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FLÁVIA CAMARGO TONI


A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928) E
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

B
A música brasileira e a cooperação intelectual no
Congresso de Arte Popular de Praga (1928) A
______________________________________
T
Flávia Camargo Toni
Instituto de Estudos Brasileiros/Universidade de São Paulo
E
S
Resumo: A correspondência de Mário de Andrade, Luciano Gallet, Renato
de Almeida e Elsie Houston Péret demonstra que no primeiro semestre de
1928 tanto os três musicólogos quanto a cantora carioca se organizam
para participarem de um Congresso de Arte Popular, mote para pesquisas
em torno das características de nossos cantos e bailados populares. A 17
consulta ao dossiê brasileiro da extinta Sociedade das Nações indica que
além da cooperação intelectual as instituições do pós guerra queriam se
afirmar no panorama científico. Os Anais do encontro surpreendem pela
pequena representação latino americana no encontro internacional e pelo
fato do Brasil figurar através de um texto preparado por Elsie e por uma
coleção de objetos musicais indígenas selecionados e enviados por E.
Roquette-Pinto. Se a documentação e a bibliografia consultadas elucidam
quais as tratativas da política cultural aproximam os países que
participaram da primeira guerra, conclui-se, também, que ainda não
alcançamos construir um panorama sobre as contribuições individuais de
nossos musicólogos e artistas que colheram e estudaram os primeiros
cancioneiros.
Palavras chave: musicologia; metodologia de pesquisa; Arte Popular

_________________________________________
Brazilian music and intellectual cooperation at the
Congress of Popular Art in Prague (1928)

Abstract: The letters of Mario Andrade, Luciano Gallet, Renato de


Almeida and Elsie Houston Peret show that the first half of 1928 the three
musicologists and the carioca singer organized themselves to participate
in a Congress which was called Congress of Popular Art aiming a research
around the characteristics of our songbooks. The consultations at Brazilian
dossier from the extinct League of Nations indicate that beyond
intellectual cooperation the postwar institutions wanted to stablish
themselves in the scientific scenario. The proceedings of the meeting
surprise by the small Latin American representation at the international
conference but also by the fact that Brazil is represented through a text
prepared by Elsie and a collection of selected indigenous musical objects
sent by E. Roquette-Pinto. If the documentation and consulted
bibliography clarify that the discussions of cultural policy connect
countries that participated in the first war, it is clear, too, that we have
not yet managed to build a picture of the individual contributions of our
musicologists and artists who gathered and studied the firsts songbooks.

Key words: musicology; methodology; Popular Art

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A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
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Em agosto de 1926 versão figura “Influência


Mário de Andrade e Luciano portuguesa nas rodas infantis
Gallet começam a se do Brasil” com o subtítulo
corresponder e tanto a “(Memória para o Congresso
amizade quanto a partilha e Internacional de Arte Popular
discussão sobre os planos de Praga)”. Mas sob o ponto
individuais rapidamente de vista dos estudos da crítica
afloram. Um ano e meio após, genética, há uma segunda
em fevereiro de 1928, ambos obra de interesse, uma vez
amigos de Renato de Almeida, que a própria Oneyda
são convidados para Alvarenga incluiu uma edição
escreverem para um congresso longa do mesmo estudo sobre
que teria lugar em Praga. Nas as cantigas portuguesas
missivas que circulam entre quando preparou e editou As
São Paulo e Rio de Janeiro melodias do boi e outras
pode-se acompanhar o peças. Mas, compreender
amadurecimento dos projetos, alguns dos aspectos da gênese
possibilidade particularmente do trabalho do musicólogo, ou
fértil para se entender não só entender para que ele se
a gênese de “Influência destinava, depende da análise
portuguesa nas rodas infantis das missivas trocadas
do Brasil” como a do próprio particularmente com Renato e
Ensaio sobre música brasileira. Luciano, além da consulta a
Ambos são textos várias vezes outros arquivos, o que será
mencionados em cartas e a visto adiante.
respeito dos quais o crítico Uma equação simples
discute com maior ou menor para se solucionar as dúvidas
profundidade com Manuel sobre as motivações do
Bandeira e Luís da Câmara musicólogo para preparar o
Cascudo, para mencionar estudo sobre as canções
apenas outros dois infantis de origem portuguesa
interlocutores do período. seria a localização dos Anais
No final do ano de 1928 do Congresso ao qual ele se
já não se escuta mais falar a destinava. Curiosamente, no
respeito do trabalho feito para entanto, o trabalho dele, bem
o encontro europeu, o que fala como os de Renato de Almeida
sobre as cantigas portuguesas, e de Luciano Gallet, não figura
ele será colocado entre os entre os que foram editados
artigos, conferências e em 1931 nos dois volumes do
pequenos ensaios editados em encontro promovido pelo
Música, doce Música, em Institut International de
19331. Ali, desde a primeira 2
Coopération Intellectuelle . Os

1
Acrescido de uma terceira parte,
2
Música, doce Música foi publicado Art Populaire: travaux artistiques et
pela Livraria Martins sob os cuidados scientifiques du 1er Congres
de Oneyda Alvarenga, no plano das Internationale des Arts Populaires.
Obras Completas do autor. Paris: Institut Internationale de

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trabalhos sobre música No tópico “A dança e o


figuram no segundo volume, teatro” encontram-se dois
ao lado de arte textil. A seção trabalhos, um do Brasil e o
“A Música” também foi outro da Inglaterra: enquanto
subdividida em dois tópicos, Douglas Kennedy contribuiu
um geral e um menor, “A com “A renascença da música
dança e o teatro”. No primeiro e da dança popular na
estão os trabalhos enviados Inglaterra”, o texto brasileiro
por Canadá, Java, Equador, foi assinado por Elsie Houston
Chile, Inglaterra, Grécia, e trata de “A música, a dança
Hungria, Japão, Noruega, e as cerimônias populares do
Romênia, Europa oriental, Brasil.” Esta não é a única
Tchecoslováquia e Ucrânia, colaboração da cantora carioca
com um trabalho cada, além como se observa na legenda
de Alemanha, França e da lâmina 69. Ali, ao final da
Espanha que apresentaram descrição sumária de seis
dois trabalhos. Os únicos instrumentos musicais da
representantes das Américas Coleção do Museu Nacional, do
são Sixto M. Duran, com o Rio de Janeiro, entre
texto “A música aborígene e parênteses consta:
popular do Equador”, e o “(Comunicação de Melle. Elsie
compositor Umberto Allende, Houston)” (HOUSTON, 1931:
com “A música popular vol. 2, p. 199).
chilena”. Porém, dentre todos, Na correspondência de
a Hungria se destaca não só Mário de Andrade com os
por causa do nome de seu interlocutores mencionados
representante, Bela Bartok, acima não se encontra
mas também porque dentre os explicação para a eleição do
títulos anunciados nas trabalho da cantora, amiga
centenas de artigos dos dois não só dele, como de Manuel
volumes de trabalhos é das Bandeira, Luciano Gallet e
raras vezes que se lê a palavra Renato de Almeida, e
folclore: “As pesquisas sobre o surpreende que o fato – a
folclore musical na Hungria”. participação de artista de seu
Na publicação da Duchartre, porte – tenha sido tão pouco
entre as páginas da seção de estudado até hoje. Logo, foi
Música pode-se consultar as necessário buscar as respostas
fotografias dos painéis de na correspondência franco-
instrumentos musicais que brasileira, hoje arquivada na
foram expostos em Praga onde Unesco, em Paris,
a lâmina de número 69 documentação diplomática que
corresponde ao conjunto dos elucida em parte por quais
instrumentos musicais motivos as colaborações de
indígenas enviados pelo Brasil. nossos musicólogos não foram
aceitas para o Congresso de
1928 e, não menos
Coopération Intellectuelle, Duchartre,
1931. 2 volumes.
importante, de que forma o

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trabalho de Elsie foi eleito para das Relações Exteriores, o que


representar o Brasil. Sem foge ao escopo deste artigo.
brasileiros participando do Para analisar a
comitê científico, qual “país” participação de Elsie Houston,
imaginava-se contemplar? tanto como pesquisadora como
Para se entender a cantora, bem como para
estrutura e objetivos do conhecer dados a respeito de
Congresso será necessário sua biografia contei com a
entender primeiramente a dissertação de mestrado de
participação do Brasil nos Isabel Cristina Dias Bertevelli
Institutos fundados pela (BERTEVELLI, 2000: 48),
Sociedade das Nações logo trabalho que reúne
após o final da I Guerra. Neste documentação variada,
sentido, a busca junto aos programas musicais, notícias
arquivos da Unesco, herdeira sobre discos, algumas cartas,
da documentação que trabalho de pesquisa que
pertenceu ao Institut percorreu vários arquivos
International de Coopération porque a artista faleceu nos
Intellectuelle (IICI), embora Estados Unidos, separada do
lacunar, mostrou-se rica em marido e longe de sua família,
possibilidades de análises. Ali, não constituindo um acervo
um dossiê sobre o Brasil, da que fosse preservado para
época da organização do posterior estudo de sua obra.
Congresso, ou melhor, dos
anos de 1927 e 1928, acolhe Diplomacia cultural e
as cópias de ofícios e cartas, cooperação intelectual
indexadas no espólio, mas
infelizmente parte delas não se O dossiê sobre a
logra recuperar. O conjunto participação do Brasil no
surpreende devido aos Congresso de Praga do ano de
esclarecimentos possíveis 1928 que está arquivado na
tanto para se analisar a UNESCO se resume a
correspondência de Mário de aproximadamente cincoenta
Andrade quanto para se fotogramas, se contabilizadas
entender as “démarches” no as frentes e os versos dos
campo da política cultural do memorando, ofícios e cartas
entre guerras. enviados por personalidades
De outro lado, para se do mundo diplomático –
entender se os trabalhos de franceses e brasileiros –
Mário de Andrade, Luciano musicólogos e historiadores.
Gallet e Renato de Almeida Reunidos estes dados à
foram enviados para o correspondência dos
Congresso, é necessário musicólogos Renato de
explorar fontes mais Almeida, Luciano Gallet e
numerosas e diversificadas Mário de Andrade, torna-se
como os arquivos do Ministério possível explorar o assunto de
três formas, pelo menos: a) de

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que maneira o Congresso foi importância do Institut


organizado por europeus e Internationale de Coopération
brasileiros?; b) quais as Intellectuelle em relação às
gêneses dos trabalhos artes populares4, órgão da
individuais de Mário de Sociedade das Nações que
Andrade, Luciano Gallet e tinha, nas artes populares,
Renato de Almeida?; c) tendo “um tema prioritário” (DUCCI,
em vista os trabalhos 2015: 133), o que me
recentemente consagrados à interessa aprofundar apenas
atuação do IICI na política na medida em que esta é a
cultural europeia e sua relação base para a organização do
com demais potências Congresso de 1928. Enquanto
americanas, como entender a a historiadora italiana restitui a
eleição dos trabalhos organização deste evento a
publicados na seção de Música partir do ponto de vista do
e de Dança e Teatro nos Anais IICI, eu o farei a partir do
do Congresso?3 dossiê brasileiro arquivado
Para dar conta de pela UNESCO, acrescido da
parcela dos assuntos que sistematização dos dados de
interessam aqui diretamente parcela da correspondência de
recorri às contribuições Mário de Andrade.
recentes de sociólogos, B. Rogan, por sua vez,
historiadores da arte, estuda um dos
etnólogos e historiadores desdobramentos do
sociais iluminando o panorama Congresso, qual seja, a
do desenvolvimento dos formação da Commission
campos de estudos voltados Internationale des Arts
para a etnologia, o folclore, as Populaires (CIAP), em 1928,
artes populares sob o prisma concentrando-se na questão
da diplomacia e das políticas da cooperação internacional no
das relações internacionais no campo da cultura popular, na
entre guerras. tentativa de contextualizar o
Annamaria Ducci, por nascimento das sociedades e
exemplo, destacou a museus europeus voltados
para os estudos da etnografia
3
e do folclore.
No caso da participação de Renato
de Almeida junto ao Institut
Na grande área de
International de Coopération pesquisas sobre as relações
Intellectuelle após a II Guerra internacionais há um naipe não
Mundial, coube a Luís Rodolfo menos vigoroso de
Vilhena, corroborar a importância do possibilidades como
tema do intelectual que em 1927 era
escriturário no Ministério das
exemplifica a dissertação de
Relações Exteriores e, nos anos Juliette Dumont. Ela se propôs
seguintes, passou a representar o
4
país por causa de sua atuação frente A historiadora italiana gentilmente
à Comissão Nacional do Folclore, da enviou-me cópia de seu trabalho
qual foi fundador e um de seus que, na versão eletrônica da revista,
principais animadores. só estaria disponível em 2018.

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“mostrar como a participação do Brasil nestes


cultura e a cooperação organismos5.
intelectual foram usadas O outro núcleo de fontes
como ‘arma diplomática’ consultado, como foi
nas relações adiantado, é constituído pela
internacionais após a correspondência do IICI,
Primeira Guerra mundial, arquivada na UNESCO e
especialmente pelo Brasil, envolvendo intelectuais e
um quadro particular que diplomatas, brasileiros e
é o do Institut europeus e os respectivos
International de organismos que representam.
Coopération Intellectuelle Assim, cabe introduzir
(IICI), organismo brevemente a constituição
dependente da Sociedade destes grupos e as
das Nações, ancestral da personalidades que neles
Unesco.” (DUMONT, 2008: trabalham, tarefa empreendida
16) a partir da consulta às obras
elencadas acima.
Ou seja, a autora estuda
sobre tudo a diplomacia Os brasileiros na
cultural do Brasil que, a organização da Sociedade
exemplo de outros países se das Nações
valeria daquele organismo
para aproximar-se também O fato da
política, comercial e correspondência de Mário de
economicamente das nações Andrade, Luciano Gallet,
europeias. Manuel Bandeira, Renato de
Dentre os trabalhos Almeida e Elsie Houston não
desenvolvidos no Brasil sobre explicarem qual o destino das
tema tangente ao que me contribuições preparadas pelos
ocupa, o de José Armando três estudiosos brasileiros que
Zema Resende objetiva estavam no Brasil para o
“investigar a participação Congresso de Praga, em
brasileira nas atividades da detrimento do trabalho da
Commission Internationale de
Coopération Intellectuelle 5
Rezende, José Armando Zema de.
(CICI) e do Institut A cooperação intelectual
Internationale de Coopération internacional da Sociedade das
Intellectuelle (IICI) nas Nações e o Brasil (1922-1938):
décadas de 1920 e 1930” dinâmicas de um processo. Brasília
trazendo, entre outros, 2013, Programa de pós-graduação
em História, UnB. Dissertação. Veja-
documentação generosa de se, especialmente, os anexos 3 e 4,
apoio na forma de Anexos. ou melhor, “A cooperação intelectual
Entre eles, destaco dois que e a Liga das Nações, por Hildebrando
são úteis para se entender a Accioly” e “Regimento interno da
Comissão Nacional de Cooperação
Intelectual do Brasil, 1926”, p. 98-
105.

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cantora, dá origem também à Diretor Geral do Departamento


questão sobre qual a Nacional de Ensino e residente
representatividade do país no no Rio de Janeiro, assinava
quadro da organização como “Président de la
internacional. Embora este comission national brésilienne
tema seja relevante para a de cooperation intellectuelle”.
musicologia da década de Mencionado nas cartas de
1920, cabe aqui resumir o Luciano Gallet e de Renato de
assunto apontando os aspectos Almeida, cabia a ele esclarecer
principais. as dúvidas encaminhadas
Com o final da Primeira àqueles que foram convidados
Guerra (1914-1918), o Brasil para escrever para o
participa da Conferência de Congresso.
Paz (1919), em Paris, na Edgard Roquette-Pinto,
condição de único país latino- peça fundamental no diálogo
americano a ter entrado no entre o IICI e o Brasil,
conflito internacional professor assistente de
auxiliando, consequentemente, Antropologia no Museu
na elaboração do projeto de Nacional (Rio de Janeiro),
organização da Sociedade das responsável pelos primeiros
Nações (DUMONT, p. 35). registros de cantos indígenas
Assim, em agosto de 1922, a realizados por brasileiro e
Comissão de Cooperação fundador da Rádio Sociedade,
Intelectual se reúne pela para mencionar muito pouco
primeira vez tendo o brasileiro de sua impressionante
Aloísio de Castro entre seus biografia, é referido como
doze membros. Dois anos após “professeur et chef d’
um segundo Instituto é criado, anthropologie” e, como Aloísio
à luz da Sociedade das de Castro, Membro da
Nações, desta vez em Paris, o Academia Brasileira de Letras.
Institut Internationale de Em 1928, no entanto, o
Coopération Intellectuelle, Brasil não mais tinha assento
inaugurado em janeiro de fixo nos colegiados da
1926. Ali também tomava Sociedade das Nações, a não
assento o brasileiro Aloísio de ser através da representação
Castro. Neste mesmo ano o de delegados, dentre os quais
Brasil cria sua Comissão destacam-se Elysée
Nacional de Cooperação Montarroyos e Alberto Rangel,
Intelectual em cujo regimento ambos moradores em Paris, e
interno está presente, além que aparentemente têm a
dele, o diretor do Museu função de localizar os
Nacional, E. Roquette –Pinto. estudiosos e instituições do
Por ocasião da Brasil que poderão participar
organização do Congresso de
1928 Aloísio de Castro,
Membro da Academia
Brasileira de Letras, médico,

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do Congresso buscando apoio sua ausência junto ao


em Aloísio6. compatriota Elysée
Do lado europeu, o Montarroyos, que o indicara
interlocutor mais presente na para a conversa em gabinete.
correspondência entre o IICI e Semanas depois, a 23 de maio
o Brasil é Richard Dupierreux, de 1927, Dupierreux escreve
que em fevereiro de 1927 dois ofícios, de teor
assinava como Chef de la semelhante, para Edgar
Section des relations Roquette-Pinto e para Renato
artistiques, passando a de Almeida9, explicando que a
Secrétaire Génerale du Bureau Comissão Internacional de
Permanent du Congrés des Cooperação Intelectual da
Arts Populaires. Sociedade das Nações decidira
No tocante à organização fazer um Congresso
do evento em si outros atores Internacional de Artes
parecem ter exercido papéis Populares, no início de 1928,
predominantemente no campo cujos detalhes sobre as
intelectual, como Arnold Van modalidades de participação e
Gennep, conselheiro científico a temática estavam na
do Congresso (DUCCI, p. 142). publicação anexada. Mas
adianta que o Bureau
A organização do permanente esperava contar
Congresso em Paris com o apoio das seções locais,
constituídas em cada país, e
Segundo o dossiê que tanto o nome dele quanto
arquivado na Unesco7, Richard o de Renato de Almeida
Dupierreux tenta reunir-se tinham sido indicados por
com Alberto Rangel, um dos Gabriela Mistral, escritora
representantes do Brasil no chilena e Secretária do IICI.
IICI, em fevereiro de 19278. Solicita, assim, que tal seção
Morador em Paris, mas seja formada em comum
impossibilitado de comparecer acordo com a Comissão
à reunião, Rangel desculpa-se Internacional de Cooperação
polidamente e solicita justificar Intelectual do Brasil e que, no
prazo de quatro meses,
6
escreva dizendo quais temas
Veja-se principalmente Dumont e
Zema acerca da discussão sobre a
seriam discutidos e enviados
saída do Brasil da Sociedade das para o Congresso dentre Artes
Nações e do IICI. Plásticas e Decorativas,
7
Após localizar a documentação de Canção, Dança, Música e
interesse pelo catálogo eletrônico do
Arquivo da Unesco, contei com a boa
9
vontade e solicitude de seu Diretor, Ofício de 23 de maio de 1927,
Alexandre Contelle, e de Pedro RD/RG-20-V, G/XXIV/34, para E.
Fragelli, que fotografou todo o Roquette-Pinto e ofício de mesma
dossiê. Agradeço aos dois. data, sem numeração, em
8
Carta datada de Paris, 8 de G/XXIV/34; idem, papel timbrado do
fevereiro de 1927, sem número de IICI, número 2940, para Renato
cota, G/XXIV/34. Almeida.

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Teatro. Para Renato de só, fizera publicar em jornal


Almeida solicita entrar em brasileiro programação
contato com Roquette-Pinto, recebida da França e envia
mas esclarece que caso ele cópia do periódico,
não possa participar infelizmente sem a
pessoalmente, envie sua identificação e sem a data.
comunicação, pois será lida. Pelo que se acompanha
Em junho de 1927, a partir dos registros do
quando J. Luchaire – Diretor mesmo Arquivo, a
do Institut Internationale de correspondência entre o
Coopération Intellectuelle - Instituto sediado em Paris e o
escreve para Aloísio de Castro, grupo de intelectuais
o presidente de nossa brasileiros fica suspensa até 19
Comissão, envia o programa de janeiro de 1928, quando
do Congresso esclarecendo Elysée Montarroyos escreve
que os comitês nacionais para Van Gennep11 solicitando
estavam sendo montados pelo uma reunião para
Bureau permanente que, por esclarecimentos sobre o
sua vez, já entrara em contato Congresso. Embora não se
com Renato de Almeida e saiba o que eles conversaram,
Roquette-Pinto10. Mas antes dois dias após Van Gennep,
mesmo que o médico Conselheiro Científico do
respondesse o apelo, a 19 de Congresso, escreve para H.
agosto de 1927 R. Dupierreux Pernot dizendo ter sabido,
envia novo ofício a Roquette- através da senhorita Elsie
Pinto corrigindo a data da Houston, que o amigo estava
realização do Congresso para o estudando música popular do
início de outubro de 1928 e Brasil e pretendia ir a Praga12.
solicitando que assim que os No papel de Conselheiro
trabalhos do comitê brasileiro estava justamente reunindo os
estivessem prontos, fossem colaboradores e pedindo os
enviados para ele. títulos dos trabalhos. Uma vez
Embora não se saiba que quase nada sabia da
quanto tempo levou para que participação do Brasil (“Vous
Roquette-Pinto recebesse este
ofício, fato é que a 29 de 11
Carta datada de 19/01/28, s/n.,
agosto de 1927 Aloísio de G/XXIV/34.
Castro responde a Luchaire 12
Ofício datado de 21/01/28, VG/RA
explicando que já entrara em – 19 – I, G/XXIV/34. Em folha
contato com Roquette-Pinto e anexada ao Dossiê há um datiloscrito
com Renato de Almeida e, completado a lápis e tinta com o
título e a autoria da obra de
além disso, distribuíra os Roquette-Pinto, de 1917, Rondônia,
impressos que recebera com o bem como o nome e endereço de
programa do Congresso. Não Elsie Houston, moradora no número
25 da Rue St James, Neully sur
Seine. Confirmando a indicação oral,
10
Ofício de 8 de junho de 1927, o lembrete a lápis também registra
ES/RG – 26, G/XXIV/34. “Racomandée par Poë”.

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ne serez pás etonné pessoalmente. Seu objetivo é


d’apprendre que le Brésil ne apresentar os Arquivos da
m’a donné encore que fort peu Palavra que em breve serão
de chose.”) informa que se a parte do Museu da Palavra e
comunicação fosse feita pela do Gesto e para o qual
moça, seria classificada como pretende tomar a
oriunda deste país, caso responsabilidade de publicar
contrário, se ficasse a cargo de cantos e melodias populares.
Pernot, ficaria na seção da Tendo assinado contrato com a
França. casa Geuthner para coleção
As dúvidas de semelhante – empreendimento
Montarroyos serão respondidas de porte internacional –
duas vezes porque a 27 de entende, de antemão, que a
janeiro, além de oferecer data direção do projeto deva ser
próxima para encontro parisiense. Neste sentido,
pessoal, Van Gennep escreve tinham acabado de assinar um
explicando que o Brasil estava contrato de 15 anos com a
atrasado nas tratativas, casa Pathé e revela o projeto
embora Roquette-Pinto e acalentado:
Renato de Almeida já tivessem “Espero ter em
sido contatados, mas que outubro um primeiro
graças à senhorita Elsie fascículo, talvez aquele de
Houston e com a colaboração Melle Houston. Meu
de Pernot, “Directeur des propósito seria apresentá-
Archives de la parole à la lo e de fazer que Melle
Sorbonne”, ele faria uma Houston cante uma
comunicação em Praga “que canção após se escutar o
sera je crois très intéressant.” disco correspondente,
Não é possível saber se porque naturalmente nós
Montarroyos pretendia gravaremos os discos e é
interferir favoravelmente a a partir dos discos que
Elsie Houston que, no entanto, será feita a notação13.”
não o necessitava. Cópia de Não é, portanto,
carta de H. Pernot para van Melle Houston que fará a
Gennep, datada de 5 de comunicação, mas eu
fevereiro de 1928, não deixa mesmo. É provável que se
dúvidas quanto ao interesse encontre em Praga uma
que nutria pela presença de senhora encantadora
sua “voz” em Praga. A carta de (“dame enchantée”) de se
Pernot é de fato importante a escutar Melle Houston por
ponto do Arquivo do IICI, à ocasião de uma das
época, ter mantido uma cópia numerosas recepções que
datiloscrita.
Pernot fica feliz com a 13
Em 1911, por ocasião da fundação
possibilidade de participar do dos Arquivos da Palavra na
Congresso mas não encontra Sorbonne, por Ferdinand Brunot, o
linguista já contava com a parceria
tempo para conversarem de Emile Pathé.

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acompanham todos os na qualidade de “Chef de la


Congressos. Dizem-me Section des Relations
que avoz de Melle Artistiques”, escreve para Elsie
Houston é muito bonita e Houston, ao que parece
que suas melodias são animado com as perspectivas
interessantes, mas eu da participação dela em Praga.
ainda não a ouvi.” Diz que apesar das
informações de A. van Gennep
E não deixa dúvidas e de Ligné Poe gostaria de,
quanto a seu propósito no pessoalmente, “preciser
início do último parágrafo: “Em certains points touchant la
resumo, o essencial é a participation brésilienne à
apresentação no Congresso notre Congrès.”
dos Arquivos da Palavra – Terceiro e último bilhete
Museu da Palavra e do Gesto. escrito por R. Dupierreux
O resto depende do que naquele dia 6 de fevereiro de
fizermos até outubro. (...)14” 1928, desta vez para A.
Apesar de todos os Rangel, não esclarece muita
preparativos estarem coisa, mas reforça o fato de
encaminhados com Pernot e que E. Montarroyos estava
van Gennep, R. Dupierreux inteirado do assunto, na
responde a E. Montarroyos condição de Delegado do Brasil
dizendo que, em continuidade junto ao IICI. Dupierreux
à conversa pessoal, ele achava talvez pleiteasse alguma verba
interessante apresentar alguns porque diz ter escrito por
pontos relativos à organização sugestão de Montarroyos ao
numerando cinco deles, a saber que ele, Rangel,
saber: programa, local e data “pourriez nous être à cet egard
do Congresso; a importância d’un grand secours, grâce à
da participação do Brasil; que votre connaissance de la
desde o ano anterior o IICI question.” Pela frase
entrara em contato com imediatamente anterior se
Roquette-Pinto e com Renato subentende que “a questão”
de Almeida; que mesmo seja justamente a participação
aguardando presença brasileira, mas não
expressiva do Brasil, aqueles necessariamente o dinheiro.
que não pudessem participar Apesar também de
pessoalmente poderiam enviar mensagens tão assertivas a
seus textos, preferentemente respeito da participação de
em francês ou inglês; Elsie Houston no Congresso,
finalmente, que a programação não se pode afirmar que ela
anexa poderia dirimir dúvidas. tenha ido para Praga ler o
No mesmo dia, R. trabalho ou cantar, o que será
Dupierreux, que agora assina discutido adiante.

14
Carta datada de 5/2/1928 em
carimbo, sem número, G/XXIV/34.

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A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

O Congresso na Como também foi dito,


correspondência de Mário na pasta com a documentação
de Andrade brasileira hoje preservada pela
UNESCO a cópia do jornal com
Como foi dito a publicação, em português,
anteriormente, no início de divulgando os propósitos do
1928 um dos temas que anima encontro europeu não traz a
a correspondência de Mário de indicação do jornal que
Andrade com vários noticiou o evento, mas é
interlocutores é a participação curioso que Mário de Andrade
dele no Congresso de Artes só tenha sido notificado a
Populares, diálogo que na voz respeito em carta do dia 10 de
de Luciano Gallet trata da fevereiro de 1928. É quando
distribuição de assuntos que Renato de Almeida informa ter
eles estudariam para as suas sido “(...) nomeado, com
respectivas Memórias, textos Roquette-Pinto para fazer
que seriam lidos e discutidos parte da comissão brasileira
por outros, uma vez que em (...)” para prepararem a
momento algum eles tenham contribuição do país,
alimentado a expectativa de solicitando ao amigo o envio
viajarem para a Europa. de um trabalho dele “(...) sob
Embora Renato de Almeida qualquer aspecto, de música
também se correspondesse popular (NOGUEIRA, p. 217)”
com Mário de Andrade e da Acrescenta que pediria o
mesma forma tenham mesmo a Luciano Gallet e que
conversado sobre o Congresso, ele, Renato, também faria
o teor do assunto entre estes algo, sugerindo ao musicólogo
dois é diverso. Sendo este o paulista escrever sobre a
mediador do convite feito pelo influência negra na música
Comitê brasileiro para que os popular, mesmo frisando a
dois musicólogos – Luciano e liberdade para a escolha do
Mário - participassem do tema a ser estudado.
evento, tais cartas auxiliam a Embora a resposta de
entender as tratativas para Mário de Andrade ao convite
que o país figurasse na reunião de Renato tenha se perdido,
internacional porque cabe a pela tréplica de 18 de fevereiro
Renato buscar os (NOGUEIRA, p. 218) percebe-
esclarecimentos sobre o se que o musicólogo decidira
tamanho dos textos, escrever sobre um conjunto de
características da publicação, melodias para serem
cronograma, entre outros. publicadas, mesmo não
Quero destacar, no entanto, sabendo qual deveria ser a
que a discussão sobre os extensão do trabalho, dúvidas
estudos sobre a música a serem dirimidas junto a
popular do Brasil ocorriam, Aloísio de Castro.
naquele 1928, com Luciano Assim, a carta que Mário
Gallet. de Andrade envia para Luciano

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FLÁVIA CAMARGO TONI
A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

Gallet, a 28 de fevereiro de enviara o convite diretamente


1928, esclarece que ele não para Roquette-Pinto e para
queria escrever sobre a Renato de Almeida, pela carta
influência negra na música de Gallet se entende que,
brasileira, estava interessado embora a comissão nacional
no estudo de um conjunto de tenha sido notificada sobre o
melodias de bumba-meu-boi evento em julho de 1927, a
que acabara de enviar ao primeira reunião deles, com
amigo compositor. Está Roanld de Carvalho, se dera
animado e conta do convite apenas em fevereiro do ano
feito por Renato de Almeida seguinte. E Gallet
para colaborar “(...)pra complementa:
Exposição de Arte Popular de Resultou um plano de
Praga. Estou com idéias de dar ação:
com introdução e comentários Roquette – Índios
breves ‘50 Elementos (uma memória)
15
Melódicos do Brasil’ . (...)” Ronald – Danças
A 8 de março, sem (Idem)
resposta e ansioso para dar Renato – Falaria a
corpo ao planejado, Mário de nós dois, reservando-
Andrade cobra as informações, se um assunto geral,
respostas adiadas enquanto a escolher depois.
Luciano Gallet buscava (idem)
detalhes sobre o tema, pois Resultado: o Brasil
também fora convidado para concorrerá à
participar do mesmo evento16. Exposição Universal
Gallet explica que a exposição de Arte Popular em
era organizada pela Liga das Praga, com meia
Nações e que esta incumbira, dúzia de memórias,
no Brasil, o Dr. Aloísio de sobre assuntos mais
Castro que, por sua vez, ou menos em estado
solicitara auxílio de Renato de ainda de nebulosa17.
Almeida para falar com eles
dois. Sem saber que a Acrescenta que a Liga
organização do encontro das Nações – leia-se,
Sociedade das Nações - não
15
Carta de Mário de Andrade para
tinha dinheiro, que o Dr.
Luciano Gallet. Biblioteca Alberto Aloísio de Castro talvez fosse
Nepomuceno, Escola Nacional de para a Europa por sua conta e
Música, Rio de Janeiro. esclarece que Ronald de
16
Bilhete sem data teve sua Carvalho lhe dissera não ter
cronologia determinada no confronto
com os documentos e posteriores;
17
manuscrito a tinta preta, folha Carta de Luciano Gallet para Mário
destacada de bloco, 10,4 x 14 cm. de Andrade, autógrafo a tinta preta,
Biblioteca Alberto Nepomuceno, papel branco, filigrana, 5 folhas, 27,8
Escola Nacional de Música, x 20 cm. Arquivo do Instituto de
Universidade Federal do Rio de Estudos Brasileiros, Universidade de
Janeiro. São Paulo.

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A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

sido convidado para escrever Mário de Andrade responde em


sobre danças e sim sobre carta não datada, posterior a
poesia popular. Sem tempo 10 de março, no entanto,
para o trabalho, indicaria aceitando a troca, ou seja,
Leonardo Motta enquanto ele, Gallet escreveria sobre a
Gallet, prometera a Renato de música de origem africana e
Almeida escrever ele ficaria com o bumba-meu-
estabelecendo “um limite de boi. Honesto, acredita que o
assunto para não repetirmos a amigo esteja em
mesma coisa.” Sabia que Mário desvantagem, pois o material
pensara em “‘50 elementos para o estudo do bailado é
melódicos’ entre os quais o abundante e variado, embora
Bumba (...)”, mas quer não menos importante.
distribuir os assuntos Discorda, no entanto, de
planejando enviar melodias de Luciano Gallet:
natureza vária para o amigo – “Quanto ao caso de
“o complemento do Boi, e não dar as melodias pra
outras coisas” – pedindo em Praga você não tem
troca matéria sobre música de razão. Pouco importa que
origem africana. os estrangeiros deformem
a brasilidade musical.
Podia-se então Afinal das contas vamos e
delimitar: venhamos: brasilidade
Roquette Pinto – tradicional nem se pode
Índios falar que certas músicas
M Andrade – estranhas do Villa sejam
Portugueses brasileiras, a principiar
L. Gallet – Negros pelas próprias Cirandas
Renato – assunto em que tem coisa própria
geral (?) por demais (e sem pátria)
?? – Poesia e temas tradicionais mas
popular18 caracteristicamente
portugas na maioria. E é
Os planos avançam na justamente a ‘estranheza’
idealização de Luciano Gallet bárbara de certas obras
que, ao entender que os do Villa que está fazendo
trabalhos seriam publicados sucesso brasileiro (!) na
em Anais, teme a possibilidade Europa. Aliás na
de que os temas por eles Introdução brevíssima de
estudados fossem usados por meu trabalho dou uns
compositores estrangeiros. toques sobre a ausência
de Brasil nas peças
18
Carta de Luciano Gallet para Mário estrangeiras sobre Brasil.
de Andrade, autógrafo a tinta preta, Quanto a guardar os
papel branco, filigrana, 5 folhas, 27,8 temas acho que não
x 20 cm. Arquivo do Instituto de temos direito. Pelo menos
Estudos Brasileiros, Universidade de
São Paulo.
eu não sou músico eu não

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A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

tenho. E acho veemência, ele prefere até


sinceramente que você publicar o resultado de sua
não tem também. O tema pesquisa “por conta própria e
não é nada em música daqui a uns quatro meses” 20.
artística e você sabe tão Mesmo não tendo sido
bem como eu quanto datada, pela temática é fácil
certos temas populares situar a carta seguinte no
foram repisados por plano geral da cronologia
compositores. O Ein feste destes documentos pois traz
Burg, de Lutero, não teve as explicações de Renato de
polifonista (e até Almeida para as dúvidas
Wagner!) que não se cogitadas acima. Após
servisse dele. Revele os consultar Roquette-Pinto ele
de você que isso adianta pode informar que a eleição
pro conhecimento geral dos trabalhos a serem lidos no
nosso. (...)19” Congresso seria feita pelos
comitês nacionais, no caso
Mário de Andrade brasileiro, pelo mesmo grupo
trabalha no assunto, embora que o convidara meses atrás.
esteja sobrecarregado de Ao que se sabia, os trabalhos
ocupações, e conta para Gallet seriam publicados nos Anais e
já ter buscado informação o prazo de encaminhamento,
junto a Renato de Almeida por em duas vias datilografadas,
duas vezes, pedindo agora seria até agosto, embora
socorro ao amigo, pois precisa Aloísio de Castro fosse pedir
saber rapidamente se o texto a prorrogação de um mês
ser enviado será avaliado por (NOGUEIRA, p. 220).
parecerista e, se impresso, Outro documento de
qual o formato da edição. Sua Mário de Andrade deve ter
agenda está repleta de chegado imediatamente
compromissos e, a depender porque a 15 de março Almeida
da data de entrega no Rio de explica ter respondido –
Janeiro, ele poderia, “Maldito correio!” - conversara
eventualmente, não ter que com Luciano Gallet sobre o
sacrificar os compromissos já que enviar, e repete temor
assumidos, como as aulas ou idêntico ao do compositor:
os estudos. Mas quanto à
questão do “controle” do texto “(...) Não se
por ele elaborado, a tratando de conferência e
possibilidade é negada com sim, de exposição, creio

19 20
Carta de Mário de Andrade para Carta De Mário de Andrade para
Luciano Gallet, sem data, Luciano Gallet, sem data, manuscrito
datiloscrito, fita azul, papel linho, 21 a tinta, folha de caderneta de bloco,
x 27,8 cm. Biblioteca Alberto 10,5 X 14cm. Biblioteca Alberto
Nepomuceno, Escola Nacional de Nepomuceno, Escola Nacional de
Música, Universidade Federal do Rio Música, Universidade Federal do Rio
de Janeiro. de Janeiro.

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A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

que devemos enviar uma orientação a Manuel


apenas indicações, Bandeira porque em princípio
mesmo porque seria pensara expor “sem crítica, a
temerário entregar não ser umas observações
pesquisas preciosas à leves en passant” oitenta e
curiosidade, nem sempre poucos documentos que
orientada, de todo colecionara em texto intitulado
mundo. A propósito, o “Elementos melódicos
Gallet me fez brasileiros”. Ao saber que o
ponderações, que te trabalho não seria publicado
repetirá, e me pareceram no Brasil recuara, pois
muito plausíveis. Em acreditava que o empenho
suma, faze como melhor seria válido principalmente
julgares.(...) (NOGUEIRA, entre os conterrâneos. E mais,
p. 221)” Gallet e Renato consideravam
que não era prudente fornecer
No dia 22 de março melodias completas “pros
Gallet escreve, Renato de músicos europeus”.
Almeida informara já ter Defendendo que o resultado de
respondido duas vezes sua coleta era de “domínio
aprovando o projeto dos dois universal” e tinha “horror a
musicólogos e, apesar da todo particularismo
insistência e de ter telefonado nacionalista”, decepcionado ao
sucessivamente, só podia ter que refazer seus planos, no
acrescentar que o Congresso entanto, temia que os nossos
seria em outubro e que os músicos não conseguissem
trabalhos deveriam estar comprar a edição – “Ficava um
prontos em julho daquele trabalho exclusivamente pra
192821. Gostaria, Europa, onde os músicos já
particularmente, de conhecer estão tradicionalizados na
as melodias que Mário de pesquisa.” – mas ainda não
Andrade estudava e a 31 de desistira da colaboração.
março reforça a solicitação22. Explica que ele e Luciano
Com dúvidas sobre o Gallet distribuíram as
trabalho a concluir, a 31 de responsabilidades – ele falando
março Mário de Andrade pede sobre a música de origem
africana e Mário sobre a de
21
Carta de Luciano Gallet para Mário origem portuguesa – pede a
de Andrade, autógrafo a tinta preta, opinião de Bandeira sobre o
papel branco, filigrana, 2 folhas, 25,7 assunto. Pondera sobre a
x 20,5 cm. Arquivo do Instituto de vontade antiga de fazer um
Estudos Brasileiros, Universidade de
São Paulo.
“livrinho” sobre melodias do
22
Carta de Luciano Gallet para Mário bumba-meu-boi, mas não
de Andrade, autógrafo a tinta preta, encontrando a solução quer
papel branco, filigrana, 1 folha, 27,8 uma resposta urgente
x 20 cm. Arquivo do Instituto de (ANDRADE e BANDEIRA, 2001:
Estudos Brasileiros, Universidade de
São Paulo.
382).

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FLÁVIA CAMARGO TONI
A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

O apoio do amigo não estar atrasado com a tarefa,


falta e Bandeira responde a 5 solução adiada por outras
de abril aconselhando que semanas ainda quando, a 16
Mário enviasse “a coleção de de maio, pede que entregue
‘Elementos melódicos uma cartinha para Renato de
brasileiros’ já pronta” Almeida23:
guardando a energia para “Andei ajuntando
outros trabalhos que já haviam documentação pro meu
sido anunciados e discutidos trabalho sobre “Influência
entre eles (ANDRADE e Portuguesa na Música
BANDEIRA, 2001: 384). Mas Popular do Brasil” e só
dois dias após, ou ele não anteontem principiei
recebera ainda a carta escrevendo. Estou
conciliadora, ou não aceitou a espantado, em vez de
sugestão escrevendo, desta memória é capaz de sair
vez, a Luciano Gallet: livro, da maneira que aqui
“(...) O que decidi é vai. Peço pra você
isto. Não mando mais consultar o Roquette Pinto
como pretendia uma sobre isso. Se o trabalho
exposição de melodias pra pode sair grandão. Se
Praga. Não é por não puder continuo. Se não
revelar a estrangeiros o puder darei só
que é da gente porém documentação e estudo
porque o trabalho sendo sobre “Influência
publicado num Anais de Portuguesa nas Cantigas
Exposição e em língua Infantis do Brasil”. Faz
estrangeira fica quase favor: me responde com
impossível de aquisição urgência pra que não
pra músicos brasileiros, esteja perdendo trabalho
ora embora eu reconheça a toa.”
que as nossas melodias
podem ser aproveitadas Também sobrecarre-
por todo o Universo gado, Gallet só consegue
reconheço antes de mais responder no dia 20 de maio,
nada que a nós é que elas aproveitando para corrigir o
interessam diretamente e
são de necessidade 23
Carta de Mário de Andrade para
imediata. Vou pois fazer Luciano Gallet, manuscrito a lápis
uma Memória sobre a preto, papel tipo jornal, 23,4 x 29,4
Influência de Portugal na cm. Biblioteca Alberto Nepomuceno,
Cantiga popular do Brasil. Escola Nacional de Música,
Universidade Federal do Rio de
(...)(ANDRADE e Janeiro. Anexo: Carta para Renato
BANDEIRA, 2001: 384)” de Almeida, manuscrito a lápis preto,
papel tipo jornal, 23,4 x 29,4 cm.
A 18 de abril, ao enviar Biblioteca Alberto Nepomuceno,
as melodias prometidas a Escola Nacional de Música,
Universidade Federal do Rio de
Luciano Gallet, Mário conta Janeiro.

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FLÁVIA CAMARGO TONI
A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

amigo por acreditar que ele nossos, com mais de 100


trocara os nomes das pessoas melodias inéditas.
e, ao invés de escrever Aloísio Trabalho que ficou
de Castro escreveu Roquette- inteiramente inútil porque
Pinto. Mas podia adiantar que carece refazer
os textos deveriam ser inteiramente pra servir
breves24. pro Brasil. Era coisa pra
No dia seguinte Renato estranhos. Depois
de Almeida repete, por carta, a principiei o “Influência
mesma informação transmitida portuguesa na música
pelo amigo comum, ou seja, popular brasileira”.
sobre a brevidade das Mandaram me falar então
contribuições que não que o trabalho tinha que
deveriam exceder, na leitura, ser curto. O meu dava um
os vinte minutos, mas que livro. Ia dar porque parei
deveriam ser textos e mandei perguntar.
concludentes porque após as Então escrevi, tirando
discussões em plenária tudo elementos desse segundo,
seria publicado em francês e um “Influência portuguesa
em inglês. (NOGUEIRA, p. na roda infantil brasileira”.
219) Agora vejo que não serve
Na correspondência porque segundo o Renato
entre Mário de Andrade e me informou ontem os
Manuel Bandeira não se ouve trabalhos serão teses e
falar sobre a pesquisa para o não memórias, terão
Congresso nas semanas conclusões pra serem
seguintes, mas no dia 2 de discutidas no congresso.
junho ele desabafa com o Mandei falar que desistia,
amigo poeta: ora sebo (ANDRADE e
“Acabo de desistir BANDEIRA, 2001: 390)25!
de colaboração pra Praga.
Esses cariocas ou Renato de Almeida
carioquizados são uns p... saberá da decisão dias depois
de m... Cada feita vem porque escreve conciliador:
um pedaço de informação “Não foram os
me estragando o já feito. descuidos cariocas, como
Imagine que escrevi 3
trabalhos e cada 25
Em nota para a edição da
informação nova nenhum correspondência de Mário de
serviu! Primeiro fiz uma Andrade e Manuel Bandeira Marcos A
exposição de elementos de Moraes acrescenta que o trabalho
foi parcialmente publicado no Diário
Nacional de 18 e 19 de maio de
24
Carta de Luciano Gallet para Mário 1929: “Influência portuguesa nas
de Andrade, autógrafo a tinta preta, rodas infantis do Brasil - (Memória
papel branco, filigrana, 1 folha, 27,8 enviada ao Congresso Internacional
x 20 cm. Arquivo do Instituto de de Arte Popular de Praga) - Início e
Estudos Brasileiros, Universidade de conclusão.” (ANDRADE e BANDEIRA,
São Paulo. 2001: 390)

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FLÁVIA CAMARGO TONI
A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

atribui, que motivaram as publicado no segundo volume


informações pingadas, dos Anais.
mas o próprio Bureau de Na correspondência de
Paris que só as remeteu Luciano Gallet, Mário de
tardiamente. Como o Andrade, Renato Almeida e
trabalho deve ser uma Manuel Bandeira a dinâmica é
síntese, você o fará com outra, as discussões sobre o
rapidez. Se não fizer formato do trabalho e os
conclusões, isso não deve conteúdos das participações de
importar muito e por isso cada um deles estende-se até
não deixará de ser o mês de junho e isto talvez
publicado, que é o que explique o fato dos trabalhos
interessa ao Brasil. dos três musicólogos não
Porque eu coloco essa terem sido publicados, ou seja,
questão num ponto de eles teriam chegado tarde
vista nacional. demais às mãos do comitê
(...)(NOGUEIRA, p. 220)” organizador.
Na pasta que contem o
A tristeza não deve ter dossiê brasileiro há um
durado muito tempo porque telegrama assinado pelo
em carta não datada, Renato “Delegado” brasileiro, Elysee
de Almeida não contem a Montarroyos, e datado de 26
alegria ao comemorar a de setembro de 1928,
chegada do ensaio onde Mário informando que o Governo do
de Andrade estuda “(...) como Brasil enviaria um “Ministro” a
se fez a infiltração musical Praga o que faria supor tratar-
portuguesa (...)” (NOGUEIRA, se de E. Roquette-Pinto devido
p. 221)26. à presença dos objetos
Considerando-se as indígenas na exposição27. No
discussões sobre a entanto, abaixo das fotografias
participação do Brasil no que reproduzem os
Congresso de Praga pelo IICI instrumentos musicais
sob o ponto de vista dos dois expostos em Praga, a
conjuntos documentais indicação de que as legendas
percebe-se que teriam sido elaboradas por
cronologicamente são Elsie Houston levam à
estanques. Nos primeiros dias conclusão de que o Roquette-
de fevereiro de 1928 Richard Pinto não teria viajado para a
Dupierreux e van Gennep já Europa. A se esclarecer, ainda,
haviam decidido que Elsie se os valiosos objetos foram
Houston participaria do enviados para a França ou se
encontro, embora nada chegaram diretamente no local
tenham dito sobre o texto de em que seriam expostos.
sua autoria que se vê

27
Telegrama datado de 26/09/1928,
26
Carta sem data. Inserção provável. PW/S/MA, G/XXIV/34.

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FLÁVIA CAMARGO TONI
A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

Elsie Houston e o dados biográficos dos quais


Congresso de Praga dispomos no momento, saber
se Elsie Houston apresentou o
Mais conhecida como texto publicado ou se cantou;
cantora, Elsie Houston gravou finalmente, se a artista era tão
discos que se celebrizaram de próxima a Mário de Andrade
imediato e publicou os como demonstram as cartas
resultados de duas pesquisas por ela enviadas ao amigo em
importantes, mas estas não 1926, porque não o informou
lhe trouxeram o sobre sua participação no
reconhecimento devido. A Congresso?
dissertação de Mestrado de Aliás, próxima ela
Isabel Bertivelli, como já pode também o foi de Luciano
ser observado, conta entre os Gallet, que acompanhou-a em
raros trabalhos que organizam recitais, pois teria sido
os dados a respeito da vida e apresentada a ele pela amiga
da obra da artista carioca que comum e colaboradora da
nasceu em 1902, no Rio de Sociedade Glauco Velasquez,
Janeiro, filha de pai norte- Stela Parodi, com quem
americano e mãe brasileira estudou entre 1917 e 1921.
casando-se, em 1927, com o Nos idos de 1928 a carreira de
poeta francês Bénjamin Péret. Elsie Houston era tocada por
Mesmo que não seja este o bons ventos porque em Paris
espaço para ampliar o que se torna-se intérprete importante
sabe sobre a artista que apresentando-se ao lado de
faleceu nos Estados Unidos em artistas famosos nos concertos
1943, é necessário recorrer a de Villa-Lobos, por exemplo,
alguns aspectos da biografia na Salle Gaveau, no dia 3 de
dela para se poder entender maio.
certos dados dos documentos Como foi visto
do dossiê brasileiro arquivado anteriormente, em fevereiro
pelo Institut International de de 1928 Hubert Pernot
Coopération Intelectuelle, bem comemora a indicação para
como tentar entender quais os participar do Congresso de
critérios do comitê científico do Praga, apontado que fora por
Congresso de 1928 na escolha A. van Gennep, pois já era
do texto que foi publicado nos sabido que ele estava em
Anais. Entre as respostas que contato com Elsie Houston. Na
idealmente esclareceriam verdade, ele estava
nossas indagações estão, por empenhado na edição de um
exemplo, saber por qual volume com as cantigas
motivo Renato de Almeida, brasileiras coligidas pela
Luciano Gallet e Mário de artista brasileira, assim como
Andrade não receberam as esperava contar com o registro
mesmas orientações para o sonoro de sua voz
encaminhamento de suas interpretando as peças.
“memórias”; tendo em vista os

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FLÁVIA CAMARGO TONI
A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

A carta não deixa nos discos da firma Pathé, mas


dúvidas, Pernot quer fazer a aqui novamente as
comunicação, e não ela, mas o informações são poucas e
texto publicado pela Duchartre conflitantes em relação à
é de autoria dela. Aliás, o cronologia dos fatos. A busca
único texto de autoria de entre os catálogos dos
Pernot no segundo volume dos colecionadores de discos ou
Anais traz as normas estudiosos especializados nos
aprovadas em plenária, catálogos de certas
“Cantos e melodias populares / gravadoras, quando fornece
Resolução adotada pelo algumas datas elas não são
Congresso das Artes seguras. Assim, é sabido que
Populares28”, conjunto de nos últimos anos da década de
alguns artigos dentre os quais 1920 a cantora grava seus
cria-se a Sociedade primeiros discos, tanto pela
Internacional da Música empresa Gramophone, de
Popular, órgão associado ao Paris, quanto pela Columbia,
IICI, e recomenda-se aos do Rio de Janeiro, mas nada se
governos que se proceda às localiza no catálogo da Pathé,
gravações das cantigas que também francesa.
vem desaparecendo nas Scott Kessler e Ward
diversas culturas. Marston reuniram gravações
Não há como saber como raras e originais para
se dá a aproximação entre promovê-las comercialmente
Elsie Houston e Hubert Pernot, fornecendo uma listagem dos
mas o nome dele aparece na discos onde aqueles feitos para
parceria com Philippe Stern, os a Gramophone, de Paris,
dois diretores da Biblioteca trazem a data de 20 de junho
Musical do Museu da Palavra e de 1928, sem a indicação se a
do Museu Guimet, ambos data reporta-se ao trabalho em
responsáveis pela série estúdio ou ao lançamento29.
dedicada a “Cantos populares”, São todas canções de autoria
“Cantos orientais” e “Cantos de Villa-Lobos: Desejo, da
das regiões distantes”, Seresta 10, Na paz do outono,
explicações que encabeçam o da Seresta 6, Realejo, da
livro dela, editado em 1930, Seresta 12 e Estrela do céu é
Chants Populaires du Brésil, lua nova, com
com Introdução assinada por acompanhamento de Lucília
Stern. Villa-Lobos, ao piano. A
Mas Pernot fizera gravação provavelmente
menção clara a um segundo auxilia a estreitar os vínculos
projeto imediato, qual seja, o entre as duas intérpretes como
de apresentar as melodias se sabe de uma carta da
cantadas por Elsie Houston e
29

http://www.marstonrecords.com/hou
28
Art Populaire, op. Cit., vol 2, p. ston/houston_tracks.htm. Consulta
104 feita a 22 de novembro de 2016.

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FLÁVIA CAMARGO TONI
A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

pianista, enviada da França, data precisamente, 26 de


onde ela relembra, a 9 de setembro de 1933, tratando-se
maio de 1929: provavelmente de um lapso
“Você é sempre bem porque uma carta da Victor
lembrada e falada aqui, Talking Machine Company do
por nós e por outras Brasil, datada de 21 de março
pessoas que te conhecem. de 1929, menciona já ter
Já se sabe que choram recebido notícias dobre a
elogios, da beleza, gravação francesa da
elegância, inteligência, Gramophone (BERTEVELLI, p.
sem se contar a parte 205).
artística, esta então… é O “imbróglio” quanto às
elevada ao mais alto grau! datas das gravações dos discos
Não está aqui mas os teus serve para afirmar que não se
discos… (os nossos) tem certeza a respeito do
funcionam todos os encadeamento cronológico dos
domingos e… pedem compromissos de Elsie
bissssssss.” (Grifos de Houston antes de seu regresso
Lucília) (BERTEVELLI, p. ao Brasil. Retomando o fato de
51-52). que buscamos estabelecer a
cronologia dos dados para
Mas em data próxima entender os círculos de
Elsie Houston grava também informação que animam a
no Brasil, desta vez com gênese das colaborações de
acompanhamento de músicos Renato de Almeida, Luciano
populares, sendo um dos Gallet e Mário de Andrade, há
discos voltado quase outro elemento, não menos
exclusivamente para as importante.
melodias que estudara e serão Foi dito que a 3 de maio
editadas por Pernot e Stern. O de 1928 a cantora apresenta-
registro feito para a Columbia, se em Paris e que neste
do Rio de Janeiro, traz Côco mesmo mês Mário de Andrade
dendê, trapiá, Ai! Sabiá da e Manuel Bandeira discutem
mata, O barão da Bahia, Cade qual o melhor formato para a
minha pomba rola, com Gaó, Memória que Mário de Andrade
Zezinho, Jonas e Chaves e quer enviar para o Congresso
correspondem às melodias de de Praga. Pois no dia 21 do
números 6, 33 e 13 de Chants mesmo mês o poeta diz ter
populaires Du Brésil, porque O encontrado “Mme. Houston
barão aparece com o nome de chegada há dois dias de Paris”
Maria Amélia Barros. em concerto de A. Rubinstein e
Porém, enquanto que ela se casara com um
Bertevelli oferece a data de poeta surrealista, Benjamin
1929 para a gravação dos Péret de quem ele sequer sabe
discos da Gramophone onde a grafia correta do nome
está Eh Jurupanã, entre (ANDRADE e BANDEIRA, 2001:
outras, o catálogo americano 390).

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FLÁVIA CAMARGO TONI
A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

A leitura do diálogo restem dúvidas a respeito da


epistolar entre os escritores participação da artista no
amigos não deixa dúvidas certame, criando outra série
quanto à datação, ou seja, de perguntas. A
Elsie Houston vem ao Brasil correspondência entre o Brasil
em maio de 1928, de onde se e o IICI, aparentemente
supõe ela ter regressado à completa, encerra o assunto
França, onde eventualmente nas primeiras semanas de
teria gravado o disco com 1928, data a partir da qual a
Lucília Guimarães Villa-Lobos, questão sobre a presença do
retornando no ano seguinte ao Brasil no Congresso passa a
país, desta vez na companhia ser tema de discussão entre
de seu marido, Benjamin Renato de Almeida, Mário de
Péret. O que não implica que Andrade e Luciano Gallet.
ela tenha participado do Se perseguisse a
Congresso, em outubro de discussão que analisa o
1928. funcionamento do IICI e sua
relação com os países
Conclusões membros, talvez coubesse
construir também a hipótese
A pesquisa nos Anais do de que, tendo em vista que o
Primeiro Congresso de Artes Brasil não mais possuía
Populares realizado em Praga assento na instituição,
entre 7 e 10 de outubro de desinteressou-se de colaborar
1928 demonstra que o Brasil para o sucesso do Congresso.
colaborou com dois trabalhos A hipótese não é débil: apesar
de naturezas diversas, um da comunicação de Elsie
texto crítico, elaborado por Houston ter sido editada nos
Elsie Houston, e uma Anais, apesar de alguns
exposição de instrumentos instrumentos musicais de
musicais indígenas, patrimônio índios brasileiros terem sido
do Museu Nacional do Rio de expostos em Praga, tudo leva
Janeiro. Se o Diretor da a crer que Roquette-Pinto não
instituição, Edgard Roquette- prestigiou o encontro
Pinto, escolheu e embalou os acadêmico. A resposta talvez
objetos, certamente não foi a esteja em se conhecer melhor
Paris porque a identificação a atuação de Aloísio de Castro,
deles, na legenda, leva a o provável “delegado” que
autoria da cantora. representou o Brasil em 1928.
Uma segunda natureza Na pasta arquivada na
de pesquisa, junto ao dossiê UNESCO também não se
brasileiro do Institut logrou localizar
Internationale de Coopération correspondência acusando o
Intellectuelle, que organizou o recebimento dos textos
encontro, traz documentação enviados por Renato de
que reforça alguns dos Almeida, Luciano Gallet e
aspectos acima, embora Mário de Andrade o que, para

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A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

nós, importa principalmente


para o confronto das versões Referências
dos ensaios por eles
elaborados. Mesmo que Maria ANDRADE, Mário de e
Guadalupe afirme não ter BANDEIRA, Manuel.
localizado o texto preparado Correspondência. Edição
por ele, Luciano Gallet organizada por Marcos Antonio
publicou o resultado de sua de Moraes. 2ª Ed. São Paulo:
pesquisa em dois números da Edusp; IEB, 2001
revista Weco e uma versão
pouco diversa em A Bandeira, ANDRADE, Mário de. As
jornal da Associação melodias do boi e outras
Bandeirantes da qual fazia peças. Preparação, introdução
parte30. Como foi dito, o texto e notas de Oneyda Alvarenga.
de Mário de Andrade foi São Paulo; Brasília: Duas
publicado posteriormente em Cidades; INL, 1987.
Música, doce Música. Este
tópico também merece ser ________. Música, doce
a
explorado futuramente porque Música. 2 Ed São Paulo;
o confronto dos textos dos três Brasília: Martins; INL, 1976,
musicólogos, acrescidos pg 81-94.
daquele publicado por Elsie
Houston em 1928, com o BERTEVELLI, Isabel Cristina
programa do Conselho Dias. Elsie Houston (1902-
Científico – leia-se Arnold van 1943): cantora e pesquisadora
Gennep e Henri Focillon - pode brasileira. (Dissertação).
enriquecer a discussão sobre Instituto de Artes da UNESP,
as expectativas da 2000.
representação da imagem da
música brasileira na Europa. DUCCI, Annamaria. Le musée
Finalmente, mesmo que d’art populaire contre le
minha proposta aqui não tenha folklore. L’Institut International
sido discutir exclusivamente as de Coopération Intellectuelle
relações entre os comitês vers le Congres de Prague.
francês e brasileiro que Revue Germanique
organizam nossa participação Internationale, Paris: CNRS,
no Congresso, parece claro 21, 2015.
que A. van Gennep e H. Pernot
souberam aproveitar a ocasião DUMONT, Juliette. L’ IICI et le
para promoverem a criação de Brésil (19243-1946). Le pari
uma nova instituição, o Museu de la diplomatie culturelle.
da Palavra e do Gesto. Paris: IHEAL-CREDAL, 2008

30
Em 1934 a versão completa das GALLET, Luciano. Estudos de
Memórias preparadas por Luciano Folclore. Rio de Janeiro :
Gallet será publicada nos Estudos de Carlos Wehrs, 1934.
Folclore, edição póstuma organizada
por Luíza Gallet e Mário de Andrade.

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A música brasileira e a cooperação intelectual no Congresso de Arte Popular de Praga (1928)
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.172-196, nov. 2016.

HOUSTON-PÉRET, Elsie. Literária e Literatura


Chants Populaires du Brésil Comparada da Faculdade de
recueillie et publiée (...). Filosofia, Letras e Ciências
Introduction par Philippe Humanas da Universidade de
Stern. Paris: Librairie São Paulo.
Orientaliste Paul Geuthner,
1930 ROGAN, Bjarne. Popular
Culture and International
_________. La musique, la Cooperation in the 1930s. In:
danse et les ceremonies Herren, M. Networking the
populaires du Brésil, In: Art International System,
Populaire. Paris: Duchartre, Transcultural Research,
1931, vol. 2, p. 162-165. Springer International
Publishing, 2014, p. 175-185.
NOGUEIRA, Maria Guadalupe
Pessoa. Edição anotada da VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto
Correspondência Mário de e missão: o movimento
Andrade e Renato de Almeida. folclórico brasileiro 1947-1964.
2003. Dissertação (Mestrado), Rio de Janeiro: Funarte; FGV,
Departamento de Teoria 1997.

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