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Valentina Ferreira

PS. Lembre-se de
Paris
Copyright © 2021
Todos os direitos reservados.
Autora (Pseudônimo):
Valentina Ferreira
Revisão:
Tácira Bueno
Para os leitores que sempre acreditaram em mim.
E para Táci, obrigada por me apoiar incondicionalmente.
Capítulo um
Uma despedida de solteiro diferente

Paris é mais bonita que nas fotos, porém é mais suja. Se você não
está acostumado a ver ratos andando em plena luz do dia, pense
bem antes de ir a Montreal — lá, as ruas são lindas, no entanto, o
cheiro horrível dos esgotos vai revirar o seu estomâgo. É o maior
viveiro de ratos a céu aberto que eu já vi em toda a minha vida.
Se quiser visitar a Torre Eiffel para pedir a mão da sua
namorada em casamento ou apenas atualizar o feed do Instagram,
precisa ir bem cedo. A fila é de rodar os quarteirões, e dependendo
do clima, é uma espera torturante. Notre Dame é belíssima e tão
real que cheguei a acreditar que o Corcunda estava batendo os
sinos em algum lugar lá dentro, mas a missa é muito chata. “Pense
pelo lado positivo!”, minha consciência me alerta. Se você não
entender francês ou latim, a voz monótona do padre é um ótimo
sonífero.
Durante esses cinco dias de estadia, essas foram as
conclusões sobre a Cidade Luz que cheguei, porém só consegui
verbalizá-las enquanto atravessava a Boulevard Haussmann — uma
avenida movimentada e lotada de boutiques, no centro — na
companhia do meu noivo, do outro lado da linha. Com a mão livre,
impedi meus cabelos de grudarem no gloss labial. O sobretudo bege
voava por conta da brisa fresca e o som dos meus saltos tilintando
no concreto criaram o cenário perfeito na minha mente: a
protagonista de um filme de comédia romântica, aquelas que
passavam na Sessão da Tarde.
O sinal estava fechado, mas apressei o passo a fim de
concluir o trajeto a tempo. Os parisienses eram péssimos
motoristas, avançavam no verde, dirigiam acima do limite permitido
e xingavam aos montes, mais do que o considerado normal. Eu
estava curiosa para saber sob qual circunstância era dada uma
carteira de motorista para alguém que não reconhecia uma faixa de
pedestres.
— Até agora você só falou mal de tudo, Ana Júlia, como
posso pensar que está se divertindo? — contestou Caíque.
Pressionei o celular com mais força contra o ouvido.
— Você sabe que sempre vejo o copo meio vazio, amor —
respondi, desviando de um Sedan que buzinava intensamente,
como se assim, o sinal fosse ficar verde. — Mas me diz, como é aí?
Os cariocas são como as pessoas falam?
Alcancei o outro lado da avenida com um suspiro,
assentando os cachos rebeldes. A calçada estava abarrotada de
turistas tagarelando em vários idiomas, apontando para as fachadas
das lojas, ou apenas como eu, conversando no celular. No meio das
boutiques, uma padaria pitoresca chamou a minha atenção. O
cheiro de pão recém saído do forno me levou para dentro dela.
— Aqui é barulhento... — respondeu Caíque, sua voz se
misturava ao funk do momento. — E as pessoas estão peladas na
rua, achei que fosse coisa de novela.
— Não seja preconceituoso — retruquei.
— Vi com os meus próprios olhos uma garota com papel
higiênico colorido enrolado no corpo, em pleno calçadão — rebateu
ele, a voz oscilando em um começo de embriaguez.
— É carnaval, o que você esperava?
Na mesa de pães, várias opções saltavam aos olhos:
pãezinhos, broas, biscoitos doces e mais algumas massas com algo
doce. A padaria era pequena, mas estava cheia de gente.
— Como diz “Me dê essa broa, por favor” em francês?
— “Donne-moi ce pain, s'il te plait? — respondeu Caíque.
Aproximei-me do senhor responsável pelos pães e repeti o
comando, apontando para a broa desejada. Ele sorriu em resposta e
começou a embalá-la.
— E como se fala “sexo a três” em carioquês? — perguntou
Caíque, zombeteiro.
— Suruba? — arrisquei. — Eles falam português, Caíque,
apesar do chiado.
Ele gargalhou.
— Devo admitir que me irrita e... Ei! Espera aí! — Um som
abafado cortou a ligação. — Amor, depois eu te ligo!
Franzi o cenho.
— Caíque…?
— Te amo!
Ele encerrou a chamada.
Encarei a tela do celular com o cenho franzido, enquanto a
foto de Caíque na frente do Cristo Redentor me fitava de volta. Ele
imitava a pose característica de todo turista que se dispõe a pagar
caro para ver a estátua de perto.
Com a broa devidamente embalada, caminhei até o caixa,
mas uma vertigem me obrigou a parar e respirar fundo. Caíque deve
ter visto uma garota bonita, parecida com as blogueiras nas curtidas
em comum do Instagram dele ou, quem sabe, uma garota ousada
que o puxou para um beijo. Eu não o julgava, Caíque estava
aproveitando a despedida de solteiro, diferente de mim.
Empurrei esse pensamento para o fundo da minha mente,
entreguei a comanda ao atendente e abri a bolsa, procurando por
minha carteira.
Não a achei.
Ela devia estar no meio da bagunça de cartões postais e
notinhas de lojas guardadas durante esses cinco dias de estadia,
mas depois de segundos de desespero, somado a pressão do
atendente e da fila crescente atrás de mim, aceitei o ocorrido: perdi
a minha carteira. Meus olhos se encheram d’água, identidade e
outros documentos estavam lá.
Sem saber como explicar ao senhor do caixa o incidente,
engasguei com um inglês nervoso:
— Senhor… Me desculpe, é que...
O semblante do homem se fechou em uma carranca e, de
repente, uma pessoa surgiu ao meu lado, uma mulher. Ela tirou
algumas notas amassadas do bolso, entregou ao atendente e, após
uma conversa rápida com o francês, acompanhou-me para fora da
fila.
Se eu pudesse ficar vermelha estaria igual a um pimentão.
— Muito obrigada. Eu perdi a minha carteira e... Na verdade,
acho que fui roubada — expliquei em um inglês confuso. — É, eu fui
roubada.
A ficha caiu só naquele momento. Eu fui roubada.
Paramos na porta da padaria, eu hiperventilava:
— Eu nunca fui roubada antes, eu moro em uma cidade
pequena, sabe? Mas não costumo vacilar… — acrescentei, só que
dessa vez, em português.
A mulher assentiu, respondendo-me no mesmo idioma:
— Você pensa que ser assaltada envolve facas, uma arma ou
um pedido meio apressado para passar a bolsa, mas aqui eles não
fazem assim. Os assaltantes amam aplicar golpes furtivos em
turistas, todos estão encantados demais com as luzes para prestar
atenção na bolsa.
Pisquei algumas vezes, confusa.
— Você é brasileira?
Ela riu.
— Você sempre vai encontrar um onde quer que vá.
Ela tomou iniciativa para sair da padaria e eu a acompanhei
aos tropeços. A noite se mesclava ao dia, mas os postes de luz
ainda estavam acesos e lançavam um filtro amarelo ao entardecer.
Em algum ponto ao leste, o badalar de Notre Dame me lembrou de
fechar os botões do sobretudo, cobrindo o decote acentuado do
vestido. Paris nunca pareceu tão Paris como naquele momento, a
Paris romântica dos filmes.
A mulher parou de supetão, fitando-me com o cenho
franzido.
Ela esperava uma resposta para uma pergunta da qual eu
não ouvi.
— Me desculpe, poderia repetir? — pedi, envergonhada.
Deve ter sido tão fácil me roubar.
Ela sorriu mais largo, parecia fazer muito isso: sorrir. Só
nesses dois minutos em sua presença, não vi outra expressão a não
ser aquela. Os cabelos rosa pastel batiam nos ombros e a franjinha
rala realçava o rosto anguloso, já os olhos eram pequenos e os
cílios espessos. A pele marrom-avermelhada destacava-se contra a
luz noturna. Quanto às roupas, eram simples, mas ao mesmo tempo
expressavam um estilo premeditadamente desleixado. Diferente de
mim, que gastei minhas economias para parecer a nova versão da
Emily em Paris, aquela mulher vestia uma jaqueta de couro surrada,
calças jeans rasgadas e uma bota de cano médio.
— Eu disse que sim, moro aqui, mas temporariamente. — Ela
pulou para o ladrilho da calçada, os braços abertos, buscando
equilíbrio ao andar. — E eu perguntei onde você mora.
Coloquei-me a caminhar ao seu lado, encarando o chão.
— Moro no Brasil, Minas Gerais, mas estou passando uma
semana aqui.
Ela levantou uma sobrancelha.
— Eu sou mineira.
— Wow, que mundo pequeno!
Eu não sabia o porquê continuava a seguindo, talvez
esperava uma oportunidade para lhe agradecer de forma
apropriada.
— Fui embora de lá há muito tempo. Mas e você? Venho
passar as férias aqui?
— Despedida de solteiro. Minha, no caso. Vou me casar
daqui há quinze dias.
Ela arqueou as sobrancelhas, surpresa.
— Mas é uma longa história… — acrescentei, rindo.
Ela saiu de cima dos ladrilhos e começou a caminhar na
minha frente.
— Bom, acho que temos tempo.
Franzi o cenho.
— Tempo?
— É. — Ela olhou para cima, como se pudesse descobrir as
horas apenas analisando o céu azul escuro. — Ou você vai me
negar um pedaço dessa broa?
Lá estava aquele sorriso de novo e uma certeza estranha nas
palavras, como se fôssemos amigas há bastante tempo e
tivéssemos nos encontrado por acaso. Ela não precisou de uma
resposta, já estava a bons passos de distância.
— Ei, espera! Eu não sei o seu nome! — gritei.
— Laura! — respondeu ela, em meio ao riso.
Os cabelos rosa farfalharam em consequência do vento forte,
pegou-nos de surpresa, e os fios espalharam-se como plumas pelo
rosto dela.
— Prazer... — Apressei o passo para alcançá-la, engolindo
um arfar cansado. — Júlia!
Me manter em cima de um salto quinze nunca foi tão difícil.
Pareada a Laura, recebi seu olhar de esguelha.
— Vamos, Júlia, estou morrendo de fome.
Não tive outra alternativa a não ser acompanhá-la pelas ruas
movimentadas de Paris.

✽✽✽

Andamos por mais duas quadras até chegar a um bistrô.


Antes disso, atravessamos uma ruela onde carregadores levavam
trigo para os fundos de um restaurante — ficamos com uma fina
camada branca pelo corpo, rindo em meio às partículas no ar — e
passamos por alguns casais apaixonados, esperando tirar fotos em
uma cabine fotográfica instantânea.
O bistrô para o qual Laura me levou era mais um achado que
eu nunca teria feito sozinha. O local era pequeno, com o teto baixo e
uma iluminação precária, mas havia pessoas declamando poesia,
jazz nas caixas de sons e adolescentes jogados em puffs, mexendo
em notebooks. Laura parecia conhecer bem o lugar, guiou-me por
entre as diversas tribos até entrarmos em uma sacada suspensa,
feita de vidro.
Mesas e cadeiras estavam dispostas a espaços longos. A
vista para o rio Sena, margeado por luzes amarelas, dava o toque
final. Caminhei lentamente até a borda do vidro, a noite estrelada
enchia os meus olhos.
Laura parou ao meu lado e apontou para o horizonte através
do vidro.
— Quer tirar uma foto?
— Não. — Soltei um suspiro maravilhado. — Ver é o
suficiente.
Enquanto eu estava embasbacada no meio do caminho,
Laura pediu nossos drinques. Chegaram no momento em que nos
sentamos em uma das mesas. O líquido rosa e azul dividia espaço
com uma azeitona enfiada no palito.
Chupei o pálido, a bebida era doce. O pior tipo, me
embebedava rápido.
— Meu marido teria gostado disso — falei, rodando o anel de
noivado no dedo.
Laura tomou um gole da sua bebida, os lábios abraçaram a
borda da taça de uma maneira tão pecaminosa. Uma onda de
calafrio percorreu a minha espinha.
— Ele também está aqui, em Paris? — Ela quis saber.
— Não, ele não está. Decidimos fazer uma despedida de
solteiro diferente, mas é bobeira, e é difícil de entender e...
Laura levantou uma sobrancelha.
— Tente, Júlia.
Puxei o ar pela boca, repentinamente pressionada. Como eu
iria explicar? Somente meus amigos próximos sabiam desse acordo
entre eu e meu noivo, e não estava nos meus planos confessar isso
a ninguém desconhecido, mas o jeito desafiante de Laura me
deixava eufórica. Era como se estivéssemos em um jogo.
— Eu sou bissexual — falei.
Laura piscou algumas vezes, processando a informação e, de
repente, começou a gargalhar.
— Prazer, lésbica. Estamos em algum quizz LGBT da
BuzzFeed?
— Você não entendeu o meu ponto, Laura — retruquei.
Seus lábios se repuxaram em um sorriso malicioso.
— Então me conte, o que a sua sexualidade tem a ver com
sua despedida de solteiro, chérie?
Tomei um gole da bebida, sentindo-a descer queimando a
minha garganta.
— Tudo.
— Esclarecedor... — Ela segurou o riso ao ver minha
expressão se fechar em uma carranca. — Me desculpe, continue.
Agradeci com um menear rápido de cabeça.
— Nunca tive a chance de ficar com outras pessoas, de
nenhum dos sexos, porque comecei a namorar muito cedo. Meu
noivo e eu estamos juntos há oito anos e agora, antes de nos
casarmos, resolvi... experimentar. Se não for agora, não vai ser
nunca mais, certo?
Laura repousou os braços na mesa, os dedos longos tocando
levemente o queixo.
— E então escolheu Paris? A cidade do amor?
— E ele escolheu o oposto — completei.
Ela semicerrou os olhos, pensando.
— Rio de Janeiro — falamos ao mesmo tempo.
— Wow… — Laura arregalou os olhos, surpresa. Seus dedos
inquietos tocavam a borda da taça delicadamente, não conseguiam
ficar parados. — Já fui lá uma vez, época de carnaval... Aposto que
ele terá histórias para contar quando voltar e algumas posições
sexuais novas.
Era de se esperar que eu risse, ela esperava, mas apenas
suspirei, pensativa. Não sei qual expressão estampou o meu rosto,
mas Laura pousou a mão em cima da minha, retirando-a depois em
um misto de constrangimento.
— Desculpa, eu não quis…
— Não, não, está tudo bem. — Balancei as mãos em um
sinal de tranquilidade forçada. — Eu só… Bem, para começo de
conversa, fui eu que tive essa ideia, sabe? Fiquei com medo de me
arrepender depois de casar, mas já se passaram cinco dias comigo
aqui, vou embora amanhã e não fiquei com ninguém.
Obriguei-me a calar a boca. Estava contando toda a minha
vida a uma completa desconhecida. Laura ignorou o resto da
confissão para se focar em um aspecto.
— Você parece ser uma pessoa que pensa bastante no futuro
— disse.
Não me surpreendi ao ouvir aquilo, era um comentário
recorrente a respeito das minhas escolhas — muitas vezes,
proferido em tons diferentes de animosidade. Mas Laura não
pareceu me julgar, era só um apontamento, um pensamento dito em
voz alta.
— E não é algo para se pensar? — retruquei.
— Não, Júlia, de jeito nenhum! — Era quase infantil o modo
como seus lábios franziram, como uma protagonista expressiva de
um seriado cartunesco. — O futuro é para ser vivido, não planejado,
quando você planeja demais acaba deixando a melhor parte de
lado.
Minha garganta formou um nó.
— E posso saber qual seria a melhor parte?
— A imprevisibilidade, óbvio — respondeu Laura. Parecia ter
conversado sobre esse assunto tantas vezes que decorou as
réplicas. — Não saber o que o futuro reserva é a parte mais
divertida de viver, não acha?
Fiquei presa a essa última fala. Laura começou a atacar a
broa, ora ou outra tirava um fio de cabelo do rosto, dizia uma
curiosidade sobre Paris enquanto mastigava e me tocava
ocasionalmente. Nesse meio tempo, as taças ficaram vazias.
Planejei meu casamento por longos três anos. Assim que
Caíque e eu entramos na faculdade, eu sabia o final daquilo: ele se
formaria primeiro e ganharia um emprego como professor, e apesar
da docência não ser o seu lance, faria isso por nós, porque não
podíamos morar na pousada de sua mãe por muito mais tempo,
precisávamos conseguir algo nosso. Eu também deixaria alguns
sonhos de lado, já que as crianças estavam planejadas para o ano
que vem e minha vida orbitaria ao redor delas.
Idealizei o meu casamento com afinco: planejei três filhos,
uma rede de apoio e tempo livre nos fins de semana. Planejei tanto,
quis tanto e estava esperando há tanto tempo esse casamento, mas
agora não sabia se queria.
Dentre todas as variáveis previstas, a a incerteza não foi uma
delas.
Laura continuou a falar e foi bom, porque me deu tempo para
pensar enquanto a bebida fazia efeito. Em menos de uma hora,
cheguei naquele certo percentual de álcool no sangue onde
fazíamos coisas das quais nos arrependíamos depois.
Me inclinei na mesa e interrompi a fala de Laura.
— Quer transar? — perguntei, tentando soar sexy.
O esforço inusitadamente deu certo. Laura paralisou como
um robô desconfigurado e entre piscadas rápidas e queixo caído,
respondeu:
— Claro. Por que não?

✽✽✽

Após me levantar, o álcool subiu de uma só vez, andar em


linha reta se tornou impossível. Em contrapartida, Laura gargalhava,
não falava nada com nada e se sustentava em mim. Ríamos do
vento e, numa parte do trajeto, ela precisou formar uma barreira
para que eu fizesse xixi atrás de uma lata de lixo.
Ela morava num prédio de tijolinhos vermelhos, em um bairro
perto do centro de Paris. A escadaria era estreita e iluminada por
uma lâmpada precária. Subimos uma atrás da outra, com Laura na
frente. A silhueta mal iluminada aumentava a minha ansiedade, mas
ao passarmos pela escadaria do segundo andar, reuni coragem
para apertar a sua bunda.
Laura se virou e, sem ressalvas, me beijou. Era a primeira
vez que eu beijava alguém a não ser Caíque e todas as novas
sensações desse ato se tornaram surpreendentes. Sentei-me nos
degraus e ela montou em cima de mim. Minha libido, antes
desaparecida pelo estresse do casamento, voltou com a intensidade
de um tornado. Nossos quadris se encontraram e Laura fez questão
de esfregar os seios nos meus enquanto descia os beijos pelo meu
pescoço. Enfiou a mão por debaixo da minha blusa até um grito
preencher os nossos ouvidos.
No fim da escadaria, uma mulher e mais duas crianças
estavam paradas.
A mulher tapou os olhos das crianças.
— Ai meu… Deus? — exclamei, com metade do seio direito
para fora.
Laura se enrijeceu.
Ainda nos observando, ela começou a gritar: “Quelle salope!
Quelle salope! Horrible!” com a potência de uma cantora de ópera e
subiu as escadas com as mãos balançando no ar. Laura me puxou
para cima, a mulher quase nos alcançou. Subimos as escadas como
se nossas vidas dependessem disso e, se fossemos medir a fúria
daquela mulher, acho que dependiam. Chegamos no terceiro andar,
o fôlego precário e a coordenação motora falha. Laura se jogou
contra uma das portas e repousou as mãos nos joelhos. O ar quente
salpicado de cigarro e poeira preencheu os meus pulmões de uma
só vez, o suor empapou a gola do meu sobretudo.
Em poucas horas, ganhei energia suficiente para preencher
os meus dias tediosos em Paris.
Encostei-me ao lado de Laura a fim de recuperar o fôlego,
mas ela me puxou para um beijo. Nossas bocas se chocaram,
afoitas, e sua língua passeou pela minha, me descobrindo e me
engolindo. Um sentimento crescia no meu estômago, uma
adrenalina nunca sentida antes, era como se estivéssemos fazendo
algo errado, como se fôssemos ser pegas. Continuamos com o selar
enquanto Laura tentava abrir a porta do apartamento.
Era um kitnet perfeito para uma pessoa morar sozinha. A sala
e o quarto eram um só e a cozinha era compacta, mas continha
todos os móveis necessários: geladeira, fogão e uma mesa de dois
lugares. Laura me conduziu entre passadas difíceis pelo cômodo até
cairmos na cama. Ajeitei-me em cima dos lençóis, me sustentando
pelos cotovelos e admirei-a acima de mim. Os cabelos rosa eram
uma bagunça e o peito subia e descia abruptamente. O sorriso
ainda estava lá, completamente malicioso. Ela abriu as minhas
pernas e se colocou no meio delas como se fosse algo familiar,
como se sempre acabasse ali no fim do dia, sussurrando
obscenidades no meu ouvido.
— Você é muito gostosa, sabia? — disse, enquanto meu
lábio inferior sofria, preso entre os seus dentes.
Sorri como resposta, apertando as coxas ao redor do seu
quadril. O imediatismo foi embora naquele instante, porque Laura
estava empenhada em me fazer gozar sem tirar as minhas roupas.
Minha calcinha estava molhada, fiquei surpresa pela gravidade não
cumprir o seu trabalho e fazê-la escorrer entre as minhas pernas
sem que eu precisasse baixá-las. Sem pressa, eu só queria
aproveitar as horas daquela única noite de liberdade antes de
colocar uma aliança no dedo, antes dos filhos e de todas as outras
responsabilidades que me esperavam no Brasil.
Com a mão, Laura buscou o caminho tortuoso no meio das
minhas pernas, porém um grande empecilho ressurgiu de repente:
eu nunca transei com uma mulher antes.
Eu nunca transei com outra pessoa antes.
“Vai dar tudo certo”, repeti mentalmente. Eu estava ali para
fazer aquilo, mesmo sem planejamento. Não me depilei ou me
limpei e não sabia como o sexo entre mulheres funcionava na
prática, mas já vi vídeos pornograficos dos quais não me orgulho,
onde garotas dividiam um pênis de borracha e enfiavam os dedos
com unhas grandes umas nas outras. Desde aquele tempo,
compreendia que não era assim que as coisas aconteciam.
Afundei a cabeça no travesseiro, lembrei-me da minha
melhor amiga, Raquel, falar algo sobre… sobre língua! Isso, tinha a
ver com língua! Língua era importante! Mas eu não deveria levar
essa preocupação adiante, certo? Laura sabia o que estava
fazendo, seria pior se nenhuma de nós soubéssemos. No entanto,
não mudava o fato de eu parecer uma mulher totalmente não-
planejada.
Parei o beijo.
Laura levantou o rosto, antes no meio dos meus seios.
— Júlia? Aconteceu alguma coisa?
O escuro do cômodo não escondia o rubor dos seus lábios,
brilhavam graças à saliva. A janela atrás de nós, aberta e com o
letreiro de um motel qualquer em um roxo e azul, emitia luzes pelo
rosto de Laura. Ela me fazia perder o fôlego.
Molhei os lábios, o seu gosto preencheu a minha boca.
— Eu saí do hotel, tipo, nove horas da manhã e… e eu
passei o dia todo na rua… meu banho tá meio vencido e… — Olhei
para os lados, envergonhada. — Você se importaria se eu me
lavasse antes?
— Ah, claro... — Ela rolou para o lado e apontou para uma
porta fechada, na parede oposta a da cozinha. — O banheiro fica
ali, fique à vontade.
Sentei-me um pouco zonza.
— Okay, vai ser rápido.
Eu não queria encará-la para não morrer de vergonha ali.
Peguei a minha bolsa no caminho para o banheiro e fechei a porta,
me escorando nela.
A sobriedade voltou com tudo, passei as mãos nos cabelos,
agraciada pela luz forte do cômodo minúsculo e me sentei no vaso
sanitário. O espelho sujo com a borda vermelha bem na minha
frente, me mostrava uma mulher do qual há tempos eu não via:
maquiagem borrada, rímel incrustado nos cílios, lábios
avermelhados e inchados e poros dilatados. Minha pele marrom-
clara estava pálida, mas a luz azulada não ajudava a trazer outro
aspecto. Os cachos triplicaram de tamanho e formaram uma juba de
leão ao redor da minha cabeça.
Liguei a duchinha e deixei-a despejar água para dentro do
boxer. Meus dedos passearam pela tela do celular, sem saber onde
clicar. Droga, eu tinha 25 anos, mas me sentia como uma
adolescente de 17, pesquisando no Google se doía perder a
virgindade.
Digitei os números familiares, o ruído da duchinha abafou o
som da chamada.
— Anda, Raquel, atende… — Batuquei os pés no chão. —
Raquel, caralho…
— Olá! Aqui é a Raquel prestes a entrar em trabalho de parto
Soares, deixe um recado após o bip…
Caixa postal. Desliguei a chamada. Raquel e a foto da sua
grande barriga de oito meses de gestação sumiram da tela. Plano
B.
Disquei o segundo número.
— Augusto, Augusto, Augusto… — Comecei a roer as unhas.
Ele atendeu.
— Fala, NáJulia!
— Ah! Graças a Deus... Augusto, tô sem tempo pra papo
furado e preciso que me responda uma coisa... E eu sei que é uma
pergunta aleatória e… me desculpe se eu for inconveniente… —
Um gemido surgiu do outro lado da linha. Tirei o aparelho da orelha,
fitando-o com as sobrancelhas juntas. — Raquel está mesmo em
trabalho de parto?
Augusto bufou.
— O médico disse que é só daqui há um mês, mas ela está
fazendo alguns exercícios pélvicos e…
— Okay, okay, menos mal. Me responda rápido: como é o
sexo com uma… uma pessoa que tem... sabe?
Um minuto de silêncio se seguiu até Augusto perguntar:
— Tem o quê, Ná?
Mordi os lábios, envergonhada. Qual era a porra do meu
problema?
— ... Vagina. Hipoteticamente falando, claro — respondi em
um sopro.
Augusto gargalhou.
— Você sabe que eu sou um homem casado!
Meus olhos rolaram nas órbitas. A mulher do meu reflexo
parecia estar no fundo do poço e muito impaciente.
— Dá pra parar de gracinhas?
— Por que você quer saber? — retrucou ele. Mais um
barulho de gemido, dessa vez alto. A voz de Raquel elevou-se do
outro lado da linha. — Não, não é ninguém importante, amor... —
respondeu Augusto. — É a Ana, sim, ela quer saber como o sexo
com uma mulher funciona… Pois é, e eu lá vou saber? Quer falar
com ela?
Um chiado depois e ouço a voz de Raquel doer meu ouvido:
— Olha só quem vai chupar uma…
— Raquel! — esbravejei.
Laura bateu na porta do banheiro.
— Júlia, tá tudo bem aí?
A duchinha saiu do boxer e molhou o meu pé. Prendi o
celular entre a orelha e o ombro enquanto secava a água com papel
higiênico.
— Tá, tá sim! Tá tudo… ótimo!
Desliguei a ligação.
— Bando de imprestáveis… — murmurei para o celular.
Meus pés voltaram a batucar no chão num ritmo inconstante.
Eu poderia tirar as dúvidas sobre sexo entre duas mulheres em um
blog feminista não confiável ou só agir como uma pessoa normal e
contar a Laura sobre a minha insegurança. Inspirei e expirei fundo,
eu iria transar com uma garota conhecida há menos de um dia,
faltando um mês para o meu casamento e eu não sabia como fazer.
Tirei a roupa no impulso, assim não perderia a coragem e deixei o
celular na pia enquanto o Plano C não atendia.
A foto de Caíque na frente do Cristo Redentor me encarava
com certo julgamento, virei a tela do celular para baixo. Duvidava
que ele fosse atender meu telefonema naquele horário, mas não
custava tentar.
Nua e na frente do espelho, observei os ossos saltantes aqui
e ali. Meu cabelo possuía mais volume do que qualquer área do
meu corpo.
— Amor? — A voz de Caíque soou do outro lado da linha.
O aparelho dançou pelos meus dedos suados.
— Oi! Oi… — repeti, dessa vez, baixinho. — Oi, amor.
— Por que nunca fizemos suruba antes? Quer dizer… é
maravilhoso! — exclamou ele. A música era tão alta que se tornava
difícil entender o que Caíque dizia. — E… espera, aconteceu
alguma coisa?
Engoli em seco, eu não sabia porque liguei para ele. Era
natural ligar para Caíque quando eu não sabia o que fazer.
— Nada, tudo tranquilo. Eu só queria saber se estava tudo
bem aí. Se divirta e… — Troquei o peso de um pé para o outro
enquanto roía as unhas. — Caíque?
— Sim?
Suspirei.
— Te amo — disse, baixinho.
Ele riu.
— Eu também te amo, se divirta.
Desliguei o celular e olhei para o meu reflexo, o anel de
noivado pareceu brilhar. Retirei-o, deixando-o na pia antes de abrir a
porta do banheiro. Escolhi viajar para Paris atrás de experiência,
custe o que custar, e Laura era uma semi desconhecida que eu
nunca mais veria na vida. Caíque nunca saberia sobre ela.
Encontrei-a deitada na cama enquanto mexia no celular. Logo
que me viu, parada na porta do banheiro e nua, seu queixo caiu.
— Achei que tinha desistido — murmurou em um meio
sorriso.
Um calafrio arrepiou os pelinhos do meu braço. O sorriso de
Laura me causava uma sensação estranha. Um frio na barriga. Eu
queria tanto passar a noite com ela que, pela primeira vez na vida,
experimentava não ter controle sobre nada. Eu não queria ter
controle sobre o que iríamos fazer, portanto deixaria a
imprevisibilidade ditar se amanhã de manhã eu estaria arrependida
ou tremendamente satisfeita com tudo isso. Era a minha nova meta
e com o impulso necessário, corri em direção a Laura, mas errei
algum cálculo no processo.
A minha boca acertou a dela precedida por uma dor aguda.
Um grito preencheu o quarto.
O grito era de Laura.
— Meu dente! — berrou ela.
Laura caiu na cama com as mãos apertando a boca.
— Calma! — gritei. — Deixa eu ver!
Mas ela se debatia de um lado para o outro, comigo inclinada
em sua direção, nua e com as mãos levantadas, sem saber se a
tocava ou chamava a ambulância.
— Tá sangrando! — continuou ela, aos berros.
— Não tá sangrando! — exclamei, agarrando os seus
ombros. — Não tá sangrando, Laura! Confia em mim!
Ela parou de se debater e, lentamente, tirou a mão da boca.
Continha um pedaço de dente salpicado de sangue na palma de sua
mão.
Fechei os olhos com força.
— Merda — praguejei.

✽✽✽

— Você teve sorte que foi apenas uma fratura, mocinha —


disse o homem, com aquele sorriso brilhante igual a todos os outros
dentistas. — Se a sua namorada tivesse batido com mais força,
você teria perdido o dente.
O dentista olhou para mim sentada ao lado de Laura.
Afundei-me no assento a fim de sumir dentro do casaco duas
vezes maior, era um casaco de Laura. Eu o peguei no chão do
quarto no meio do desespero, junto a uma calça jeans. O cheiro era
de amaciante e perfume doce, mas o tamanho das peças me fazia
parecer uma criança, uma criança que enfiou a mão no bolo de
aniversário antes do parabéns.
A parte boa: o dente estava colado. A parte ruim: o clima
estava perdido.
— Vamos tomar mais cuidado da próxima vez, doutor —
respondeu Laura, segurando o riso. Ela se levantou da cadeira e
apertou a mão do homem. — O senhor sabe como são as
baixinhas, elas usam a cabeçada como método de ataque.
Encarei-a com os olhos semicerrados. A nossa altura não era
tão destoante assim, Laura devia ter 1,70 de altura, talvez um pouco
mais, e fazia eu e meus 1,60, arredondados para 1,65, pequenos
em comparação. Levantei-me e me despedi do dentista com um
comprimento de cabeça tímido para seguir Laura. A recepção
estava vazia. Eu me ofereceria para pagar a conta do dentista, mas
perdi a carteira horas antes.
Laura arcou com o prejuízo, decidi esperá-la em frente ao
hospital. As ruas de Paris eram estreitas e a predominância de ratos
aumentava esporadicamente a cada olhada. Os prédios de não
mais de três andares ganhavam uma aparência pitoresca no
escuro… Seria mais uma coisa em Paris para reclamar com Caíque.
Laura parou ao meu lado, seu calor me aqueceu com uma
familiaridade incômoda.
— Você acha que a delegacia é perto daqui? — perguntei.
Ela pulou para o ladrilho da calçada, equilibrando-se ao
andar.
— Fica tranquila, não vou prestar queixa pela tentativa de
assassinato.
Empurrei os seus ombros, rindo. Laura oscilou entre a
calçada e o ladrilho.
— Preciso fazer o boletim de ocorrência por causa do roubo
da minha carteira, esqueceu? — indaguei.
— Você não vai a lugar nenhum até passar pela minha cama
— respondeu ela, com o dente trincado sujo de resina, rindo para
mim e se aproximando. O poste de luz tentava nos iluminar em meio
à escuridão da rua, seus dedos quentes encontraram morada na
barra do meu casaco.
— Eu achei que você não queria me ver nunca mais, depois
que eu… — Apontei para os seus dentes.
Laura gargalhou.
— Tá brincando? Quem mais pode contar: "Eu conheci uma
mulher em Paris que iria se casar, mas me chamou para transar e,
então, quando estávamos quase... ela pulou em cima de mim e
quebrou o meu dente”. Assim que eu contar essa história, as
pessoas vão perguntar: “E aí? O que aconteceu depois?” e eu vou
responder: “Nós tivemos uma noite de sexo fenomenal e eu nunca
mais a vi, mas ainda me lembro da sensação.”
Afundei o rosto envergonhado na voltinha do pescoço de
Laura, seus cabelos fizeram cócegas na minha bochecha enquanto
o seu peito subia e descia calmamente em contato com o meu. O
cheiro dela já era familiar a essa altura, o mesmo cheiro da jaqueta
que eu usava. Fiz esforço para gravá-la na memória.
Eu não voltaria para casa sem tê-la por uma noite.
— Tudo bem, vamos — chamei. — Vamos ter a nossa noite
de sexo fenomenal.
Dessa vez, sem nenhum arrependimento e dentes
quebrados.
Capítulo dois
Qual o próximo lugar?

Voltamos ao apartamento de Laura e nos dispusemos a tocar,


beijar e apertar tudo o mais depressa possível, mas depois de um
tempo, os selares se tornaram lentos. Ela passou a brincar com a
minha sanidade, pairava os lábios a poucos centímetros da minha
boca só para eu sentir o respirar quente de encontro ao meu.
Parecíamos estar ali há horas, comigo ainda molhada, louca para
que me tocasse lá. Nossas roupas se espalharam pelo chão do
quarto e o cômodo ficou quente como o inferno. Laura se encaixou
em mim enquanto os lábios trilhavam um caminho tortuoso pelo
meu pescoço. Eu queria ser mordida e marcada na mesma
intensidade em que arranhava as suas costas, no entanto, me
marcar não seria prudente. Tornava todo tipo de contato torturante.
A saliva e o barulho da sucção se misturavam aos meus
gemidos.
Laura tinha plena consciência das minhas coxas molhadas,
visto que pressionava a sua no meio das minhas pernas enquanto
eu, vergonhosamente, me esfregava e implorava por mais. Nossos
olhares se encontraram na escuridão do cômodo, cheios de desejo.
— Senta no meu colo — mandou ela.
Eu obedeci. A cada contato dos nossos quadris, um
formigamento intenso me arrepiava. Sentar no colo dela trouxe o
imediatismo do começo, de quando chegamos ao apartamento,
doidas para terminar logo isso. Eu precisava de mais, precisava que
Laura se fundisse a mim. Prendi as coxas envolta da cintura dela e
ataquei os seus lábios.
Ela gostou do meu ímpeto e sorriu em meio ao beijo. A visão
dos seus cabelos molhados de suor era uma perdição. Meus dedos
se empenharam nos fios, puxando-os à medida que nossos quadris
se encontravam. A fricção só aumentava. A cada rebolar, a cada
arrastar necessitado do meu quadril no dela, o torpor me queimava.
Com os dedos apertando os meus seios, Laura sussurrou:
— Tá gostoso assim?
Maneei a cabeça em afirmação, sem poder falar. O ar entrava
de maneira dificultosa através dos meus lábios, porém, de súbito,
Laura interrompeu o beijo para agarrar o meu queixo. Os dedos
esmagaram os meus lábios. Ela queria ver qual seria a minha
reação quando tocasse o meio das minhas pernas.
Mordi os lábios com força, fazendo-me de difícil. Laura
moveu os dedos lentamente só para me torturar, me fazer arquear,
gemer, implorar, sem tirar a atenção um segundo sequer de mim.
Não consegui segurar por muito tempo. O contato que eu tanto
queria estava acontecendo. Laura ia fundo. Minhas mãos se
firmaram nos ombros dela, buscando sustentação, enquanto me
arrastava para frente e para trás. O atrito das coxas suadas emitia
um som ritmado, junto aos nossos gemidos.
Não sei como pude pensar que não seria bom, a insegurança
quase me fez rejeitar uma das melhores noites de sexo até então.
Laura não tinha pressa, queria aproveitar as sensações e me
obrigava a desacelerar também. Não cedeu aos meus pedidos para
acabar de vez com aquilo. Levei a cabeça para trás, os fios
molhados colados nas costas. Éramos uma combinação certeira,
como se tivéssemos feito aquilo inúmeras vezes. Debrucei-me sobre
ela e caímos juntas no colchão. Voltei a atacar os seus lábios.
O corpo de Laura parecia uma extensão do meu, nos
mexíamos em completa sintonia. Seus dedos entravam e saíam de
mim e a língua invadia a minha boca de maneira desordenada.
Nunca experimentei nenhum tipo de droga, mas imaginei que estar
chapada fosse uma sensação parecida com aquela. Gemi em meio
aos beijos e um espasmo atingiu a minha barriga, forte o bastante
para me fazer prender a respiração. O formigamento começou a
subir dos dedos dos pés até a ponta dos cabelos, os movimentos se
tornaram mais rápidos. A queimação vinha de dentro, parecia uma
faísca prestes a causar um incêndio, mas em um rompante, Laura
tirou os dedos de dentro de mim.
— Por favor... — arfei, em um sussurro desesperado. — Por
favor, por favor, Laura... — Meus lábios se mexiam sem parar,
repetindo essas duas palavras por cima do sorriso dela.
Laura inverteu as posições e ficou por cima de mim.
— O quê, cheire? — Ela ergueu uma sobrancelha. — Fale
mais alto.
— Por favor, continue… — Me esfreguei nela.
Laura não cedeu.
— Continuar o quê?
— Continue me tocando... — implorei, em um sussurro
necessitado.
Ela maneou a cabeça em negação.
Demorei a entender o significado daquilo, foi uma quebra de
expectativa. Com o cenho franzido, acompanhei-a arrebitar a bunda
e descer para o meio das minhas pernas.
No primeiro contato da sua língua, passeando e lambuzando,
arqueei as costas. O ar não chegou aos meus pulmões. Nem um
gemido coeso saiu dos meus lábios, eram só lamúrios e pedidos de
“mais”, entendidos apenas dentro da minha cabeça. Meus olhos
prosseguiram arregalados. Laura não levantou a cabeça para
respirar e não diminuiu o ritmo dos movimentos, usava os dedos e a
boca simultaneamente. Ela também não se importou com os fios a
menos de cabelo, arranquei, empurrando-a mais fundo.
Cheguei ao ápice de maneira intensa, nunca senti algo
parecido antes. Aquela sensação letárgica, como se estivesse
transitando por portais fora da realidade.
Sorri, abobalhada.
— Então é... isso?
Laura limpou a boca com a mão e tombou a cabeça para o
lado, como um artista observando a sua obra de arte favorita.
— É, é isso. — Ela se aproximou, mas não me beijou. Laura
não fez nada a não ser olhar dentro dos meus olhos, cara a cara
com todas as minhas imperfeições.
Se fôssemos amantes ou namoradas, se fôssemos algo mais
que duas estranhas que se conheceram em Paris, aquele seria o
momento perfeito para dizermos: “eu te amo” e o mundo pararia
para ouvir essa declaração sussurrada, feita no meio de suor e
desejo. Quando fosse a minha vez, foderia Laura ouvindo-a repetir
essa frase no meu ouvido, com os nossos corpos se movendo em
sincronia.
O beijo se iniciou lento, mas ela o interrompeu para me dar
selinhos prolongados, causando um barulho engraçado. Rimos
como idiotas. O sexo não precisava ser linear, eu estava ali,
aproveitando, sentindo e aprendendo com ela.
— Você é minha — sussurrou Laura, por cima dos meus
lábios. — Pelo menos, por essa noite.
Meu peito estava leve. Não existia Caíque, casamento ou
futuro, por aquela noite, eu escolheria Laura.
Desci os beijos para os seios dela, rodeando a língua entre
os mamilos. Laura agarrou os meus cabelos e tombou a cabeça
para trás, dando-me liberdade para fazer da forma que quisesse.
Seus gemidos soavam preguiçosos, longos e roucos, a saliva
escorria pelo canto dos meus lábios. Foi inevitável não lhe comparar
a Caíque. Com ele, o sexo era bom, mas com o passar do tempo,
se tornou algo que fazíamos quando não tínhamos nada para fazer.
Acabava, e então, cada um virava para um lado da cama e dormia,
simples assim, mas o sexo com Laura era um evento. Ela queria
tocar e experimentar, desenhar-me com as mãos. Eu era o seu
quadro em branco.
Ajoelhei-me no meio das pernas dela, torcia para que tudo
desse certo, mas meu coração errou algumas batidas pelo
desespero. Levantei a cabeça e capturei os seus olhos em meio às
luzes refletidas na janela.
— Ei... — cochichou ela. — Não existe jeito certo de fazer.
Vai com calma e não se esqueça de aproveitar.
“Vai com calma", "jeito certo” e “língua”, repeti mentalmente.
Eu teria apenas uma chance, me mantive focada. Ela começou a
gemer mais alto, talvez para não me deixar desanimada, e me guiou
gentilmente pelos cabelos. Compensava-me quando eu acertava
algo, assim, me esqueci de ter medo e as coisas passaram a ficar
melhores para nós duas. Laura fechou as pernas ao redor dos meus
ombros — e me trouxe uma leve sensação de morte iminente —,
mas prossegui com os movimentos. Ela estava quase lá.
Em um arfar, suas pernas deslizaram para o lado e me
libertaram do aperto. Levantei a cabeça de supetão, buscando ar.
Meio zonza, descabelada, torta e melada, mas soltei um risinho.
Era essa a sensação de levar uma surra de…? Deixa pra lá.
Ela se sustentou pelos cotovelos, o peito movia-se para cima
e para baixo de forma descompassada. Porém, quando viu o meu
estado, começou a gargalhar.
Minhas bochechas se esquentaram.
— Sua… idiota! — Dei-lhe um tapa.
Laura se sentou e me prendeu entre as coxas.
— Desculpa. — Deu-me um selinho, depois outro e mais
outro e me abraçou. — Sua cara estava muito engraçada!
— Eu estava dando o meu sangue! — retruquei.
— Ah, eu sei… — Após mais uma sessão de selinhos, seus
lábios grudaram no meu ouvido. — Sua boca é muito gostosa,
chérie.
Droga, um sorriso nasceu em meus lábios sem a minha
permissão.

✽✽✽

Joguei as pernas acima do corpo de Laura, o coração dela


batia calmo contra o meu ouvido.
A posição em que estávamos era confortável, queria ficar ali
o resto da vida. A possibilidade de permanecer em Paris pareceu
mais real naquele momento. O que aconteceria se eu não voltasse
para casa? Se decidisse morar na Cidade Luz para sempre, sem
documentos, sem dinheiro e recomeçar do zero? No entanto, seria
sozinha. O tempo de Laura em Paris também tinha acabado. Na
semi-escuridão do cômodo era visível: o apartamento estava pronto
para outro inquilino. Havia caixas debaixo da mesa, porém ela só
levaria a mochila surrada, aos pés da cama.
E, claro, era loucura ficar, eu amava Caíque.
— Qual o próximo lugar? — perguntei.
Seu peito subiu e desceu de forma brusca.
— Casa.
Remexi-me, curiosa. Laura sabia muito sobre mim, sabia
mais do que eu ousei contar a qualquer parisiense nesses cinco
dias de estadia, e eu não sabia nada sobre ela.
Depois de um tempo, prossegui:
— Por quê?
Um mapa mundi em preto e branco tomava conta da porta do
apartamento. As partes coloridas eram os países visitados por ela,
eram muitos, mesmo que estivesse escuro demais para identificar
todos.
— Porque eu fugi de lá — confessou Laura. — Agora, depois
de nove anos, reencontrei meu irmão e… Na verdade, não sei se
posso chamá-lo assim, mas retomamos o contato e ele quer se
reaproximar.
Apertei Laura com força.
— Um irmão é um irmão. Independente do tempo que
passaram separados.
Ela puxou o ar pela boca, pesarosa.
— Não somos irmãos de sangue. Os pais dele me adotaram
quando eu tinha quatro anos. Eles eram a minha família. A única
que me permiti ter por um tempo.
Levantei a cabeça, fitando-a.
— Mas as coisas não acabaram bem, suponho.
— Definitivamente, não — respondeu ela, encontrando o meu
olhar. — Mas eu ganhei uma segunda chance e vou voltar para
casa. Não vou decepcioná-los de novo.
Laura passou o polegar pelas minhas bochechas. Fechei os
olhos, o toque arrepiava todas as partes do meu corpo.
— Se fosse em outra vida, eu te chamaria para sair —
sussurrou, expondo o pensamento proibido em voz alta.
Abri os olhos, inspirando fundo.
— Para onde me levaria?
Ela ergueu uma sobrancelha em desafio.
— Uma tour pela Europa, o que acha?
Afundei a cabeça em seus ombros, cobrindo um sorriso. Eu
precisava nascer de novo para que isso acontecesse, para ter a
chance de esbarrar em Laura em algum país do globo com nada me
impedindo a não ser, talvez, a falta de dinheiro. No entanto, isso não
a impedia, não mesmo. Laura não precisava de muito para viver,
andava por aí com uma mochila e uma carga de coragem que
nunca terei, mesmo daqui a três vidas. Gosto de me imaginar em
uma casa grande, com filhos e um marido, gosto de pensar em
estabilidade e de ter uma cama para dormir no fim do dia, um lugar
para chamar de meu. Laura era o completo oposto e, por isso, me
cativava tanto. Ela me fazia pensar em situações hipotéticas antes
nunca imaginadas.
Sentei-me com as pernas cruzadas, sem tirar os olhos dela.
— Você me levaria para uma tour na Europa no nosso
primeiro encontro?
— Claro! Para que perder tempo? — retrucou ela.
Entrei na onda.
— Começaríamos pelos países vizinhos: Bélgica, Espanha,
Portugal...
Laura virou-se de lado e jogou uma mecha rosa para trás.
Sua pele brilhava graças a uma leve camada de suor, já os ombros
largos se projetavam para frente. O quadril bem delineado era
coberto por um lençol fino.
— Poderíamos ir de ônibus até à Bélgica. Chegaríamos em
Bruxelles-Midi antes do amanhecer. Eu te levaria até Ardenas e
tiraríamos uma foto no meio daquelas montanhas verdes, vestindo
roupas tradicionais.
O sorriso não queria deixar os meus lábios.
— Aquelas saias verdes e vermelhas?
— Com direito a coroa de flores na cabeça!
Aproximei as nossas faces.
— E depois?
Ela fez uma careta, pensando.
— Bom, teríamos que ficar um tempo lá, para juntarmos
dinheiro para a passagem de avião até a Espanha, ou poderíamos
passar por Paris de novo...
— Paris nunca é demais — balbuciei.
— Paris nunca é demais — repetiu ela. — E quando
chegarmos em Barcelona, já estarei completamente apaixonada por
você.
Meu sorriso enlargueceu.
— Eu sei. Eu também estarei.
— E eu te pediria em namoro no lugar mais brega de toda a
Espanha... — continuou ela.
— Palácio de Granada! — dissemos juntas.
— É um maldito castelo medieval, seria perfeito! — exclamou
Laura, rindo.
Pressionei os meus lábios nos seus, numa bitoca rápida. O
gosto não deixou a ponta da minha língua.
— E depois, hum? — perguntei.
Laura deu de ombros.
— Portugal, África, Oceania... O mundo é enorme, Júlia. Eu,
você, uma mochila e dinheiro para comprarmos comida.
Fitamo-nos pelo que pareceu uma eternidade. Eu guardaria
aquelas promessas para uma próxima vida. Uma parte de mim
acreditou ser possível.
— Sim, seria perfeito — respondi em um sopro.
Deitei-me novamente sobre o peito de Laura e, ainda
sentindo os dedos dela nos meus cabelos, dormi.
Capítulo três
O retorno.

Despertei com o Sol no meu rosto. Tapei o raio cegante com as


mãos. Por alguns segundos, o canto dos passarinhos no batente da
janela me levaram para casa, para o meu quarto empoeirado no
interior de Minas Gerais, impregnado de cheiro de café torrado e
queijo. No entanto, pela visão periférica, identifiquei o cômodo de
Laura. Mastiguei o nada, a língua áspera pairou no céu da minha
boca. Eu estava morrendo de sede.
Apalpei os lençóis vazios. Laura não estava deitada ao meu
lado ou em nenhum outro lugar do apartamento. Pelo sumiço da
mochila, cheguei à triste conclusão que ela já tinha ido embora.
Sentei-me na cama, nua, e passei algum tempo encarando o
nada, relembrando a noite de ontem. As mãos dela por todo o meu
corpo, a respiração contra a minha e a boca trilhando um caminho
tortuoso pelas minhas pernas. Respirei fundo, resignada. Não
contaria sobre Laura a ninguém, nem para os meus melhores
amigos ou para Caíque. Deixarei-a guardada a sete chaves dentro
dos meus pensamentos e, talvez, quando a velhice chegar, me
perguntarei se ela realmente existiu, se não foi só um delírio da
minha cabeça.
Deixei escapar um sorriso de lado ao tocar os meus lábios,
sentindo onde ela o beijou pela última vez e me levantei. A luz do
Sol iluminava o cômodo vazio. Em cima da escrivaninha, as mudas
de roupas dela, as mesmas que usei ontem, estavam dobradas
junto a um bilhete:
Júlia, espero que tenha gostado da nossa noite. Não
brinquei quando disse que, mesmo com o passar dos anos,
ainda me lembrarei da sensação de ter você só para mim.

Desejo bom casamento.


— Da sua aventura de uma noite, Laura.
P.S. Lembre-se de Paris, de nós.

Apertei o bilhete contra o peito descompassado e, então,


guardei as minhas roupas em uma sacola e vesti as que Laura
deixou para mim.
Ao sair do apartamento, lancei um último olhar para a cama
desforrada.
Minha próxima parada seria à delegacia, para resolver as
pendências do roubo da minha carteira.

✽✽✽

Caíque me mandou dinheiro para fechar a conta do hotel, a


passagem de volta já estava paga. Restou-me juntar os pertences e
não perder o maldito boletim de ocorrência, sem ele, eu não voltaria
para o Brasil.
O aeroporto de Paris-Charles de Gaulle era sofisticado,
coberto por um tapete vermelho e cheio de luzes em formato de
estrelas, no teto. Todavia, quando desembarquei nele há cinco dias
atrás, parecia mais encantador. Arrastei-me por ele na companhia
de duas malas prestes a explodir e uma dor de cabeça incômoda.
As primeiras cinco horas do voo foram preenchidas por
quantidades exorbitantes de café expresso. Custaram-me os olhos
da cara. Os assentos ao lado estavam vagos, de modo que pude
esticar as pernas. Caíque preencheu as outras seis horas de voo
com uma tagarelice sem fim. Ele voltava de carro para a casa e
estava enfrentando oito horas de viagem. Chegou em Monte Verde
antes de mim, óbvio, eu teria uma conexão em São Paulo e mais
três horas de ônibus. A nossa cidade não tinha aeroporto.
Raquel ligou minutos antes da minha decolagem.
— E aí!? — perguntou animada, do outro lado da linha. Pelo
tom da sua voz, estampava uma risadinha safada enquanto
esfregava as mãos, como um vilão de filme infantil.
Afundei-me no assento.
— E aí, o quê?
Ela bufou.
— Você sabe do que eu estou falando!
— Não, eu não sei!
— Você ligou para Augusto ontem e perguntou como o sexo
com uma mulher funciona, não se faça de sonsa! — rebateu Raquel,
impaciente.
Massageei as pálpebras, ainda tinha isso para resolver. Eu
precisava pensar em uma forma de sair do assunto “Laura”. Passeei
com os olhos pela poltrona até cair nas diversas revistas a
disposição. Peguei uma delas.
— Achei um nome perfeito para o bebê. Se for menina, já
pensou em Marie Claire? É chique, inovador e...
— É o nome de uma revista, Ana.
Tapei a capa da publicação, emburrada.
— Ninguém precisa saber disso, além do mais, você não
queria um nome diferente?
Raquel se remexeu onde quer que estivesse sentada. Sorri, a
tática funcionou.
— Augusto quer um nome diferente, ele disse que está na
moda. Acho que deveríamos escolher um nome simples, os
famosos escolhem nomes simples… Maria, Valentina, Aurora… Se
for menino, José, João, Antônio…
Soltei um riso anasalado.
— Quem tem que escolher um nome é você. É você que está
carregando o bebê.
Esse era um assunto recorrente, porque eles seguiram o
caminho contrário dos demais casais: sem chá de revelação e, por
consequência, sem saber o sexo do bebê antes do nascimento.
Caíque gostou da ideia a princípio, mas decidimos não adotá-la na
nossa vez. Não suportaríamos ficar tanto tempo sem saber o sexo
do nosso futuro filho.
— Eu falei isso para ele, acredita? Mas ainda estamos
discutindo as possibilidades…
— Pois entrem em consenso rápido, falta só um mês —
respondi em meio a um bocejo. Precisava de mais uma xícara de
café.
— Por que está tão cansada? — perguntou Raquel.
Dei de ombros. Meu pequeno espaço no assento estava
escurecido graças à cortina fechada, mas o passageiro da frente
insistia em manter a sua janela aberta, a luz solar batia no meu
rosto.
— Paris é cansativa — respondi.
— Para alguém que ficou cinco dias visitando museus e indo
a cinemas? — retrucou Raquel, zombeteira.
— Isso cansa e… — Maneei a cabeça, desistente. — Quer
saber? Nos vemos daqui a pouco, já vou pousar.
— Júlia, esp…
— Um beijo para Augusto e o bebê, bye!
Desliguei a chamada, aliviada.
Manter Laura em segredo seria mais difícil do que imaginei.

✽✽✽

Depois das longas horas em um ônibus de viagem, cheguei a


Monte Verde ao entardecer. Minha cabeça estava prestes a explodir.
Maldito fuso horário.
A rodoviária era uma construção aberta abarrotada de
turistas. Com a temperatura abaixo de zero, os casais aproveitavam
a fina camada de gelo das manhãs e os vinhos ofertados nas feiras
de artesanato para transformar a cidade em um recanto romântico.
Caíque me esperava na área de desembarque de ônibus e,
heroicamente, enfrentou a fila para buscar as malas no bagageiro.
Ao sair, trombou em duas senhoras desavisadas. Meu noivo era um
homem de um metro e noventa, aéreo da sua força e pouca
desenvoltura. Enquanto ele pedia desculpas às senhoras, arrastei-o
para perto do ponto de táxi. O Sol sumia no horizonte e trazia
consigo um clima pitoresco, harmonizando com as ruas estreitas
feitas de pedra, as casas de madeira rústicas e a sensação de
quietude.
Entrei na frente de Caíque e toquei as suas bochechas
descascadas.
— O que aconteceu com você?
Ele me lançou um sorriso quadrado.
— Acho que peguei insolação.
Cruzei os braços em um bufar.
— Ah, jura?
Caíque insistia em pegar sol sem proteção para “ganhar uma
corzinha”, o que resultava nas diversas queimaduras ao longo dos
anos. Agora, as bochechas, nariz e testa descascavam, vermelhas.
— Não se preocupe. — Ele tentou me abraçar, mas lhe dei
um tapa. Caíque alisou o ombro atingido. — Até o casamento
voltarei ao normal… acho.
— Torça para que volte ao normal, senão eu te mato —
avisei, com o dedo arqueado. Ele assentiu e pegou as malas,
partindo para onde o carro estava estacionado: no meio de dois
taxistas disputando a corrida de um jovem casal.
— Como foi a viagem? — perguntou ele atrás da
caminhonete preta, apalpando os bolsos a fim de encontrar a
chaves.
— Péssima — respondi, fugindo da gritaria dos dois taxistas.
Caíque riu.
— Se bem que olhando para a sua cara, dá para perceber.
— Seu humor é cativante, Caíque.
— Eu sei, docinho.
Inspirei o ar frio da cidade que tanto senti falta. Não nasci ali,
como meu noivo, mas os anos em Monte Verde me fizeram
acostumar à vida pacata, sem pressa, sem estresse. Agradeço a
minha mãe por ter se mudado para cá no fim da minha
adolescência.
Caíque encontrou a chave do carro, destravando-o.
— Como foi a sua viagem? — devolvi a pergunta. Estava me
obrigando a manter uma conversa leve, independente da vontade
de ignorar tudo e todos e dormir dez horas seguidas.
Ele abriu o porta malas, a chave presa à boca.
— Boa, passei metade do tempo bêbado.
— Sortudo — retruquei.
Caíque guardou as bagagens no porta-malas e fechou a
tampa, mas não partiu para o banco do motorista. Parecia inquieto,
observando o movimento da rodoviária. Segui o olhar dele e não
encontrei nada. Caíque tirou o celular do bolso.
— Má notícia, mamãe descobriu o intuito da nossa viagem.
Prendi a respiração, era por isso que estávamos ali, na
rodoviária? Ele estava procrastinando para não brigar com a mãe?
— O que ela disse? — Quis saber.
Ele digitava no celular, o rosto concentrado, iluminado pela
tela do aparelho.
— Que o nosso casamento está fadado ao fracasso, blá, blá,
blá, porque deixamos o demônio entrar, blá, blá, blá...
— E o que você respondeu?
Um taxista apressado trombou em mim e, mesmo com o meu
olhar feio — muito parecido com o de uma criança que não ganhou
sobremesa, segundo Caíque —, o homem não se virou para pedir
desculpas. Caíque ainda estava no celular.
— …“Deixei muita coisa entrar em mim nessa viagem,
mamãe, muitas coisas da qual não me orgulho... mas não me
lembro de demônio nenhum, não sóbrio.” — recitou ele.
Segurei o riso ao máximo, mas começamos a gargalhar após
uma troca de olhares.
— Você quer matar a sua mãe? — exclamei, puxando o ar
pela boca.
Caíque maneou a cabeça em negação.
— Pergunta o que quer, ouve o que não quer, já ouviu falar?
E com isso, voltou a mexer no celular.
Abri a boca para perguntar o que tinha acontecido, se a
conversa com a mãe foi mais acalorada, se aconteceu alguma
discussão, mas ele mudou de assunto.
— Você não me contou nada sobre a sua viagem.
— Eu contei tudo sobre a minha viagem — retruquei.
Caíque me deu uma ombrada, brincalhão.
— Menos se pegou ou não alguém.
Abaixei o olhar, o medo de ser pega na mentira me fez tremer
por inteiro. Seria tão difícil falar sobre essa viagem?
— Eu não fiquei com ninguém — murmurei.
Ele levantou uma sobrancelha, incrédulo.
— Nem um selinho?
— Não.
— Nem uma…
Devolvi a ombrada, com força.
— Ei!
— Desculpa! — Ele riu. — Só queria saber!
— Não há nada para você saber — encerrei o assunto. Eu
estava louca para chegar em casa, tomar um banho quente, um
café, algo quente. — Fui ao cinema, engordei três quilos, fui à
missa… e não apareceu ninguém interessante. Satisfeito?
Caíque fez uma careta.
— Tudo bem, pelo menos você se divertiu com outras coisas,
é isso que importa.
Outras coisas… como Laura.
Assustei-me por ter lembranças tão vívidas daqueles
momentos, me atingiram de uma só vez, sem um aviso. Caíque
voltou a mexer no celular e minha paciência se esgotou. Inclinei-me
na direção do aparelho para ver do que se tratava, mas ele
bloqueou a tela e me fitou com os olhos arregalados.
— Eu mal posso acreditar, ela realmente veio! Quer dizer, eu
não a mencionei antes porque fiquei com medo dela não vir, mas ela
veio! Ela veio pro meu casamento e... — Caíque tapou a boca com
as mãos. — Mamãe não vai acreditar!
Franzi o cenho, confusa.
— Ei, ei, espera aí. “Ela” quem, Caíque? Por que ainda
estamos aqui?
Ele me ignorou e partiu para a rodoviária, o acompanhei
enquanto implorava uma explicação e, sem receber nenhuma,
várias hipóteses tomaram conta dos meus pensamentos: uma
prima, um parente distante, uma subcelebridade contratada para
presença VIP no nosso casamento. Todas as possibilidades
passaram pela minha cabeça, menos a que eu vi sair de um ônibus
de viagem.
Laura.
Era Laura, em carne e osso.
Estanquei os pés no meio da rodoviária, em choque. Não,
não, não, não, não… Isso não está acontecendo comigo. Em meio
às batidas incessantes do meu coração, do zumbido das conversas
altas e da tontura, fechei os olhos com força e implorei para aquilo
ser um sonho.
Laura saltou do ônibus e, a princípio, não me viu. Estampava
no rosto um sorriso largo, aquele sorriso largo, radiante. Os cabelos
rosa estavam presos em um rabo de cavalo e as roupas consistiam
na mesma calça jeans com o acréscimo de um casaco verde de
tricô. A pele marrom-avermelhada parecia brilhar, o gosto dela
preencheu a minha boca. Assim que viu Caíque, saiu correndo e
pulou em seus braços. Os dois se abraçaram no meio da rodoviária.
Imaginem a cena, meu noivo com quase dois metros de altura,
topete, insolação e pouca desenvoltura, correndo em câmera lenta
na direção da minha aventura sexual.
Laura deu um soco no braço de Caíque.
— Como você cresceu tanto?
Ele a abraçou novamente, tirando-a do chão.
— Você também cresceu! — respondeu com a voz
entrecortada pelo choro.
Caíque estava chorando? Era até óbvio. Caíque chorava ao
ver comerciais de margarina, mas ali era resmungos em um “irmã” e
“achei que você não ia aparecer”, “momento importante” enquanto
eu continuava parada, olhos arregalados, queixo caído e um
tremendo “fodeu” em caixa alta, ocupando todos os meus
pensamentos.
Caíque se virou para mim, no intuito de apresentar Laura e
ela finalmente me viu.
As mesmas expressões estampadas segundos antes no meu
rosto estavam lá, visíveis em Laura: surpresa, incredulidade e
choque. Ela se engasgou com a própria saliva e recuou como um
bicho indefeso. Caíque achou ser pura emoção e deu tapinhas nas
suas costas até ela tropeçar na minha frente.
E nesse meio tempo, eu tentava não vomitar no meu próprio
pé.
— Ela…? — A voz de Laura saiu esganiçada. Olhava para
mim e Caíque, alternadamente. — Ela é a Ana?
Caique assentiu com a cabeça e apertou-me contra o corpo
imenso.
— A própria! A mulher da minha vida!
Não sei qual expressão estampei, chuto “desesperada”, mas
foi inevitável. A situação mudou de perspectiva. Laura, a garota de
Paris, estava na minha frente, ao lado do meu futuro marido.
Mantê-la em segredo seria mais difícil do que imaginei.
Ela voltou para a casa.
E nada seria como antes.
Capítulo quatro
O que aconteceu em Paris, fica em Paris.

Caíque falou durante toda a viagem de carro, foi bom, nada sairia
da minha boca nem se eu quisesse. Laura, sentada no banco de
trás, também aceitou de bom grado o falatório do irmão.
Irmão. Sim, eles eram irmãos.
Fitei-a pelo espelho retrovisor, mas Laura sequer devolveu o
olhar. Estávamos fingindo que nada tinha acontecido, como se
depois de uma conversa silenciosa a decisão fosse mútua: o que
aconteceu em Paris foi um sonho fantasioso demais para trazermos
para a vida real.
Voltei a fitar a estrada à minha frente, o farol iluminava a
passagem de terra tomada por mata fechada dos dois lados da
pista. A prioridade era me lembrar de respirar, de colocar os
pensamentos em ordem e não surtar.
Há menos de dois dias, eu tinha certeza de que nada do que
vivi em Paris interferiria no meu casamento. Há menos de dois dias,
Laura era apenas uma aventura de uma noite, uma aparição da qual
me lembraria com um sorriso no rosto. Agora, compartilhávamos o
mesmo carro a caminho da casa de meu noivo.
As coisas não estavam saindo como o planejado.
Poucas vezes, vi Caíque tão animado assim, ele queria fazer
uma tour com Laura pela cidade, mas a temporada baixa trouxe
turistas... Turistas lotam a cidade. Minha dor de cabeça aumentou
gradativamente durante esse tempo, parecia partir o meu cérebro
em dois. Como Laura apareceu assim sem avisar? Como Caíque
não me contou antes? Como eu não sabia dessa irmã perdida?
— Temos muitas coisas para conversar... — Caíque me fitou.
— Acredita que Laura também estava em Paris, amor?
Pisquei algumas vezes, prestes a desmaiar.
— O quê?
— Acredite se quiser... — Ele me cutucou, animado. — Ela
morava lá!
Laura afundou-se mais no assento, parecia querer se mesclar
ao couro do banco, como um camaleão.
— É, pois é… Eu… — Ela engoliu em seco, os olhos
brilhavam no escuro do carro. — Eu morava lá, mas... mas... Paris é
enorme, parece que não, mas é enorme, super grande e…
Maneei a cabeça.
— Super grande! É, tipo, impossível esbarrar em alguém lá,
não é? É cheia de turistas e parisienses… até porque…. porque…
— Comecei a hiperventilar. — Quem nasce em Paris é parisiense…
Caíque me olhou preocupado.
— Você está bem?
Afundei-me no banco.
— Estou com sono.
O silêncio se estendeu até chegarmos a casa de Caíque, a
casa onde eu morava temporariamente até nos mudarmos para a
nossa. Era uma pousada isolada, inspirada na clássica arquitetura
alpina: madeira e mais madeira. Ela tinha dois andares e era
revestida com tijolos de demolição e pedras de colônia, além de
possuir uma chaminé de tijolinhos e um jardim imenso. A vista para
a Serra da Mantiqueira, uma cadeia montanhosa imersa no
horizonte, era de tirar o fôlego.
A família de Caíque, os Grinberg, fundaram a cidade. O nome
do lugar foi uma homenagem ao sobrenome deles. Existia um
memorial no centro da cidade. Caíque estacionou na frente da
pousada e os ombros de Laura despencaram. Contudo, o meu noivo
não percebeu, saiu extasiado do carro e deixou um silêncio pesado
entre Laura e eu. Nossos olhares se encontraram.
Ela apertou o encosto do banco, impulsionando o corpo para
frente.
— Por que você não me contou que era noiva de Caíque? —
Sua voz oscilava entre desespero e raiva.
Soltei um arfar, virando-me no banco para vê-la melhor.
— Por que você não me contou que era irmã de Caíque? Ah,
me lembrei... Não tínhamos como saber! — sussurrei gritado. O
motivo da discussão pegava as malas, sem imaginar o que rolava
dentro do carro. — Foi você que omitiu informações, não eu!
Laura ergueu as sobrancelhas.
— Se me lembro muito bem, eu disse que era mineira.
— Não é essa a questão!
— Então, qual é? — retrucou ela.
Bem, nem eu sabia com certeza. Eu não perguntei nada
sobre a história dela e também não contei a fundo sobre mim, no
entanto, como eu poderia imaginar cair em um acaso desses? Eu
estava há milhares de quilômetros longe de casa, encontrar alguém
minimamente próximo era impossível. O mundo não era enorme,
porra?
Tombei a cabeça para a frente, choramingando.
— Você vai estragar o meu casamento, Laura. O casamento
que eu planejei por anos e...
Ela me fitou ressentida.
— Acha mesmo que eu quero estragar o seu casamento,
Júlia? Ou devo dizer Ana?
Caíque fechou o porta malas, alheio a nossa discussão
sussurrada. Limpei as lágrimas fujonas com o dorso da mão, me
sentia estranha, deslocada, culpada, fora de sintonia...
— Eu não menti para você, eu me chamo Júlia... — sussurrei
de volta. — Ana é o meu primeiro nome. Me chamo Ana Júlia.
Caíque bateu no vidro da janela. Pulamos de susto.
— Algum problema aí? — perguntou ele.
— Não, nada! — Laura respondeu por mim.
Se eu ficasse ali mais dois segundos poderia explodir. Abri a
porta do carona, chutei-a, na verdade. Caíque se assustou com o
meu drama, mas dei-lhe um empurrão e entrei na casa. Não
cheguei a correr, andei muito rápido. Entrei pela porta da frente e
não parei para cumprimentar a mãe dele, não parei até chegar ao
meu quarto, onde corri para o banheiro.
Ao debruçar-me sobre a pia, me permiti chorar de verdade.
Deixei sair o que estava segurando. O sentimento de impotência, de
que daria tudo errado, de que fui tola por deixar tantas pistas sobre
o passado dela passar batido. Respirei fundo e um jato de ar saiu da
minha boca. Meu corpo clamava por descanso, mas eu não estava
com sono, a adrenalina inundava as minhas veias.
Arrastei um cacho rebelde para trás da orelha com as mãos
trêmulas. Como pude entrar em uma situação dessas?
Dois toques na porta depois e a voz de Caíque surgiu,
abafada:
— Amor, tá tudo bem aí?
Afundei a cabeça entre as mãos. Não, não estava.
— Tá sim! Eu só quero ficar sozinha!
Os minutos passaram, ele continuou parado do outro lado.
— Tem certeza?
— Tenho, Caíque, estou cansada. Me deixe sozinha, por
favor!
Liguei a torneira e encharquei o meu rosto com água
abundante.
— Okay, okay, me desculpe... — ele suspirou altivamente. —
Raquel está vindo pra cá, tem algum problema?
Levantei a cabeça de supetão.
— O quê? — Encarei meu reflexo molhado no espelho. —
Você ligou para ela?
— Não. Ela disse que vinha.
Praguejei em silêncio. Minha vontade era de me trancar no
quarto e não ver nenhum ser vivo até Laura ir embora — se ela for
embora —, o que não ia acontecer tão cedo. Sentei-me no chão do
banheiro ao lado do boxe.
— Quando Raquel chegar, peça para ela vir até aqui.
Os passos de Caíque se distanciaram, ele bateu a porta do
quarto ao sair.
Enfim, sozinha, mesmo que por pouco tempo.
Pela forma em que Laura me tratou no carro — que nós duas
nos tratamos — a conclusão estava óbvia: iríamos esquecer o que
aconteceu em Paris e seguir em frente. Qualquer mero pensamento
libidinoso com a minha cunhada seria uma traição. Nada de pensar
em como ela parecia genuinamente feliz no aeroporto, antes de me
ver, e como estava adorável com os cabelos presos e...
— Eu tô ferrada, muito ferrada… — choraminguei. — Mas vai
ficar tudo bem, tudo bem…
Raquel abriu a porta após dois toques rápidos na madeira.
Assustei-me pela segunda vez em menos de meia hora.
A barriga cresceu nesse meio tempo em que passei longe. A
gravidez a deixou com uma aparência mais saudável, os cabelos
castanhos claros brilhavam e a pele estava lisinha, macia como a de
um bebê. Ela usava um vestido florido apesar de odiá-los antes de
engravidar, porém, segundo a própria, era a única coisa que servia
e, de quebra, era fácil de tirar na hora de fazer xixi ou transar.
Raquel virou uma ninfomaníaca durante a gravidez, Augusto estava
exausto. Ela entrou no banheiro e fechou a porta. Com uma mão na
cintura e a outra segurando a barriga, sentou-se no vaso ao meu
lado.
— Eu até faria companhia para você aí no chão, mas se eu
abaixar agora, não me levanto mais. — Raquel tirou o óculos de
grau, limpando-o na barra do vestido. — Vocês deveriam fazer um
elevador, aquelas escadarias… Meu Deus, achei que fosse parir no
terceiro degrau...
Repousei a cabeça no seu colo. Raquel começou a fazer um
carinho em meus cabelos.
— Como está o bebê? — perguntei, fungando.
— Dormindo, acho. Ele só fica acordado quando eu estou
dormindo. Augusto acha que vai ser um futuro jogador de futebol,
vive chutando.
Ergui a cabeça para encará-la.
— Ele veio também? Augusto?
Raquel assentiu.
— Está lá embaixo, conversando com Caíque e a irmã dele.
Até eu fiquei curiosa para vê-la de tanto que Augusto tagarelou
sobre.
Franzi o cenho.
— Caíque contou para Augusto sobre Laura...? Contou a ele
e não me contou?
Raquel deu de ombros.
— Você sabe que os dois não conseguem esconder nada um
do outro. Augusto conhecia essa irmã de Caíque. Eles estudavam
na mesma escola.
Voltei a deitar a cabeça no colo de Raquel, incomodada o
bastante com aquela história mal contada para pensar em não
demonstrar, mas minha amiga entendeu de outra forma.
— Caíque me contou que você estava estressada e
chorando…
— Fofoqueiro — balbuciei.
Senti o corpo dela enrijecer.
— Existe uma possibilidade de você… sabe? — Raquel
alisou a barriga. — Eu também tive esses lapsos de humor antes de
descobrir.
Fiz uma careta, repudiando totalmente a ideia.
— Eu não estou grávida!
Uma parte de mim riu da possibilidade. Era só o que faltava
para completar a lista de desgraças: casar grávida. Seria uma
vergonha para a família de Caíque, a tradicional família de Caique.
— Então é por causa da irmã dele? — perguntou Raquel.
— De certa forma — respondi.
Ela estalou a língua no céu da boca, em desaprovação.
— Laura é legal, apesar de aparentar ter visto um fantasma,
tadinha.
O fantasma era eu, no caso.
— Eu não estou com ciúmes de Laura, estou bem. —
Mentira. — Na verdade, nem tão bem assim... — Meia mentira. —
Argh, eu não estou nada bem! — Baguncei os cabelos enquanto
grunhia. — Laura, a garota legal que parece ter visto um fantasma,
é a mesma garota que eu transei em Paris!
Os olhos verde-folha de Raquel se arregalaram, temi um
descolamento de retina. Ela paralisou com a mão no ar prestes a
tapar a boca, como um robô ao receber uma carga alta de energia.
— Você… Você…? Meu Deus, Júlia! Agora faz sentido! A
ligação para Augusto e a mudança de assunto no avião, o drama
e…
Interrompi sua fala.
— Eu não sabia sobre Laura, eu juro! Caíque e eu
escolhemos lugares diferentes para termos essa experiência o mais
distante possível de casa, exatamente para não esbarrarmos em
alguém conhecido! Se eu soubesse que Laura era a tal da irmã
perdida dele, eu sequer teria aceitado dividir minha broa com ela!
Laura também não sabia quem eu era, nós acabamos de descobrir,
merda! Entende meu desespero agora?
Raquel levantou a palma em um pedido de tempo. O
banheiro caiu em um silêncio ansioso enquanto eu esperava uma
solução mágica vinda dela.
— Você não precisa surtar — disse Raquel, simplista.
Meus olhos estreitaram-se.
— Não preciso?
— Não, não precisa — repetiu ela, como se fosse óbvio. — O
que rolou nessa despedida de solteiro, entre você e Caíque, foi
combinado, esqueceu? Não houve traição, vocês viajaram no intuito
de transar com outras pessoas, ele transou com outras pessoas e
você também, você só teve a má sorte dela estar aqui.
Assenti com a cabeça.
— Então, devo contar a ele?
— O quê? Não! Óbvio que não! Isso não muda o fato que
agora ela está aqui e, como uma pessoa importante para Caíque,
você terá que aprender a conviver com ela. O que eu estou dizendo
é que você a conheceu em um dia, Júlia, um só dia. Vocês
transaram e é só isso. Não podem mudar o que aconteceu, mas
podem decidir esquecer isso e seguir em frente.
Fazia sentido. Era a conclusão que eu chegaria, se tivesse
ficado sozinha por mais tempo.
— Foi só uma transa sem importância, não vai mudar nada,
certo? — prosseguiu Raquel.
— …Certo? — Não pareci confiante, por isso repeti. — Certo,
não vai mudar nada. Daqui há quinze dias, eu vou entrar na igreja e
vou me casar do jeitinho que eu planejei.
Raquel bateu palmas, feliz.
— Para mais conselhos profissionais, ligue e marque uma
consulta, agora eu vou cobrar… — Ela deu batidinhas nos meus
ombros. — Agora, saia daqui, ficar muito tempo sentada no vaso me
deu vontade de fazer xixi.

✽✽✽

Acordei de repente, suando frio e com a respiração


descompassada. Ainda não havia amanhecido. O quarto caía
naquela escuridão pacífica e me fez conjecturar ter dormido por dois
anos.
Apalpei o vento em busca do celular, mas só achei um bilhete
de Caíque junto a uma cartela de remédios, na escrivaninha.
“Melhoras, te amo", dizia. Ele era tão bom para mim, envergonhei-
me ao lembrar a maneira infantil como agi ontem.
Eu não sabia lidar com situações adversas.
Levantei-me e tomei banho, lavei meus cabelos, hidratei e os
sequei. Permiti-me focar nesses afazeres de forma lenta, clareava
os pensamentos confusos. Quando saí do banheiro, o começo do
dia tomava conta do meu quarto através das janelas. Uma fina
camada de sereno escondia as montanhas verdes e mesclava-se ao
céu nublado. Abril era época de chuva, o tempo permanecia úmido.
Inspirei fundo, o ar frio gelou as minhas narinas.
Quando desci as escadas, deparei-me com Caíque na
cozinha. Ele estava enrolado em um cobertor e os cabelos loiros
escuros despontavam para todos os lados. Em cima da mesa, havia
um dicionário de inglês, uma cesta de pães de queijo e duas
xícaras. O zumbido da cafeteira jazia, espalhando o cheiro de café
torrado pelo cômodo, e para completar o cenário passifico de uma
manhã nublada no interior, os passarinhos piavam no batente da
janela. Bebericavam água no bebedouro vermelho cheio de
florzinhas.
Cheguei por trás de Caíque e o abracei. Ele ergueu a cabeça
para me dar um selinho.
— Está se sentindo melhor?
— Sim, estou melhor. — Sentei-me ao lado dele. — E me
desculpe por ontem, eu pirei legal.
Caíque balançou a mão no ar.
— Não se preocupe. Laura me contou tudo.
Arregalei os olhos, fitando-o, mas Caíque não devolveu o
olhar, estava concentrado no dicionário. Laura contou sobre nossa
noite e ele aceitou? Nada no rosto do meu noivo indicava raiva. Era
apenas o Caíque de sempre, louco para aprender todas as gírias
das línguas derivadas do latim com a mesma animação de um
garoto de 12 anos jogando Minecraft.
— Ela contou… — Engasguei com saliva. — Contou tudo?
— Sim, sim... — respondeu ele, distraído — Paris é grande e
vive lotada de turistas, mas não era impossível vocês se esbarrarem
lá… E você estava muito estranha ontem.
Olhei para os lados, sem saber o que responder. Caíque
prosseguiu aéreo ao meu conflito interno, levantou-se ao ouvir o
apito da cafeteira e encheu duas canecas de café, me deu uma.
Nesse meio tempo, nem ao menos pisquei. Meu peito borbulhava
em raiva. Por que me incomodava tanto Laura ter contado sem me
avisar?
Tomei um longo gole de café, queimando a ponta da língua.
— Laura está aqui?
Caíque negou com a cabeça.
— Não, ela preferiu ficar em um hotel, na Avenida Principal.
Franzi o cenho.
— Tem quartos vazios na pousada — respondi o óbvio. Era o
que mais tinha naquela casa: quartos vazios. Desde a morte do pai
de Caíque, Dona Cecília decidiu fechar a pousada.
Caíque massageou as têmporas, cansado.
— É complicado, Ana. E eu não te contei tudo sobre a minha
irmã.
— Não me contou nada sobre ela. Na verdade, você me
disse que ela estava morta.
Nunca tivemos uma conversa profunda sobre essa irmã. Se
ele tivesse me contado a verdade, se tivesse me dito apenas o
nome… Caíque repousou a mão na minha coxa.
— Laura era uma garota difícil e se metia em muitas
encrencas… mas eu não via isso naquela época, para mim era só a
minha irmã mais nova, cheia de sonhos e com uma língua afiada
demais. — Ele respirou fundo, nostálgico. — O importante é que ela
voltou. Desde a morte do papai, não sinto a família reunida dessa
forma.
A cada vez em que o nome de Laura saía da boca de
alguém, a situação parecia se complicar ainda mais. Repousei a
mão em cima da de Caíque, confortando-o.
— E o que você acha dessa história toda que ela te contou?
Sobre Paris?
Ele deu de ombros.
— É a sua cara supor coisas sem averiguar os fatos antes,
Ana.
Ergui uma sobrancelha.
— Oi…?
— Foi mal, eu não quero brigar. — Ele beijou as costas da
minha mão. — Laura me disse que vocês esclareceram tudo sobre
o roubo da carteira. Só acho que você deveria ter sido mais
cuidadosa antes de acusá-la sem provas.
“Confusa” era uma palavra fraca para expressar o que eu
estava sentindo.
— O que Laura disse para você?
— O resumo da história toda. Você perdeu a carteira, ela
estava atrás de você, você achou que tinha sido ela, vocês
discutiram… — Caíque soltou um riso anasalado. — Eu percebi que
vocês não se deram bem logo de cara, mas foi uma baita
coincidência, ein?
Demorei a processar o que saiu da boca dele. Eu estava
disposta a esconder a verdade de Caíque, mas Laura preferiu dizer
uma meia verdade. Agora ele sabia do nosso encontro, mas não
dos fatos concretos. Parabéns, Laura.
— De qualquer modo, vocês têm esses dias para começar
com o pé direito — acrescentou ele.
— Dias? — Estremeci. — Então ela vai mesmo ficar?
Caíque me lançou um sorriso largo.
— Mais do que isso, vai ser a madrinha do nosso casamento.
Você precisa levá-la para experimentar o vestido e… Ei, relaxa! —
Ele me deu um selinho molhado. — Tenho certeza que esse tempo
será bom para aproximar vocês!
Fugi dos seus toques.
— Você não pode convidar Laura para ser a nossa madrinha.
Ainda mais sem me consultar antes.
Caíque maneou a cabeça, confuso.
— Ana, eu sei que você não gosta dela, mas Laura é minha
irmã. Custa deixar essa história de Paris para trás e começar com o
pé direito?
Minha garganta formou um nó.
— Custa muito deixar Paris para trás, Caíque. O que
aconteceu lá foi… foi algo... — Engoli o choro. Por que eu estava
surtando? Laura parecia disposta a deixar isso para trás, então seria
eu a estragar tudo? Fechei os olhos com força. — Me desculpe. Eu
estou ficando louca e eu... eu vou esquecer tudo, ok? Vou sim. Vou
esquecer.
Ele me puxou para um abraço apertado. Inspirei o cheiro
familiar de Caíque.
Ele era o homem da minha vida.
Repeti isso várias vezes.
— Eu te amo, Ana — sussurrou ele, no meu ouvido.
— Também — sussurrei de volta.

✽✽✽
Logo depois, Dona Cecília acordou e montou a mesa do café
da manhã só para Laura, mas quando ela chegou, eles ficaram
desconfortáveis. Caíque puxou uma conversa sobre o clima, mas
não engatou. O silêncio se estendeu até Laura pedir licença após
bebericar dois goles de café, empurrar um pão de queijo garganta
abaixo e sair.
Encontrei-a no jardim, sentada em um banco de metal.
A vista para a majestosa cadeia montanhosa, coberta pela
neblina, parecia nos engolir. A pousada localiza-se no topo de um
pico, de modo que o frio e a fumaça impossibilitavam qualquer um
de ver algo a cinco passos de distância. Era como se não houvesse
nada a não ser a casa rodeada por um pedaço de terra, flutuando
no ar. Laura descansou a cabeça em cima dos joelhos flexionados,
e para um olhar desatento, poderia ser uma estátua. Cruzei o
gramado e me sentei no banco frio, ao seu lado. O calor dela me
aquecia, mas me segurei para não diminuir o espaço que nos
separava.
— Foi um erro ter voltado, Júlia — cochichou ela, com os
lábios em um bico graças a posição do queixo.
— Não tínhamos como saber, Laura. E sobre o seu passado
com os Grinberg, família é uma coisa complicada. Deve ter sido
legal viver como você viveu nesses dez anos, nesse mochilão sem
fim pelo mundo, mas é bom voltar para casa; é ruim, mas é bom.
Abaixei a cabeça, envergonhada, enquanto a risada de Laura
preenchia os meus ouvidos.
— É ruim, mas é bom? — zombou.
Cruzei os braços, emburrada.
— Era para ser um conselho sério!
— Continue, estava funcionando! — incentivou ela, rindo.
Abri a boca, depois a fechei, reunindo coragem para
prosseguir, mas o seu olhar pinicava a minha pele. Inspirei fundo,
concentrando-me.
— Temos que nos reconectar com as nossas raízes de
tempos em tempos, lembrar que existem pessoas que nos amam.
Caíque te ama, ele está muito feliz por ter você aqui… — Mantive
meus olhos nos dela. — No fim, é isso que importa.
Laura desviou a atenção para o horizonte nublado.
— É, acho que você tem razão.
Um silêncio desconfortável recaiu sobre nós.
Quando me mudei para cá, aos dezesseis, Caíque sempre
me trazia para lanchar aqui, sentávamos na grama, com um lençol
velho e sacos de Fandangos. Ele tinha sofrido uma perda recente.
Um dia, nos sentamos neste mesmo banco e eu perguntei o porquê
ele estava cabisbaixo. Caíque respondeu: “Hoje é aniversário da
minha irmã”. E ele nunca tinha me contado sobre essa irmã antes.
Para mim, Caíque era filho único. Perguntei o que havia acontecido
a ela, porque não estava mais ali, ele demorou a responder, mas
disse: "Ela morreu".
Os Grinberg agiam como se Laura não tivesse existido.
Nunca vi fotos, ouvi histórias, nem um simples nome.
— E sobre Paris? — perguntou ela, sua voz se misturou à
brisa.
Respirei fundo, decidida.
— O que aconteceu em Paris fica em Paris.
Ela concordou com um menear.
— O que aconteceu em Paris fica em Paris.
Meu peito bateu desordenado quando eu deveria me sentir
aliviada, disposta a aceitar o fim dessa pauta. Era um combinado
simples, fácil de seguir. Era uma segunda chance de começarmos
com o pé direito, como se aquela noite não tivesse existido.
Entretanto, o meu coração continuou apertado. Não, nada seria tão
fácil assim.
Levantei-me sem saber o que fazer com as mãos.
— É melhor eu trocar de roupa. Tenho que te levar para
provar os vestidos e tudo mais…
Laura sorriu, aquele sorriso largo.
— Tudo bem.
Eu ainda estava com ele na cabeça quando entrei na
pousada.
Capítulo cinco
Próxima a ruir

Monte Verde era uma vila pequena com menos de cinco mil
habitantes, não tínhamos um shopping, hospital ou um
supermercado. As pessoas eram calmas, nada de muito
interessante acontecia. No entanto, ainda me lembro da agitação de
Belo Horizonte, das buzinas e dos carros na avenida movimentada
em que eu morava.
Em Monte Verde, não havia nem prédios.
Eu usava o Cooper de Caíque no dia a dia, era pequeno e
facilitava o acesso ao centro de Monte Verde: uma avenida estreita
feita de pedra. Laura precisou se encolher no banco do carona
como em uma casinha de bonecas e suava, apesar do casaco
grosso e da temperatura amena do lado de fora do carro. Eu
também estava nervosa. Seria só nós duas em um passeio até a
costureira responsável pelos vestidos do meu casamento.
Laura repousou a cabeça na janela, os cabelos rosa
formavam uma manta ao redor do rosto. Ela era bonita de um jeito
desleal e não se esforçava nenhum pouco para isso. Não se
submetia a três sessões diárias de skincare, maquiagem e
cabeleireiro aos finais de semana, como eu. Laura era apenas ela,
naturalmente bela, observando a paisagem à nossa volta, os lábios
entreabertos, olhos delineados e cabelos ao vento. Muito desleal.
— Senti falta daqui — disse ela em um suspiro.
Eu precisava me concentrar para não patinar com o Cooper
na estrada de terra, mas estava sendo um desafio. Meus dedos
agarraram o volante, tensos.
— Eu senti falta daqui quando saí para fazer faculdade,
imagina você que passou nove anos fora...
— De onde você é? — perguntou ela.
Ergui uma sobrancelha.
— Como sabe que não sou daqui?
Laura soltou uma risada polida.
— Preciso responder?
Não precisava. A taxa de adolescentes em Monte Verde era
quase zero. Caíque viajava para a cidade vizinha para frequentar a
única escola das proximidades.
— Sou de Belo Horizonte — respondi. — Mas minha mãe
resolveu mudar para cá quando perdeu o emprego. Eu tinha
acabado de terminar o ensino médio.
Ela franziu a testa.
— 17?
— O quê…? Ah! Dezesseis, me formei com 16 anos. Entrei
com seis no maternal.
— E sua mãe queria um lugar tranquilo, sem o estresse da
cidade grande. Apesar de Belo Horizonte estar longe de ser uma
cidade grande...
Na tentativa de concordar de uma maneira engraçadinha,
soltei uma risada estranha. Eu estava feliz por Laura se esforçar
para quebrar o gelo, já que eu não me mexia enquanto dirigia, não
conseguia pensar em respostas rápidas e fluídas quando minha
atenção estava concentrada em algo, mas com ela ali, era
duplamente impossível.
— Mas... me diz, o que você fazia para se divertir aqui? —
prosseguiu ela.
— Provavelmente o mesmo que você. Não é como se Monte
Verde tivesse muitos lugares para diversão.
Laura concordou.
— Pensei que as coisas tivessem mudado. A Pedra da
Partida ainda existe? A trilha do Platô...?
Puxei o ar pela boca, pensando.
— Ainda existe, mas só adolescentes vão lá para fumar
maconha e… — De repente, olhei para Laura. — Você também ía
para isso, não é?
Minhas mãos se afrouxaram no volante ao passo que a
risada dela preenchia os meus ouvidos.
— É claro! — confirmou ela. — Como você disse, não é como
se Monte Verde tivesse muitos lugares para diversão, ainda mais
quando se é adolescente.
Maneei a cabeça, incrédula.
— Ainda não acredito que você frequentava esses lugares,
Laura.
Ela me deu empurrõezinhos com o ombro.
— Ah, não vai me dizer que você nunca foi?
— Nunquinha. Na adolescência, eu era muito boba, fumar,
beber, beijar… nunca tive coragem. — Devolvi o empurrão na
medida do possível para alguém no volante. — Eu tinha síndrome
de boa filha... ainda tenho, acho. Gosto de estabilidade e de não me
meter em encrencas.
Laura tombou a cabeça para o lado.
— E não se arrepende?
A estrada de terra deu lugar a uma rodovia asfaltada.
Batuquei os dedos no volante, permitindo-me pensar a respeito.
— Depende do dia — resolvi responder.
Às vezes, eu me arrependia de não ter agido de maneira
irresponsável quando tive a chance, porém só de pensar na
consequência do meu último ato impensado sentada ali, em carne,
osso e tentação, tudo mudava de perspectiva.
— Isso é bom, quer dizer… É bom não se meter em
encrencas. Eu não teria feito tantas bobagens se tivesse passado a
minha adolescência sóbria e... — Laura interrompeu-se.
Um silêncio incômodo surgiu, cortado apenas pelo barulho
preguiçoso do trânsito. Caíque comentou sobre Laura ser
problemática, mas como de praxe, não se aprofundou no assunto.
Enquanto várias suposições pipocavam na minha cabeça,
passamos em frente à igreja São Francisco de Assis, que eu me
casaria dali há quinze dias. A fachada era simples e, diferente das
outras igrejas das cidades do interior, feitas em estilo barroco,
aquela era moderna, mas acolhedora. Já a Avenida Principal estava
recheada de turistas tirando fotos, bebendo e tremendo em seus
casacos recém comprados.
De supetão, Laura perguntou:
— Você fez faculdade onde?
Pisquei algumas vezes, mas não me acostumei a sua voz
levemente rouca graças aos minutos em silêncio.
— Em São Paulo, é mais próximo daqui. — Lancei-lhe um
sorriso breve. — Letras.
Ela encostou-se no banco, com um olhar enigmático.
— É a sua cara.
— Isso é um elogio ou uma ofensa, Laura? — retruquei, com
uma sobrancelha arqueada.
Ela riu e, novamente, me vi rindo também. Laura tinha um
jeito natural de mostrar interesse, lembro-me das horas gastas em
Paris, em que não me cansei de falar ou tive a sensação de estar
incomodando. Era fácil gostar dela.
Engoli o seco, obrigando-me a voltar para a realidade.
— Chegamos — respondi.
Estacionei na frente do atelier, Laura saiu do carro logo em
seguida. Atrás do Cooper, um SUV ocupava duas vagas e os donos
já estavam dentro do estabelecimento: Augusto e Raquel.
Augusto era professor de uma escola primária e seu estilo
oscilava entre camisa social e sapatênis e algo parecido com um
vocalista emo de uma banda de garagem. Depois da gravidez de
Raquel, ele adicionou ao guarda-roupa a terceira opção: “pai de
primeira viagem”. Estava sentado na recepção, mexendo no celular
ao lado da esposa.
Conheci Augusto graças a Caíque, eles eram melhores
amigos desde sempre, gostavam das mesmas bandas, viviam
cheios de piadas internas e conversavam por olhares. Raquel entrou
na minha vida no primeiro dia de aula da faculdade, ela fez
psicologia apesar de não seguir na profissão. Caíque quem teve a
brilhante ideia de apresentá-los. Deu muito certo, casaram-se há
três anos.
— Ah, até que enfim! Achei que ficaria te esperando o dia
todo! — Raquel levantou-se, arrumando a barra do vestido. Como
virou hábito, veio até mim com a mão segurando a barriga enorme.
A recepção do atelier estava vazia, a filha da costureira
costumava ficar atrás do balcão, entediada e dando respostas
petulantes a maioria das vezes, mas agora, nem ela se dispôs a vir
nos atender. Abracei Raquel de lado.
— Como está o bebê?
— Chutando — respondeu ela.
— Vamos ser pais do novo Messi, não sabia? — completou
Augusto, cumprimentando-me com um abraço.
Procurei Laura com o olhar. Ela estava encolhida atrás de um
vaso de plantas, como uma criança procurando a mãe no
supermercado.
— Acho que já conheceram a irmã de Caíque, Laura. Ela vai
ser madrinha do nosso casamento — apresentei-a.
Laura se aproximou, acanhada.
— Claro que conheço. — Augusto forçou um sorriso. —
Estudamos juntos.
Raquel e eu trocamos olhares tensos.
— Você vai passar só uma temporada aqui em Monte Verde,
Laura? — perguntou Raquel, tentando soar receptiva.
Augusto entrelaçou as mãos na frente do corpo.
— Óbvio que não. Imagino que a lista de Laura esteja
recheada de países para visitar, não é?
Ela deu de ombros.
— Caíque te conta tudo, por que não pergunta pra ele?
Raquel pigarreou, cutucando o marido. Um pedido silencioso
que ficasse quieto. Aparentemente, a relação de Augusto e Laura
não parecia ser tão amigável.
— Acho melhor… — Olhei para os lados, sem saber o que
fazer com as mãos. — Acho melhor entrarmos, tá frio aqui, né?
Augusto concordou.
— Melhor manter as mãos dentro dos bolsos, Laura.
— Depois de você, Augusto — rebateu ela, indicando o
caminho.
Dentro do ateliê era uma bagunça de vestidos de noiva,
caldas, véus e acessórios. Automaticamente me senti sufocada.
Sustentei-me em Raquel e respirei fundo.
— Ei, tá tudo bem? — perguntou ela, preocupada.
Pisquei algumas vezes, tentando firmar meus pés no chão.
— Sim. Tudo de boa.
Raquel franziu o cenho.
— Você tá roxa, Júlia.
— Estou bem — insisti.
Foquei-me em Laura a uns passos à frente, concentrada em
uma arara de vestidos de noiva. Augusto pairava ao redor dela,
como um segurança particular.
— Você contou para Augusto sobre eu e…? — Maneei a
cabeça em direção a Laura.
Raquel soltou um riso tenso.
— Você está louca? Ele não pode nem sonhar.
— Então, por que está agindo assim...?
Raquel deu de ombros.
— Isso você vai ter que perguntar para ele.
Mordi os lábios, decidida a esquecer a relação desastrosa de
Augusto e Laura. Se eu me apossasse de mais um problema, iria
explodir antes do casório. A costureira se aproximou. Era uma
mulher na faixa dos quarenta anos, simpática.
— Vamos fazer mais uma prova hoje? — perguntou ela.
— Na verdade, não, quer dizer, eu preciso, engordei um
pouco na viagem… mas hoje não, melhor não. — Olhei novamente
para Laura. — Vim trazer uma nova madrinha para experimentar os
vestidos.
— Ah, excelente! — A costureira bateu palmas, aproximando-
se de Laura. — Pelo que eu vejo, não preciso fazer muitas
modificações!
Augusto deu um tapinha no ar.
— Não se preocupe tanto, ela sempre acaba fugindo, no fim
das contas.
A costureira arregalou os olhos, sem saber o que responder.
Raquel fitou Augusto intensamente, enquanto eu só tinha olhos para
a pálida Laura.
— Eu… — Ela abaixou a cabeça, os fios rosa tampando o
rosto. — Eu acho que preciso de um tempo...
E saiu apressada, trombando em algumas araras de vestidos
ao cruzar a porta. Raquel bateu os pés no chão em uma birra.
— Augusto! Olha o que você fez!
— Eu não falei nada demais! — justificou ele, elevando a voz.
Não parei para prestar atenção na briga dos dois, corri atrás
de Laura. O rastro parou nos fundos do atelier, em um beco. Duas
caçambas de lixo lotadas de retalhos de tecido ocupavam espaço
junto a um esgoto a céu aberto. Laura escorou em uma das
caçambas, os olhos me acompanharam no momento em que cruzei
a porta até parar ao seu lado. Ela não disse nada, mas a sensação
dos nossos braços se tocando já parecia ser algo errado. Afundou a
mão nos bolsos do casaco e tirou um cigarro do maço.
— Não sabia que você fumava... — sussurrei, decepcionada.
— Só não conte para Caíque. — O cigarro na sua boca se
movia à medida em que falava. — Aceita?
Mexi a cabeça no que eu acreditei ser um não.
— Ah, me esqueci… — Laura sorriu de lado, acendendo o
cigarro. — Você tem síndrome de boa filha...
Formei um bico nos lábios como fazia quando criança. Minha
mãe teria puxado-o para me ensinar uma lição.
— Só não quero morrer antes dos 40. Câncer de pulmão, já
ouviu falar?
— Não tenho pretensões de viver por muito tempo. Mas você
precisa pensar nisso, não é? No futuro e tudo mais... Os filhos vão
estar na faculdade até lá? O casamento vai ter se desgastado?
Reservou dinheiro para as sessões de terapia de casal? — Ela
puxou a fumaça do cigarro. — Achei que estivesse ocupada demais
planejando cada ano da sua vida para ter tempo de cuidar da minha,
Júlia.
Mirei os olhos em Laura, mas ela sequer me encarou de
volta.
— Por que está falando desse jeito comigo?
Ela deu um chute no ar, frustrada.
— Desculpe. Augusto acabou com a minha paciência.
Dito isso, me afastei um centímetro em protesto. Eu deveria
fazer mais, deveria ir embora dali, porque os nossos braços se
tocavam e o cheiro de cigarro ardia a minha garganta, mas ir
embora não era uma opção quando o calor dela me aquecia mesmo
debaixo do casaco.
— Achei que vocês fossem amigos, você e Augusto —
murmurei.
Laura riu, a fumaça do cigarro saiu pelas suas narinas.
— No começo, nos dávamos bem, Augusto relevava o meu
comportamento, porque eu era a irmã mais nova de Caíque, fase
rebelde e tudo mais, mas um dia… Um dia, as coisas saíram do
controle. Fomos a uma joalheria depois da escola, era aniversário
da mamã… — Laura balançou a cabeça. — Era aniversário da
Dona Cecília, Caíque e eu decidimos comprar um pingente. Ela
amava, andava para lá e pra cá com uma pulseira cheia de
pingentes: um menino e uma menina, uma casa, um anel, e todo
ano ela completava a pulseira com mais um pingente. Chegamos na
loja e eu vi um colar de pérolas, elas pareciam brilhar, eram rosadas
e tão delicadas… Eu sabia que se pedisse ao pai de Caíque, ele me
daria, mas roubar era mais legal. Pedi a moça para olhar e quando
ela estava distraída, coloquei no bolso. Nem Augusto ou Caíque
perceberam, mas na hora da saída eu entrei em pane. Fiquei com
tanto medo que coloquei o colar no bolso de trás da calça de
Caíque.
Nós duas respiramos fundo ao mesmo tempo.
— Mas aquele dispositivo da porta apitou e Caíque assumiu a
culpa. — A voz de Laura foi diminuindo até virar um sussurro, o
cigarro já estava na metade. — Chamaram a polícia, foi uma
confusão. Caíque me perdoou, como sempre, mas Augusto nunca.
Abri e fechei a boca, sem saber o que dizer. Quando Caíque
me disse sobre a irmã entrar em problemas, não imaginei ser algo
nesse nível.
— Laura, isso é…
— Horrível? É sim, eu não era uma boa pessoa, Júlia.
Augusto tem todos os motivos do mundo para não me querer aqui.
Seu semblante estampava tanta dor, era difícil encará-la.
Abaixei a cabeça, seus dedos torciam a barra do meu casaco e,
bem devagar, entrelacei os nossos dedos mindinhos, como em uma
promessa. Um choque percorreu o meu corpo.
— Isso aconteceu há dez anos atrás, Laura, você não deve
se culpar pelas coisas que fazia quando era adolescente. Todos nós
escondemos monstros debaixo da cama, você não é pior ou melhor
que ninguém por isso — sussurrei confiante, mas ao levantar a
cabeça, fiquei presa em seu olhar. Não sei se estávamos perto
demais, mas os nossos dedos entrelaçados era algo difícil de
ignorar.
— Só não quero que ouça essas histórias e pense que ainda
sou assim — respondeu ela, mas eu estava focada em como os
seus lábios se moviam lentamente, molhados de saliva. — Quero
que se lembre de mim em Paris, nas horas que passamos andando
pelas ruas frias, compartilhando calor de mãos dadas... Na conversa
que tivemos naquele bar, nos conselhos horríveis que eu espero
que você nunca os siga. Quero que se lembre de mim daquele jeito,
sem um passado, um futuro, apenas vivendo o presente.
Fechei os olhos com força, minha respiração estava rápida, o
ar saía e entrava com a força de um furacão. Talvez estivéssemos
próximas demais, talvez eu sentisse a respiração dela perto da
minha, o cheiro de cigarro e shampoo de hotel, o leve roçar dos
nossos braços. Talvez o calor dos dedos entrelaçados me
remetesse ao calor do seu corpo, cabelos misturados à saliva e ao
suor e aqueles mesmos olhos colados nos meus, despindo a minha
alma.
Talvez eu estivesse próxima a ruir e tudo seria culpa de
Laura.
— Você não tem esse direito... — balbuciei, segurando as
lágrimas. — Não tem o direito de me pedir isso, principalmente
depois que nós prometemos, Laura. Prometemos esquecer Paris.
Pude ouvi-la engolir em seco.
— Eu não quis… não quis dizer…
Alguém saiu pela porta.
Laura e eu demos um pulo tão grande que só isso seria
capaz de nos entregar. Meu coração bateu forte no peito para
depois desacelerar em um suspiro de alívio.
— Raquel…
Fiquei envergonhada demais para continuar a frase.
— Acho melhor você entrar, Laura, a costureira quer que
você experimente o vestido — avisou ela.
Laura maneou a cabeça rapidamente e passou por Raquel
em um instante.
Sozinhas, ela se aproximou de mim, soltando um suspiro
decepcionado.
— Espero que saiba o que está fazendo, Júlia.
Não, eu não sabia.

✽✽✽

Depois da prova do vestido, Augusto e Raquel precisaram ir


embora. Raquel tinha consulta com médico e fez questão de levar
Laura de volta à pousada dos Grinberg.
Já o meu dia foi atarefado, algumas coisas precisavam ser
finalizadas antes do casamento e a minha futura casa era a mais
importante dos itens. Caíque comprou-a em julho do ano passado,
mas necessitava de uma reforma que nunca aconteceu de fato até o
começo desse ano. Como eu havia previsto, não ficaria pronta até o
casamento. E, ao fitar a parede inacabada de um dos quartos,
metade branca e metade amarela, o que evitei pensar durante o dia
voltou com tudo.
Aquele era o quarto do meu futuro bebê.
Uma súbita vontade de chorar me fez perder as estribeiras.
Queria voltar para Paris e viver para sempre no dia em que conheci
Laura, só para não precisar planejar uma vida perfeita, casamentos
e uma casa, mas a culpa arrastou esses pensamentos para o fundo
da minha mente.
Segurei o celular contra o ouvido. Caíque atendeu na
segunda chamada.
— Ana?
— Está ocupado? — perguntei.
Eu não conseguia parar de encarar a maldita parede metade
amarela e metade branca.
— Sua voz está estranha, está tudo bem? — perguntou ele.
Balancei a cabeça em um “não”, até perceber que ele não
podia ver. Se eu admitisse não estar bem, Caíque perguntaria o
porquê e eu não saberia responder sem chorar.
— Está tudo bem, eu só liguei pra te lembrar de ir ao atelier
amanhã, você precisa decidir a cor da lapela, azul celeste ou azul
cobalto... O buffet? Eu já decidi, vai ser Macarons au chocolat... O
quê, Caíque? Sua mãe não gostou? Ela não tem que gostar de
nada, o casamento é meu! Me desculpe, eu sei, desculpe, eu sei,
Caíque, pode ter certeza que eu sei, me desculpe... — Meus pés se
arrastaram no chão de taco, ansiosos. Toquei a parede, a tinta
estava fresca e minha mão saiu suja de amarelo. — …O arquiteto
disse que o orçamento vai aumentar… Eu não sei porque vai
aumentar, ele falou que a decoração que escolhemos é… — Arfei.
O quarto estava escuro há um tempo, não sei quanto tempo, o
cheiro de tinta era insuportável. — Eu não estou chorando, Caíque,
não estou… — Limpei as lágrimas com o dorso da mão. — A casa
não está pronta e… e tem o casamento... — Engasguei-me com as
lágrimas. — Eu acho que estou chorando, desculpa.
Eu não estava chorando porque a casa não ficaria pronta
antes do casamento ou porque decidi organizar tudo com as minhas
próprias mãos; planejar um casamento me tomaria tempo, eu sabia.
Eu estava chorando por me sentir envergonhada, por parecer uma
louca chorando em frente a uma maldita parede metade branca e
amarela, no meio da escuridão de uma casa inacabada, de um
futuro quarto de bebê.
— Fique aí — disse Caíque, do outro lado da linha.
— Eu estou bem, não precisa vir me buscar. É só estresse.
— Limpei as lágrimas com a barra da blusa. — Caíque...?
Andei aos tropeços até a janela, a caminhonete dele parou na
entrada da garagem. Laura saiu primeiro, carregando alguns fardos
de cerveja e vestindo um casaco mais grosso, Caíque saiu logo
depois, com o celular no ouvido. Ele olhou para cima e me deu um
“oi” sorridente.
Laura seguiu o olhar dele e levantou os cascos de cerveja,
também sorrindo.
Eles entraram na casa fazendo barulho. Não era só o quarto
que jazia na completa penumbra, era a casa inteira, ainda não tinha
instalado o sistema de luz. Sentei-me no chão e os esperei. Eu
estava na miséria, cabelos desgrenhados, rosto vermelho e costas
sujas de amarelo por escorar na tinta fresca.
Caíque parou no batente.
— Você está pior do que eu imaginei.
Funguei em meio ao choro.
— Obrigada pela parte que me toca, docinho.
Laura passou por ele e colocou o casco de cerveja no chão,
sentando-se ao meu lado. Caíque a imitou e repousou a cabeça no
meu ombro.
— Vocês já estavam vindo pra cá? — perguntei. Minha voz
pareceu abafada, como se eles não estivessem ali de verdade,
como se fossem um fruto da minha mente.
— Laura teve a ideia de fazer um dia de adolescente —
respondeu Caíque.
Olhei para ela, confusa.
— Você me disse que era boazinha demais — esclareceu. —
Pensei em comprar algumas bebidas e te fazer ter um porre
daqueles...
— Ela tem as melhores ideias! — Caíque fechou os punhos e
Laura deu um soquinho.
— Quem vai primeiro? — Ela pegou uma das cervejas e abriu
com o dente. — Já que ninguém se habilita, eu começo...
— Ei! Você não me deu tempo para responder! — exclamou
Caíque.
— Perdeu a vez, playboy… Ei! Caíque, me dá! É minha! Eu
peguei primeiro!
— Você não deu uma chance!
— Dei, sim! Me devolve!
— Vem pegar!
Eles brigaram pela cerveja como se ela fosse um troféu.
Laura saiu vitoriosa, levantando a garrafa acima da cabeça.
— Um brinde aos noivos!
— Viva! — gritou Caíque.
Eu não brindei nada.

✽✽✽

Laura levantou a cabeça.


— Você sabia… — Arroto. — Que o Van Gogh morreu… —
Arroto. — Porque bebia tinta amarela para ficar feliz?
Caíque riu, esfregando a tinta amarela no rosto.
Em algum momento depois da quinta garrafa de cerveja,
pareceu ser uma boa ideia tomar banho de tinta amarela, mas
estava escuro demais para ver a cor, já passava das duas da manhã
e a única luz do quarto era a Lua através da janela e, ora ou outra,
um carro com o farol ziguezagueando pela rua. A árvore da frente
da casa, uma macieira, balançava suavemente graças a brisa
noturna e a sombra dela pairava sobre nós.
— Van Gogh bebia tinta amarela porque tinha chumbo —
respondi.
— E o que eu disse? — perguntou Laura.
— Que ele bebia para ficar feliz.
Ela riu, aérea.
— É a mesma coisa.
Meu corpo doía e eu fedia a tinta e a suor.
— Não, não é.
Caíque permaneceu deitado no chão, olhando para o teto.
— É a mesma coisa, sim. Chumbo, felicidade… É uma linha
tênue, Ana.
— Exatamente! — Laura brindou sua garrafa vazia com a
dele.
— Que doideira… — Caíque riu. — Minha irmã… e minha
noiva… se encontraram em Paris, em uma discussão... e se
reencontraram aqui… em Monte Verde… e agora… agora estamos
bêbados e sujos de tinta amarela. Isso não me parece chumbo, me
parece felicidade.
Meu corpo enrijeceu, tentei não olhar para Caíque por medo
dele perceber algo nos meus olhos.
— Van Gogh ficaria orgulhoso de nós — respondeu Laura.
Caíque riu, ela também. Eles dormiram meia hora depois,
mas eu não consegui fechar os olhos, fiquei acordada até
amanhecer. Pensando. Eu nunca escondi nada de Caíque, sentia-
me mal e culpada, porque o motivo de me sentir mal estava ali:
lábios carnudos, cabelos desgrenhados e bochechas rubras pela
embriaguez. Laura era o motivo de eu me sentir assim e,
independente do que conversamos, do que foi combinado entre nós
ou de como a relação deles ficaria depois disso, eu tinha certeza de
uma coisa: não conseguiria esconder esse segredo de Caíque por
muito mais tempo.
Capítulo seis
O Deslize

Assim que abri os olhos, com a culpa solapando os primeiros


pensamentos que me atacaram ao despertar, soltei um longo
suspiro resignado. Desde a noite em que bebemos na casa, as
duvidas implantadas pela minha insegurança continuavam a matelar
a cabeça. Mas naquela manhã, o Sol entrava preguiçoso pelas
persianas e iluminava os aposentos escuros.
Sair dos cobertores naquele friozinho congelando a ponta do
meu nariz, seria mais uma batalha difícil de suportar.
— Você fala enquanto dorme.
Sentei-me de supetão. Laura estava ali, no meu quarto.
— O que você está fazendo aqui!?
Puxei os cobertores até o queixo. Eu dormia de camisola e
não era incomum acordar com ela desajustada no meu corpo, um
peito de fora ali, uma calcinha aparecendo acolá, tive sorte de
escolher um pijama para o frio, noite passada. Laura estava sentada
na poltrona logo abaixo da janela. Os raios de Sol faziam seus
cabelos parecerem mais claros, escorriam ao redor do rosto e os
olhos brilhavam em um tom de âmbar. Laura não usava nenhum tipo
de maquiagem, mas os lábios e as bochechas estavam
avermelhados, provavelmente pelo frio. Ela enrolou o cachecol até
cobrir o queixo, adorável.
— Bom dia — disse ela, simplista.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei novamente.
Laura me ignorou.
— Caíque está bastante feliz porque finalmente estamos nos
dando bem.
Apertei o cobertor com força, trincando o maxilar.
— Laura, o que você está fazendo no meu quarto?
Ela fechou o livro em seu colo e se levantou.
— Relaxa, ele me deixou entrar.
— Ele…? — Por um segundo de sonolência me esqueci
quem poderia ser. — Ah, Caíque, okay… acho.
Eu estava envergonhada, apesar de Laura já ter me visto
dormindo antes. Será que em Paris eu falei enquanto dormia? O
que eu falei agora? Será que Caíque ouviu alguma coisa...? Rodei o
quarto com os olhos, tentando me acalmar. Laura provavelmente me
achava uma bagunceira, tinha roupas sujas jogadas aos pés da
cama, o carpete indiano estava manchado de ketchup e a estante
de mogno abarrotada de livros, dos quais nunca li, carregada de
poeira, um alérgico entraria em coma. Levantei-me com as
bochechas queimando de vergonha. E se eu estivesse nua? Pior, e
se eu estivesse... tentei pensar em algo pior que nua, mas não
consegui. Laura já me viu nua, mas ainda sim, a possibilidade de
isso acontecer novamente, me enchia de esperança e culpa.
Ela encaixava o livro de volta à estante enquanto eu me
enrolava no cobertor,
— Esse era o meu quarto, sabia? — anunciou, simplista.
Era cedo demais para receber essa informação.
— Sério?
Laura afirmou com um menear.
— E esse era o meu livro favorito. Thomás lia para mim e
para Caíque quando éramos crianças. — Ela apontou para o livro na
estante. — Sítio do Pica-Pau Amarelo… E eu sei, Machado de Assis
era um cuzão, mas tenho apego emocional.
Encaramos por um tempo a lombada do livro. Eu era boa
para identificar antiguidades e aquele livro era um clássico. A capa
estava rasgada de tão velha.
— Eu amava ler as obras do Machado na época da
graduação. Quanto a essa obra em específico, eu gostava muito
mais do programa que passava na TV Globinho.
Sua boca se curvou num sorriso.
— Só não assista atualmente, deixe-a na sua memória.
— Combinado — sussurrei, acanhada.
Suspiramos ao mesmo tempo, e em silêncio, ela começou a
tamborilar os dedos na lombada desgastada.
— Thomás dizia ser possível separar a obra do autor, mas
acho que não é tão fácil assim... Suas ideias estão impressas no
que você escreve, não acha? Seus amores, experiências…
Fitei-a intensamente, sentindo o coração bater
descompassado. Novamente, vi-me refém das sensações
incômodas causadas por Laura.
Resolvi levar o assunto para outro lugar.
— Caíque me contou algumas histórias sobre o pai. Thomás
parecia possuir uma personalidade forte.
Ela me olhou confusa.
— Você não o conheceu?
— Muito pouco... Ele já estava doente. Não conseguia
lembrar o próprio nome.
A lembrança do velho e catatônico Thomás ressugiu do fundo
da minha mente.
Laura voltou a olhar as estantes, dessa vez, segurando o choro.
— Eu queria ter me despedido uma última vez... —
sussurrou, quase inaudível.
Pelas minhas contas, ele deve ter morrido no ano da sua
saída e a minha chegada a Monte Verde. Contive o impulso de
abraçá-la, apertá-la contra mim e deixá-la chorar o quanto quisesse
pela morte do pai, mas, no fim, apenas respirei fundo.
— Você leu todos eles? — Apontei para o móvel. — Digo…
todos da estante?
Ela limpou os olhos com a barra da blusa.
— … Quase todos, pelo menos os que eu e Caíque
conseguimos alcançar.
Fiquei em silêncio, sentindo algo revirar o meu estômago.
Não gostei de saber o que era, ciúmes, o velho e incômodo ciúmes.
Se eu me esforçasse um pouquinho mais, me convenceria ser
ciúmes de Caíque, mas até a minha mente estava cansada das
mentiras inventadas por mim.
Laura me olhou de canto de olho.
— Está preparada para o dia de hoje?
— Definitivamente, não — disse, sem pensar muito sobre.
Ela se afastou, rumando até a porta.
— Pois é melhor estar, Caíque já foi embora e Raquel está lá
embaixo aprontando tudo.
Agarrei o seu braço de forma abrupta, soltando-o com um
pedido de desculpas esganiçado.
— Raquel está o quê…?
Laura franziu as sobrancelhas.
— Achei que soubesse.
— Soubesse o quê, Laura?
Ela franziu a testa.
— Raquel está preparando um chá de lingerie para você, tem
um monte de mulheres lá embaixo. Estão te esperando — ela
pronunciou as palavras lentamente. — Por isso vim te acordar.
Dei alguns passos para trás, como se tivesse recebido um
soco. Chá de Lingerie com Laura. Laura e lingerie, Laura me vendo
de lingerie, com nada mais que lingerie e… lingerie. Ela pareceu ler
os meus pensamentos e acrescentou depressa:
— Raquel me pediu para ajudar na cozinha.
— Ah, sim… — Engoli o seco. — É melhor.
Suspiramos aliviadas.
— Tem muita coisa pra ser servida e tudo mais... — emendou
Laura, maneando a cabeça rapidamente.
— Pois é… Eu vou me trocar e…
— Tudo bem.
— Então…
— Já estou indo.
— Okay.
— Até… até lá embaixo, mas eu não vou te ver porque…
— Cozinha.
— É. Cozinha.
— Okay.
— Tchau.
Laura bateu a porta com força ao sair.
Soltei a respiração que nem sabia estar segurando.
✽✽✽

— E essa lingerie foi presente da… — Raquel desamarrou o


laço da caixa e tirou um sutiã de renda sem bojo, um espartilho e
uma calcinha minúscula, parecia ser apenas um fio tanto na frente
quanto atrás, literalmente um fio, não cobria nada. Um colar de
coxas e uma meia ¾. Todos da cor vermelha. — É da Madá!
As mulheres na roda bateram palmas, extasiadas. O salão de
recepção da pousada se transformou em um sex shop ambulante.
Descobri da pior forma possível que um chá de lingeries era muito
mais que lingeries. Paus de borracha, lubrificantes eróticos, cintas
ligas, calcinhas comestíveis e mais um bocado de brinquedos
exóticos estavam espalhados no meio da roda, junto a petiscos e
suco natural de laranja.
— Meu marido ama me ver em uma lingerie vermelha, é
clássica, eu sei, mas os homens amam clássicos! — disse Madá.
Ela era uma amiga do “Yoga Para Grávidas" de Raquel,
estava no oitavo mês de gestação, mas por ser tão pequena a
barriga quase não aparecia. Os cabelos loiros como palha estavam
presos em um coque e ela vestia roupas de malhação, chuto as
mesmas roupas do yoga.
Raquel fez um biquinho.
— Aproveite os primeiros dias de casamento, Júlia, os
primeiros dias são os melhores!
Todas soltaram suspiros, nostálgicas.
— No terceiro dia da Lua de Mel, tive que ir ao médico... —
uma delas confidenciou. — Porque a minha vagina inchou tanto
que…
Levantei-me de supetão.
— Preciso ir ao banheiro!
Tropecei nos conteúdos eróticos ao sair da sala, torcendo
para não ser impedida por nenhuma delas, mas Madá se levantou
rapidamente e me puxou.
— Não antes de experimentar a lingerie! — Um coro feminino
soou depois da fala dela. — Vamos, vamos, eu vou te ajudar!
Estamos todas ansiosas para ver como vai ficar!
— Ei, ei! — Raquel chamou, apressada. — Vão para os
quartos do segundo andar, Augusto vai chegar daqui a pouco!
Olhei para Raquel, assustada, enquanto Madá me puxava
pelo braço.
— O que Augusto vai fazer aqui?
— Trazer sua sogrinha! — exclamou Raquel, antes da sua
amiga me empurrar corredor adentro.
Madá Tagarela, como passei a chamá-la, escolheu o último
quarto do primeiro andar, pois o yoga não a preparou para subir
tantas escadas. O quarto de hóspedes era um simples cômodo com
uma cama de dossel e um espelho de corpo todo, emoldurado por
ipê maciço. Madá me esperou tirar a roupa e começou a me ensinar
o lado certo para vestir a calcinha, já que os dois lados eram apenas
um triângulo do tamanho do meu dedo mindinho. Sentia-me uma
boneca Barbie nas mãos de uma garotinha de seis anos. Ela
prendeu o colar na minha coxa e me ajudou a calçar as meias. O
sutiã era muito bonito, provavelmente eu jogaria o resto fora e usaria
somente ele.
No entanto, Madá soltou um "ai" no primeiro puxão no
espartilho. Olhei para o seu reflexo atrás de mim. Ai? Um “Ai”? O
que significava esse “Ai”? Eu não estava preparada para vê-la dar a
luz ali.
Segundos de puro pânico se estenderam até ela começar a
rir.
— Sou alérgica a lactose, sabe como é… Os petiscos tem
queijo, não resisti.
Sorri aliviada.
— Está tudo bem.
Madá olhou para a porta com as mãos fixas na fita do
espartilho. A minha visão era péssima dali, não pude ver quem ela
havia chamado.
— Você é a irmã do noivo, não é? — perguntou ela. Meu
corpo se enrijeceu e, pelo reflexo no espelho, encarei-me
desesperada. — É rapidinho! Eu juro, só vou ao banheiro! Oh, você
não vai negar uma ajuda a uma mulher grávida, não é? Em cinco
minutinhos, eu estou de volta! Prometo!
Depois de mais algumas recusas de Laura, Madá me largou
e correu para o banheiro. Ainda sem me mover, vi Laura parada na
porta do quarto. Ela parecia desesperada, piscava na mesma
rapidez de um beija-flor batendo asas. Imagino a surpresa de passar
por uma porta qualquer e ver a minha bunda coberta por uma fita
vermelha. Eu parecia uma labareda de renda.
Segurei o impulso de sair correndo quando Laura deixou a
bandeja de petiscos na cama e se aproximou.
— Não precisa fazer se não quiser… — sussurrei, olhando
para baixo. — Ela deve estar voltando...
— Tudo bem. — Laura engoliu em seco, os olhos fixos no
meu reflexo. — É só puxar e dar o nó.
O calor do corpo dela atrás de mim era algo que eu não
deveria sentir tão intensamente, mas eu senti e aqueceu todos os
meus músculos. Ela fitou o espartilho como se ele tivesse criado
vida e, ao tentar não olhar para a minha bunda, falhou
descaradamente.
Nossos olhares se encontraram.
— É só puxar e dar o nó — lembrei, sorrindo. Era pra ser um
incentivo, mas as bochechas de Laura ficaram vermelhas como um
pimentão. Eu nem sabia que pessoas da nossa cor podiam ficar
vermelhas assim.
— Certo. — Ela sorriu também, um sorriso tenso, prolongado
mais que o necessário. — É só puxar e dar o nó, puxar e dar o nó…
Puxar e… dar o nó...
Suas mãos tocaram levemente as minhas costas, logo abaixo
da nuca e a onda de choque me fez arquear. O calor pegajoso
começou a tomar conta da minha barriga e os dedos de Laura,
suados e um pouco trêmulos, estavam quentes em contraste com a
minha pele. Ela jogou os meus cabelos para frente.
Molhei os lábios de saliva, ávida para diluir a tensão
crescente entre nós.
— Não te vi a manhã inteira… Tem tanto trabalho assim na
cozinha?
Laura me olhou de relance.
— Tem.
Sustentava-me na borda do espelho enquanto apertava a
madeira, os nódulos dos dedos esbranquiçados. Minhas pernas não
se mostravam capazes de sustentar o peso do meu corpo. Laura
queria fazer aquilo o mais depressa possível, passava a fita nos
buracos do espartilho rapidamente, com os lábios presos nos dentes
e uma leve ruguinha entre as sobrancelhas, concentrada.
— Elas me fizeram experimentar umas coisas bem
malucas… Você precisava ver. Está frio, é horrível ficar tirando e
botando o casaco toda hora — murmurei.
— Hm — Foi uma mistura de rosnado indignado e sussurrar
ansioso.
Minhas coxas ficaram úmidas, não era um bom sinal.
— Os petiscos estavam uma… — pigarreei. — Uma delicia.
Laura se inclinou em minha direção, os cabelos fizeram
cócegas nos meus ombros.
— Receita da Raquel.
Os segundos se passaram comigo repudiando todos os
pensamentos intrusos em minha cabeça. Como seria se Laura
colasse o corpo no meu? O que aconteceria se apertasse os meus
seios com força? Ela poderia me dizer algo sujo com a boca colada
no meu ouvido. Algo sujo, era isso, eu esperava ouvir algo sujo
como precisava de ar para respirar e...
— Quer mais forte? — perguntou Laura.
Arregalei os olhos, envergonhada.
— Ãh?
— Mais forte — insistiu ela.
Suspirei fundo.
— Mais forte...?
Uma linha apareceu entre as suas sobrancelhas.
— Você quer que eu aperte o laço do espartilho mais forte,
Ana Júlia?
E, para exemplificar, segurou com força o laço e o puxou,
mas o meu corpo estava mole e o solavanco me desnorteou. Laura
riu.
— Me desculpe — sussurrou, baixinho.
Maldita.
Eu teria ficado com vergonha se o aperto não tivesse
aproximado os nossos corpos, agora a respiração dela batia
quentinha na minha nuca enquanto as mãos agarravam com firmeza
o laço do espartilho. Tombei a cabeça para o lado, forçando-me para
deixar os olhos abertos. Meus seios estavam prensados no sutiã,
suados, descendo e subindo rapidamente graças a respiração
descompassada. Laura se esforçava para não encará-los pelo
reflexo, mas falhava todas as vezes.
— É um pouco demais, não acha? — sussurrou ela.
— O quê? — Minha voz era um fiapo.
— Isso tudo… — Laura levantou os olhos para me encarar,
mas logo os abaixou de novo. — Todas essas amarras e fitas...
Levei a língua ao céu da boca, escondendo um sorriso
indecente.
— Você não gosta?
Ela levantou o olhar quando deu o último aperto no
espartilho.
— Prefiro você sem nada, chérie. É mais prático.
A respiração aflita preencheu os meus ouvidos. Passaram-se
segundos, talvez menos que isso, o tempo não podia ser contado. O
olhar dela me fez esquecer tudo, esqueci que a porta estava aberta,
que Madá ou qualquer outra mulher apareceria a qualquer
momento, que aquele era o chá de lingerie do meu casamento…
Minha mente ficou vazia e um comichão acertou a minha barriga,
trazendo umidade para as minhas coxas. Ainda presa no olhar dela,
senti os dedos quentes no fim das minhas costas quase chegando à
minha bunda.
O “chérie” foi um gatilho sem aviso nenhum. Foi pura
crueldade.
Virei-me e, em um ato impensado, joguei-me nos braços de
Laura. Nossos lábios se tocaram com a força de um desastre
natural. Eu quebraria mais três dentes dela se continuasse assim.
Laura tentou me afastar, alertar-me sobre onde estávamos e as
consequências daquilo, mas no momento em que minha língua
adentrou a sua boca e ganhou espaço entre os seus lábios, ela
também desistiu de tentar. Agarrou a minha cintura e me jogou
contra o espelho. Ele se quebrou nas minhas costas, os cacos
caíram aos nossos pés, mas não paramos de nos beijar.
Eu estava me segurando esse tempo todo, mas agora os
meus desejos eram incontestáveis e estavam direcionados à Laura,
ao toque de Laura, à língua de Laura e ao corpo de Laura. Beijamo-
nos como se estivéssemos prestes a morrer, o gosto metálico do
sangue preenchia os meus lábios e o tempo pareceu parar,
agarramo-nos sem pretensão de soltar. Com a mão cheia, Laura
apertou a minha bunda e rasgou a renda da calcinha. O som do
nosso beijo, rápido e desajeitado, inundava o quarto e eu não
conseguia respirar, mas não queria por fim e perder os poucos
minutos restantes antes de tudo dar errado.
E eu sabia que daria errado, era óbvio e mesmo sabendo
disso, eu não iria parar. Estava agindo como um drogado em
abstinência, apertando o motivo do meu vício sem forças para soltar.
Desci os beijos para o seu pescoço, o gosto salgado do suor voltou
a marcar presença na ponta da minha língua. Recebi unhadas em
troca, um gemido agressivo saía dos lábios de Laura.
E tudo deu errado.
— O que está acontecendo aqui…?
A voz nos sobrepujou. Laura se afastou cambaleante, em
choque.
Minha expressão de desespero cresceu à medida que eu me
virei para a porta. Exposta de todas as formas possíveis, suja e
culpada, lágrimas brotaram nos meus olhos ao ver Augusto ali, com
a face em total espanto.
Capítulo sete
Três Dias

O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? O
que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? O que
foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? O que foi
que eu fiz? O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? O que foi que
eu fiz?
Abracei o meu corpo e segurei o choro. Eu não conseguia
olhar nos olhos de Augusto, mas eu sabia a expressão dele,
decepção. Havia também raiva e era redirecionada à Laura.
— Augusto, podemos... conversar — falei, chorosa. — Se
você me der uma chance de explicar… eu posso… posso expli...
Augusto bateu a porta com força, o susto me fez pular.
Abracei-me com mais força. Eu só deveria ter me controlado, se eu
tivesse me controlado… As lágrimas inundavam a minha visão e
distorciam tudo à minha frente, se eu tivesse me controlado…
— Explicar o quê, Júlia? Tem alguma explicação plausível
para o que eu acabei de ver? — Ele olhou para mim de cima a
baixo, o nojo retorcendo as feições bonitas.
— A culpa não foi dela. — Laura se enfiou na minha frente.
Ela também estava abalada, mas diferente de mim, parecia saber
lidar com situações estressantes. — Eu estava entediada e então…
então Júlia pareceu… — A voz de Laura ficou entrecortada. — Foi
tudo culpa minha, Augusto.
Eu sabia o que ela estava fazendo, mas não consegui intervir.
Augusto bufou, incrédulo. Ele se aproximou de Laura e os dois se
encararam, cara a cara. Possuíam a mesma altura, talvez Augusto
fosse um pouco maior, já eu me sentia duas vezes menor atrás de
Laura. Ela me escondia da fúria de Augusto.
Ele passou as mãos pelo rosto, rindo sem graça.
— Eu fiquei mal quando disse aquelas coisas no ateliê… juro
que fiquei. Eu estava sendo infantil, afinal… as pessoas mudam e
eu não te via havia nove anos, Laura. Contei para Caíque e sabe o
que ele me disse? Que esses anos foram bons para você, que você
havia amadurecido, largado as drogas, que voltou a ser a garotinha
que ele se lembrava. Ele me convenceu a te dar a porra de uma
segunda chance! — Ele quase cuspiu as palavras. — Agora, eu vejo
que você continua a mesma vadiazinha ingrata de anos anos atrás,
destruindo a vida da única pessoa que ainda não desistiu de você!
Laura deu um passo para trás, como se tivesse perdido o
chão por alguns minutos.
— Desculpa, eu... — sussurrou, a voz embargada pelo choro.
— Eu não pude evitar...
A frase sumiu no ar e o silêncio foi cortado pelo choro
baixinho dela, os ombros balançavam levemente, mas Augusto não
se abalou.
— Você é um ser humano desprezível. Caíque nunca te fez
nenhum mal, ele moveu céus e terra por você, ele foi a única
pessoa que lutou por você até o fim… e agora você me diz que não
pôde aguentar não traí-lo com a noiva dele?
Agarrei os ombros de Augusto, obrigando-o a olhar para mim,
focar sua raiva em mim. Laura parecia uma estátua, parecia prestes
a desabar para nunca mais levantar. Ela não falaria nada para se
defender, achava que não tinha defesa, achava ser o que Augusto
dizia que ela era, o que todo mundo dizia o que ela era.
— Augusto, me escuta. Eu a encontrei em Paris e eu decidi
não contar nada a Caíque. Fui eu… eu contei para Raquel quando
cheguei, mas....
Augusto deu alguns passos para trás.
— Raquel sabia disso o tempo todo?
Fechei os olhos com força. Eu só piorava as coisas.
— Eu pedi para ela não te contar — acrescentei. — A culpa
foi toda minha.
— Eu estou pouco me fudendo para saber de quem é a
culpa, Júlia! — ele esbravejou. — Isso não muda merda nenhuma!
Augusto era a realidade em pessoa chutando a porta e
destruindo tudo. Entendi porque Laura estava parada no mesmo
lugar, chorando tanto que não conseguia mais falar. Eu queria
chorar sem parar também.
— Eu esperava isso vindo dela… Eu esperava tudo vindo
dela! — Augusto apontou para Laura. — Mas você… você, Júlia…
Maneei a cabeça, aceitando o que viria a seguir: “Você, a
garota pé no chão e madura, que sempre escolheu o caminho
correto”. “Você é a única pessoa que Caíque confia até de olhos
fechados”. “Você, Ana Júlia, você, que nunca fez nada de errado em
toda a sua vida.”
— Eu sei… — disse, as lágrimas desciam pelas minhas
bochechas, acumulando-se ao chegar no meu queixo. — Eu sei, eu
sei...
Augusto não conseguia me olhar nos olhos e eu não o
julgava nenhum pouco. Eu não conseguiria me olhar também.
— Vocês têm três dias — sussurrou ele, decidido. — Se não
contarem a Caíque, eu mesmo conto.
Laura saiu do torpor ao ouvir o aviso.
— Augusto, por favor… por favor… — balbuciou ela, com a
voz embargada pelo choro. — Essa é a minha única chance… Eu
não tenho nada, nada, eu só tenho eles, por favor... Eu só tenho
minha mãe e Caíque, se eles descobrirem, eu…
— Não me coloque como o filho da puta da história, Laura.
Você devia ter pensado nisso antes! — Augusto olhou para nós
duas. — Vocês têm três dias e, por favor, contem a Caíque, vai ser
melhor ele ouvir isso da boca de vocês.
Augusto bateu a porta com força ao sair. Laura desabou no
chão, chorando alto. Era difícil encará-la agora, difícil não me sentir
pior. Me ajoelhei ao seu lado, tentando erguê-la.
— Laura, Laura, olha para mim... — pedi.
Eu também chorava, chorava por mim e por ela. Por Laura e
aquele olhar esperançoso em Paris, sorrindo para o teto e dizendo:
“Vou voltar para a casa e não vou decepcioná-lo de novo”, por todas
as promessas que fez para si mesma, de que seria uma garota
diferente, que os faria se orgulhar. Na felicidade estampada ao ver
Caíque depois de longos dez anos, no abraço apertado no meio da
rodoviária. Por Caíque, que não imaginava meu envolvimento com
Laura debaixo do seu teto, porque sempre confiou demais nas
pessoas erradas. Eu chorava por ter estragado o sonho da minha
mãe. Se eu seguisse tudo como ela me ensinou antes de morrer, eu
teria uma vida boa, uma vida estável, sem preocupações, a não ser
um vizinho barulhento, uma colega de trabalho chata. Eu escolheria
a cor do esmalte para passar no fim de semana, o corte de cabelo
para parecer mais madura, a melhor escola para meus filhos, uma
babá legal. Fácil, eu teria uma vida fácil, tranquila, planejada.
Estava tudo saindo como o planejado, Caíque era um bom
amigo, era doce e divertido. Minha mãe nos abençoou antes de
partir, ela disse que ele era o homem certo.
Então, Laura apareceu.
Agarrei o rosto dela, inchado e molhado, entre as minhas
mãos. Laura soluçava, os lábios trêmulos e os olhos vermelhos, as
lágrimas não queriam parar e ela não conseguia ao menos falar,
soltava balbucios, tentativas falhas de me dizer algo. Abracei-a com
força, apertando-a sobre mim e tentando conter os tremeliques, mas
não paravam, aumentavam. A porta se abriu atrás de mim, mas não
me virei para ver quem era.
Raquel colocou um roupão sobre os meus ombros.
Olhei para cima, fitando-a em meio às lágrimas.
— As… as mulheres… lá fora…
— Mandei todo mundo embora — respondeu ela. — Tá tudo
bem.
Não estava tudo bem, estava longe de estar.
— Laura não quer parar de chorar… — falei. Ela estava em
meus braços como um bebê grande demais, era difícil segurá-la. —
Eu não sei o que fazer, Raquel.
— Primeiro, preciso que me traga um copo d’água. — Raquel
não podia se ajoelhar, mas me puxou bruscamente para cima. Ela
parecia calma, então acatei sem fazer perguntas. — Laura está
sofrendo uma crise de ansiedade, só preciso que saia e busque um
copo d’água, ok?
Não sabia se água curava crises de ansiedade ou se ela só
queria que eu fosse embora, mas apertei o roupão em meu corpo e
corri para fora do quarto. A casa estava vazia, a cozinha uma
bagunça. Parecia ter se passado dias. Meus pensamentos estavam
focados em Laura no chão, em Laura chorando, em Laura ouvindo
Augusto elencá-la como o pior ser humano do mundo. Olhei para
baixo, a água transbordava do copo e formava uma poça ao redor
dos meus pés.
Fiquei minutos encarando a poça de água aumentar, molhar
o chão da cozinha por inteiro, meus pés, escorrer para debaixo dos
móveis… Eu não conseguia me mexer, mas um bater de portas me
assustou e deixei o copo se espatifar no chão. Caíque parou na
porta da cozinha, segurando uma caixinha de doces. Eram os meus
doces favoritos, ele sempre trazia para mim na época que
namorávamos.
Recomecei a chorar.
Ele deixou os doces na pia e veio em minha direção,
encarando a mim e ao chão molhado sem saber o que dizer.
— O que aconteceu aqui...?
— A Laura ela… ela começou a chorar e… — Envolvi meus
braços trêmulos ao redor da cintura dele. — E aí… eu…
Caíque me afastou.
— Ana, o que aconteceu?
— No quarto! — gritei. — No quarto de visitas no fim do
corredor!
Caíque sumiu pelo corredor. Eu o segui, tentando não
escorregar no chão molhado. Esperava uma cena pior no quarto,
mas me assustei com o cômodo numa calma quase aconchegante.
Os cacos do espelho quebrado se espalharam por todo o
quarto, Laura estava sentada na cama de dossel, abraçando as
pernas encolhidas. Ela repousou o queixo nos joelhos. A mãe deles,
minha sogra, estava sentada atrás de Laura e trançava os cabelos
da filha enquanto balbuciava uma canção de ninar, parecida com a
que minha mãe cantava para mim. Os olhos de Laura estavam
quase se fechando.
Raquel, sentada ao lado delas, foi a primeira a nos ver
chegar.
Caíque e eu trocamos um olhar confuso.
— Mãe…? — Ele coçou a cabeça. — Achei que Augusto
tivesse te levado para fazer compras em Aiuruoca.
Escondi-me atrás de Caíque. Liliane era bastante
intimidadora, eu me arrepiava ao receber o seu olhar enviesado.
— Houve um imprevisto, querido — sussurrou ela,
concentrada nas tranças de Laura.
Eu me encolhi um pouco mais, deixei apenas a cabeça para
fora das costas de Caíque. O meu olhar e o de Laura se cruzaram,
mas ela o desviou rapidamente.
— Ana me contou — respondeu Caíque.
Eu não contei, estava longe de contar, mas ele sempre me
salvava de alguma possível discussão com Liliane. Minha sogra
levantou o olhar brevemente e me fitou com a sobrancelha bem feita
arqueada.
— Ela contou que fez Laura entrar em um ataque de pânico?
— Mãe! — Laura interviu.
Fechei os olhos com força, sussurrando um “merda”
inaudível. Caíque me olhou descrente.
— Vocês brigaram de novo?
Engoli em seco, maneando a cabeça em afirmação.
O que eu deveria dizer? “Não, querido, eu e Laura nos
beijamos ferozmente e fomos pegas por Augusto. Ah! Esqueci de
contar! Transamos em Paris e omitimos isso de você! Não é
demais?” A minha sorte foi que Raquel levantou-se da cama.
— Júlia, precisamos conversar.
Ela inclinou a cabeça na direção da cozinha e saiu porta
afora, suspirei aliviada, seguindo-a. Ser arrastada daquele quarto e
sumir do olhar julgador de Liliane era o que eu mais queria. Pela
forma como Laura estava chorando, transformei-me no próprio
Satanás aos olhos da minha sogra.
Raquel encostou no balcão da cozinha. Ela prendeu os
cabelos em um coque, estava tão suada que os pingos se
acumulavam ao redor do rosto.
— O bebê está bem — disse, antes que eu perguntasse.
Apertei o laço do roupão. Eu precisava manter as minhas
mãos ocupadas.
— Você precisa… — recomecei a frase, dessa vez
sussurrando. — Você precisa convencer Augusto a não contar a
Caíque.
Os olhos dela se estreitaram, julgando-me descaradamente.
— É com isso que está preocupada?
— Como eu não estaria? — Apontei para o quarto. — Laura
ficou daquele jeito porque Augusto nos ameaçou, Raquel. Ela nos
deu três dias!
— Augusto estava puto porque te viu desentupindo a boca de
Laura! — respondeu Raquel, entredentes. — Que merda vocês
tinham na cabeça?
— Isso não lhe dá o direito de ameaçar contar para Caíque!
— Era o que Caíque faria no lugar dele. Era o que eu
esperaria que você fizesse, se visse Augusto beijando outra mulher!
Agarrei o seu braço, suplicando:
— Eu sei, Raquel, eu juro que sei, mas eu prometo que isso
não vai mais acontecer. Raquel, por favor, ele ouve você. Eu preciso
que vá atrás dele. Augusto pode estragar tudo e…
— Você estragou tudo — respondeu ela, simplista.
Maneei a cabeça, incrédula, mas Raquel prosseguiu:
— Você estragou tudo, Júlia, pare de colocar a culpa em
outra pessoa.
— Você está falando isso porque é esposa dele, está
tentando defendê-lo, eu entendo, mas…
— Augusto está puto comigo porque eu escondi isso dele!
Porque eu, como a sua amiga, prometi não contar a ninguém. —
Raquel afundou o dedo indicador no meu peito, em oscilações entre
sussurros e vontade de me esganar. — Você está mais preocupada
com a porra do seu casamento do que com Caíque saber a
verdade, está mais preocupada com a porra do seu casamento do
que com a relação de Caíque e Laura. Acho que se esqueceu que
existe uma vida depois do casamento, merda! — Ela se aproximou
de mim, falando mais baixo ainda. — Você terá que conviver com
Caíque depois do “sim”, depois da Lua de Mel, terá que conviver
com Laura, conviver com o fato que está loucamente apaixonada
por ela. Você. Precisa. Contar — falou as palavras pausadamente.
— Eu não… Não estou apaixonada por Laura. — Engasguei.
— Você mesmo disse, disse que eu poderia esconder tudo, que não
era bom contar a Caíque e…
— Eu sei o que eu disse! Mas isso foi antes de conviver
esses últimos dias com vocês duas, Júlia! — Raquel olhou no fundo
dos meus olhos. — Seja sincera pelo menos uma vez na sua vida, o
que você sente por Laura?
Respirei fundo, fitando o teto alto da cozinha. As lágrimas se
acumulavam na beirada dos olhos. O que eu sentia por Laura? Essa
era uma pergunta com uma resposta tão dolorosamente difícil.
— O que ela te contou lá no quarto? — perguntei, temerosa.
— Júlia, eu estou perguntando sobre os seus sentimentos.
Não desconverse — Raquel me encurralou, me obrigando a pensar
sobre o sentimento há dias mal encoberto.
— Eu não sei o que sinto por Laura, mas ela me faz querer
ser livre… Me faz querer viver um dia de cada vez. Com ela, eu não
preciso me preocupar em parecer feliz, eu sou feliz. Com ela, me
entreguei como nunca pensei que me entregaria na vida e... —
Respirei fundo, sentindo um nó na garganta. — Ela é contagiante e
tem um jeito tão espontâneo e sabe viver a vida, porque acha que
perdeu tudo e agora se agarra ao que sobrou. É fácil gostar de
Laura, é fácil como respirar, mas é tão difícil esquecê-la.
Raquel suspirou, sua expressão não era boa.
— E por Caíque? — indagou.
Meu corpo se enrijeceu.
— Não tenho dúvidas quanto ao que eu sinto por Caíque. Eu
o amo.
Raquel maneou a cabeça, incrédula.
— Eu também não tenho dúvidas quanto ao que eu sinto por
você. Eu te amo, Júlia. Morávamos juntas na época da faculdade,
nos empanturramos de pipoca doce e filmes duvidosos nas sextas
às noites. Eu te amo, mas não quero me casar com você, não quero
viver um romance com você ou ter filhos com você. Eu te amo,
porque é possível amar alguém e querer tê-la na sua vida, mas não
de forma romântica. Você é grata por Caíque, por ter te acolhido em
uma cidade nova, por ter te apresentado amigos, por te fazer se
sentir pertencente a algum lugar… e acabou aí. Você não é
obrigada a amá-lo eternamente, você não deve um casamento a
ele… e filhos.
Aquelas palavras me acertaram como um soco, senti meu
corpo anestesiado, mas eu não podia aceitar aquilo, simplesmente
não podia. Era demais para a minha cabeça. E o que eu construí
nesses anos? O que minha mãe me ensinou? O sonho da casa de
bonecas, dos filhos e de um marido ideal. Estar apaixonada por uma
mulher destoava disso, eu teria que suportar as complicações, os
olhares enviesados, a sensação de perigo. Não era isso que a
minha mãe queria para mim.
Caíque entrou na cozinha e me salvou de um espiral
depressivo.
— Raquel está de saída. Ela te pediu para levá-la em casa —
falei.
Fitei o semblante decepcionado da minha amiga pela última
vez antes de me afastar. Caíque concordou com um menear, tirando
as chaves do carro do bolso.
— Tudo bem — murmurou ele.
Raquel saiu porta afora sem olhar para mim.
Capítulo oito
Espero que não me odeie tanto agora.

No dia seguinte, acordei antes do Sol nascer e, decidida, fui ao


cemitério municipal. Minha mãe foi enterrada lá, no jazigo da família
de Caíque porque, sim, ela já era considerada da família naquela
época. Faleceu três anos atrás, mas, às vezes, a dor parecia
recente.
Depois do falecimento dela, passei a morar na pousada dos
Grinberg.
Inspirei o ar gelado do começo da manhã, o nevoeiro no
horizonte se dissiparia após o Sol nascer, mas no escuro, o
cemitério parecia um cenário de filme de terror. Os túmulos estavam
encobertos pela névoa, e a grama molhada graças ao orvalho. Parei
em frente ao jazigo, as mãos rígidas devido ao frio apertavam os
galhos do buquê de crisântemos. A gaveta da minha mãe ficava na
altura dos olhos. Martha Silveira Lima. Ela me teve nova, engravidou
na adolescência e nunca se casou, apesar de ser seu maior sonho.
Morreu de ataque cardíaco dias depois de Caíque colocar um anel
de noivado no meu anelar esquerdo. Fitei o anel de ouro branco, a
pedra de água marinha tinha um aspecto opaco aquela manhã.
— O que eu devo fazer agora, mamãe? — perguntei,
esperando uma resposta divina ou um sinal da natureza, mas o
silêncio se estendeu pelos minutos seguintes.
Soltei um riso amargo.
— Ah, Júlia, você é patética... — sussurrei.
Deixei as flores lá e me virei para ir embora.

✽✽✽
Quando cheguei na pousada, todos ainda dormiam.
Subi para o segundo andar, o corredor estava escuro, as
arandelas penduradas nas paredes não cumpriam muito bem a
função. A pousada, por ser feita de madeira, costumava ranger na
temporada de frio e um desses rangidos me fez pular de susto.
Coloquei a mão no coração e me arrastei pelo carpete com os pés
descalços. O quarto de Caíque ficava no fim do corredor, o meu era
o do lado, o de Liliane, no primeiro andar, no entanto, um quarto de
hóspedes estava sendo usado. Escapava luz das frestas da porta.
Mordi os lábios, eu sabia o que encontraria lá dentro, mas
ignorei minhas suposições, porque assim pude girar o trinco da
porta e fingir surpresa ao ver Laura no quarto.
Recuei alguns passos.
— Me desculpe!
Ela estava de costas para mim, de frente à cama. Vestia um
conjunto de moletom preto e prendeu os cabelos em um rabo de
cavalo baixo.
— Tudo bem — respondeu Laura, sem prestar atenção em
mim.
Olhei para os lados. Eu deveria fechar a porta e sair de
fininho. Isso, fechar a porta e sair…
Entrei no quarto.
— O que você está fazendo?
Laura praguejou baixinho antes de me fitar sobre os ombros.
— Arrumando minhas coisas.
— Hm… entendi.
Fechei a porta e estiquei o pescoço para ver melhor.
O quarto em que Laura estava não recebia visitas há anos.
As cortinas precisavam ser lavadas e o trinco da porta estava
enferrujado. Era impossível manter os cupins longe da pousada, de
modo que a cama de dossel, o armário e a escrivaninha eram
rodeados de uma fina camada de poeira, mas não era propriamente
poeira, era madeira corroída. Para completar, a luz do cômodo era
amarelada, dava a sensação de estar em um aposento no século
dezenove, à luz de velas.
— Por que está arrumando suas “coisas” agora? —
perguntei, depois de um longo silêncio. Fitava as costas de Laura e
sua falta de coragem em me mandar embora. Ela dobrava algumas
peças de roupa em uma mochila, aos pés da cama.
— Porque vou embora — anunciou ela.
— Achei que não voltaria para o hotel, Caíque disse…
— Eu não vou para o hotel. — Laura inclinou a cabeça
levemente para o lado. — Eu vou embora de Monte Verde.
O ar foi puxado dos meus pulmões em um arfar surpreso.
— Você vai… o quê?
Por um minuto inteiro, fiquei esperando ser corrigida. Ela ia
mesmo embora? Como assim? Laura jogou a última peça de roupa
na cama e se virou. Sem perceber, apertei a maçaneta da porta,
com medo do que aconteceria se ela chegasse mais perto.
— É isso que você ouviu, eu vou embora — repetiu,
pausadamente.
Seu rosto ainda estava inchado.
— Você… você não pode… — Arfei, sem encontrar as
palavras certas para dizer. — Você não pode ir embora.
Laura bufou, incrédula.
— Quer saber? Vai a merda, Júlia. — Ela apontou o dedo em
minha direção. — Você vive me culpando por "arruinar o seu
casamento”. — Laura fez aspas com as mãos, imitando a minha fala
na nossa discussão, no carro. — Agora, vem me dizer que não
posso ir embora? Não era isso que você queria o tempo todo? Que
eu fosse embora?
Trinquei o maxilar, não podia aumentar o tom de voz e ceder
à provocação de Laura, Caíque estava no quarto no fim do
corredor.
— Eu queria que você fosse embora no começo, eu admito,
mas agora é diferente, agora… — Fechei os olhos com força,
respirando fundo. — Agora eu vejo como é importante vocês
estarem reunidos de novo, como uma família. Se você estiver indo
embora por mim, por favor, não vá.
— Não estou indo embora por você, estou indo embora por
Caíque. Nós pisamos na bola, Júlia, nós duas, e ele não merece
isso.
— O que te faz pensar que Augusto não vai contar? Ir
embora não vai mudar nada, Laura. Além do mais… — Minhas
pupilas estavam inquietas, procurando bons argumentos. — Além
do mais… Caíque e Liliane vão te odiar se você for embora.
— Eles também vão me odiar se eu ficar — ela contra-
atacou. — E se não for por isso, pelo que aconteceu entre nós duas,
será por outra coisa. Eu sempre decepciono as pessoas, Júlia.
Laura desviou os olhos dos meus, estavam cheios d’água.
Apreciamos o silêncio por alguns minutos, era bom para secar
lágrimas e organizar pensamentos. Olhei para baixo, para os meus
pés descalços e me lembrei de afrouxar o aperto na maçaneta da
porta, minha palma estava dolorida.
— Vai ser melhor assim, confie em mim — recomeçou Laura.
— Eu já estou bem com essa decisão.
Mas eu não estava bem com essa decisão. Saí de Paris com
a constatação de que nunca mais veria Laura em minha vida, mas
agora a possibilidade de não vê-la estava acabando comigo. Ela se
aproximou, os olhos não largaram os meus nem por um segundo.
Encostou-se na porta e escorreu até o chão, sentando-se com as
pernas esticadas.
Fiz a mesma coisa e ficamos lado a lado, ombros se tocando,
pernas esticadas e cabeças com mil pensamentos por segundos. O
chão estava frio. Laura provavelmente estava mais quentinha por
causa do moletom. Ela enfiou as mãos no bolso e tirou de lá um
cigarro, acendendo-o com um único fósforo molhado.
Em seguida, fitou-me com os olhos semicerrados.
— Não me olhe assim.
Ergui uma sobrancelha.
— Assim como?
— Assim, me julgando silenciosamente…
Soltei um riso esganiçado.
— Não estou te julgando silenciosamente, só…
— Está me julgando silenciosamente — insistiu ela.
Maneei a cabeça em negação.
— Só estou pensando que, para uma pessoa que quer
esconder do irmão que fuma, fumar há alguns quartos de distância
não é uma boa tática. Ainda mais nesse quarto, a fumaça não vai
sair pela janela, vai para debaixo da porta. Caíque vai pensar ser
um incêndio.
Laura soprou fumaça de cigarro no meu rosto.
— Ah, não acredito! — Tossi, abanando o ar. Ela começou a
rir. — Eu acabei de lavar o meu cabelo, Laura! Estava cheirando a
morango silvestre e herbal!
Ela gargalhou mais ainda.
— Cheirando a o quê...?
Enfiei um cacho em seu nariz.
— Morango silvestre e herbal.
— Ela fez uma careta, fugindo dos meus cabelos.
— Conheço esse cheiro muito bem… cheiro de gente metida
a besta!
Dei-lhe um tapa.
— Melhor do que esse seu cigarro aí, que só cheira a morte.
Laura ameaçou jogar mais uma leva de nicotina na minha
cara, mas virou o rosto no último segundo. Não adiantou nada, o
quarto estava levemente esbranquiçado. Ela o tragou mais duas
vezes antes de apagá-lo no chão, formando uma mancha
enegrecida na madeira.
— Eu não fumava há dez anos, mas desde que cheguei está
sendo difícil resistir aos vícios antigos... — Ela me olhou
intensamente. — E aos novos também.
Abaixei o olhar, sentindo minhas bochechas quentes.
— Imaginei que tivesse problemas com drogas, mas fiquei
com receio de perguntar...
— Imaginou certo.
Laura repousou a mão ao lado da minha, se eu a movesse
um pouquinho para o lado poderia tocá-la. Era engraçado a
diferença no tamanho, a mão de Laura era grande e os dedos
longos. Ela nunca usava esmalte, mas sempre tinha resquícios de
cor nas unhas quadradinhas.
— Minha mãe biológica usava cocaína — confessou ela. —
Caíque te contou?
Maneei a cabeça em negação.
— Caíque não me contou nada.
Segurei para não completar: “Ele nunca me conta nada”.
Laura suspirou, cansada.
— Acontece que, quando a mãe não interrompe o uso
durante a gestação, o bebê nasce em abstinência, viciado. Imagine,
um bebê inquieto, às vezes violento... — Ela me lançou um sorriso
triste. — No orfanato, ninguém queria crianças assim, os pais
escolhiam as crianças saudáveis, as de boa índole, que não dariam
trabalho. Os Grinberg seguiram por outro caminho. Thomás
perguntou se eu queria lanchar. Claro que eu queria lanchar, a gente
aprende desde cedo a não recusar uma oferta, ainda mais quando
envolve comida. Eles me levaram para a lanchonete e me deixaram
escolher o que eu queria comer, me perguntaram o que eu gostava
de fazer, como era na escola… Depois brinquei com Caíque até dar
a hora de voltar ao orfanato. Ele era um mandão, queria me ensinar
a andar de bicicleta, mas tinha medo que eu caísse e me
machucasse. Thomas e Liliane eram bons pais, dormiam comigo
nas noites ruins, cantavam para mim, liam para mim… — A voz dela
foi diminuindo aos poucos, até se tornar um sopro. — Às vezes, me
pergunto se arrependeram-se… Claro que se arrependeram —
concluiu, baixinho.
Mordi os lábios, sem saber o que dizer.
— Laura, eu…
— Ei, tá tudo bem… Estou limpa há oito anos. — Ela me
lançou um sorriso triste. — Decidi ir embora quando as coisas
ficaram ruins, quando comecei a vender as jóias de Liliane para
comprar cocaína e a meter Caíque em encrencas. Naquela época,
Thomás já estava numa fase avançada do Alzheimer, em alguns
dias, achava que eu tinha nove anos e me chamava de “indiazinha”,
em outros, era agressivo, contava histórias sobre como o “meu
povo” tratou mal os antepassados dele. “Indígenas ingratos”, dizia.
— Uma linha se formou na sua sobrancelha. — E nem sabia que
tinha ascendência indígena, até hoje não sei nada sobre meus pais
biológicos, mas ouvir aquelas coisas de Thomás me despertou.
Percebi que nunca teria uma casa e que não precisava ficar aqui,
presa nessa cidade dos infernos, vivendo da forma que os meus
pais adotivos queriam. Foi libertador.
As lágrimas corriam pelo meu rosto, deve ser um alívio sair
das amarras.
Laura perdeu o apoio da família e lidou com o vício enquanto
precisava de dinheiro para sobreviver. Uma raiva revirou o meu
estômago. Foi fácil para Caíque e Liliane excluírem Laura de suas
vidas, como se ela fosse um cãozinho adotado cheio de problemas.
Afundei o nariz na manga do seu moletom. Laura ainda tinha um
aroma próprio, mesmo com o cheiro do cigarro estragando tudo.
— Eu sinto muito.
Ela me deu um beijo no topo da cabeça.
— Eu também sinto, Ana.
Fiz uma careta ao ouvi-la falar o meu primeiro nome. A Ana
não transaria com a irmã do noivo dela, a Ana não estaria em uma
confusão mental, a Ana só se importava com o casamento, com os
filhos e com a mãe. A Ana era a primeira namorada de Caíque e
nunca iria decepcioná-lo.
Os minutos passaram lentos, o calor aconchegante do corpo
dela era o suficiente para mim. Não sabia se Laura me causava isso
por ser um amor impossível ou por ser Laura, uma mulher
naturalmente atraente.
— Vou sentir a sua falta, chérie — sussurrei.
Ela se remexeu.
— Pois não deveria.
Encaramo-nos, Laura desviou o olhar.
— Qual o próximo lugar? — perguntei.
— Ainda não sei.... — A incerteza nublou as suas feições. —
Alguma sugestão?
Enrolei um cacho nos dedos, pensando.
— Rússia?
— Definitivamente, não. Algum lugar que faça calor, por favor.
— Cuba?
— Já fui lá umas cinco vezes...
— Vaticano?
— Não sou católica.
— Havaí?
— Clichê demais.
— Mais clichê que Paris?
Ela fez uma careta engraçada.
— Não quero pisar lá tão cedo.
Soltei uma risada sem graça.
— Desculpa se estraguei a sua experiência na Cidade Luz.
Inclinei-me na direção dela. Falei para mim mesma que era
por causa do frio, que precisava aproveitar antes que fosse tarde
demais.
— Argentina? Colômbia? — tentei.
— Outro — pediu ela.
— Minha… — Fechei a boca antes que saísse “minha cama”.
—… Nossa, lembrei de um lugar super legal.
Laura me olhou com uma expressão engraçada, felizmente
não percebeu a gafe.
— Você fez aquilo de novo.
Ou não.
— Aquilo o quê? — perguntei, nervosa.
Ela descansou as mãos em cima do joelho.
— Dizer algo pela metade. Você é expert em fazer isso,
começar uma frase e não terminar.
— Ah, claro, o lugar… o lugar que eu pensei… — Por que
todos os países sumiram da minha cabeça? — O lugar que eu
pensei foi…
Ela apontou para mim, rindo.
— Fez de novo.
Comecei a rir também.
— Foi mal, eu me esqueci!
Minha atenção parou na sua boca, foi automático. Os lábios
de Laura eram bem desenhados, amarronzados e contrastavam
com os dentes branquinhos… Olhei para cima, ela estava me
encarando.
Desviei o olhar.
— Então… — Esfreguei a palma suada na coxa. — Acho
melhor eu ir embora… antes que eu faça algo que me arrependa —
acrescentei.
Laura me deu uma ombrada.
— Como experimentar o meu cigarro?
— Como ir embora com você — confessei, por cima da sua
fala.
Percebi a gravidade do que falei assim que as palavras
saíram da minha boca. Eu estava maluca? Como eu cheguei a
pensar na possibilidade? Como cheguei a dizer em voz alta?
— Era brincadeira. Foi… foi uma brincadeira de mau gosto…
— gaguejei.
Levantamo-nos no mesmo momento. Ela parecia querer ler
algo em minha expressão, mas eu não conseguia olhar para cima, o
chão parecia mais atraente.
Laura pigarreou.
— Acho melhor você ir.
Continuei parada.
— Certo… — Pisquei algumas vezes. — Vou indo.
Meu corpo estava pesado, andar exigia um esforço muito
grande. Eu estava com medo de sair daquele quarto e nunca mais
ver Laura. A ficha finalmente caiu, ela iria embora, iria embora para
nunca mais voltar. A maçaneta estava fria demais, minha visão
embaçada pelas lágrimas acumuladas. Abri a porta, a penumbra do
corredor parecia me engolir.
— Júlia? — chamou Laura, baixinho.
Virei-me esperançosa demais.
— Sim?
Ela estava parada no mesmo lugar.
— Não conte nada a Caíque, por favor. Se ele descobrir, não
vai me deixar ir.
— Okay. — Não contar a Caíque, seria impossível há alguns
meses atrás, mas agora mentir para ele se tornou fácil. — Prometo
não contar nada.
Laura tirou um papel do bolso do moletom.
— Eu ia deixar isso no seu quarto, mas… mas fiquei com
medo de alguém pegar...
Toquei nos dedos de Laura ao agarrar o papel. Era isso? Era
essa a despedida? Com um bolo de angústia no peito, virei-me
pronta para partir, mas, no último momento, retornei e dei-lhe um
selinho. Era o último, era só para sentir a pressão dos seus lábios
nos meus, só para não esquecer como era gostar tanto de alguém
ao ponto de um selinho me fazer tremer.
Eu estava apaixonada por Laura, aceitei naquele momento,
mas ela era uma possibilidade distante demais, avassaladora e
intensa. Deixarei-a para uma versão mais corajosa de mim.
— Boa viagem — sussurrei.
— Bom casamento — retrucou ela, com um sorriso de lado.
Com os corpos ainda próximos, contive o impulso de colar os
lábios novamente nos dela.
— Eles não se arrependeram.
Ela me olhou confusa.
— Eles…?
— Seus pais, eles não se arrependeram. Eu também não me
arrependi, Laura. É impossível se arrepender de ter conhecido
alguém como você.
Fitei o universo inteiro dentro dos olhos lacrimejantes dela.
Sai do quarto sem olhar para trás.

✽✽✽

“Júlia, espero que não me odeie tanto agora, mas eu preciso


ir embora. Você me conhece mais do que conhecia em Paris,
mais do que qualquer um conheceu nesses últimos anos, por
isso espero que entenda o motivo da minha partida.

Desejo um bom casamento, mas, acima de tudo, desejo que


seja feliz.
— Da sua aventura de mais de uma noite, Laura.
P.S. Você falou o meu nome 24 vezes enquanto dormia.”

O bilhete estava se desfazendo em minhas mãos, as


lágrimas borraram as letras.
Dobrei o papel e o guardei na última gaveta do armário, bem
lá no fundo, onde a caixa com as roupas de Laura e o primeiro
bilhete jaziam. Limpei as lágrimas, tomei um banho e saí do quarto
novamente. Passei pelo quarto de Laura com o dobro de cuidado
para não chamar atenção, e cheguei ao quarto de Caíque.
Ele sempre deixava a porta destrancada. Liliane fez questão
de não nos deixar dormir no mesmo quarto, porque ainda não
éramos casados, mas nada nos impedia de sair durante à noite. O
quarto dele só tinha o essencial: uma cama de casal e um roupeiro
de madeira maciça. Os raios de Sol entravam pelas frestas da
cortina enquanto meu noivo dormia debaixo das cobertas.
Aproximei-me calmamente e parei na beirada da cama,
empurrando-o.
— Caíque?
Ele não se mexeu.
— Caíque? — chamei de novo, mais alto.
— Hm? — murmurou ele, com metade da cara prensada pelo
travesseiro.
— Posso me deitar aqui?
Ele não respondeu verbalmente, apenas arrastou o corpo
para o lado. Esgueirei-me para debaixo das cobertas, abraçando-o.
O corpo de Caíque estava sempre quente e, apesar de ser alto, não
era musculoso. Os ossos salientes me machucavam às vezes.
Ele bocejou.
— Quer transar?
Pensei a respeito, não transavamos havia tempo.
Poderíamos tentar, talvez assim, eu esquecesse Laura.
— Uhum — falei.
— Okay.
Mas não se mexeu.
Levantei a cabeça, fitando-o.
— Comece.
Caíque abriu os olhos sonolentos.
— Tipo agora?
— Tipo agora.
Começamos a rir. Acho que nenhum de nós queria transar,
não naquele momento, mas ele me puxou para perto.
— Tudo bem, venha cá.
Colei os meus lábios nos dele, sentindo-o adentrar a língua.
Caíque logo ficou por cima de mim, o corpo imenso quase me
engoliu. Ele precisava escovar os dentes, por que eu não o pedi
para escovar os dentes antes? Ele não tomou banho também. A
rigidez no meio das suas pernas me pressionava, será que me
pediria para colocar a boca… Não, não pediria, seria só uma
rapidinha. Uma rapidinha de quantos minutos? Eu tinha horário
marcado no salão para dali a pouco e não podia me atrasar. Caíque
me atrasaria, era certeza, ele gostava de ficar agarrado a mim
depois do sexo. Tudo bem, seria uma foda rápida. As mãos
adentraram a minha blusa. Ele sempre teve mãos tão grossas? Era
para apertar o peito, não para sovar uma massa de pão. Laura era
mais delicada.
Afastei-me de repente, sentando-me na cama.
Caíque juntou as sobrancelhas, os lábios vermelhos.
— O que aconteceu, Ana?
Pisquei algumas vezes, afugentando as lágrimas. Idiota, o
que eu estava fazendo? Passei as mãos pelos cabelos
desordenados, arfante.
— Laura vai embora — confessei.
O corpo de Caíque se petrificou.
— O quê…?
Agora, a merda já estava jogada no ventilador.
— Laura vai embora, vai embora para nunca mais voltar —
solucei, as lágrimas escorriam pelas minhas bochechas. — E você
precisa impedi-la, Caíque.
De uma coisa eu tinha certeza, Laura me odiaria por ter
quebrado a promessa.
Capítulo nove
O jantar

Toquei a pétala da flor amarela com as unhas, levando-a à frente


do olho.
— São calêndulas.
O funcionário apoiou o recipiente de flores em um braço,
limpando a mão suja de terra no macacão.
— Foi o que a senhorita pediu.
— Eu pedi margaridas — rebati, apontando para o caminhão
lotado de calêndulas, atrás dele. — O que eu vou fazer com todas
essas calêndulas que eu não pedi?
Ele coçou os cabelos por debaixo do boné.
— Se a senhorita olhar bem, a diferença nem é tão…
— Traga o meu carregamento de margaridas — disse,
cortando. — O meu casamento é daqui a dois dias, eu preciso das
margaridas, a minha decoração precisa das margaridas. Estamos
entendidos?
Ele soltou um suspiro e balançou a cabeça em concordância,
retornando ao caminhão. Atrás do veículo, o carregamento de
mesas e cadeiras esperava a minha avaliação. Todos vieram pela
rodovia e desembocaram aos fundos da pousada, era um caminho
mais longo, porém o único asfaltado. Além do mais, o jardim da
frente passava por manutenção, a festa de casamento seria lá.
A decoração necessitava de margaridas, não calêndulas.
Levei uma mão à boca, segurando um bocejo cheio de
fumaça esbranquiçada.
— PRÓXIMO! — gritei.
O funcionário das mesas e cadeiras saiu da cabine.
— Não acha que está pegando pesado demais? — perguntou
Caíque, atrás de mim.
Pulei de susto.
— Quer me matar do coração!? — rugi, dando-lhe um tapa.
Caíque gargalhou. O rosto estava vermelho graças ao frio e
os cabelos claros molhados, jogados para trás. Ele se aproximou,
puxando-me pela cintura.
— Quando você chegou? — perguntei, manhosa.
— Estava um tempinho ali… — Caíque apontou para os
arbustos redondos. — Vendo você xingar o funcionário das flores…
do buffet, dos guardanapos…
Bufei, incrédula.
— Eu pedi um guardanapo de tecido, tecido, Caíque. O cara
me trouxe um guardanapo de lanchonete!
— Você está aqui fora há horas, no frio, averiguando a
procedência de guardanapos de papel…? — Ele olhou para os
lados, talvez procurando uma palavra para substituir “paranoica”. —
Que tal entrar um pouco e tomar um chocolate quente? Prometo
que vou te ajudar a decidir entre amarelo ouro e amarelo narciso,
amanhã.
Meus ombros caíram, desistentes. Tinha me esquecido como
era bom abraçar Caíque. Era como estar em casa depois de muito
tempo longe, um bom café com biscoitos, uma manhã chuvosa
debaixo dos cobertores, era… pacífico. Abraçar Laura era gritar a
plenos pulmões em um show de rock, dançar na chuva sem medo
de se molhar; era uma noite quente de verão, com uma música
tocando baixinho na rádio e corpos suados entrelaçados.
— Não posso esperar até amanhã, Caíque — sussurrei,
afastando-me. — Amanhã, minha agenda já está lotada: dia de
beleza, os padrinhos e madrinhas vão chegar e…
— Okay, okay…. — ele me interrompeu. — Entendi.
Ficar ali fora, no frio, avaliando a procedência de
guardanapos de papel era uma desculpa para não esbarrar em
Laura, seu silêncio raivoso e sua incapacidade de me olhar nos
olhos. Era a desculpa perfeita para não esbarrar em Liliane e seus
cinco jeitos diferentes de dizer que serei uma péssima dona de
casa.
— E como andam as coisas lá dentro? — perguntei.
Mais especificamente: “onde está a sua irmã?”.
Caíque mordeu os lábios, pesaroso.
— Você agiu certo em me contar sobre os planos de Laura.
Ela vai ficar com raiva por um tempo, mas depois vai te perdoar.
Eu não achava que seria tão fácil, mas maneei a cabeça em
afirmação.
— Estou bem aqui — disse. — Pode entrar.
Caíque apertou a minha bochecha.
— Não fique assim, okay? Vamos entrar. Augusto me pediu
para te chamar, ele preparou aquele feijão tropeiro com muito
torresmo, está delicioso. Estamos esperando por você.
O ar sumiu dos meus pulmões e um pânico fechou a minha
garganta. Afastei-me de Caíque, encarando-o com os olhos
esbugalhados.
— A-Augusto… — Tossi. — Augusto está aqui? Como…? —
Eu queria perguntar: “Como ele chegou sem que eu notasse”, mas
não consegui pronunciar nenhuma palavra depois da crise de tosse.
— Você estava ocupada com os carregamentos aqui nos
fundos, aí eu pedi pra ele entrar pela frente. — Ele me deu
empurrõezinhos nos ombros. — E então, vamos?
Se Caíque não tivesse dispensado o funcionário dos vasos e
pedido ao restante do pessoal para voltar no dia seguinte, eu não
teria conseguido. Eu não conseguia nem mesmo andar, Caíque me
rebocou por todo o caminho em um falatório sem fim. Eu só
pensava no prazo de três dias, havia acabado.
Engoli uma ânsia de vômito.
Na sala de jantar, os quadros com molduras marrons nas
paredes pareciam maiores e ocupavam boa parte do cômodo, junto
aos diversos certificados de Caíque, os diplomas dos cursos de
línguas, da faculdade e as diversas cartinhas de Dia das Mães e dos
Pais. Pisquei algumas vezes, incrédula. Os quadros pareciam
maiores porque havia mais. Os de Laura foram desenterrados onde
quer que estivessem e também ocupavam espaço junto aos outros.
Cartinhas de Dias dos Pais e medalhas de competições de
soletrando.
Liliane, sentada na ponta da mesa, parecia um ser divino,
pronto para julgar se mereço ou não misericórdia. A luz baixa das
luminárias acentuava sua maquiagem pesada.
— Achei que tinha congelado lá fora, querida. — Ela soltou
uma risada polida, arrastando a cadeira para perto da mesa.
Raquel jogou uma mecha de cabelo para trás da orelha, os
olhos estavam fixos no prato vazio, os lábios franzidos em uma linha
tênue. Essa era a hora de pedir desculpas?
— Ah, olha quem finalmente chegou! — Augusto entrou na
sala com uma travessa fumegante. — Podem se sentar, Júlia e
Caíque! Laura está me ajudando na cozinha!
Ele pôs a travessa de feijão tropeiro na mesa e jogou o pano
de prato nos ombros. Laura chegou logo depois, com um tabuleiro
de copos.
Caíque pegou o tabuleiro dela, sussurrando:
— O que mamãe fez com você?
Liliane ouviu e respondeu:
— Ela precisava de roupas novas.
Caíque rolou os olhos.
— Ela tem 24 anos, mãe! Não é uma coroinha pronta para
receber a hóstia na igreja.
— Ela gostou das roupas! — rebateu Liliane. — Fizemos
compras o dia todo!
Caíque fitou Laura com as sobrancelhas juntas.
— Mamãe vai te transformar em um bolo de casamento.
— É, eu sei — Laura bufou, soprando a franja.
Ela não parecia uma coroinha pronta para receber a hóstia na
igreja, parecia uma mini-pastora. Vestia uma saia midi verde e uma
camisa abotoada até a última casa. Os cabelos rosa estavam
presos em um coque.
Apertei o encosto da cadeira.
— Eu gostei da roupa. Ficou… legal.
Um silêncio reinou na sala, como se tivessem percebido a
minha presença naquele momento e torcessem para que eu
sumisse. Augusto chegou com a última travessa com arroz e
colocou na mesa.
— Amor, você se esqueceu dos guardanapos — lembrou
Raquel.
Augusto arregalou os olhos.
— Ah, claro! Já vou pegar e…
— Não precisa. — Raquel puxou o braço dele. — Laura pode
pegá-los, certo?
Ela maneou a cabeça rápido demais.
— Eu pego, sem problemas.
— Não precisa, eu… — insistiu Augusto.
— Nada disso, você já fez demais, Augusto. — Raquel
arrastou uma cadeira e o obrigou a sentar-se. Logo em seguida,
olhou-me fixamente e inclinou a cabeça na direção da cozinha, em
um silencioso: “O que você está esperando? Vá atrás de Laura!”
— Eu vou ajudar — disse.
Dei a volta na mesa e entrei na cozinha.

✽✽✽

A temperatura estava mais alta no próximo cômodo. Uma


panela de água fervente soltava vapor e o balcão estava uma
bagunça de vegetais cortados e embalagens vazias. Laura, de
costas para mim, repousou as mãos no armário suspenso, sem
realmente abri-lo.
Aproximei-me silenciosamente e toquei os seus ombros. Ela
se virou bruscamente.
— Não encoste em mim. Não quero correr o risco de ser
pega novamente com a língua enfiada na boca da noiva do meu
irmão.
Vê-la repelindo os meus toques doeu.
— Laura, eu sei que está com raiva e…
— Raiva de você? — Ela afrouxou a gola da camisa. — Eu
estou com raiva de mim por ter sido idiota e confiado em você, Júlia.
Eu deveria ter te expulsado daquele quarto e ido embora sem contar
nada. Você prometeu! Prometeu que não contaria a ele!
— Pare de fugir dos seus problemas, Laura! — retruquei,
nervosa. — Você fugiu deles por dez anos, mas agora está na hora
de ficar e arcar com as consequências. Então, eu pergunto, o que
nós vamos fazer? — Aumentei o tom de voz.
A cabeça de Laura tombou para a frente, os músculos das
costas estavam rígidos sob a camisa. Ela virou-se novamente, mas,
dessa vez, de forma calma. Os olhos brilhavam num ressentimento
difícil de ver.
— Arcar com as consequências? Você… — Laura riu,
incrédula. — Você realmente disse isso? Arcar com as
consequências, Ana Júlia? Você está fugindo delas tanto quanto eu,
a diferença é que está mentindo para si mesma! É muito fácil viver
nessa bolha cor de rosa em que você está, mas a verdade é que
não temos o que fazer. Encha a cara de champanhe e quando a
bomba estourar, torça para estar bêbada o bastante. — Ela sorriu
brevemente. — Pelo menos, é isso que eu vou fazer.
Fitamo-nos por alguns segundos, amarguradas.
Laura estava esperando que as pessoas a odiassem, que se
decepcionassem com ela, pensassem o pior dela. Aquela era só
mais uma oportunidade para se auto-sabotar, para dizer a si
mesma: “Viu só? Você não tem concerto, Laura. Fuja rápido, fique
sozinha”. Já eu, eu estava esperando que as pessoas me amassem,
procurava a aprovação delas. Aceitar o contrário era difícil.
Passei as mãos pela testa, eu suava dentro daquela cozinha.
— Augusto pode não contar, ele...
— Ele vai contar — Laura me interrompeu. — Por isso fez
esse jantar. Caíque nunca acreditou em nada que Augusto dizia
sobre mim, ele sempre saía como mentiroso, mesmo quando estava
certo, por isso trouxe testemunhas: Raquel, que sabia de tudo
desde o princípio, e nós duas. Ele quer que estejamos na mesa
quando o assunto entrar em pauta, só para Caíque olhar bem no
fundo dos nossos olhos e ver a mentira estampada neles. — Laura
se aproximou de mim. Percebi, naquele momento, o motivo da
estranheza: ela estava de maquiagem, mas nem isso escondia as
enormes olheiras debaixo dos olhos. Ela sorriu mais uma vez, com
os olhos cheios d’água. — O champanhe não parece tão ruim
agora, não é?
Caíque entrou na cozinha.
— Que demora é essa?
Afastamo-nos rapidamente, Laura bateu as costas no
balcão.
— Não estão brigando de novo, não é? — perguntou Caíque,
desconfiado.
— Não — respondeu Laura. — Os guardanapos estavam lá
no alto, mas Júlia achou que conseguiria pegar mesmo assim.
Ela abriu a porta do armário suspenso e pegou as
embalagens de guardanapos.
Caíque me encarou com um sorriso zombeteiro.
— Ana não gosta de dar o braço a torcer.
Laura riu, sem graça.
— Sei muito bem disso.

✽✽✽

A sala de jantar estava silenciosa como um túmulo. Os sons


dos talheres batendo nos pratos ecoavam, mas ainda sim, um
silêncio pesado impedia qualquer um de abrir a boca. Minhas mãos
trêmulas seguravam o garfo com dificuldade, a comida não tinha
gosto nenhum, empurrava-a goela abaixo enquanto torcia para o
prato ficar vazio.
Caíque sentava à minha direita, o leve roçar do seu braço no
meu era reconfortante e angustiante. À minha esquerda, havia cinco
cadeiras vagas. A comida era desproporcional, a mesa estava
lotada, diferente das cadeiras. A luz amarela em três pontos no meio
da mesa doía os meus olhos.
Do outro lado, Raquel e Augusto estavam sentados e, a seis
cadeiras de distância, Laura brincava com a salada, passeando o
garfo pelas folhas de alface, sem comer nada. Liliane, na ponta da
mesa, deu batidinhas com o guardanapo na boca, pigarreando.
— O que você colocou na salada, Augusto? Está fenomenal.
O intervalo até a resposta dele foi longo.
— Coentro. Na escola em que eu trabalho, estamos
ensinando às crianças a comer salada. Coentro é a folha do mês.
— Ah, isso é tão importante! — Liliane sorriu. — Caíque
odiava salada, acredita? Houve um tempo em que eu achei que ele
tinha começado a gostar, mas depois descobrir que o danadinho
colocava tudo no prato de Laura, e ela comia!
— Comida é comida. Aprendi no orfanato. — Laura tomou
todo o conteúdo da taça em só gole. — Caíque, me passa o
champanhe.
Silêncio.
Ele entregou a garrafa a Laura, ela arrancou a tampa com o
dente e bebeu no gargalo. Liliane se remexeu na cadeira,
desconfortável.
— Querida… Acho que deve maneirar na bebida.
Ela brindou a taça com o vento e voltou a tomar tudo em um
só gole.
— Relaxa, mamãe, é só champanhe. E a noite está apenas
começando.
Abaixei a cabeça, torcendo para meus cabelos fazerem uma
cortina cacheada na frente do meu rosto.
— A comida está uma delícia, você arrasou como sempre,
Augusto. — Caíque pegou uma vasilha de arroz com brócolis e
ofereceu a Raquel. Ela negou baixinho.
— Estou com azia.
— O médico já estipulou a data para o nascimento do bebê,
querida? — perguntou Liliane.
— Daqui a duas semanas! — intrometeu Augusto. —
Estamos tão ansiosos, não é, amor?
Raquel não respondeu.
— Ah, passa tão rápido… — comentou Liliane. — Não vejo a
hora de ver os meus netinhos correndo pela casa e…
Caíque largou o garfo. O som preencheu a mesa.
— Mãe, não comece, por favor. — Ele a advertiu com um
olhar.
— O que foi? — Liliane riu alto. — Já que vão mesmo levar
essa palhaçada de casamento à sério, o mínimo que devem fazer é
me dar netos!
— Júlia tem assuntos mais importantes para se preocupar no
momento — pontuou Augusto.
— Já você não deve ter tantos assim, porque gosta de se
meter onde não foi chamado — devolveu Laura.
— Não fui chamado? — Augusto bufou. — Se o “assunto”
envolve as pessoas que eu gosto é um dever meu me intrometer,
porque se depender de voc…
Caíque bateu as mãos na mesa, os talheres pularam.
— O que está acontecendo aqui?
— Por que não pergunta à sua irmãzinha, Caíque? —
Augusto apontou para Laura. — Aposto que ela vai te contar
direitinho a história de como roubou a carteira de Júlia em Paris!
— De novo essa história, Augusto? — rugiu Caíque. — Laura
já me...
— JÁ CHEGA! — berrei.
Minha voz ecoou pela sala. Eles me encararam, em níveis
diferentes de espanto.
Meu corpo tremia, minhas mãos e pernas também. Uma dor
tremenda apertava o meu coração.
Não teria casamento, me dei conta naquele segundo.
Independente do que minha mãe me ensinou, do que queria que eu
fizesse… seria impossível continuar seguindo a vontade dela. Eu
precisava sair das amarras. Passei a vida inteira agindo como a
minha mãe queria, nunca me meti em problemas, nunca bebi
demais, fumei ou a desrespeitei. Fui uma boa filha por muito tempo
e esqueci de viver a minha vida. Com 25 anos, não sabia lidar com
a imprevisibilidade, quando todos meus planos foram por água
abaixo no momento em que coloquei os olhos em Laura, em Paris.
A partir de então, estava num espiral de descobertas aterrorizantes:
casamento não era sinônimo de felicidade, minha sexualidade não
se resumia a experimentação e não era o fim do mundo quando
algo saía fora do planejado.
Enxuguei a avalanche de lágrimas e me levantei, fitando
Liliane.
— Não, eu não vou te dar netos, porque eu nunca quis ser
mãe, achei que eu mudaria de ideia com o tempo, mas não, não
quero ser mãe e não vou ser mãe. Estou cansada de tentar me
convencer de algo que eu não quero. — Fitei o meu anel de
noivado. Minha voz estava estranha aos meus ouvidos, melancólica
demais. — Augusto, você tem todo o direito de se preocupar com as
pessoas que gosta, mas não tem direito de usar isso para se vingar
de Laura. Estar certo o tempo todo não é tão bom quanto parece,
vai por mim… E Raquel… — Forcei-me a manter a cabeça erguida.
— Me desculpe por agir daquele jeito na nossa discussão, eu
precisava ouvir aquilo.
Olhei para Caíque, minha língua amarga colou no céu da
boca. Eram as palavras mais difíceis que eu diria na vida, mas se eu
demorasse, poderia desmaiar. Os olhos de Caíque estavam
inquietos, ele parecia perdido, genuinamente perdido, como um
garoto.
— Caíque, você é o meu melhor amigo, você me descobriu,
me encorajou e me amou, você me manteve segura e me fez dar o
melhor de mim em todas as fases da minha vida... e eu te amo por
isso, te amo do fundo do meu coração, mas não é o tipo de amor
que você merece. — Funguei, tentando controlar a voz chorosa. —
Eu estava em negação esse tempo todo, porque não queria que
você saísse da minha vida, eu não queria te perder... mas aprendi
da pior maneira que não podemos ter tudo o que queremos.
Respirei fundo e, tomada pelas lágrimas, tirei o anel de
noivado, deixando-o à mesa. Era o símbolo definitivo do término.
— Caíque — Laura o chamou. — O que aconteceu em Paris
foi…
Uma cadeira se arrastou contra o chão de madeira.
Augusto se levantou, ajudando Raquel.
— Olha, só agora eu percebi… — Ela arregalou os olhos. —
Minha bolsa estourou.
— Liguem para a ambulância! — gritou Augusto.
Liliane correu para a sala de estar, atrás do telefone fixo.
Fiquei parada no mesmo lugar, fitando aquela cena com os olhos
arregalados. Laura se levantou e puxou o lençol da mesa, comida,
pratos e copos foram parar no chão em um barulho ensurdecedor.
— Caíque, coloque Raquel em cima da mesa — ordenou ela,
mas Caíque estava igual a mim, anestesiado. — Caíque, agora! —
gritou Laura.
Ele saiu do transe e deitou Raquel na mesa. Ela estava
estranhamente calma. Liliane cruzou a porta.
— Eles estão vindo! — avisou ela.
— Não vai dar tempo! — gritou Laura.
— Como assim não vai dar tempo, tem que dar tempo! —
respondeu Augusto, mas Laura já puxava a calça de Raquel.
— Caíque, traz água quente e toalhas limpas. Mãe, preciso
de um cadarço de sapato limpo.
— O que você está fazendo!? — Augusto a empurrou. — A
ambulância está chegando!
— Não vai dar tempo! — respondeu Laura, impaciente. — A
ambulância mais próxima vem de Aiuruoca, estamos no meio do
nada, esqueceu?
Com isso, Raquel saiu do transe.
— Não, não, não… tem que dar tempo!
Caíque chegou na sala com toalhas nos ombros e uma
panela elétrica de arroz cheia de água quente.
— Laura está certa. A ambulância não vai chegar a tempo...
— Ele colocou a panela na cadeira. — A última vez que Laura teve
uma overdose, quase morreu, porque não chegaram a tempo.
Devem demorar umas cinco horas.
— CINCO HORAS? — berrou Raquel.
Laura empurrou um Augusto perplexo para trás.
— Não se preocupe, vou tirar o bebê.
Augusto a empurrou de volta.
— Nada disso, eu vou colocá-la no carro.
Dessa vez, Liliane quem interviu:
— E correr o risco de ter o filho no meio do caminho?
Paralelamente à discussão, Laura conversava com Raquel.
— Como andam as contrações?
— Andam bem maaaaal! — ela gritou.
— Okay, okay… Isso é bom. Quer dizer que ainda temos
tempo. — Laura olhou para os lados, momentaneamente perdida,
até seus olhos caírem em mim. — Júlia, preciso que a ajude, okay?
Você e Caíque, peguem a mão dela e a ajudem a respirar.
Laura falou aquilo de uma maneira tão calma e responsável
em meio aos gritos de Raquel, que nos aproximamos
automaticamente. Pelo menos, Liliane estava ali.
Augusto também se aproximou.
— Amor, é igual o Yoga, lembra? Respirar pelo nariz e soltar
pela boca…
Raquel imitou o gesto do marido.
— Vamos fazer juntas. — Apertei a mão dela. — Respire pelo
nariz e solte pela boca...
Laura voltou à sala com as mãos limpas.
— Você sabe fazer um parto? — perguntou Liliane.
— Na verdade, eu não sei. — Laura tirou os anéis e se
posicionou no meio das pernas de Raquel. — Mas em 2014, em um
albergue na Alemanha, uma garota entrou em trabalho de parto
durante a madrugada, só tinha nós duas lá. Tive que fazer o parto
dela.
Raquel levantou a cabeça, o suor umedecia seus cabelos
— E deu certo?
— Deu, mas…
— Mas? — perguntou Augusto.
— Mas ela me instruiu na língua natal dela, theco —
esclareceu Laura. — Eu não sei falar theco.
— Ah, alguém liga de novo pra ambulância! — gritou Raquel.
— Calma! Vai dar tudo certo! — retrucou Laura. — As
contrações estão brandas, temos longas horas até o bebê nascer.
Preciso saber se você tem dilatação o suficiente.
Raquel chorou mais alto.
— Eu falei para irmos hoje de manhã para a cidade, Augusto!
Apertei a mão dela com mais força. Com o passar das horas,
o desespero se dissipou junto ao suor e as contrações ficaram mais
intensas, em intervalos maiores. Laura instruiu Raquel a ficar de
cócoras.
— Você precisa empurrar para baixo. Respire fundo e
empurre para baixo!
Augusto e eu repetimos o que Laura disse.
— Eu não consigo! — gritou Raquel.
— Consegue sim! — respondeu Liliane. — Tá quase,
querida!
— Eu confio em você, amor! — exclamou Augusto. — Você
consegue!
— Não é a sua buceta que tá sendo rasgada em duas,
Augusto! Vai a merda! — ralhou Raquel.
Caíque gritou.
— Eu to vendo!
— Cale a boca, Caíque, e saia daqui! — gritou Laura. — Vai,
Raquel!
— Respira, Raquel! Respira! — gritei. Ela me olhou, suada e
arfante, e começamos a fazer juntas, puxando e expelindo ar pela
boca. — Você consegue!
— Eu consi...aaaaah! — gritou ela.
Augusto gritou junto.
Então, o choro de bebê preencheu a sala.
Capítulo dez
E se eu fechar os olhos agora?

— É uma menina — disse Laura, sorrindo.


Soltei a respiração que eu nem sabia estar segurando.
A sala estava abafada e o suor brilhava na testa de todos
nós. Augusto pegou a bebê, ela era cheia de superlativos: tão
pequena, tão escandalosa e com bochechas tão grandes, mas era
mágico a forma como o casal a olhava, como se fosse a coisa mais
preciosa do mundo. Augusto a colocou em cima do peito de Raquel,
a bebê parou de chorar. Laura estava com um cadarço limpo nas
mãos, esperando para cortar o cordão umbilical.
— Você estava certa... — sussurrou Augusto, beijando a
bochecha de Raquel. — É uma menina, você estava certa, amor.
Caíque e eu nos encaramos, mas eu desviei o olhar logo em
seguida. Um bolo de angústia ameaçava bloquear a minha
garganta. Eu estava chorando, mas não sabia se era pelo
nascimento do bebê ou por finalmente ter contado a meia verdade a
Caíque. Olhei para Laura, mas ela estava ocupada com a bebê.
— Júlia deu a ideia de a chamarmos de Marie Claire durante
o voo, mas acho que podemos colocar uma versão brasileira, Maria
Clara — sussurrou Raquel, ainda com os olhos presos na filha.
— Eu gostei — concordou Augusto.
Por fim, ouvimos o som da ambulância.

✽✽✽
O cheiro de éter, medicamentos e fraldas tomava conta da
sala de recepção verde clara. A voz da atendente atrás do balcão se
mesclava ao silêncio da maternidade. Atrás dela, um corredor
escuro desembocavam nos quartos e, vez ou outra, o choro de um
bebê atravessava o silêncio. Caíque entrelaçou os dedos ao redor
da cabeça, os cabelos despontavam para todos os lados. Laura, ao
lado dele, aparentava estar ainda mais cansada, as olheiras tinham
um aspecto arroxeado. Ela olhava para um ponto fixo no chão, sem
ao menos piscar.
Sentei-me na cadeira vaga, no meio deles. Era como estar ao
lado de icebergs, não havia calor, palavras de afeto ou qualquer tipo
de comunicação. Meus pensamentos estavam fixos naquela mesa
de jantar, no ponto crucial do meu discurso. Eu parecia outra pessoa
agora. Acho que é isso que grandes acontecimentos fazem com a
gente, nos dividem em um antes e um depois.
Passos ressoaram no corredor até Augusto surgir na
recepção. Ele se aproximou sorrateiramente.
— Laura?
Ela levantou a cabeça, aérea, e encarou Augusto.
— Aconteceu alguma coisa? — Passou as mãos na saia,
levantando-se.
— Não, não, eu… — Augusto pigarreou. — Eu queria
conversar com você… Na verdade, agradecer por ter nos ajudado.
Laura piscou algumas vezes, como se Augusto falasse em
outra língua.
— Não precisa agradecer, eu fiz o que qualquer um, no meu
lugar, faria.
— Mesmo assim, se não fosse por você… — Augusto se
interrompeu, olhando para os lados. — Podemos conversar…
sozinhos?
Um silêncio reinou até Caíque e eu entendermos o pedido.
Ele se levantou primeiro.
— Vou ver Maria Clara no berçário.
— Ah, é.. eu… eu... — Levantei-me um pouco zonza. — Eu
vou ver Raquel.
Caíque e eu seguimos para a mesma direção ao mesmo
tempo e trombamos. Ele foi para o lado contrário e eu também,
esquerda, direita, esquerda, direita, mas depois de segundos
constrangedores, conseguimos sair da frente um do outro. Fiquei
aliviada ao ponto de esquecer de perguntar onde era o quarto de
Raquel. Estava mais preocupada em colocar um pé na frente do
outro, não tropeçar, não desabar em choro... Por sorte, a porta de
Raquel era a única aberta.
Ela sorriu ao me ver, estava deitada na cama, vestida com
uma camisola hospitalar.
— E, aí, mamãe? — sussurrei.
— E, aí? — Ela me chamou para entrar com um menear.
Fechei a porta devagar e me aproximei da cama, ainda
receosa. O quarto tinha paredes azul bebê, uma cadeira de ninar e
persianas de nuvenzinhas. A mesa metálica, ao lado da cama de
Raquel, continha alguns recipientes cheios de um líquido branco-
claro.
— Maria Clara não pegou o peito ainda. Augusto estava me
ajudando a tirar. — Ela deu batidinhas no seio, rindo. — Me conte,
como você está?
Sentei ao seu lado enquanto torcia a barra do casaco, como
uma irmã mais velha visitando a mãe no hospital.
— Eu que deveria fazer essa pergunta, você acabou de ter
um bebê em uma mesa de jantar, eu só… só cancelei o meu
casamento.
Raquel riu.
— Vai ser uma boa história para contar daqui há uns anos,
não vai?
Sorri, triste.
— Vai sim.
Nos encaramos, cheias daquele sentimento que aperta o
peito e dói a garganta.
— Venha cá — chamou Raquel. Ela deixou um espacinho ao
lado, aconcheguei-me, recebendo um beijinho no topo da cabeça.
— Acho que não somos mais as mesmas garotas de antes, não é?
— Não, não somos — sussurrei, já chorando.
A Ana pensou que nada daria errado se seguisse tudo à
risca. Ela só se esqueceu que pessoas mudam, imprevistos
acontecem e nada pode ser milimetricamente calculado.
— Você sabe o que fazer agora? — perguntou Raquel.
Funguei em meio ao choro, culpando-me por molhar a
camisola dela com lágrimas.
— Não, e é desesperador não saber, mas preciso terminar o
que comecei... Mesmo que seja tarde demais. Acho que perdi os
dois, Quel.
Raquel arrastou um cacho para trás da minha orelha.
— Ah, Júlia… você se apaixona com a velocidade de um raio
e com a intensidade de uma bomba.
Nós rimos.
— Isso não é bom? — perguntei.
Ela maneou a cabeça, em dúvida.
— Às vezes sim, mas você passou a vida inteira apaixonada
por alguém, estava em um relacionamento de oito anos… Vai ser
bom passar um tempo sozinha. Você precisa se conhecer, precisa
saber como é viver sem fazer planos com outro alguém. Um dia de
cada vez, entende?
Um dia de cada vez, sem planilhas, sem correria, sem
pressão, parecia algo utópico demais. Apertei Raquel contra mim,
ouvindo-a soltar um "ai" baixinho, misturado a um riso.
— Eu não sei se consigo — sussurrei.
— É claro que consegue — respondeu ela. — Eu acredito em
você. Termine o que começou e comece outra vez, planeje e depois
desplaneje. Viva, Júlia, tem um mundo maravilhoso de
possibilidades não planejadas.
Esse mundo pareceu muito mais palpável naquele momento.

✽✽✽

O berçário era um ambiente reconfortante, o cheiro de bebês


recém-nascidos, fraldas e o leve bip dos respiradores, a luz baixa e
os rostinhos pequenos adormecidos atrás do vidro... Se eu fechasse
os olhos, ficaria ali o resto da noite. Caíque mal se mexia, mal
respirava, as mãos estavam atrás do corpo e sua estatura parecia
maior, quase como um gigante em uma casinha de bonecas. Parei
ao lado dele, sentindo meu coração bater forte no peito.
Caíque maneou a cabeça na direção de Maria Clara, ela
chupava o dedinho com avidez enquanto dormia.
— Ela é linda — comentei.
— É sim. — Caíque enfiou as mãos no bolso e tirou um
ursinho de pelúcia de lá. Era um gatinho azul, com olhos de botão.
— Acha que ela vai gostar? Foi a única coisa que consegui tirar da
máquina de ursinhos ali embaixo.
Fechei os olhos com força, seria mais difícil do que imaginei.
— Acho que é quase do tamanho dela.
Caíque levou o ursinho na altura dos olhos, analisando-o.
— Ele parece pequeno para mim.
— É que suas mãos são gigantes.
Caíque guardou o ursinho no bolso.
— Me esqueci desse detalhe.
— Mas ela vai amar o presente — respondi rápido. — Ela vai
amar com certeza.
Minha voz saiu esganiçada, ecoava pelo silêncio do berçário.
Ficamos minutos sem dizer uma palavra. Caíque olhava fixamente
para frente, o maxilar marcado e os olhos cheios de lágrimas
acumuladas.
— Caíque…
— Laura me contou, me contou a verdade, dessa vez.
Meu coração saltou do peito. Talvez a vermelhidão em volta
dos seus olhos fosse o sinal que eu estava procurando. Laura
contou a ele a verdade? Foi antes ou depois de Augusto aparecer?
Onde ela está agora? Caíque não gritou comigo até agora. Era um
bom sinal? Respirei fundo, contendo a avalanche de perguntas sem
respostas.
— O que ela te disse?
Caíque molhou os lábios de saliva..
— Vocês se encontraram no último dia em Paris… dormiram
juntas… e depois… Bem, depois se encontraram na rodoviária. —
Sua voz estava desconexa.
Então ela contou a verdade. De repente, respirar se tornou
difícil.
— Você não vai me dizer nada?
Caíque me encarou, seria melhor se tivesse me dado um
soco.
— O que quer que eu diga, Ana? Que vocês deveriam ter me
contado? Que mentir esse tempo todo foi pior do que ter dito a
verdade? — Ele deu uma risada amarga. — Você sabe o que
deveria ter feito, isso é o pior, você sabe exatamente o que deveria
ter feito e não fez.
— Eu sei, eu…
— Você nos arrastou para esse casamento até o último
segundo! — Caíque se exaltou e apontou o dedo para mim. — Não
porque me amava ou porque amava Laura, mas porque não queria
dar o braço a torcer, não queria que as coisas saíssem do controle!
— Você tem todo o direito de me odiar, você...
— Pare de ser condescendente! — gritou. Uma enfermeira
passou ao nosso lado. Caíque se aproximou, sussurrando raivoso:
— Pare, só… pare. Isso faz com que eu me sinta pior ainda.
Olhá-lo nos olhos me causavam uma sensação
claustrofóbica. Era como se afogar, debater-se à procura de ar. A
dor de Caíque era visível, era a dor que eu causei.
— Desculpe, eu tentei ser a melhor versão de mim, Caíque
— sussurrei, lutando contra as lágrimas. — Eu sei, eu estraguei
tudo, eu poderia ter evitado essa confusão, se tivesse dito a verdade
antes da despedida de solteiro. Eu não queria me casar, não sabia
ainda. Então, fique com raiva de mim, me odeie, mas lembre-se de
que Laura só não queria te magoar de novo, você é tudo que ela
tem agora e nem o tempo ou ninguém pode mudar isso.
Caíque desviou os olhos dos meus.
— Talvez nem o tempo seja o suficiente para mudar isso. Não
dessa vez.
— Sei o que está pensando, mas...
— Laura foi embora — interrompeu ele.
O ar saiu com tudo entre os meus lábios.
— Laura…?
Franzi o cenho, confusa. Laura foi embora? A frase
reverberou em minha mente, no começo, sem sentido nenhum, mas
aos poucos, ganhou forma. Minha expressão foi de surpresa à
compreensão em um segundo. Laura foi embora. Cumpriu o que
disse na cozinha, foi embora sem me avisar.
— Como assim, foi embora… — engasguei. — Ela…?
Caíque não explicou mais nada, talvez tenha tentado, mas
comecei a correr, arfante, sentindo a visão nublada pelas lágrimas.
Eu não podia deixar Laura ir embora. O som dos meus passos
ecoaram pela maternidade, o ar entrava frio e saía quente pela
minha boca. Desci os três andares pelas escadarias e a lateral da
minha barriga começou a doer, mas eu não parei, eu não podia
parar, cruzei as alas até encontrar uma saída. A noite fria surgiu
através das portas da maternidade, formando uma fina camada de
geada em cima dos carros.
De repente, alguém me puxou. Era Augusto.
— Júlia!
Pela maneira arfante, ele corria atrás de mim havia muito
tempo.
— Ela... — Recuei num grunhido. — Laura, ela… Você a viu?
Você viu a Laura?
Augusto me arrastou até um canto da recepção, na tentativa
de fugir dos olhares curiosos.
— Eu preciso ir atrás dela, Augusto! Me solta! — Debati-me,
tentando fugir do aperto. Eu não estava no meu melhor,
descabelada, chorando, amassada, completamente perdida.
— Laura não quer que você vá atrás dela! — respondeu
Augusto, firme. — Está me ouvindo?
Puxei o braço, confusa.
— O quê...?
— Nós conversamos, Júlia. Eu e Laura. Ela não quer que
você ou Caíque vá atrás dela! Ela não quer!
— Quem é você para dizer o que ela quer ou não?! — gritei
contra o rosto de Augusto.
— Então vá! — Ele apontou para o horizonte. — Vá atrás
dela, veja com os seus próprios olhos!
O nó na minha garganta me impediu de falar, mas segui o
conselho gritado de Augusto e corri pelo estacionamento escuro até
cair no chão asfaltado, na vaga onde deveria estar uma
caminhonete preta.
Eu só queria que aquilo não doesse tanto. Laura não queria
ser seguida, ela não se achava merecedora o suficiente. Foi embora
sem um bilhete de despedida, sem um último beijo. Com a partida
de Laura, ela foi o que sempre será destinada a ser, a lembrança
boa, intensa, que eu vou me recordar com um misto de nostalgia e
carinho.
Inevitavelmente, vou me esquecer de algumas coisas, como
o cheiro e a maciez dos seus cabelos, a rispidez de suas mãos, a
temperatura de sua pele e a sua voz. Mas as sensações estarão
intactas, todas as sensações ficariam guardadas a sete chaves.
Meu corpo estava anestesiado pelo frio cortante, mas o meu
coração estava em paz. Finalmente, eu senti alívio.
Fechei os olhos e desejei que Laura tivesse uma boa vida.
Fechei os olhos e desejei que todos os meus dias fossem
como o último em Paris.
Epílogo. P.S. Ainda se lembra de Paris?

O verão em Monte Verde era sempre ameno, bom para tomar


banho de piscina à tarde e vestir um suéter no começo da noite. No
entanto, naquela manhã em especial, o dia começou quente. O que
me fez suar em menos de duas voltas pelo quarteirão numa rápida
caminhada.
Parei em frente a minha casa, uma singela construção de um
andar, no meio das tradicionais casas alpinas, e soprei o decote do
topper. O Sol despontava no horizonte, ainda preguiçoso, acima do
telhado das casas vizinhas. Não havia nenhuma nuvem sequer.
No gramado da casa ao lado, Ariela me observava ao redor
de barbies, legos e casinhas de bonecas. Ela se levantou, deu
batidinhas na saia de babados e abraçou as minhas pernas. Os
bracinhos gordinhos mal conseguiram dar a volta no meu joelho.
— Olá, Ariela! — Balancei suas marias-chiquinhas. — Hoje
eu não vou poder brincar com você, tenho que trabalhar.
Ela me olhou com aquele par de olhos castanhos pidões.
— Mas eu queria que a Clarinha brincasse comigo.
— Nós já conversamos sobre isso, Maria Clara só me visita
aos fins de semana.
Ariela cruzou os braços, emburrada.
— Mas eu vi ela agorinha mesmo na sua casa!
Segui o dedo indicador de Ariela. Tudo parecia normal no
meu pequeno jardim, a bicicleta presa ao bicicletário azul e a água
da mangueira formando uma poça de barro nas hortaliças, mas o
caminho até a porta principal estava sujo de pezinhos infantis.
— Vou conversar com os pais da Maria Clara e logo te
chamo, ok?
Ariela maneou a cabeça em concordância e correu para o
próprio quintal. Ela se contentaria com os próprios brinquedos por
enquanto.
Deixei o tênis sujo de lama em cima do tapete de boas vindas
e abri a porta.
Uma coisinha rosa pulou em mim.
— Tia Ná!
— Argh, olha só quem está aqui! Você está mais pesada,
garota, o que andou comendo? — Apertei sua barriguinha suja de
comida.
— Brownies — respondeu ela, com as enormes bochechas
lambuzadas de chocolate. — Mas não conta pra mamãe.
Levantei o dedo mindinho.
— Prometo não contar.
Clara entrelaçou o dedinho no meu, em uma promessa.
Raquel via aquela cena com os braços cruzados.
— Como se a cara toda suja de chocolate não a entregasse,
não é? — Ela pegou Clara do meu colo, limpando a boca da filha
com a ajuda de uma fralda.
A voz de Augusto sobressaltou na cozinha.
— Foi só um brownie!
— Foram quatro — sussurrou Clara.
— Augusto! — gritou Raquel, partindo para a cozinha.
Fechei a porta atrás de mim. A movimentação atípica daquela
manhã me deixou zonza. Segui Raquel até a cozinha. Augusto
mexia duas panelas ferventes ao mesmo tempo.
— Oi, para vocês também, que invadiram a minha casa…
— Augusto e eu pensamos em fazer um dia em família, já
que vamos passar o próximo mês fora — esclareceu Raquel.
— Clara nunca ficou longe de você por tanto tempo —
acrescentou Augusto.
Ajoelhei-me em frente à pequena.
— Ela vai se divertir tanto com o tio Caíque que nem vai se
lembrar de mim. — Apertei as suas bochechas.
Augusto apontou a colher de pau para mim.
— Isso é verdade. Ele vai levá-la a um parque aquático!
— Merda — praguejei em uma falsa frustração. — Como vou
superá-lo dessa vez?
Raquel repousou a mão na cintura.
— Que tal…
A campainha tocou.
Nos entreolhamos.
— Eu atendo — Raquel saiu com Maria Clara em seu
encalço.
Sorri, era bom tê-los em casa em dias como aquele.
Aproveitei a saída de Raquel para me aproximar de Augusto,
sussurrando:
— Como ele está?
Não mencionei o nome de Caíque, era estranho dizer o nome
dele em voz alta, ainda mais estranho ter a sensação de estar me
intrometendo na sua vida. Caíque cortou todo o tipo de contato
comigo e se mudou para outro estado, o nosso elo em comum se
resumia a uma afilhada e dois melhores amigos.
— Caíque está bem, decidiu morar no Rio definitivamente…
O que é bom, ele parece tão carioca que está me assustando. Está
dando aulas de inglês, namorando… e às vezes, também me
pergunta sobre você.
Então não era só eu, me senti menos mal por isso.
— O que Caíque perguntou sobre mim?
Augusto deu ombros.
— Nada demais.
Observei-o mexer as panelas, sem saber como prosseguir.
— Aposto que ele não tem notícias de Laura, não é? —
perguntei, baixinho.
Falei o nome dela em voz alta pela primeira vez em três
anos, saiu de forma esganiçada, como se doesse. Augusto parou o
que fazia.
— Eles não têm tanto contato — suspirou. — Mas acho que
vai ser assim a vida inteira, essa… essa coisa entre Caíque e Laura.
Eles são cheios de encontros e desencontros.
Maneei a cabeça em concordância, bateu uma vontade de
subir para o meu quarto e ficar sozinha. Com o tempo, aprendi a
gostar da minha própria companhia, a ter meus próprios gostos, a
viver um dia calmo e com nada planejado, a não ser terminar de ler
um livro, assistir um filme, começar um trabalho freelancer. Era bom
estar sozinha, mas era péssimo querer estar sozinha com alguém
em especial.
Raquel entrou na cozinha.
— Era o carteiro.
Ela deixou as cartas em cima da mesa, prendeu os cabelos
em um rabo de cavalo e voltou a ajudar Augusto no almoço. Maria
Clara saiu para buscar a amiga, as duas chegaram logo depois e
ligaram a televisão, já estava sintonizado no canal de desenhos.
Clara era a única pessoa que a usava. As vozes se misturaram na
minha cabeça, o falatório de Augusto e Raquel e a birra das
crianças na sala, mas os meus olhos estavam focados em uma
carta em especial. As lágrimas me impediram de ver qualquer coisa,
transformaram as letrinhas do remetente em um borrão difuso.
O remetente era Laura e, abaixo, o meu nome estava escrito
em uma letra quase ilegível.
Olhei para trás, para Augusto e Raquel absortos em uma
conversa, e abri a lateral do envelope. O papel timbrado deslizou em
contato com os meus dedos. Prendi a respiração, estar em uma
casa cheia de pessoas ou em um quarto sozinha não faria diferença
alguma. Só existia eu e aquela carta.
Peguei o papel dentro do envelope: uma passagem de ida
para Paris.
— O que é isso? — perguntou Raquel, atrás de mim.
Meu coração bateu descompassado. Eu mal podia acreditar.
— Laura — respondi. — É a Laura.
As lágrimas desceram pelas minhas bochechas em uma
avalanche impossível de conter.
Virei o verso da passagem.

Le Procope, terça-feira, 16h.

P.S. Ainda se lembra de Paris?


✽✽✽

O Cour Du Commerce Saint-André era uma das ruas mais


famosas de Paris, apesar de tecnicamente ser um beco. O que em
Paris não era um beco? A arquitetura remetia ao século 18, um
estilo romântico, as sacadas em marrom claro, flores, calçadas e
prédios pequenos. Nesse famoso beco, você iria encontrar — além
dos ratos — um dos cafés mais famosos de Paris, o Le Procope.
Era o mais antigo e foi fundado em 1687. Nesse café, havia uma
variedade de tribos, desde turistas fascinados com a magia da
Cidade Luz até parisienses mal educados, recusando-se a dar
informações, mesmo se o seu francês for bom.
Dentre todas essas pessoas, uma garota em especial estava
à minha espera.
Ela não mudou nada durante os anos, apenas o cabelo
estava pintado de azul. Ainda usava roupas casuais, que nada
tinham de casual, eram perfeitas para ela. Uma jaqueta de couro
vermelha, calças jeans claras e um topper. Ela parecia nervosa
sentada no balcão de bebidas, os dedos longos irrequietos batiam
no tampo de madeira. Ela olhava para todos os lados a todo
momento, mas não sabia da minha presença, tão perto e tão longe,
tentando controlar meu coração, minhas pernas e minhas lágrimas.
Eu não queria borrar a maquiagem.
Passei as mãos pelos cabelos, “É só ir, Júlia”, falei comigo
mesma. E daí se eu estava arrumada demais para um café em
Paris? Se não vi nenhuma garota de salto alto e um vestido
apertado por aí? Eu só fiquei emocionada demais.
Escondi-me atrás de um grupo de idosos, torcendo para
sumir.
De repente, as costas de Laura se arquearam, como se ela
soubesse da minha presença, com nada mais que uma bolsa de
mão e a coragem que a Ana não tinha, mas a Júlia aprendeu a ter.
Ela apalpou a calça jeans, lançando um olhar constrangido para o
garçom.
Era a oportunidade perfeita.
Aproximei-me sorrateiramente.
— Pode deixar, eu pago.
Coloquei uma nota em cima do balcão. O garçom pegou o
dinheiro e empurrou duas taças de vinho em nossa direção.
Demorei a encarar Laura, estava com medo, mas ela me analisava
com aquele par de olhos brilhantes e soltou uma risada incrédula.
— Achei que não viria.
Sentei-me na banqueta ao lado. Meu coração estava
acelerado.
— É claro que eu viria, Laura. — Beberiquei o vinho, desceu
amargo no meu estômago ansioso. — Aliás…
— Caíque — respondeu ela, com um meio sorriso. — Ele me
passou o seu endereço, conseguiu com Augusto.
— Imaginei — sussurrei.
Ficamos alguns segundos nos encarando, pasmas, felizes,
incrédulas, temerosas e completamente apaixonadas. Laura estava
ali, no alcance das minhas mãos, do meu corpo, dos meus lábios.
Parecia um sonho. E me encarava como se eu fosse a coisa mais
especial do universo.
— Júlia, eu queria me descul...
— Não, não — interrompi. — Não vamos falar sobre
passado, não dessa vez. — Aproximei a minha banqueta e nossas
coxas se tocaram, recebi o familiar choque. Laura me olhou
intensamente, não queria perder nenhum movimento. — Uma vez,
você me pediu para que eu me lembrasse de você sem um passado
ou um presente, apenas a despretensiosa Laura que conheci em
Paris. Também quero que se lembre de mim assim.
Ela arrastou uma mecha do meu cabelo para trás dos
ombros. Era uma desculpa fajuta para me tocar, mas eu não a
julguei, meu corpo inteiro formigava.
— Vejo que não trouxe carteira, isso é bom — sussurrou ela.
— Você não deve saber, mas tem muitos roubos aqui, os turistas
estão ocupados demais com as luzes para prestar atenção na bolsa.
Minha boca se curvou num sorriso.
— Mal posso imaginar a dor de cabeça que é ser roubado em
Paris. E você? Mora aqui?
Laura puxou o ar pela boca.
— Eu não moro em lugar nenhum. Sou uma garota de
passagem.
Aproximei-me um pouco mais, uma de suas coxas ficou no
meio das minhas.
— E o que garotas de passagem fazem? — perguntei.
O rosto de Laura parou a centímetros do meu, a respiração
quentinha contra a minha, nossos narizes se tocando. Ela não
cheirava a cigarros dessa vez, seu aroma era morango e herbal, a
mesma fragrância do meu shampoo.
Laura desceu os olhos para os meus lábios.
— Elas roubam corações, chérie.
Soltei uma risada.
— Essa resposta foi tão brega!
Ela riu também.
— Okay. Posso tentar de novo?
Maneei a cabeça em afirmação.
— Que tal essa: Garotas de passagem moram em lugares
simbólicos. — A voz de Laura soou cadenciada. Ergui uma
sobrancelha.
— Simbólicos?
— É. Elas chamam de casa aquilo que elas mais amam.
Toquei o seu queixo com os dedos, agarrando-o.
— Pode ser uma pessoa?
— Bom, no meu caso, é uma pessoa.
Se era esquisito duas garotas conversarem tão próximas?
Era, mas não ligamos para isso. Laura molhou os lábios com a
língua, prosseguindo:
— É uma garota que pensava muito no futuro e... Ah! Quase
me esqueci, ela era noiva do meu irmão.
Soltei uma risada anasalada.
— Tinha tudo para ser um desastre.
— E foi um desastre, mas o tempo reconstrói tudo.
Não poderia concordar mais, porém o meu tempo tinha
acabado. Não me segurei, colei meus lábios nos dela. Beijei Laura
no meio do café mais antigo de Paris, no mesmo café da primeira
vez, com a Torre Eiffel despontando no céu azul e o mundo inteiro à
nossa espera.
Laura afundou os dedos longos no meu quadril enquanto
redescobria a minha boca com a língua. Era a mesma sensação de
antes, apesar de sermos versões diferentes daquelas garotas.
Interrompi o beijo.
— Você foi embora sem que eu dissesse… eu te amo, Laura.
— Puxei o ar pela boca. — Eu te amo. Obrigada por pagar a maldita
broa e obrigada por me dar a melhor noite da minha vida.
Voltamos a rir como bobas apaixonadas.
— Obrigada por ser meu lar — respondeu Laura. — Por me
mostrar que o mundo é chato demais sem alguém para dividi-lo.
Beijamo-nos novamente, sem nos importarmos com nada a
não ser nós. Beijamo-nos como se fosse a primeira e a última vez,
como se estivéssemos sozinhas. Nada de planos, nada de amarras,
nada a não ser Laura e eu.
Voltamos àquele quarto em Paris, corpos nus, lençóis e a tour
pelo mundo sem data para acabar.
Minha única preocupação era: “Qual seria o próximo lugar?”

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