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Sinfonias de Villa Lobos em 1919 e 1920 no Correio da Manhã (Rio de Janeiro)

31 de agosto de 1920, nº7853, p.4.


Sem autoria.
Concertos sinfônicos. Concerto ontem no Municipal organizado pelo Instituto
Nacional de Música. Obras de Nepomuceno (peças da Série Brasileira), Octaviano
Gonçalves (1ª sinfonia, regida pelo compositor), Schumann (concerto para piano, com
Guiomar Novais e Francisco Braga) e Villa-Lobos1.

[O trecho sobre a obra de Villa-Lobos:]

“Chegou a vez do esfingético Villa-Lobos, o acólito fiel de sua


reverendíssima, chamada, em vida, Claude Debussy. O sr. Villa-Lobos subiu ao
pupitre e dirigiu a sua sinfonia, que começa pelo ‘Imprevisto’
A descrição dessa obra, trazida no programa forra-nos de quaisquer outros
esclarecimentos, não proveitosos ao leitor, se este esteve lá.
O imenso talento de que Villa-Lobos é possuidor chega a nos atemorizar.
Afirmo-o (Affirmamol-o) com a máxima lealdade. A inteligência desse compositor
ferve, a nosso aviso, numa ciclópica caldeira de vulcânica lava. As ideias borbulham,
em cachoeiras, são o Niágara impetuoso, desoladoramente catastrófico. Villa-Lobos,
atordoado, em meio de todo o caos, com o cérebro em ebulição, desorienta-se, perde a
bússola, tomba e resvala no abismo.
Debussy é o seu ídolo. Deu para isso e não há quem o detenha no despenhadeiro. Faz
sonatas, danças, cânticos e sinfonias, com um único fito: raspar o ouvido do
espectador.
Faça a gentil leitora essa experiência: pegue uma tira de gorgorão de seda,
passe-a rapidamente pelos dentes semicerrados e aí terá a impressão de calafrio que a
música de Villa-Lobos põe no espinhaço do auditório, o qual vê na orquestra uma
multidão de homens apostados em quem mais arranhe a trompa de Eustachio do
próximo.
Surge, às vezes, uma melodia com aspecto jocundo, bem formada, cor de rosa,
bem falante, insinuante. Mal da um passo, isto é, um compasso, e logo outros
1
Regida pelo compositor, sinfonia que começa com o Imprevisto. Provavelmente a
nº1.
instrumento, intruso, por troça, naturalmente, vem repetir o que ela proferiu, mas
repetir como... Deus do céu... em outra e rebarbativa toada, sobrepondo-se a ela. Uma
repetição que parece remedo.
Nesse gosto vai a música escorrendo, correndo, emparelhando com
tonalidades disparatadas. Quando a mistura híbrida se não faz na melodia, verifica-se
na harmonia. Os acordes trazem tanta afinidade com o canto, como o leitor tem com
Barzabú.
Afinal, a sinfonia de Villa-Lobos não significa senão pachorrenta dedicação de
frade beneditino em acumular dissonâncias sobre dissonâncias, um lamuriar que
nunca se acaba.
O início da sinfonia onomatopaicamente descreve o Cosmos, ao sair do caos,
mas o caos continua a reinar no Adagio, e, quando o poeta, como diz o programa,
chega a possuir a Alma de um artista, o público chega, por sua vez, a possuir a noção
do que seja um ouvido atormentado de desafinações eternas...
Mas, quem sabe... isso que estamos a escrever não será engano nosso ledo e
tredo? É possível. Nesse caso, muitos perdões rogamos ao sr. Villa-Lobos pela nossa
incapacidade intelectual para compreendermos as peregrinas prendas da escola e da
escala debussyana, da qual o jovem compositor é um dos maiores luminares e
propagadores.”
7 de outubro de 1920, nº 7890, p.2.

Rumo à natureza! Sobre o “carinho e entusiasmo” do rei da Bélgica (Alberto) em


relação a nossa natureza.
(assinado por Bastos Tigre)
[O trecho que menciona Villa-Lobos diz:]

“Gostei de vê-lo (o rei Alberto), há dias, quando foi daquele concerto no


Municipal. O maestro Villa Lobos fizera ouvir várias sinfonias futuristas, de arrancar
o couro às caixas e aos bombos; havia dentro da música, orquestrados à maneira do
século XXII p. C., pelas linhas e espaços do pentagrama e ainda para baixo e para
cima, todos os rumores da selva tropical: córregos cantantes, Iguaçus escachoantes,
urros de feras, silvos de cobra, gorjeios de sabiás, zunir do vento pelas ramagens...
nada faltava para dar ao auditório a impressão exata e precisa de uma floresta super-
wagneriana.
O rei ouviu com toda a tenção protocolar o sinfônico barulho e, ao chegar aos
penúltimos acordes, voltou-se para o dr. Pessoa de Queiroz e indagou:
- Tem V. aí a sua baratinha?
- Tenho, majestade.
- Pois então vamos à Tijuca... ouvir música.
E lá se foi sua majestade ouvir a sinfonia autêntica da Cascatinha, dos grilos,
urutáos; e já era madrugada quando se recolheu ao Guanabara, a dormir, sem
pesadelos musicais.”

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