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“Actas dos ateliers do V" Congresso Portugués de Sociologia Sociedades Contemporineas: Reflesividade ¢ Acpi0 ‘Atelier: Artes e Culturas «Arte e sociedade: comunicagaio como processo» Paulo Barroso Introdugio Ao partirmos do binémio arte’sociedade subentendemos, antes de tudo, as direas disciplinares onde se inserem cada um dos elementos em anilise: a Estética e a Sociologia. Areas que, por seu tumo, sao atravessadas por outras, tornando multdisciplinares os assuntos que abordam. Assumindo como claro este principio, entendemos comecto falar do campo social e do campo cultural como pautados por modelos de comunicacao que visam expressar a sociabilidade. Essas relagdes contribuem para determinar a dimensio social da arte ou o lugar da arte na sociedade (cf. READ, 1968: 175). Pretendemos explorar aspectos que devem ser contextualizados no dmbito disciplinar que designamos por Sociologia da Arte. Assumimos @ pretensao de reflectir, pelo menos, ou descobrir e explicar, ambiciosamente: as telagdes entie a arte e 0 meio social; as condi¢des sociais que tornam possivel influenciam a producio artistica; 0 acento das circunstincias materiais e sociais que condicionam a produco das formas artisticas; a discussfo e reflex do conceito de belo € das fungdes sociais da experiéncia estética. Face & abrangéncia dos temas e dos problemas da Sociologia, a Sociologia da Arte incide especificamente sobre os factos artisticos ¢ relaciona-os com o meio social. Como a Sociologia visa um enfoque geral com o estudo da dimensdo social do homem e dos factos Inumanos, mediante a inter-telacto de factores que formem um corpo objectivo e rigoroso de conhecimentos (permitindo formular hipdteses e explicacdes para compreender a realidade de forma integral), a Sociologia da Arte estuda as relacdes entre a arte e a sociedade, as obras ¢ os aeios sociais onde surgem. evidenciando a dimensto social do facto artistico. Por um lado, abordar apenas as obras de arte e os seus respectivos estilos e evolugdes estilistieas € uma das preocupagties da Historia da Arte, Por outro lado, abordar factores econémicos, culturais, sociais e politicos de um momento histérico para determinar as causas que explicam um certo fenémeno social é uma das intencdes que norteiam a Sociologia. Por fim, analisar e discutir 0 conceito de belo de uma experiéncia artistica é uma exigéncia ‘eminentemente da Estética. ‘As condigdes sociais ndo afectam apenas as caracteristicas das consideradas obras de aste, mas também os valores sociais, esiéticos, morais, politicos, religiosos ou econdmicos que se airibuem a essas produgdes artisticas. Por isso. falamios em construg2o dos valores artisticos como se faléssemos da constructo da propria obra. Como se seguissem uma delineada estratégia que legitimasse ou valorizasse uma determinada obra, os agentes sociais e culmurais exploram aspectos inerentes aos artefactos culturais, como a raridade, a originalidade da obra ou a reputacio do artista Como ser racional ¢ afectivo, © homem valoriza tanto os contactos sociais como os objectos que o rodeiam. Estes objectos podem assumir uma dimensio utilitizia ou uma dimensio contemplativa (cf. ARENDT. 1993: 180). A dimenstio contemplativa é o resultado da experiéncia estética, que torma possivel, criagdes do génio humano. A predisposigao humana para produzir obras e atribuir-lhes valores estéticos e sentidos constitui uma atirude estética Arte e sociedade: Ambito disciplinar © Ambito disciplinar do tema central e dos problemas suscitados pela abordagem amalitica que propomos desenvolver e que designamos por Sociologia da Arte apresenta-se ou, pelo menos, afigura-se com pouco reconhecimento académico em Portugal. Independentemente 79 “Actas dos ateliers do V" Congresso Portugués de Sociologia Sociedades Contemporineas: Reflesividade ¢ Acpi0 ‘Atelier: Artes e Culturas deste facto e da ideia preconcebida acerca de um delimitado campo de estudo e de problemas, & dificil apurar uma uniformizagao de critérios sobre o que trata a Sociologia da Arte. Todavia, apesar de cousiderarmos a possibilidade de um corpo de conhecimentos interdisciplinar, poderiamos designar este campo de estudo por Historia Social da Arte ou Estética Social. Preocupados com as condigdes sociais de existéncia de obras e respectivos efeitos na sociedade, a Sociologia da Arte interessa as condigdes de producto, difusio e recepeo ou consumo das obras de arte, isto &, o processo de circulacAo social das obras de arte. Condicdes que podem ser politicas, econémicas, sociais, religiosas ou culturais. Precisamente as que derivam de factores que, por norma, actuam no campo social e desencadeiam comportamentos nos agentes sociais (artistas, clientes, coleccionadores, comerciantes, “galeristas”,criticos, mecenas, puiblico, ete). Existem limitagdes da Sociologia da Arte no empreendimento de explicar @ dimiensto social da arte: i) aspectos dificeis de comprovar de forma a compreendé-los e explicé-los com objectividade — ex: constituicto de valores artisticos; ii) auséncia de leis ou regras gerais que expliquem os fendmenos em grande escala — ex: funcdes sociais do kitsch, papel dos coleccionadores ¢ museus, funcionamento do mercado da arte, consumo de produtos artisticos, eic.; ii) aspectos relacionados com o facto artistico e inexplicaveis do ponto de vista sociolégico ~ ex: natureza imprecisa da obra de arte, do conceito de belo ou do gosto Limitacdes apesar da pretensio da Sociologia da Arte enquanto ciéncia face a um conhecimento igoroso, objectivo e ardenado. Sobre este tltimo aspecto, atente-se a) as raizes inspiradoras do génio criador de Leonardo Da Vinci e de Salvador Dali: b) a progressto artistica de Picasso em Paris em vez de ‘Mélaga e a posicio social privilegiada de Velézquez como pintor oficial da corte espanhola a partir de 1622; ou c) a qualidade das obras de Francis Bacon, cujo valor artistico esti inerente & obra e € uma atribuicdo subjectiva. Factores psicolégicos, histiricos e estéticos que fogem a0 campo de estudo exclusive da Sociologia Escapa as competéncias especificas da Sociologia da Arte a avaliagdo das obras @ a formulagao das qualidades estéticas a admirar? Os juizos de valor sobre a arte variam historicamente porque esto condicionados pelo sistema de valores domiinante no momento e 10 ‘meio onde se produzem, mas podem ser estudados sociologicamente. Arte e moralidade Que papel cesempenkie a arte para a coesio social ¢ para os rituais de pritica da sociabilidade? Partindo de consideracdes estéticas de Femando Pessoa sobre a dimensto social da arte, encontramos indicios que, de um ponto de vista interpretative, sto coucebiveis na reflexdo sobre a arte e a sociologia. ‘A arte & um campo atravessado por outras reas de confluéncia. A principal e a que mais nos preacupa 8 a sociolégica. Surge, deste modo, a necessidade de falar da moral e associé-la a arte. Relagdes entre a arte e 2 moral que, para Fernando Pessoa, sto anilogas is entre a arte e a ciéncia: “ndo hi relagdo entre a arte ea moral, como a nio hi entre a arte € a ciéncia; mas um poema que viola as nossas nocdes morais impressiona identicamente o homem so como um poema que viola a nossa nogto da verdade” (1994: 54). Isto é, a0s valores motais, da arte cortespondem os seus valores epistemologicos. Pessoa justifica o argumento com a ideia de que “um poeta que canta, elogiando, o roubo, nao fard com isso um bom poema; nem o faré ‘um poeta moderno a quem lembre cantar 0 curso do sol & volta da terra, que & uma cousa falsa”. Subentende-se uma funcdo social instrutiva da arte para o bem e para a verdade. Porque. de acordo com Pessoa, agradara a mais gente um poema que, sobre ser belo, seja moral, que um que, sendo belo, seja imoral. Ora, a sustentagao desta posicio subjaz & sociedade, na medica em que as épocas tém mais de comum as suas ideias e valores morais que as suas imoralidades (Pessoa, 1994: 54), Entte a feigao puramente artistica e a fei¢do social da arte, a primeira caractetiza-se por criar apenas a beleza, enquanto a segunda define-se pelos processos de produc’o € consumo sociais. “Como a beleza & uma cousa independente do consenso lnumano (apesar de julgada por 80 “Actas dos ateliers do V" Congresso Portugués de Sociologia Sociedades Contemporineas: Reflesividade ¢ Acpi0 ‘Atelier: Artes e Culturas ele), como a beleza em si, digamos, é independente de opinides, a arte na sua feicio social nenhum outro fim tem que a criagao da beleza, sem outra considerago moral ou intelectual” (Pessoa, 1994: $5), Mas na fei¢do social da arte, o artista é um homem social. Vive em sociedade, onde publica as suas obras. Se Pessoa apresenta o exemplo de que um grande poema revolucionétio agradaré mais a um republicano do que a um conservador, admitindo em ambos, quanto a qualidades criticas, a mesma dose de estética, é porque os homens mio apreciam s6 esteticamente, mas também segundo toda a sua constituicao moral. “Por isso cousas grosseiras, impuras, Ihes desagradam, nao na parte estética neles, mas na parte moral que nio podem ‘mandar embora de si” (Pessoa, 1994: 57) De acordo com Furid, o choque do capitalismo e do progresso industrial com 0 socialismo e as utopias romanticas, no século XIX, constituiu' unm dos factores que provocaram ‘0 aumento de reflexdes @ propostas sobre a natureza e a funedo social da arte (2000: 36). Na questo da influéncia da arte na sociedade, considerou-se que a arte tinha ou devia ter uma acco ética e formativa sobre a colectividade. Mas a relac2o inversa é igualmente impasta, como pretendemos sublinhar. No século XIX, 0s novos sistemas de producto ¢ o liberalismo impulsionaram o capitalismo, a consolidaco de duas classes sociais (a burguesia e 0 proletariado). desequilibrios sociais e a degradacto das condigdes de vida que também foram motivo de reflexes para artistas e pensadores (cf. FURIO, 2000: 36). Esta & a demonsiracdo de que a obra de arte nto se produz isoladamente & que para compreendé-la & preciso estudé-la objectivamente no contexto histérico em que se realizou. Porque quer a obra quer o artista so produtos sociais. Qual a pertinéncia em associar a Etica a Estética? Parece-nos que Pessoa respondeu de forma clara a esta pergunta, quando defendeu uma funcao social instrutiva da arte para 0 bem € para a verdade. Para esta questio, também Read invocou a crenga dos gregos de que a beleza é bondade moral (1968: 175), . No século XIX, a Estética e a Etica foram consideradas inseparéveis por John Ruskin, para quem a beleza ea bondade eram a mesma coisa. A finalidade era a perfeigao da vida do homem, enriquecida espiritualmente. O gosto estético relacionava-se com a formagao do carécter, constituindo uma vertente educadora que, para Ruskin, era a principal fungao social da arte (cf. FURIO, 2000: 37). Entendia uma relagao directa entre a qualidade das formas artisticas € a qualidade das formas de vida de uma nace, pelo que a arte de qualquer pais seria a manifestacio das suas virtudes politicas e sociais. Assim como se pode avaliar e julgar uma sociedade ou a conscigncia do povo que a constitui pela sua religito, economia ou governo. também se pode avaliar e julgar pelas suas manifestagdes estéticas. O ambiente moral actua sobre as obras de arte, Ha épocas cujo estado de espirito predominante é a tristeza (Europa entre 0 séculos III e X) e outras em que predomina a alegria (Renascimento, dos séculos XIV, XV e XVD. Simbolizacio cultural A percepe2o implica a descodificacdo de um cédigo, cujo conhecimento depende das possibillidades sociais de acesso & cultura. As capacidades perceptivas e interpretativas de obras de arte nao sto aptiddes naturais ou herdadas, mas aprendidas e socialmente condicionadas (ct. FURIO, 2000: 68). O mesmo acontece em relacao aos critérios de gosto, que estao estreitamente vinculados a0 capital econémico e cultural das diferentes classes sociais. Para Pierre Bourdieu. nas sociedades complexas e desenvolvidas existem campos relativamente auténomos e com regras especificas, onde se Iuta por algum tipo de recurso, capital ou poder (BOURDIEU apud FURIO, 2000: 68). Conforme esta perspectiva, 0 campo artistico seria a estrutura do espaco social onde se produzem e se valorizam obras de arte. Neste campo estruturado proposto por Bourdieu, as pessoas € os grupos, conforme a posicao social que ocupam, actuam de forma a ‘mianter ou @ transformar as situagdes e os valores (que resultam de consensos. © homem, como ser cultural, é 0 resultado de uma construgdo s6cio-cultural. Por isso, & ‘um “artefacto” cultural, na medida em que @ cultura the serviu como padido de conduta para 81 “Actas dos ateliers do V" Congresso Portugués de Sociologia Sociedades Contemporineas: Reflesividade ¢ Acpi0 ‘Atelier: Artes e Culturas agit, pensar, sentir, comunicar, relacionar-se com os outras, etc. Neste sentido, a dimensto simbélica das praticas attisticas e dos rituais sociais sto o resultado da dita constru¢ao sécio- cultural. As experineias quotidianas esto moldadas pela cultura, isto & por normas, valores, significados e costumes proprios de uma determinada comunidade da qual fazemos parte. Como as culturas s8o padrdes simbélicos e estruturados de acedo, esta acgdo humana, no processo artistico, é regulada por quadros de sentido e padrdes simbélicos j previamente determinados. Quadros que também so representacdes sociais dos comportamientos estéticos manifestados colectivamente, bem como relacdes de comunicagio e relagdes de poder social simbélico. As obras de arte sto producdes simbélicas que representam € expressam os valores culturais enraizados e defendidos por uma determinada comunidade, Envolvem elementos simbolicos & pautam-se por construgdes também simbolicas, na medida em que sto realizadas a partir da ealidade concreta representada pelos simbolos ¢ sto dotadas de valores a manter e a exteriorizar. Sub-classe de signo, um simbolo é um artefacto que possui um significado metaférico e €usado na producto de um sistema cultural. A partilha de signos fornece as bases para a vida social. Quando os signos partilhades se tomam institucionalizados e interligados semanticamente, através da compreenstio metaférica partilhada, forma-se a cultura (FOSTER, 1994: 380), uma vez que o simbolismo & a fundagdo da cultura. Existem muitos tipos de representacdes simbolicas, Padrdes culturais para a comunicag3o humana, os simbolos mantém relacées intrinsecas com o que representam e sio construcdes sociais. Visam a coesio social de ‘um grupo que os partilha ‘A constnicto do significado tem a finalidade de conectar o individuo & cultura a que pertence e de estabelecer o entendimento comunicativo em torno de sentidos e significados que pretendem ser expressos pela linguagem. Para Bruner, “em vistude da participacio na cultura, 0 significado prestado de forma publica e partilhada. © nosso modo de vida culturalmente adaptado depende dos significados e dos conceitos partilliados e depende, igualmente, dos partilhades modos de discuiso para a negociagao das diferencas de significado e de interpretacao” (2000: 12). Segundo Bruner, & a cultura que da forma a vida e & mente humana e que da sentido & accdo, ao situar os estados intencionais (como crencas ou desejos) num sistema interpretativo (2000: 34). Ao procurar definir o que entende por “psicologia cultural” ou “psicologia popular” eaquanto sistema cognitivo de coesto cultural pelo qual as pessoas organizam as stias experiéncias, 0s seus conhecimentos e as suas transagdes com 0 mundo social, Bruner pretende mostrar como 05 individuos, interagindo entre si, formam 0 sentido do candnico e do usual (2000: 67). Partindo da sugestto de Bruner, 0 que faz uma comunidade cultural no sto apenas crencas partilhadas acerca do que as pessoas parecem ser e do que o mundo parece ou de como as coisas devem ser avaliadas. “Obviamente que deve haver algum consenso para assegurar a realizac2o da civilidade. Mas 0 que pode ser apenas tio importante para a coeréncia de uma cultura ¢ a existéncia de procedimentos interpretativos para adjudicar as diferentes construgdes da realidade que sto inevitiveis em qualquer sociedade diversa” (BRUNER, 2000: 95). Pata esta questo da harmonia cultural e social entre as concepgdes da realidade dos individuos, parece contribuir a ideia de que as realidades que as pessoas concebem sto sociais, negociadas com os outros e distribuidas entre essas mesmas pessoas. No processo de constnucao da realidade social, acordada, piblica e partilhada, influi também a constructo do Eu, fruto de percepcdes de dados do exterior para o interior (da cultura para a mente) e expressto de estados do interior para o exterior (da mente para a cultura) (BRUNER, 2000: 108) As culturas, onde se inserem as obras de arte @ os seus convencionados significados, esto investidas de canonicidade, Enquadram-se num meio esperado e usual de gesios comportamentos sociais. Em todas as culturas, por exemplo, temos como um dado adquirido que as pessoas comportam-se de uma maneira esperada e apropriada a0 contexto onde se encontram inseridas (BRUNER, 2000: 48). © significado de uma producto attistica é “Actas dos ateliers do V" Congresso Portugués de Sociologia Sociedades Contemporineas: Reflesividade ¢ Acpi0 ‘Atelier: Artes e Culturas culturalmente mediado e depende da precedente existéncia de um sistema partilhado de simbolos ‘A cultura é um processo que tem em conta os aspectos estiticos (conservantismo, formas acabadas consubstanciadas na tradigdo) e os aspectos dindmicos (modemizacao, ‘germens de futurismo) da propria cultura, pelo que devemos falar em dinamismo cultural. As cculturas mudam, Se entendermios a cultura como 0 conjunto de priticas e de comportamentos sociais inventados ¢ transmitidos no grupo ou na sociedade, entio estamos a considerar os factos artisticos e sociais como elementos constituintes e essenciais. Geertz preconiza um conceito de cultura que evidencia as particularidades deste processo, quando 0 entendemos representado pelas manifestagdes artisticas e rituais sociais: “a cultura denota um esquema historicamente transmitido de significagdes representadas em. simbolos, um sistema de concepedes herdadas ¢ expressas em formas simbdlicas através das quais os homens comiunicam, perpetuam e desenvolvem o seu conhecimento e as suas atitudes face & vida” (2000: 88). AS artes, as erencas, os ritos, os usos sociais ¢ as técnicas de uma comunidade formam uum todo integrado. A forma de vida dos homens em sociedade explica a cultura e vice-versa. A expresso “capital simbélico” de Bourdieu poderia servir para designar este tipo de experiéncia autistica no campo cultural Dimensio social da arte As relagdes entre a arte e a sociedade sto reciprocas e dinamicas. Tanto 0 campo social influencia a produc&o artistica (conforme procura explicar a Histéria da Arte, ao reconstruir as circunstincias em que se concebem as obras, de modo a compreender ¢ a explicar a sua evolucto e a sua forma e significado), como a arte condiciona o contexto social. A repercussio social da arte, resultado do seu processo de circulacto no seio da sociedade que chega a0 seu destinatitio ou pablico consumidor, permite conhecet o raio de accdo do campo artistico sobre 0 ‘campo social, 0 efeito (interesse, indignag%o ou indiferenca) que a obra desencadeia no piiblico © 0 seu consumo (interpretago e contemplag3o ou utilizagao da albra) ‘A interdependéncia, medida pelas influéncias e conexdes, da arte com o seu meio social sugere-nos 0 estudo da dimensto social do facto artistico, que se situa num campo vasto complexo ¢ interdisciplinar. Consequentemente, referir a conextio entre a arte e a sociedade e sugerir uma dimensio social da arte pressupde encarar a obra como um produto social, por um Jado, e como um elemento constitutive da propria sociedade, por outro lado. A teoria do reilexo ou da imitagao apresenta a arte como espelho da realidade. Contrariando esta logica do reflexo, Bourdien defende que ¢ 0 campo artistico que exerce um efeito de reestruturagio ou de refracgdo devido as suas forcas e formas especificas (BOURDIEU apud FURIO, 2000: 24). Neste caso, as instimicoes e os agentes sociais nio actuam directamente sobre a arte, mas através da estrutura do campo artistico. Desta forma, “as relacdes entre os factos artisticos e os factos sociais sfo indirectas e de tipo estrutural” (FURIO, 2000: 24). Como qualquer outro sistema, o mercado esti submetido as leis da oferta e da procura ou a oscilagao dos seus elementos. A ctiagao artistica como expresso social esté patente na vatiedade de estos, formas, ‘matérias e temas que marcam as épocas das obras de arte. Ao longo da histéria, a arte tem couseguido expressar a diversidade religiosa: os templos gregos em honta dos deuses, as pirdmides egipcias, as mesquitas arabes, os mosaicos bizantinos ou os vittais giticos e os Ccapitéis romnicos das catedrais ocidentais. A arte é interpretacio da sociedade e tanto pode corroborar como criticar uma determinada situagao social ou certos valores de uma época. Esta possibilidade atribui a obra ‘um certo valor social de intervencio. Por exemplo, uma obra ou monumento comemorativo pode representar ou simbolizar um regime democritico (a Estétua da Liberdade, em Nova Torque) como o absolutismo do poder politico (a guia imperial no Bundestag ou Versalles a reforcar a ideia de Estado centralizado de Luis XIV). O valor de propaganda politica da obra pode, no entanto, condicionar a acco criadora do artista. O poder esti consciente da forca 83 “Actas dos ateliers do V" Congresso Portugués de Sociologia Sociedades Contemporineas: Reflesividade ¢ Acpi0 ‘Atelier: Artes e Culturas persuasiva da arte, da possibilidade de expressar tendéncias sociais a favor ou contra um ideal politico, pelo que em sociedades totalitirias o artista vé a sta produc2o subordinada a critica, & condenacio ¢ a censura, O artista tanto pode desenvolver uma obra apologista do regime politico como servir-se da arte para condenar uma certa ideologia. Com frequéncia, a arte interpreta a sociedade de forma interventiva e critica. Por exemplo, Guernica, de Pablo Picasso, revelou a solidariedade do artista com os Republicanos despertada pela Guerra Civil de Espanha. O painel foi inspirado no bombardeamento de Guernica, antiga capital dos Bascos. Nao representa o proprio acontecimento, mas evoca. mediante as imagens e formas adoptadas por Picasso, a agonia da guerra, A obra, de 1937. constitui uma visio profética de desgraca do bombardeamento de saturaco que marcou, depois, a Segunda Guerra Mundial A realidade € 0 que ¢ em si: una, objectiva, concteta, Mas uma diversidade de coisas ou estados de coisas. Por isso também diversa, heterogénea. O que designamos vulgarmente por sociedade ou contexto social nfo & mais do que um conjunto heterogéneo de situacdes. pessoas, padres culturais ¢ realidades de ordem diversa (a estrumura social engloba crencas e priticas religiosas, mercados econémicos, accdes politicas, niveis culturais, pensamentos Cientificos, ideias sobre arte, etc.). As visbes, perspectivas ou modos de_interpretar autisticamente a realidade sio diversas e criam realidaces heterogéneas. Visdes subjectivas do mundo codificado social e culturalmente. O artista ¢ 0 intérprete da colectividade & qual pertence. Também 0 termo “arte” pressupde uma realidade diversa, razio pela qual existem linguagens artisticas diferentes e peculiaridades técnicas e materiais das obras. A diversidade da realidade artistica e 2 peculiaridades das linguagens e técnicas da arte explicam a capacidade de produgio e de recepcdo de influéncias do meio social. Existem tanto modos de ver como mundos interpretados pela arte, na medida em que proliferam redes ou estruturas onde se produzem e se consomem as obras de arte, o que leva Piee Bourdieu a designar por campo atistico. A arte também é transformaco ou recriagao do real. O mundo real no coincide com o real da arte. A obra de arte revela uma realidade transfigurada. Da conjugacdo da realidade social com o pensamento e sentimento que movem o artista nasce a obra, Poder-se-ia falar de outras perspectivas de encarar a inter-relagao arte/sociedade, como arte a sublimar a existéncia ou vivéncia humana em sociedade, como sugere O Nascimento de Vénus, de Boticelli. Além de processos de expresso ou modos de comunicagao, as formas artisticas tém a possibilidade de influir nos gostos, ideias, comportamentos ou atitudes de determinados grupos sociais como de suscitar escandalo ou polémica. S20 iniimeros os factores que condicionam 0s efeitos sociais da arte. Primeiro, a fungio da obra de arte e a sua incidéncia ‘nos padides culturais da sociedade ou nos modos de pensar de um deterninado grupo social Independentemente das miiltiplas formas que pode assumir a arte, consideremos as consequéncias sociais, religiosas e politicas provocadas por um caso extremo, no campo da literatura: os Versiculos Satanicos de Salman Rushdie. Obra de fic¢o que, quando foi publicada em 1989, levou Ayatollah Ruhollah Khomeini a condenar & morte 0 autor pelo crime de apostasia, porque o antigo lider espiritual iraniano considerou que Rushdie blasfemou contra 0 Isto, 0 Profecta e o Corio. © campo da producto literdria é frequentemente privilegiado por obras que visam uma intervengao incisiva sobre © meio social. Antes dos Versiculos Saténicos, Rushdie publicou a sua terceira novela, em 1983, intitulada Shame (Vergonha, em portugués), que também recebeu ‘muitas criticas. A obra assumia-se como uma alegoria sobre a situacAo politica no Paquisttio e foi premiada intemacionalmente, Mais do que as outras artes (como a abstracgo da isica), a literatura é capaz de expressar mais directamente e com mais pormenor e explicagio as ideias, (que visa transmitir ‘Numa experiéncia estética, a sensibilidade ou gosto individual perante uma obra de arte 60 resultado de um processo de socializacao. Esse gosto é condicionado pelo tipo de sociedade. pela época, raca, classe social ou padrées culturais. Quando exprime 0 seu gosto, o individuo revela a cultura em que foi formado. Em cada época existem factores que determinam a 84 “Actas dos ateliers do V" Congresso Portugués de Sociologia Sociedades Contemporineas: Reflesividade ¢ Acpi0 ‘Atelier: Artes e Culturas formacao de padrdes ou critérios de beleza aos quais 0 individuo, inserido num determinado contesto sociocultural, se submete quer para produzir obras de arte, enquanto artista, quer para avalié-las, enquanto espectador. Ao longo da historia surgiram diferentes ideais de beleza que solidificaram-se no seio social e que 0s artistas ora imortalizaram com obras de arte ora transformaram com outros estos, eritérios e formas de expressdo artistica. O gosto ou os cinones dominantes de uma determinada sociedade numa certa época tende a condicionar eventtais novas formas de expressio estética. Com frequéncia, lideres de opiniio condicionam a receptividade pitblica de obras por veicularem juizos estéticos e criticos. A moda on seguidismo do piblico sto proporcionados pela emissio, por parte das criticos, de juizos estéticas sobre as obras. Outro caso curioso prende-se com a obra de Edouard Manet (1832-1883), pintor francés que hoje ¢ geralmente considerado 0 percursor da pinfura moderna, mas que em vida apenas teve Emile Zola como ‘inico critico que valotizou a sua obra. Independentemente da qualidade artistica, a maior parte das obras de Manet rejeitadas no século XIX encontram-se hoje nos muuseus mais importantes espalhados pelo mundo (cf. FURIO, 2000: 31). As obras sto as mesmas. © que mudou foi a apreciacao da sua qualidade, os juizos de valor dependentes das ideias, interesses € gostos historicamente varidveis das pessoas que os formulam e que sto condicionados pela sociedade e pela cultura de uma detesminada epoca. ‘Nas sociedades contemporineas capitalistas. apenas um sestrito miimeto de individuos ‘ou especitica classe social participa no campo artistico e possui valores estéticos. De acordo com Read, “ninguém negard as profundas inter-relacdes entre o artista e a comunidade. O artista depende da comunidade — vai buscar o seu tom, o seu ritmo, a sta intensidade a sociedade de que & membro” (READ, 1968: 175). No entanto, 0 caricter individual da obra do artista depende também da personalidade do artista que impulsiona a vontade criadora: “se a arte mio & inteiramente o produto das circunstincias circundantes, © & a expresso de uma vontade individual, como explicaremos as espantosas semelhancas entre obras de arte que pertencem @ periodos histéticos distintos?”, pergunta Read (1968: 176). Talvez seja exagerado falar em determinism social, mas devemos sublinhar, pelo menos, um condicionalismo social na producdo artistica, se o estilo reflecte, de facto, 0 espirito de uma época. A arte pode assumir a condigao de expressao tanto de um mundo interior (experiéncia pessoal, ideais, gostos transparecem na criagio do artista) como de um mundo exterior do autista. Apresenta-se ao piiblico, por conseguinte, como uma conceps20 individual. No entanto. © artista nao ¢ immune as influéncias do meio social em que se vive. E um ser histérico, com um determinado contexto sociocultural e com um passado de experiéneias que se repercutem na obra. Arte estd inerente as suas circunstincias de produgo e de consumo. E na realidade que © artista se inspira (cores, formas, sons, ideias, movimentos, matérias) e impde a sua arte. O artista vive num mundo social onde se instruiu com habitos, usos, costumes, modos de ver € interesses; exercitou as suas aptiddes; formou os seus padrdes culturais; e apurou os seus sentidos para a experigncia estética. A interiorizaco dos padrdes vigentes na sociedade de que faz parte o artista tomou-o alguém com capacidades de aplicar esteticamente os elementos sociais que integra. Referéncias bibliograficas: ARENDT, Hannah (1993), 4 Condigdo Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitaria: BRUNER, Jerome (2000), Acts of Meaning. Cambridge: Harvard University Press; CARRERE, A: SABORIT, J. (2000), Retorica de la Pintura, Madrid: Ed. Cétedra; FOSTER, Mary LeCron (1994), «Symbolism: the foundation of culture» in INGOLD, Tim (ed.): Companion Encyclopedia of Anthropology — Humanity, Culture and Social Live London: Routledge, pp. 366-95; 85 “Actas dos ateiers do V* Congresso Portugués de Sociologia Sociedades Contemporineas: Reflexividade ¢ Acsi0 ‘Atelier: Artes e Cultures FURIO, Viceng (2000), Sociologia del Arte. Madrid: Ediciones Catedra: GEERTZ, Clifford (2000), La Interpretacion de las Culturas. Barcelona: Gedisa: JANSON, H. W. (1992), Histéria da Arte. Lisboa: Fundacao Calouste Gulbenkian: LIMA, Mesquitela (1979), Antropologia on Entropologia?. Lisboa: LN.C.M.: MALINOWSKI, Bronislaw (1997), Una Teoria Cientifiea da Cultura. Lisboa: Ed. 70; MERLEAU-PONTY (2000), 0 Ollio e 0 Espirito. Lisboa: Vega; PESSOA, Fernando (1994), Paginas de Estética e de Teoria e Critica Literérias. Lisboa: Atica: READ, Herbert (1968), 0 Significado da Arte. Viseu: Editora Ulisseia: TURNER, Victor W. (1980), La Selva de Jos Simbolos. 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