto, onde corri para o banheiro.
Ao debruçar-me sobre a pia, me permiti chorar de verdade.
Deixei sair o que estava segurando. O sentimento de impotência, de
que daria tudo errado, de que fui tola por deixar tantas pistas sobre
o passado dela passar batido. Respirei fundo e um jato de ar saiu da
minha boca. Meu corpo clamava por descanso, mas eu não estava
com sono, a adrenalina inundava as minhas veias.
Arrastei um cacho rebelde para trás da orelha com as mãos
trêmulas. Como pude entrar em uma situação dessas?
Dois toques na porta depois e a voz de Caíque surgiu,
abafada:
— Amor, tá tudo bem aí?
Afundei a cabeça entre as mãos. Não, não estava.
— Tá sim! Eu só quero ficar sozinha!
Os minutos passaram, ele continuou parado do outro lado.
— Tem certeza?
— Tenho, Caíque, estou cansada. Me deixe sozinha, por
favor!
Liguei a torneira e encharquei o meu rosto com água
abundante.
— Okay, okay, me desculpe... — ele suspirou altivamente. —
Raquel está vindo pra cá, tem algum problema?
Levantei a cabeça de supetão.
— O quê? — Encarei meu reflexo molhado no espelho. —
Você ligou para ela?
— Não. Ela disse que vinha.
Praguejei em silêncio. Minha vontade era de me trancar no
quarto e não ver nenhum ser vivo até Laura ir embora — se ela for
embora —, o que não ia acontecer tão cedo. Sentei-me no chão do
banheiro ao lado do boxe.
— Quando Raquel chegar, peça para ela vir até aqui.
Os passos de Caíque se distanciaram, ele bateu a porta do
quarto ao sair.
Enfim, sozinha, mesmo que por pouco tempo.
Pela forma em que Laura me tratou no carro — que nós duas
nos tratamos — a conclusão estava óbvia: iríamos esquecer o que
aconteceu em Paris e seguir em frente. Qualquer mero pensamento
libidinoso com a minha cunhada seria uma traição. Nada de pensar
em como ela parecia genuinamente feliz no aeroporto, antes de me
ver, e como estava adorável com os cabelos presos e...
— Eu tô ferrada, muito ferrada… — choraminguei. — Mas vai
ficar tudo bem, tudo bem…
Raquel abriu a porta após dois toques rápidos na madeira.
Assustei-me pela segunda vez em menos de meia hora.
A barriga cresceu nesse meio tempo em que passei longe. A
gravidez a deixou com uma aparência mais saudável, os cabelos
castanhos claros brilhavam e a pele estava lisinha, macia como a de
um bebê. Ela usava um vestido florido apesar de odiá-los antes de
engravidar, porém, segundo a própria, era a única coisa que servia
e, de quebra, era fácil de tirar na hora de fazer xixi ou transar.
Raquel virou uma ninfomaníaca durante a gravidez, Augusto estava
exausto. Ela entrou no banheiro e fechou a porta. Com uma mão na
cintura e a outra segurando a barriga, sentou-se no vaso ao meu
lado.
— Eu até faria companhia para você aí no chão, mas se eu
abaixar agora, não me levanto mais. — Raquel tirou o óculos de
grau, limpando-o na barra do vestido. — Vocês deveriam fazer um
elevador, aquelas escadarias… Meu Deus, achei que fosse parir no
terceiro degrau...
Repousei a cabeça no seu colo. Raquel começou a fazer um
carinho em meus cabelos.
— Como está o bebê? — perguntei, fungando.
— Dormindo, acho. Ele só fica acordado quando eu estou
dormindo. Augusto acha que vai ser um futuro jogador de futebol,
vive chutando.
Ergui a cabeça para encará-la.
— Ele veio também? Augusto?
Raquel assentiu.
— Está lá embaixo, conversando com Caíque e a irmã dele.
Até eu fiquei curiosa para vê-la de tanto que Augusto tagarelou
sobre.
Franzi o cenho.
— Caíque contou para Augusto sobre Laura...? Contou a ele
e não me contou?
Raquel deu de ombros.
— Você sabe que os dois não conseguem esconder nada um
do outro. Augusto conhecia essa irmã de Caíque. Eles estudavam
na mesma escola.
Voltei a deitar a cabeça no colo de Raquel, incomodada o
bastante com aquela história mal contada para pensar em não
demonstrar, mas minha amiga entendeu de outra forma.
— Caíque me contou que você estava estressada e
chorando…
— Fofoqueiro — balbuciei.
Senti o corpo dela enrijecer.
— Existe uma possibilidade de você… sabe? — Raquel
alisou a barriga. — Eu também tive esses lapsos de humor antes de
descobrir.
Fiz uma careta, repudiando totalmente a ideia.
— Eu não estou grávida!
Uma parte de mim riu da possibilidade. Era só o que faltava
para completar a lista de desgraças: casar grávida. Seria uma
vergonha para a família de Caíque, a tradicional família de Caique.
— Então é por causa da irmã dele? — perguntou Raquel.
— De certa forma — respondi.
Ela estalou a língua no céu da boca, em desaprovação.
— Laura é legal, apesar de aparentar ter visto um fantasma,
tadinha.
O fantasma era eu, no caso.
— Eu não estou com ciúmes de Laura, estou bem. —
Mentira. — Na verdade, nem tão bem assim... — Meia mentira. —
Argh, eu não estou nada bem! — Baguncei os cabelos enquanto
grunhia. — Laura, a garota legal que parece ter visto um fantasma,
é a mesma garota que eu transei em Paris!
Os olhos verde-folha de Raquel se arregalaram, temi um
descolamento de retina. Ela paralisou com a mão no ar prestes a
tapar a boca, como um robô ao receber uma carga alta de energia.
— Você… Você…? Meu Deus, Júlia! Agora faz sentido! A
ligação para Augusto e a mudança de assunto no avião, o drama
e…
Interrompi sua fala.
— Eu não sabia sobre Laura, eu juro! Caíque e eu
escolhemos lugares diferentes para termos essa experiência o mais
distante possível de casa, exatamente para não esbarrarmos em
alguém conhecido! Se eu soubesse que Laura era a tal da irmã
perdida dele, eu sequer teria aceitado dividir minha broa com ela!
Laura também não sabia quem eu era, nós acabamos de descobrir,
merda! Entende meu desespero agora?
Raquel levantou a palma em um pedido de tempo. O
banheiro caiu em um silêncio ansioso enquanto eu esperava uma
solução mágica vinda dela.
— Você não precisa surtar — disse Raquel, simplista.
Meus olhos estreitaram-se.
— Não preciso?
— Não, não precisa — repetiu ela, como se fosse óbvio. — O
que rolou nessa despedida de solteiro, entre você e Caíque, foi
combinado, esqueceu? Não houve traição, vocês viajaram no intuito
de transar com outras pessoas, ele transou com outras pessoas e
você também, você só teve a má sorte dela estar aqui.
Assenti com a cabeça.
— Então, devo contar a ele?
— O quê? Não! Óbvio que não! Isso não muda o fato que
agora ela está aqui e, como uma pessoa importante para Caíque,
você terá que aprender a conviver com ela. O que eu estou dizendo
é que você a conheceu em um dia, Júlia, um só dia. Vocês
transaram e é só isso. Não podem mudar o que aconteceu, mas
podem decidir esquecer isso e seguir em frente.
Fazia sentido. Era a conclusão que eu chegaria, se tivesse
ficado sozinha por mais tempo.
— Foi só uma transa sem importância, não vai mudar nada,
certo? — prosseguiu Raquel.
— …Certo? — Não pareci confiante, por isso repeti. — Certo,
não vai mudar nada. Daqui há quinze dias, eu vou entrar na igreja e
vou me casar do jeitinho que eu planejei.
Raquel bateu palmas, feliz.
— Para mais conselhos profissionais, ligue e marque uma
consulta, agora eu vou cobrar… — Ela deu batidinhas nos meus
ombros. — Agora, saia daqui, ficar muito tempo sentada no vaso me
deu vontade de fazer xixi.
✽✽✽
✽✽✽
Logo depois, Dona Cecília acordou e montou a mesa do café
da manhã só para Laura, mas quando ela chegou, eles ficaram
desconfortáveis. Caíque puxou uma conversa sobre o clima, mas
não engatou. O silêncio se estendeu até Laura pedir licença após
bebericar dois goles de café, empurrar um pão de queijo garganta
abaixo e sair.
Encontrei-a no jardim, sentada em um banco de metal.
A vista para a majestosa cadeia montanhosa, coberta pela
neblina, parecia nos engolir. A pousada localiza-se no topo de um
pico, de modo que o frio e a fumaça impossibilitavam qualquer um
de ver algo a cinco passos de distância. Era como se não houvesse
nada a não ser a casa rodeada por um pedaço de terra, flutuando
no ar. Laura descansou a cabeça em cima dos joelhos flexionados,
e para um olhar desatento, poderia ser uma estátua. Cruzei o
gramado e me sentei no banco frio, ao seu lado. O calor dela me
aquecia, mas me segurei para não diminuir o espaço que nos
separava.
— Foi um erro ter voltado, Júlia — cochichou ela, com os
lábios em um bico graças a posição do queixo.
— Não tínhamos como saber, Laura. E sobre o seu passado
com os Grinberg, família é uma coisa complicada. Deve ter sido
legal viver como você viveu nesses dez anos, nesse mochilão sem
fim pelo mundo, mas é bom voltar para casa; é ruim, mas é bom.
Abaixei a cabeça, envergonhada, enquanto a risada de Laura
preenchia os meus ouvidos.
— É ruim, mas é bom? — zombou.
Cruzei os braços, emburrada.
— Era para ser um conselho sério!
— Continue, estava funcionando! — incentivou ela, rindo.
Abri a boca, depois a fechei, reunindo coragem para
prosseguir, mas o seu olhar pinicava a minha pele. Inspirei fundo,
concentrando-me.
— Temos que nos reconectar com as nossas raízes de
tempos em tempos, lembrar que existem pessoas que nos amam.
Caíque te ama, ele está muito feliz por ter você aqui… — Mantive
meus olhos nos dela. — No fim, é isso que importa.
Laura desviou a atenção para o horizonte nublado.
— É, acho que você tem razão.
Um silêncio desconfortável recaiu sobre nós.
Quando me mudei para cá, aos dezesseis, Caíque sempre
me trazia para lanchar aqui, sentávamos na grama, com um lençol
velho e sacos de Fandangos. Ele tinha sofrido uma perda recente.
Um dia, nos sentamos neste mesmo banco e eu perguntei o porquê
ele estava cabisbaixo. Caíque respondeu: “Hoje é aniversário da
minha irmã”. E ele nunca tinha me contado sobre essa irmã antes.
Para mim, Caíque era filho único. Perguntei o que havia acontecido
a ela, porque não estava mais ali, ele demorou a responder, mas
disse: "Ela morreu".
Os Grinberg agiam como se Laura não tivesse existido.
Nunca vi fotos, ouvi histórias, nem um simples nome.
— E sobre Paris? — perguntou ela, sua voz se misturou à
brisa.
Respirei fundo, decidida.
— O que aconteceu em Paris fica em Paris.
Ela concordou com um menear.
— O que aconteceu em Paris fica em Paris.
Meu peito bateu desordenado quando eu deveria me sentir
aliviada, disposta a aceitar o fim dessa pauta. Era um combinado
simples, fácil de seguir. Era uma segunda chance de começarmos
com o pé direito, como se aquela noite não tivesse existido.
Entretanto, o meu coração continuou apertado. Não, nada seria tão
fácil assim.
Levantei-me sem saber o que fazer com as mãos.
— É melhor eu trocar de roupa. Tenho que te levar para
provar os vestidos e tudo mais…
Laura sorriu, aquele sorriso largo.
— Tudo bem.
Eu ainda estava com ele na cabeça quando entrei na
pousada.
Capítulo cinco
Próxima a ruir
Monte Verde era uma vila pequena com menos de cinco mil
habitantes, não tínhamos um shopping, hospital ou um
supermercado. As pessoas eram calmas, nada de muito
interessante acontecia. No entanto, ainda me lembro da agitação de
Belo Horizonte, das buzinas e dos carros na avenida movimentada
em que eu morava.
Em Monte Verde, não havia nem prédios.
Eu usava o Cooper de Caíque no dia a dia, era pequeno e
facilitava o acesso ao centro de Monte Verde: uma avenida estreita
feita de pedra. Laura precisou se encolher no banco do carona
como em uma casinha de bonecas e suava, apesar do casaco
grosso e da temperatura amena do lado de fora do carro. Eu
também estava nervosa. Seria só nós duas em um passeio até a
costureira responsável pelos vestidos do meu casamento.
Laura repousou a cabeça na janela, os cabelos rosa
formavam uma manta ao redor do rosto. Ela era bonita de um jeito
desleal e não se esforçava nenhum pouco para isso. Não se
submetia a três sessões diárias de skincare, maquiagem e
cabeleireiro aos finais de semana, como eu. Laura era apenas ela,
naturalmente bela, observando a paisagem à nossa volta, os lábios
entreabertos, olhos delineados e cabelos ao vento. Muito desleal.
— Senti falta daqui — disse ela em um suspiro.
Eu precisava me concentrar para não patinar com o Cooper
na estrada de terra, mas estava sendo um desafio. Meus dedos
agarraram o volante, tensos.
— Eu senti falta daqui quando saí para fazer faculdade,
imagina você que passou nove anos fora...
— De onde você é? — perguntou ela.
Ergui uma sobrancelha.
— Como sabe que não sou daqui?
Laura soltou uma risada polida.
— Preciso responder?
Não precisava. A taxa de adolescentes em Monte Verde era
quase zero. Caíque viajava para a cidade vizinha para frequentar a
única escola das proximidades.
— Sou de Belo Horizonte — respondi. — Mas minha mãe
resolveu mudar para cá quando perdeu o emprego. Eu tinha
acabado de terminar o ensino médio.
Ela franziu a testa.
— 17?
— O quê…? Ah! Dezesseis, me formei com 16 anos. Entrei
com seis no maternal.
— E sua mãe queria um lugar tranquilo, sem o estresse da
cidade grande. Apesar de Belo Horizonte estar longe de ser uma
cidade grande...
Na tentativa de concordar de uma maneira engraçadinha,
soltei uma risada estranha. Eu estava feliz por Laura se esforçar
para quebrar o gelo, já que eu não me mexia enquanto dirigia, não
conseguia pensar em respostas rápidas e fluídas quando minha
atenção estava concentrada em algo, mas com ela ali, era
duplamente impossível.
— Mas... me diz, o que você fazia para se divertir aqui? —
prosseguiu ela.
— Provavelmente o mesmo que você. Não é como se Monte
Verde tivesse muitos lugares para diversão.
Laura concordou.
— Pensei que as coisas tivessem mudado. A Pedra da
Partida ainda existe? A trilha do Platô...?
Puxei o ar pela boca, pensando.
— Ainda existe, mas só adolescentes vão lá para fumar
maconha e… — De repente, olhei para Laura. — Você também ía
para isso, não é?
Minhas mãos se afrouxaram no volante ao passo que a
risada dela preenchia os meus ouvidos.
— É claro! — confirmou ela. — Como você disse, não é como
se Monte Verde tivesse muitos lugares para diversão, ainda mais
quando se é adolescente.
Maneei a cabeça, incrédula.
— Ainda não acredito que você frequentava esses lugares,
Laura.
Ela me deu empurrõezinhos com o ombro.
— Ah, não vai me dizer que você nunca foi?
— Nunquinha. Na adolescência, eu era muito boba, fumar,
beber, beijar… nunca tive coragem. — Devolvi o empurrão na
medida do possível para alguém no volante. — Eu tinha síndrome
de boa filha... ainda tenho, acho. Gosto de estabilidade e de não me
meter em encrencas.
Laura tombou a cabeça para o lado.
— E não se arrepende?
A estrada de terra deu lugar a uma rodovia asfaltada.
Batuquei os dedos no volante, permitindo-me pensar a respeito.
— Depende do dia — resolvi responder.
Às vezes, eu me arrependia de não ter agido de maneira
irresponsável quando tive a chance, porém só de pensar na
consequência do meu último ato impensado sentada ali, em carne,
osso e tentação, tudo mudava de perspectiva.
— Isso é bom, quer dizer… É bom não se meter em
encrencas. Eu não teria feito tantas bobagens se tivesse passado a
minha adolescência sóbria e... — Laura interrompeu-se.
Um silêncio incômodo surgiu, cortado apenas pelo barulho
preguiçoso do trânsito. Caíque comentou sobre Laura ser
problemática, mas como de praxe, não se aprofundou no assunto.
Enquanto várias suposições pipocavam na minha cabeça,
passamos em frente à igreja São Francisco de Assis, que eu me
casaria dali há quinze dias. A fachada era simples e, diferente das
outras igrejas das cidades do interior, feitas em estilo barroco,
aquela era moderna, mas acolhedora. Já a Avenida Principal estava
recheada de turistas tirando fotos, bebendo e tremendo em seus
casacos recém comprados.
De supetão, Laura perguntou:
— Você fez faculdade onde?
Pisquei algumas vezes, mas não me acostumei a sua voz
levemente rouca graças aos minutos em silêncio.
— Em São Paulo, é mais próximo daqui. — Lancei-lhe um
sorriso breve. — Letras.
Ela encostou-se no banco, com um olhar enigmático.
— É a sua cara.
— Isso é um elogio ou uma ofensa, Laura? — retruquei, com
uma sobrancelha arqueada.
Ela riu e, novamente, me vi rindo também. Laura tinha um
jeito natural de mostrar interesse, lembro-me das horas gastas em
Paris, em que não me cansei de falar ou tive a sensação de estar
incomodando. Era fácil gostar dela.
Engoli o seco, obrigando-me a voltar para a realidade.
— Chegamos — respondi.
Estacionei na frente do atelier, Laura saiu do carro logo em
seguida. Atrás do Cooper, um SUV ocupava duas vagas e os donos
já estavam dentro do estabelecimento: Augusto e Raquel.
Augusto era professor de uma escola primária e seu estilo
oscilava entre camisa social e sapatênis e algo parecido com um
vocalista emo de uma banda de garagem. Depois da gravidez de
Raquel, ele adicionou ao guarda-roupa a terceira opção: “pai de
primeira viagem”. Estava sentado na recepção, mexendo no celular
ao lado da esposa.
Conheci Augusto graças a Caíque, eles eram melhores
amigos desde sempre, gostavam das mesmas bandas, viviam
cheios de piadas internas e conversavam por olhares. Raquel entrou
na minha vida no primeiro dia de aula da faculdade, ela fez
psicologia apesar de não seguir na profissão. Caíque quem teve a
brilhante ideia de apresentá-los. Deu muito certo, casaram-se há
três anos.
— Ah, até que enfim! Achei que ficaria te esperando o dia
todo! — Raquel levantou-se, arrumando a barra do vestido. Como
virou hábito, veio até mim com a mão segurando a barriga enorme.
A recepção do atelier estava vazia, a filha da costureira
costumava ficar atrás do balcão, entediada e dando respostas
petulantes a maioria das vezes, mas agora, nem ela se dispôs a vir
nos atender. Abracei Raquel de lado.
— Como está o bebê?
— Chutando — respondeu ela.
— Vamos ser pais do novo Messi, não sabia? — completou
Augusto, cumprimentando-me com um abraço.
Procurei Laura com o olhar. Ela estava encolhida atrás de um
vaso de plantas, como uma criança procurando a mãe no
supermercado.
— Acho que já conheceram a irmã de Caíque, Laura. Ela vai
ser madrinha do nosso casamento — apresentei-a.
Laura se aproximou, acanhada.
— Claro que conheço. — Augusto forçou um sorriso. —
Estudamos juntos.
Raquel e eu trocamos olhares tensos.
— Você vai passar só uma temporada aqui em Monte Verde,
Laura? — perguntou Raquel, tentando soar receptiva.
Augusto entrelaçou as mãos na frente do corpo.
— Óbvio que não. Imagino que a lista de Laura esteja
recheada de países para visitar, não é?
Ela deu de ombros.
— Caíque te conta tudo, por que não pergunta pra ele?
Raquel pigarreou, cutucando o marido. Um pedido silencioso
que ficasse quieto. Aparentemente, a relação de Augusto e Laura
não parecia ser tão amigável.
— Acho melhor… — Olhei para os lados, sem saber o que
fazer com as mãos. — Acho melhor entrarmos, tá frio aqui, né?
Augusto concordou.
— Melhor manter as mãos dentro dos bolsos, Laura.
— Depois de você, Augusto — rebateu ela, indicando o
caminho.
Dentro do ateliê era uma bagunça de vestidos de noiva,
caldas, véus e acessórios. Automaticamente me senti sufocada.
Sustentei-me em Raquel e respirei fundo.
— Ei, tá tudo bem? — perguntou ela, preocupada.
Pisquei algumas vezes, tentando firmar meus pés no chão.
— Sim. Tudo de boa.
Raquel franziu o cenho.
— Você tá roxa, Júlia.
— Estou bem — insisti.
Foquei-me em Laura a uns passos à frente, concentrada em
uma arara de vestidos de noiva. Augusto pairava ao redor dela,
como um segurança particular.
— Você contou para Augusto sobre eu e…? — Maneei a
cabeça em direção a Laura.
Raquel soltou um riso tenso.
— Você está louca? Ele não pode nem sonhar.
— Então, por que está agindo assim...?
Raquel deu de ombros.
— Isso você vai ter que perguntar para ele.
Mordi os lábios, decidida a esquecer a relação desastrosa de
Augusto e Laura. Se eu me apossasse de mais um problema, iria
explodir antes do casório. A costureira se aproximou. Era uma
mulher na faixa dos quarenta anos, simpática.
— Vamos fazer mais uma prova hoje? — perguntou ela.
— Na verdade, não, quer dizer, eu preciso, engordei um
pouco na viagem… mas hoje não, melhor não. — Olhei novamente
para Laura. — Vim trazer uma nova madrinha para experimentar os
vestidos.
— Ah, excelente! — A costureira bateu palmas, aproximando-
se de Laura. — Pelo que eu vejo, não preciso fazer muitas
modificações!
Augusto deu um tapinha no ar.
— Não se preocupe tanto, ela sempre acaba fugindo, no fim
das contas.
A costureira arregalou os olhos, sem saber o que responder.
Raquel fitou Augusto intensamente, enquanto eu só tinha olhos para
a pálida Laura.
— Eu… — Ela abaixou a cabeça, os fios rosa tampando o
rosto. — Eu acho que preciso de um tempo...
E saiu apressada, trombando em algumas araras de vestidos
ao cruzar a porta. Raquel bateu os pés no chão em uma birra.
— Augusto! Olha o que você fez!
— Eu não falei nada demais! — justificou ele, elevando a voz.
Não parei para prestar atenção na briga dos dois, corri atrás
de Laura. O rastro parou nos fundos do atelier, em um beco. Duas
caçambas de lixo lotadas de retalhos de tecido ocupavam espaço
junto a um esgoto a céu aberto. Laura escorou em uma das
caçambas, os olhos me acompanharam no momento em que cruzei
a porta até parar ao seu lado. Ela não disse nada, mas a sensação
dos nossos braços se tocando já parecia ser algo errado. Afundou a
mão nos bolsos do casaco e tirou um cigarro do maço.
— Não sabia que você fumava... — sussurrei, decepcionada.
— Só não conte para Caíque. — O cigarro na sua boca se
movia à medida em que falava. — Aceita?
Mexi a cabeça no que eu acreditei ser um não.
— Ah, me esqueci… — Laura sorriu de lado, acendendo o
cigarro. — Você tem síndrome de boa filha...
Formei um bico nos lábios como fazia quando criança. Minha
mãe teria puxado-o para me ensinar uma lição.
— Só não quero morrer antes dos 40. Câncer de pulmão, já
ouviu falar?
— Não tenho pretensões de viver por muito tempo. Mas você
precisa pensar nisso, não é? No futuro e tudo mais... Os filhos vão
estar na faculdade até lá? O casamento vai ter se desgastado?
Reservou dinheiro para as sessões de terapia de casal? — Ela
puxou a fumaça do cigarro. — Achei que estivesse ocupada demais
planejando cada ano da sua vida para ter tempo de cuidar da minha,
Júlia.
Mirei os olhos em Laura, mas ela sequer me encarou de
volta.
— Por que está falando desse jeito comigo?
Ela deu um chute no ar, frustrada.
— Desculpe. Augusto acabou com a minha paciência.
Dito isso, me afastei um centímetro em protesto. Eu deveria
fazer mais, deveria ir embora dali, porque os nossos braços se
tocavam e o cheiro de cigarro ardia a minha garganta, mas ir
embora não era uma opção quando o calor dela me aquecia mesmo
debaixo do casaco.
— Achei que vocês fossem amigos, você e Augusto —
murmurei.
Laura riu, a fumaça do cigarro saiu pelas suas narinas.
— No começo, nos dávamos bem, Augusto relevava o meu
comportamento, porque eu era a irmã mais nova de Caíque, fase
rebelde e tudo mais, mas um dia… Um dia, as coisas saíram do
controle. Fomos a uma joalheria depois da escola, era aniversário
da mamã… — Laura balançou a cabeça. — Era aniversário da
Dona Cecília, Caíque e eu decidimos comprar um pingente. Ela
amava, andava para lá e pra cá com uma pulseira cheia de
pingentes: um menino e uma menina, uma casa, um anel, e todo
ano ela completava a pulseira com mais um pingente. Chegamos na
loja e eu vi um colar de pérolas, elas pareciam brilhar, eram rosadas
e tão delicadas… Eu sabia que se pedisse ao pai de Caíque, ele me
daria, mas roubar era mais legal. Pedi a moça para olhar e quando
ela estava distraída, coloquei no bolso. Nem Augusto ou Caíque
perceberam, mas na hora da saída eu entrei em pane. Fiquei com
tanto medo que coloquei o colar no bolso de trás da calça de
Caíque.
Nós duas respiramos fundo ao mesmo tempo.
— Mas aquele dispositivo da porta apitou e Caíque assumiu a
culpa. — A voz de Laura foi diminuindo até virar um sussurro, o
cigarro já estava na metade. — Chamaram a polícia, foi uma
confusão. Caíque me perdoou, como sempre, mas Augusto nunca.
Abri e fechei a boca, sem saber o que dizer. Quando Caíque
me disse sobre a irmã entrar em problemas, não imaginei ser algo
nesse nível.
— Laura, isso é…
— Horrível? É sim, eu não era uma boa pessoa, Júlia.
Augusto tem todos os motivos do mundo para não me querer aqui.
Seu semblante estampava tanta dor, era difícil encará-la.
Abaixei a cabeça, seus dedos torciam a barra do meu casaco e,
bem devagar, entrelacei os nossos dedos mindinhos, como em uma
promessa. Um choque percorreu o meu corpo.
— Isso aconteceu há dez anos atrás, Laura, você não deve
se culpar pelas coisas que fazia quando era adolescente. Todos nós
escondemos monstros debaixo da cama, você não é pior ou melhor
que ninguém por isso — sussurrei confiante, mas ao levantar a
cabeça, fiquei presa em seu olhar. Não sei se estávamos perto
demais, mas os nossos dedos entrelaçados era algo difícil de
ignorar.
— Só não quero que ouça essas histórias e pense que ainda
sou assim — respondeu ela, mas eu estava focada em como os
seus lábios se moviam lentamente, molhados de saliva. — Quero
que se lembre de mim em Paris, nas horas que passamos andando
pelas ruas frias, compartilhando calor de mãos dadas... Na conversa
que tivemos naquele bar, nos conselhos horríveis que eu espero
que você nunca os siga. Quero que se lembre de mim daquele jeito,
sem um passado, um futuro, apenas vivendo o presente.
Fechei os olhos com força, minha respiração estava rápida, o
ar saía e entrava com a força de um furacão. Talvez estivéssemos
próximas demais, talvez eu sentisse a respiração dela perto da
minha, o cheiro de cigarro e shampoo de hotel, o leve roçar dos
nossos braços. Talvez o calor dos dedos entrelaçados me
remetesse ao calor do seu corpo, cabelos misturados à saliva e ao
suor e aqueles mesmos olhos colados nos meus, despindo a minha
alma.
Talvez eu estivesse próxima a ruir e tudo seria culpa de
Laura.
— Você não tem esse direito... — balbuciei, segurando as
lágrimas. — Não tem o direito de me pedir isso, principalmente
depois que nós prometemos, Laura. Prometemos esquecer Paris.
Pude ouvi-la engolir em seco.
— Eu não quis… não quis dizer…
Alguém saiu pela porta.
Laura e eu demos um pulo tão grande que só isso seria
capaz de nos entregar. Meu coração bateu forte no peito para
depois desacelerar em um suspiro de alívio.
— Raquel…
Fiquei envergonhada demais para continuar a frase.
— Acho melhor você entrar, Laura, a costureira quer que
você experimente o vestido — avisou ela.
Laura maneou a cabeça rapidamente e passou por Raquel
em um instante.
Sozinhas, ela se aproximou de mim, soltando um suspiro
decepcionado.
— Espero que saiba o que está fazendo, Júlia.
Não, eu não sabia.
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✽✽✽
O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? O
que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? O que
foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? O que foi
que eu fiz? O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? O que foi que
eu fiz?
Abracei o meu corpo e segurei o choro. Eu não conseguia
olhar nos olhos de Augusto, mas eu sabia a expressão dele,
decepção. Havia também raiva e era redirecionada à Laura.
— Augusto, podemos... conversar — falei, chorosa. — Se
você me der uma chance de explicar… eu posso… posso expli...
Augusto bateu a porta com força, o susto me fez pular.
Abracei-me com mais força. Eu só deveria ter me controlado, se eu
tivesse me controlado… As lágrimas inundavam a minha visão e
distorciam tudo à minha frente, se eu tivesse me controlado…
— Explicar o quê, Júlia? Tem alguma explicação plausível
para o que eu acabei de ver? — Ele olhou para mim de cima a
baixo, o nojo retorcendo as feições bonitas.
— A culpa não foi dela. — Laura se enfiou na minha frente.
Ela também estava abalada, mas diferente de mim, parecia saber
lidar com situações estressantes. — Eu estava entediada e então…
então Júlia pareceu… — A voz de Laura ficou entrecortada. — Foi
tudo culpa minha, Augusto.
Eu sabia o que ela estava fazendo, mas não consegui intervir.
Augusto bufou, incrédulo. Ele se aproximou de Laura e os dois se
encararam, cara a cara. Possuíam a mesma altura, talvez Augusto
fosse um pouco maior, já eu me sentia duas vezes menor atrás de
Laura. Ela me escondia da fúria de Augusto.
Ele passou as mãos pelo rosto, rindo sem graça.
— Eu fiquei mal quando disse aquelas coisas no ateliê… juro
que fiquei. Eu estava sendo infantil, afinal… as pessoas mudam e
eu não te via havia nove anos, Laura. Contei para Caíque e sabe o
que ele me disse? Que esses anos foram bons para você, que você
havia amadurecido, largado as drogas, que voltou a ser a garotinha
que ele se lembrava. Ele me convenceu a te dar a porra de uma
segunda chance! — Ele quase cuspiu as palavras. — Agora, eu vejo
que você continua a mesma vadiazinha ingrata de anos anos atrás,
destruindo a vida da única pessoa que ainda não desistiu de você!
Laura deu um passo para trás, como se tivesse perdido o
chão por alguns minutos.
— Desculpa, eu... — sussurrou, a voz embargada pelo choro.
— Eu não pude evitar...
A frase sumiu no ar e o silêncio foi cortado pelo choro
baixinho dela, os ombros balançavam levemente, mas Augusto não
se abalou.
— Você é um ser humano desprezível. Caíque nunca te fez
nenhum mal, ele moveu céus e terra por você, ele foi a única
pessoa que lutou por você até o fim… e agora você me diz que não
pôde aguentar não traí-lo com a noiva dele?
Agarrei os ombros de Augusto, obrigando-o a olhar para mim,
focar sua raiva em mim. Laura parecia uma estátua, parecia prestes
a desabar para nunca mais levantar. Ela não falaria nada para se
defender, achava que não tinha defesa, achava ser o que Augusto
dizia que ela era, o que todo mundo dizia o que ela era.
— Augusto, me escuta. Eu a encontrei em Paris e eu decidi
não contar nada a Caíque. Fui eu… eu contei para Raquel quando
cheguei, mas....
Augusto deu alguns passos para trás.
— Raquel sabia disso o tempo todo?
Fechei os olhos com força. Eu só piorava as coisas.
— Eu pedi para ela não te contar — acrescentei. — A culpa
foi toda minha.
— Eu estou pouco me fudendo para saber de quem é a
culpa, Júlia! — ele esbravejou. — Isso não muda merda nenhuma!
Augusto era a realidade em pessoa chutando a porta e
destruindo tudo. Entendi porque Laura estava parada no mesmo
lugar, chorando tanto que não conseguia mais falar. Eu queria
chorar sem parar também.
— Eu esperava isso vindo dela… Eu esperava tudo vindo
dela! — Augusto apontou para Laura. — Mas você… você, Júlia…
Maneei a cabeça, aceitando o que viria a seguir: “Você, a
garota pé no chão e madura, que sempre escolheu o caminho
correto”. “Você é a única pessoa que Caíque confia até de olhos
fechados”. “Você, Ana Júlia, você, que nunca fez nada de errado em
toda a sua vida.”
— Eu sei… — disse, as lágrimas desciam pelas minhas
bochechas, acumulando-se ao chegar no meu queixo. — Eu sei, eu
sei...
Augusto não conseguia me olhar nos olhos e eu não o
julgava nenhum pouco. Eu não conseguiria me olhar também.
— Vocês têm três dias — sussurrou ele, decidido. — Se não
contarem a Caíque, eu mesmo conto.
Laura saiu do torpor ao ouvir o aviso.
— Augusto, por favor… por favor… — balbuciou ela, com a
voz embargada pelo choro. — Essa é a minha única chance… Eu
não tenho nada, nada, eu só tenho eles, por favor... Eu só tenho
minha mãe e Caíque, se eles descobrirem, eu…
— Não me coloque como o filho da puta da história, Laura.
Você devia ter pensado nisso antes! — Augusto olhou para nós
duas. — Vocês têm três dias e, por favor, contem a Caíque, vai ser
melhor ele ouvir isso da boca de vocês.
Augusto bateu a porta com força ao sair. Laura desabou no
chão, chorando alto. Era difícil encará-la agora, difícil não me sentir
pior. Me ajoelhei ao seu lado, tentando erguê-la.
— Laura, Laura, olha para mim... — pedi.
Eu também chorava, chorava por mim e por ela. Por Laura e
aquele olhar esperançoso em Paris, sorrindo para o teto e dizendo:
“Vou voltar para a casa e não vou decepcioná-lo de novo”, por todas
as promessas que fez para si mesma, de que seria uma garota
diferente, que os faria se orgulhar. Na felicidade estampada ao ver
Caíque depois de longos dez anos, no abraço apertado no meio da
rodoviária. Por Caíque, que não imaginava meu envolvimento com
Laura debaixo do seu teto, porque sempre confiou demais nas
pessoas erradas. Eu chorava por ter estragado o sonho da minha
mãe. Se eu seguisse tudo como ela me ensinou antes de morrer, eu
teria uma vida boa, uma vida estável, sem preocupações, a não ser
um vizinho barulhento, uma colega de trabalho chata. Eu escolheria
a cor do esmalte para passar no fim de semana, o corte de cabelo
para parecer mais madura, a melhor escola para meus filhos, uma
babá legal. Fácil, eu teria uma vida fácil, tranquila, planejada.
Estava tudo saindo como o planejado, Caíque era um bom
amigo, era doce e divertido. Minha mãe nos abençoou antes de
partir, ela disse que ele era o homem certo.
Então, Laura apareceu.
Agarrei o rosto dela, inchado e molhado, entre as minhas
mãos. Laura soluçava, os lábios trêmulos e os olhos vermelhos, as
lágrimas não queriam parar e ela não conseguia ao menos falar,
soltava balbucios, tentativas falhas de me dizer algo. Abracei-a com
força, apertando-a sobre mim e tentando conter os tremeliques, mas
não paravam, aumentavam. A porta se abriu atrás de mim, mas não
me virei para ver quem era.
Raquel colocou um roupão sobre os meus ombros.
Olhei para cima, fitando-a em meio às lágrimas.
— As… as mulheres… lá fora…
— Mandei todo mundo embora — respondeu ela. — Tá tudo
bem.
Não estava tudo bem, estava longe de estar.
— Laura não quer parar de chorar… — falei. Ela estava em
meus braços como um bebê grande demais, era difícil segurá-la. —
Eu não sei o que fazer, Raquel.
— Primeiro, preciso que me traga um copo d’água. — Raquel
não podia se ajoelhar, mas me puxou bruscamente para cima. Ela
parecia calma, então acatei sem fazer perguntas. — Laura está
sofrendo uma crise de ansiedade, só preciso que saia e busque um
copo d’água, ok?
Não sabia se água curava crises de ansiedade ou se ela só
queria que eu fosse embora, mas apertei o roupão em meu corpo e
corri para fora do quarto. A casa estava vazia, a cozinha uma
bagunça. Parecia ter se passado dias. Meus pensamentos estavam
focados em Laura no chão, em Laura chorando, em Laura ouvindo
Augusto elencá-la como o pior ser humano do mundo. Olhei para
baixo, a água transbordava do copo e formava uma poça ao redor
dos meus pés.
Fiquei minutos encarando a poça de água aumentar, molhar
o chão da cozinha por inteiro, meus pés, escorrer para debaixo dos
móveis… Eu não conseguia me mexer, mas um bater de portas me
assustou e deixei o copo se espatifar no chão. Caíque parou na
porta da cozinha, segurando uma caixinha de doces. Eram os meus
doces favoritos, ele sempre trazia para mim na época que
namorávamos.
Recomecei a chorar.
Ele deixou os doces na pia e veio em minha direção,
encarando a mim e ao chão molhado sem saber o que dizer.
— O que aconteceu aqui...?
— A Laura ela… ela começou a chorar e… — Envolvi meus
braços trêmulos ao redor da cintura dele. — E aí… eu…
Caíque me afastou.
— Ana, o que aconteceu?
— No quarto! — gritei. — No quarto de visitas no fim do
corredor!
Caíque sumiu pelo corredor. Eu o segui, tentando não
escorregar no chão molhado. Esperava uma cena pior no quarto,
mas me assustei com o cômodo numa calma quase aconchegante.
Os cacos do espelho quebrado se espalharam por todo o
quarto, Laura estava sentada na cama de dossel, abraçando as
pernas encolhidas. Ela repousou o queixo nos joelhos. A mãe deles,
minha sogra, estava sentada atrás de Laura e trançava os cabelos
da filha enquanto balbuciava uma canção de ninar, parecida com a
que minha mãe cantava para mim. Os olhos de Laura estavam
quase se fechando.
Raquel, sentada ao lado delas, foi a primeira a nos ver
chegar.
Caíque e eu trocamos um olhar confuso.
— Mãe…? — Ele coçou a cabeça. — Achei que Augusto
tivesse te levado para fazer compras em Aiuruoca.
Escondi-me atrás de Caíque. Liliane era bastante
intimidadora, eu me arrepiava ao receber o seu olhar enviesado.
— Houve um imprevisto, querido — sussurrou ela,
concentrada nas tranças de Laura.
Eu me encolhi um pouco mais, deixei apenas a cabeça para
fora das costas de Caíque. O meu olhar e o de Laura se cruzaram,
mas ela o desviou rapidamente.
— Ana me contou — respondeu Caíque.
Eu não contei, estava longe de contar, mas ele sempre me
salvava de alguma possível discussão com Liliane. Minha sogra
levantou o olhar brevemente e me fitou com a sobrancelha bem feita
arqueada.
— Ela contou que fez Laura entrar em um ataque de pânico?
— Mãe! — Laura interviu.
Fechei os olhos com força, sussurrando um “merda”
inaudível. Caíque me olhou descrente.
— Vocês brigaram de novo?
Engoli em seco, maneando a cabeça em afirmação.
O que eu deveria dizer? “Não, querido, eu e Laura nos
beijamos ferozmente e fomos pegas por Augusto. Ah! Esqueci de
contar! Transamos em Paris e omitimos isso de você! Não é
demais?” A minha sorte foi que Raquel levantou-se da cama.
— Júlia, precisamos conversar.
Ela inclinou a cabeça na direção da cozinha e saiu porta
afora, suspirei aliviada, seguindo-a. Ser arrastada daquele quarto e
sumir do olhar julgador de Liliane era o que eu mais queria. Pela
forma como Laura estava chorando, transformei-me no próprio
Satanás aos olhos da minha sogra.
Raquel encostou no balcão da cozinha. Ela prendeu os
cabelos em um coque, estava tão suada que os pingos se
acumulavam ao redor do rosto.
— O bebê está bem — disse, antes que eu perguntasse.
Apertei o laço do roupão. Eu precisava manter as minhas
mãos ocupadas.
— Você precisa… — recomecei a frase, dessa vez
sussurrando. — Você precisa convencer Augusto a não contar a
Caíque.
Os olhos dela se estreitaram, julgando-me descaradamente.
— É com isso que está preocupada?
— Como eu não estaria? — Apontei para o quarto. — Laura
ficou daquele jeito porque Augusto nos ameaçou, Raquel. Ela nos
deu três dias!
— Augusto estava puto porque te viu desentupindo a boca de
Laura! — respondeu Raquel, entredentes. — Que merda vocês
tinham na cabeça?
— Isso não lhe dá o direito de ameaçar contar para Caíque!
— Era o que Caíque faria no lugar dele. Era o que eu
esperaria que você fizesse, se visse Augusto beijando outra mulher!
Agarrei o seu braço, suplicando:
— Eu sei, Raquel, eu juro que sei, mas eu prometo que isso
não vai mais acontecer. Raquel, por favor, ele ouve você. Eu preciso
que vá atrás dele. Augusto pode estragar tudo e…
— Você estragou tudo — respondeu ela, simplista.
Maneei a cabeça, incrédula, mas Raquel prosseguiu:
— Você estragou tudo, Júlia, pare de colocar a culpa em
outra pessoa.
— Você está falando isso porque é esposa dele, está
tentando defendê-lo, eu entendo, mas…
— Augusto está puto comigo porque eu escondi isso dele!
Porque eu, como a sua amiga, prometi não contar a ninguém. —
Raquel afundou o dedo indicador no meu peito, em oscilações entre
sussurros e vontade de me esganar. — Você está mais preocupada
com a porra do seu casamento do que com Caíque saber a
verdade, está mais preocupada com a porra do seu casamento do
que com a relação de Caíque e Laura. Acho que se esqueceu que
existe uma vida depois do casamento, merda! — Ela se aproximou
de mim, falando mais baixo ainda. — Você terá que conviver com
Caíque depois do “sim”, depois da Lua de Mel, terá que conviver
com Laura, conviver com o fato que está loucamente apaixonada
por ela. Você. Precisa. Contar — falou as palavras pausadamente.
— Eu não… Não estou apaixonada por Laura. — Engasguei.
— Você mesmo disse, disse que eu poderia esconder tudo, que não
era bom contar a Caíque e…
— Eu sei o que eu disse! Mas isso foi antes de conviver
esses últimos dias com vocês duas, Júlia! — Raquel olhou no fundo
dos meus olhos. — Seja sincera pelo menos uma vez na sua vida, o
que você sente por Laura?
Respirei fundo, fitando o teto alto da cozinha. As lágrimas se
acumulavam na beirada dos olhos. O que eu sentia por Laura? Essa
era uma pergunta com uma resposta tão dolorosamente difícil.
— O que ela te contou lá no quarto? — perguntei, temerosa.
— Júlia, eu estou perguntando sobre os seus sentimentos.
Não desconverse — Raquel me encurralou, me obrigando a pensar
sobre o sentimento há dias mal encoberto.
— Eu não sei o que sinto por Laura, mas ela me faz querer
ser livre… Me faz querer viver um dia de cada vez. Com ela, eu não
preciso me preocupar em parecer feliz, eu sou feliz. Com ela, me
entreguei como nunca pensei que me entregaria na vida e... —
Respirei fundo, sentindo um nó na garganta. — Ela é contagiante e
tem um jeito tão espontâneo e sabe viver a vida, porque acha que
perdeu tudo e agora se agarra ao que sobrou. É fácil gostar de
Laura, é fácil como respirar, mas é tão difícil esquecê-la.
Raquel suspirou, sua expressão não era boa.
— E por Caíque? — indagou.
Meu corpo se enrijeceu.
— Não tenho dúvidas quanto ao que eu sinto por Caíque. Eu
o amo.
Raquel maneou a cabeça, incrédula.
— Eu também não tenho dúvidas quanto ao que eu sinto por
você. Eu te amo, Júlia. Morávamos juntas na época da faculdade,
nos empanturramos de pipoca doce e filmes duvidosos nas sextas
às noites. Eu te amo, mas não quero me casar com você, não quero
viver um romance com você ou ter filhos com você. Eu te amo,
porque é possível amar alguém e querer tê-la na sua vida, mas não
de forma romântica. Você é grata por Caíque, por ter te acolhido em
uma cidade nova, por ter te apresentado amigos, por te fazer se
sentir pertencente a algum lugar… e acabou aí. Você não é
obrigada a amá-lo eternamente, você não deve um casamento a
ele… e filhos.
Aquelas palavras me acertaram como um soco, senti meu
corpo anestesiado, mas eu não podia aceitar aquilo, simplesmente
não podia. Era demais para a minha cabeça. E o que eu construí
nesses anos? O que minha mãe me ensinou? O sonho da casa de
bonecas, dos filhos e de um marido ideal. Estar apaixonada por uma
mulher destoava disso, eu teria que suportar as complicações, os
olhares enviesados, a sensação de perigo. Não era isso que a
minha mãe queria para mim.
Caíque entrou na cozinha e me salvou de um espiral
depressivo.
— Raquel está de saída. Ela te pediu para levá-la em casa —
falei.
Fitei o semblante decepcionado da minha amiga pela última
vez antes de me afastar. Caíque concordou com um menear, tirando
as chaves do carro do bolso.
— Tudo bem — murmurou ele.
Raquel saiu porta afora sem olhar para mim.
Capítulo oito
Espero que não me odeie tanto agora.
✽✽✽
Quando cheguei na pousada, todos ainda dormiam.
Subi para o segundo andar, o corredor estava escuro, as
arandelas penduradas nas paredes não cumpriam muito bem a
função. A pousada, por ser feita de madeira, costumava ranger na
temporada de frio e um desses rangidos me fez pular de susto.
Coloquei a mão no coração e me arrastei pelo carpete com os pés
descalços. O quarto de Caíque ficava no fim do corredor, o meu era
o do lado, o de Liliane, no primeiro andar, no entanto, um quarto de
hóspedes estava sendo usado. Escapava luz das frestas da porta.
Mordi os lábios, eu sabia o que encontraria lá dentro, mas
ignorei minhas suposições, porque assim pude girar o trinco da
porta e fingir surpresa ao ver Laura no quarto.
Recuei alguns passos.
— Me desculpe!
Ela estava de costas para mim, de frente à cama. Vestia um
conjunto de moletom preto e prendeu os cabelos em um rabo de
cavalo baixo.
— Tudo bem — respondeu Laura, sem prestar atenção em
mim.
Olhei para os lados. Eu deveria fechar a porta e sair de
fininho. Isso, fechar a porta e sair…
Entrei no quarto.
— O que você está fazendo?
Laura praguejou baixinho antes de me fitar sobre os ombros.
— Arrumando minhas coisas.
— Hm… entendi.
Fechei a porta e estiquei o pescoço para ver melhor.
O quarto em que Laura estava não recebia visitas há anos.
As cortinas precisavam ser lavadas e o trinco da porta estava
enferrujado. Era impossível manter os cupins longe da pousada, de
modo que a cama de dossel, o armário e a escrivaninha eram
rodeados de uma fina camada de poeira, mas não era propriamente
poeira, era madeira corroída. Para completar, a luz do cômodo era
amarelada, dava a sensação de estar em um aposento no século
dezenove, à luz de velas.
— Por que está arrumando suas “coisas” agora? —
perguntei, depois de um longo silêncio. Fitava as costas de Laura e
sua falta de coragem em me mandar embora. Ela dobrava algumas
peças de roupa em uma mochila, aos pés da cama.
— Porque vou embora — anunciou ela.
— Achei que não voltaria para o hotel, Caíque disse…
— Eu não vou para o hotel. — Laura inclinou a cabeça
levemente para o lado. — Eu vou embora de Monte Verde.
O ar foi puxado dos meus pulmões em um arfar surpreso.
— Você vai… o quê?
Por um minuto inteiro, fiquei esperando ser corrigida. Ela ia
mesmo embora? Como assim? Laura jogou a última peça de roupa
na cama e se virou. Sem perceber, apertei a maçaneta da porta,
com medo do que aconteceria se ela chegasse mais perto.
— É isso que você ouviu, eu vou embora — repetiu,
pausadamente.
Seu rosto ainda estava inchado.
— Você… você não pode… — Arfei, sem encontrar as
palavras certas para dizer. — Você não pode ir embora.
Laura bufou, incrédula.
— Quer saber? Vai a merda, Júlia. — Ela apontou o dedo em
minha direção. — Você vive me culpando por "arruinar o seu
casamento”. — Laura fez aspas com as mãos, imitando a minha fala
na nossa discussão, no carro. — Agora, vem me dizer que não
posso ir embora? Não era isso que você queria o tempo todo? Que
eu fosse embora?
Trinquei o maxilar, não podia aumentar o tom de voz e ceder
à provocação de Laura, Caíque estava no quarto no fim do
corredor.
— Eu queria que você fosse embora no começo, eu admito,
mas agora é diferente, agora… — Fechei os olhos com força,
respirando fundo. — Agora eu vejo como é importante vocês
estarem reunidos de novo, como uma família. Se você estiver indo
embora por mim, por favor, não vá.
— Não estou indo embora por você, estou indo embora por
Caíque. Nós pisamos na bola, Júlia, nós duas, e ele não merece
isso.
— O que te faz pensar que Augusto não vai contar? Ir
embora não vai mudar nada, Laura. Além do mais… — Minhas
pupilas estavam inquietas, procurando bons argumentos. — Além
do mais… Caíque e Liliane vão te odiar se você for embora.
— Eles também vão me odiar se eu ficar — ela contra-
atacou. — E se não for por isso, pelo que aconteceu entre nós duas,
será por outra coisa. Eu sempre decepciono as pessoas, Júlia.
Laura desviou os olhos dos meus, estavam cheios d’água.
Apreciamos o silêncio por alguns minutos, era bom para secar
lágrimas e organizar pensamentos. Olhei para baixo, para os meus
pés descalços e me lembrei de afrouxar o aperto na maçaneta da
porta, minha palma estava dolorida.
— Vai ser melhor assim, confie em mim — recomeçou Laura.
— Eu já estou bem com essa decisão.
Mas eu não estava bem com essa decisão. Saí de Paris com
a constatação de que nunca mais veria Laura em minha vida, mas
agora a possibilidade de não vê-la estava acabando comigo. Ela se
aproximou, os olhos não largaram os meus nem por um segundo.
Encostou-se na porta e escorreu até o chão, sentando-se com as
pernas esticadas.
Fiz a mesma coisa e ficamos lado a lado, ombros se tocando,
pernas esticadas e cabeças com mil pensamentos por segundos. O
chão estava frio. Laura provavelmente estava mais quentinha por
causa do moletom. Ela enfiou as mãos no bolso e tirou de lá um
cigarro, acendendo-o com um único fósforo molhado.
Em seguida, fitou-me com os olhos semicerrados.
— Não me olhe assim.
Ergui uma sobrancelha.
— Assim como?
— Assim, me julgando silenciosamente…
Soltei um riso esganiçado.
— Não estou te julgando silenciosamente, só…
— Está me julgando silenciosamente — insistiu ela.
Maneei a cabeça em negação.
— Só estou pensando que, para uma pessoa que quer
esconder do irmão que fuma, fumar há alguns quartos de distância
não é uma boa tática. Ainda mais nesse quarto, a fumaça não vai
sair pela janela, vai para debaixo da porta. Caíque vai pensar ser
um incêndio.
Laura soprou fumaça de cigarro no meu rosto.
— Ah, não acredito! — Tossi, abanando o ar. Ela começou a
rir. — Eu acabei de lavar o meu cabelo, Laura! Estava cheirando a
morango silvestre e herbal!
Ela gargalhou mais ainda.
— Cheirando a o quê...?
Enfiei um cacho em seu nariz.
— Morango silvestre e herbal.
— Ela fez uma careta, fugindo dos meus cabelos.
— Conheço esse cheiro muito bem… cheiro de gente metida
a besta!
Dei-lhe um tapa.
— Melhor do que esse seu cigarro aí, que só cheira a morte.
Laura ameaçou jogar mais uma leva de nicotina na minha
cara, mas virou o rosto no último segundo. Não adiantou nada, o
quarto estava levemente esbranquiçado. Ela o tragou mais duas
vezes antes de apagá-lo no chão, formando uma mancha
enegrecida na madeira.
— Eu não fumava há dez anos, mas desde que cheguei está
sendo difícil resistir aos vícios antigos... — Ela me olhou
intensamente. — E aos novos também.
Abaixei o olhar, sentindo minhas bochechas quentes.
— Imaginei que tivesse problemas com drogas, mas fiquei
com receio de perguntar...
— Imaginou certo.
Laura repousou a mão ao lado da minha, se eu a movesse
um pouquinho para o lado poderia tocá-la. Era engraçado a
diferença no tamanho, a mão de Laura era grande e os dedos
longos. Ela nunca usava esmalte, mas sempre tinha resquícios de
cor nas unhas quadradinhas.
— Minha mãe biológica usava cocaína — confessou ela. —
Caíque te contou?
Maneei a cabeça em negação.
— Caíque não me contou nada.
Segurei para não completar: “Ele nunca me conta nada”.
Laura suspirou, cansada.
— Acontece que, quando a mãe não interrompe o uso
durante a gestação, o bebê nasce em abstinência, viciado. Imagine,
um bebê inquieto, às vezes violento... — Ela me lançou um sorriso
triste. — No orfanato, ninguém queria crianças assim, os pais
escolhiam as crianças saudáveis, as de boa índole, que não dariam
trabalho. Os Grinberg seguiram por outro caminho. Thomás
perguntou se eu queria lanchar. Claro que eu queria lanchar, a gente
aprende desde cedo a não recusar uma oferta, ainda mais quando
envolve comida. Eles me levaram para a lanchonete e me deixaram
escolher o que eu queria comer, me perguntaram o que eu gostava
de fazer, como era na escola… Depois brinquei com Caíque até dar
a hora de voltar ao orfanato. Ele era um mandão, queria me ensinar
a andar de bicicleta, mas tinha medo que eu caísse e me
machucasse. Thomas e Liliane eram bons pais, dormiam comigo
nas noites ruins, cantavam para mim, liam para mim… — A voz dela
foi diminuindo aos poucos, até se tornar um sopro. — Às vezes, me
pergunto se arrependeram-se… Claro que se arrependeram —
concluiu, baixinho.
Mordi os lábios, sem saber o que dizer.
— Laura, eu…
— Ei, tá tudo bem… Estou limpa há oito anos. — Ela me
lançou um sorriso triste. — Decidi ir embora quando as coisas
ficaram ruins, quando comecei a vender as jóias de Liliane para
comprar cocaína e a meter Caíque em encrencas. Naquela época,
Thomás já estava numa fase avançada do Alzheimer, em alguns
dias, achava que eu tinha nove anos e me chamava de “indiazinha”,
em outros, era agressivo, contava histórias sobre como o “meu
povo” tratou mal os antepassados dele. “Indígenas ingratos”, dizia.
— Uma linha se formou na sua sobrancelha. — E nem sabia que
tinha ascendência indígena, até hoje não sei nada sobre meus pais
biológicos, mas ouvir aquelas coisas de Thomás me despertou.
Percebi que nunca teria uma casa e que não precisava ficar aqui,
presa nessa cidade dos infernos, vivendo da forma que os meus
pais adotivos queriam. Foi libertador.
As lágrimas corriam pelo meu rosto, deve ser um alívio sair
das amarras.
Laura perdeu o apoio da família e lidou com o vício enquanto
precisava de dinheiro para sobreviver. Uma raiva revirou o meu
estômago. Foi fácil para Caíque e Liliane excluírem Laura de suas
vidas, como se ela fosse um cãozinho adotado cheio de problemas.
Afundei o nariz na manga do seu moletom. Laura ainda tinha um
aroma próprio, mesmo com o cheiro do cigarro estragando tudo.
— Eu sinto muito.
Ela me deu um beijo no topo da cabeça.
— Eu também sinto, Ana.
Fiz uma careta ao ouvi-la falar o meu primeiro nome. A Ana
não transaria com a irmã do noivo dela, a Ana não estaria em uma
confusão mental, a Ana só se importava com o casamento, com os
filhos e com a mãe. A Ana era a primeira namorada de Caíque e
nunca iria decepcioná-lo.
Os minutos passaram lentos, o calor aconchegante do corpo
dela era o suficiente para mim. Não sabia se Laura me causava isso
por ser um amor impossível ou por ser Laura, uma mulher
naturalmente atraente.
— Vou sentir a sua falta, chérie — sussurrei.
Ela se remexeu.
— Pois não deveria.
Encaramo-nos, Laura desviou o olhar.
— Qual o próximo lugar? — perguntei.
— Ainda não sei.... — A incerteza nublou as suas feições. —
Alguma sugestão?
Enrolei um cacho nos dedos, pensando.
— Rússia?
— Definitivamente, não. Algum lugar que faça calor, por favor.
— Cuba?
— Já fui lá umas cinco vezes...
— Vaticano?
— Não sou católica.
— Havaí?
— Clichê demais.
— Mais clichê que Paris?
Ela fez uma careta engraçada.
— Não quero pisar lá tão cedo.
Soltei uma risada sem graça.
— Desculpa se estraguei a sua experiência na Cidade Luz.
Inclinei-me na direção dela. Falei para mim mesma que era
por causa do frio, que precisava aproveitar antes que fosse tarde
demais.
— Argentina? Colômbia? — tentei.
— Outro — pediu ela.
— Minha… — Fechei a boca antes que saísse “minha cama”.
—… Nossa, lembrei de um lugar super legal.
Laura me olhou com uma expressão engraçada, felizmente
não percebeu a gafe.
— Você fez aquilo de novo.
Ou não.
— Aquilo o quê? — perguntei, nervosa.
Ela descansou as mãos em cima do joelho.
— Dizer algo pela metade. Você é expert em fazer isso,
começar uma frase e não terminar.
— Ah, claro, o lugar… o lugar que eu pensei… — Por que
todos os países sumiram da minha cabeça? — O lugar que eu
pensei foi…
Ela apontou para mim, rindo.
— Fez de novo.
Comecei a rir também.
— Foi mal, eu me esqueci!
Minha atenção parou na sua boca, foi automático. Os lábios
de Laura eram bem desenhados, amarronzados e contrastavam
com os dentes branquinhos… Olhei para cima, ela estava me
encarando.
Desviei o olhar.
— Então… — Esfreguei a palma suada na coxa. — Acho
melhor eu ir embora… antes que eu faça algo que me arrependa —
acrescentei.
Laura me deu uma ombrada.
— Como experimentar o meu cigarro?
— Como ir embora com você — confessei, por cima da sua
fala.
Percebi a gravidade do que falei assim que as palavras
saíram da minha boca. Eu estava maluca? Como eu cheguei a
pensar na possibilidade? Como cheguei a dizer em voz alta?
— Era brincadeira. Foi… foi uma brincadeira de mau gosto…
— gaguejei.
Levantamo-nos no mesmo momento. Ela parecia querer ler
algo em minha expressão, mas eu não conseguia olhar para cima, o
chão parecia mais atraente.
Laura pigarreou.
— Acho melhor você ir.
Continuei parada.
— Certo… — Pisquei algumas vezes. — Vou indo.
Meu corpo estava pesado, andar exigia um esforço muito
grande. Eu estava com medo de sair daquele quarto e nunca mais
ver Laura. A ficha finalmente caiu, ela iria embora, iria embora para
nunca mais voltar. A maçaneta estava fria demais, minha visão
embaçada pelas lágrimas acumuladas. Abri a porta, a penumbra do
corredor parecia me engolir.
— Júlia? — chamou Laura, baixinho.
Virei-me esperançosa demais.
— Sim?
Ela estava parada no mesmo lugar.
— Não conte nada a Caíque, por favor. Se ele descobrir, não
vai me deixar ir.
— Okay. — Não contar a Caíque, seria impossível há alguns
meses atrás, mas agora mentir para ele se tornou fácil. — Prometo
não contar nada.
Laura tirou um papel do bolso do moletom.
— Eu ia deixar isso no seu quarto, mas… mas fiquei com
medo de alguém pegar...
Toquei nos dedos de Laura ao agarrar o papel. Era isso? Era
essa a despedida? Com um bolo de angústia no peito, virei-me
pronta para partir, mas, no último momento, retornei e dei-lhe um
selinho. Era o último, era só para sentir a pressão dos seus lábios
nos meus, só para não esquecer como era gostar tanto de alguém
ao ponto de um selinho me fazer tremer.
Eu estava apaixonada por Laura, aceitei naquele momento,
mas ela era uma possibilidade distante demais, avassaladora e
intensa. Deixarei-a para uma versão mais corajosa de mim.
— Boa viagem — sussurrei.
— Bom casamento — retrucou ela, com um sorriso de lado.
Com os corpos ainda próximos, contive o impulso de colar os
lábios novamente nos dela.
— Eles não se arrependeram.
Ela me olhou confusa.
— Eles…?
— Seus pais, eles não se arrependeram. Eu também não me
arrependi, Laura. É impossível se arrepender de ter conhecido
alguém como você.
Fitei o universo inteiro dentro dos olhos lacrimejantes dela.
Sai do quarto sem olhar para trás.
✽✽✽
✽✽✽
✽✽✽
✽✽✽
O cheiro de éter, medicamentos e fraldas tomava conta da
sala de recepção verde clara. A voz da atendente atrás do balcão se
mesclava ao silêncio da maternidade. Atrás dela, um corredor
escuro desembocavam nos quartos e, vez ou outra, o choro de um
bebê atravessava o silêncio. Caíque entrelaçou os dedos ao redor
da cabeça, os cabelos despontavam para todos os lados. Laura, ao
lado dele, aparentava estar ainda mais cansada, as olheiras tinham
um aspecto arroxeado. Ela olhava para um ponto fixo no chão, sem
ao menos piscar.
Sentei-me na cadeira vaga, no meio deles. Era como estar ao
lado de icebergs, não havia calor, palavras de afeto ou qualquer tipo
de comunicação. Meus pensamentos estavam fixos naquela mesa
de jantar, no ponto crucial do meu discurso. Eu parecia outra pessoa
agora. Acho que é isso que grandes acontecimentos fazem com a
gente, nos dividem em um antes e um depois.
Passos ressoaram no corredor até Augusto surgir na
recepção. Ele se aproximou sorrateiramente.
— Laura?
Ela levantou a cabeça, aérea, e encarou Augusto.
— Aconteceu alguma coisa? — Passou as mãos na saia,
levantando-se.
— Não, não, eu… — Augusto pigarreou. — Eu queria
conversar com você… Na verdade, agradecer por ter nos ajudado.
Laura piscou algumas vezes, como se Augusto falasse em
outra língua.
— Não precisa agradecer, eu fiz o que qualquer um, no meu
lugar, faria.
— Mesmo assim, se não fosse por você… — Augusto se
interrompeu, olhando para os lados. — Podemos conversar…
sozinhos?
Um silêncio reinou até Caíque e eu entendermos o pedido.
Ele se levantou primeiro.
— Vou ver Maria Clara no berçário.
— Ah, é.. eu… eu... — Levantei-me um pouco zonza. — Eu
vou ver Raquel.
Caíque e eu seguimos para a mesma direção ao mesmo
tempo e trombamos. Ele foi para o lado contrário e eu também,
esquerda, direita, esquerda, direita, mas depois de segundos
constrangedores, conseguimos sair da frente um do outro. Fiquei
aliviada ao ponto de esquecer de perguntar onde era o quarto de
Raquel. Estava mais preocupada em colocar um pé na frente do
outro, não tropeçar, não desabar em choro... Por sorte, a porta de
Raquel era a única aberta.
Ela sorriu ao me ver, estava deitada na cama, vestida com
uma camisola hospitalar.
— E, aí, mamãe? — sussurrei.
— E, aí? — Ela me chamou para entrar com um menear.
Fechei a porta devagar e me aproximei da cama, ainda
receosa. O quarto tinha paredes azul bebê, uma cadeira de ninar e
persianas de nuvenzinhas. A mesa metálica, ao lado da cama de
Raquel, continha alguns recipientes cheios de um líquido branco-
claro.
— Maria Clara não pegou o peito ainda. Augusto estava me
ajudando a tirar. — Ela deu batidinhas no seio, rindo. — Me conte,
como você está?
Sentei ao seu lado enquanto torcia a barra do casaco, como
uma irmã mais velha visitando a mãe no hospital.
— Eu que deveria fazer essa pergunta, você acabou de ter
um bebê em uma mesa de jantar, eu só… só cancelei o meu
casamento.
Raquel riu.
— Vai ser uma boa história para contar daqui há uns anos,
não vai?
Sorri, triste.
— Vai sim.
Nos encaramos, cheias daquele sentimento que aperta o
peito e dói a garganta.
— Venha cá — chamou Raquel. Ela deixou um espacinho ao
lado, aconcheguei-me, recebendo um beijinho no topo da cabeça.
— Acho que não somos mais as mesmas garotas de antes, não é?
— Não, não somos — sussurrei, já chorando.
A Ana pensou que nada daria errado se seguisse tudo à
risca. Ela só se esqueceu que pessoas mudam, imprevistos
acontecem e nada pode ser milimetricamente calculado.
— Você sabe o que fazer agora? — perguntou Raquel.
Funguei em meio ao choro, culpando-me por molhar a
camisola dela com lágrimas.
— Não, e é desesperador não saber, mas preciso terminar o
que comecei... Mesmo que seja tarde demais. Acho que perdi os
dois, Quel.
Raquel arrastou um cacho para trás da minha orelha.
— Ah, Júlia… você se apaixona com a velocidade de um raio
e com a intensidade de uma bomba.
Nós rimos.
— Isso não é bom? — perguntei.
Ela maneou a cabeça, em dúvida.
— Às vezes sim, mas você passou a vida inteira apaixonada
por alguém, estava em um relacionamento de oito anos… Vai ser
bom passar um tempo sozinha. Você precisa se conhecer, precisa
saber como é viver sem fazer planos com outro alguém. Um dia de
cada vez, entende?
Um dia de cada vez, sem planilhas, sem correria, sem
pressão, parecia algo utópico demais. Apertei Raquel contra mim,
ouvindo-a soltar um "ai" baixinho, misturado a um riso.
— Eu não sei se consigo — sussurrei.
— É claro que consegue — respondeu ela. — Eu acredito em
você. Termine o que começou e comece outra vez, planeje e depois
desplaneje. Viva, Júlia, tem um mundo maravilhoso de
possibilidades não planejadas.
Esse mundo pareceu muito mais palpável naquele momento.
✽✽✽