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EDITORA 34 Faitora 34 Ltda. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 Sio Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br Copyright © Editora 34 Lrda., 2006 Lembrar eserever esquecer © Jeanne Marie Gagnebin, 2006 ‘A FOTOCOMIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO £ ILEGAL, E CONHGURA UMA [APROPRIAGAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS BO AUTOR, Imagem da capa: A partir de desenho de Henri Michaux, Sem titulo, 1960, nanquim s! papel, 65 x 140 cm (detalbe) Capa, projeto grafico ¢ editoragao eletronica: Bracher & Malta Produgao Gréfica Revisao: Alberto Martins Camila Boldrini Marcela Vieira igo - 2006 cop - 40 LEMBRAR ESCREVER ESQUECER Nota da autora . 1, A meméria dos mortais: notas para uma definigao de cultura a partir de uma leitura da Odisséia . Homero € a Dialética do Esclarecimento |. Verdade © meméria do passado.. “Apés Auschwitz” Sobre as relagdes entre ética eestética no pensamento de Adorno. 2. 3. » 4, Memaéria, historia, testemunho S, 6, + 7.0 que significa elaborar o passado? #8. O rastro e a cicatriz: metaforas da memoria 9. Bscrituras do corpo ... 10. © rumor das distancias atravessadas... 11. Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur 12. Os prelidios de Paul Ricoeur 13, “Plato, creio, estava doente” 14, As formas literdrias da filosofia Sobre os textos... Bibliografia... Agradecimentos Sobre a autora uw B 29 39 49 59 83 7 107 119 145 163 179 193, 201 au 213 221 223 3. VERDADE E MEMORIA DO PASSADO. i Este artigo! nasceu de uma dupla interrogagdo: por que hoje falamos tanto em meméria, em conservacio, em resgate? E por que dizemos que a tarefa dos historiadores consiste em estabelecer a ver- dade do passado? Dupla interrogacao sobre a relagio que nosso pre- sente entretém com 0 passado. Ao levantar essas questbes jé estou afir- ‘mando que essa relagdo entre presente e pasado também € profun- damente histérica. Pode-se escrever uma histéria da relagio do pre- sente com a meméria ¢ 0 passado, uma histéria da hist6ria, por as- sim dizer, 0 que jé foi iniciado por varios autores. A seguir, proponho algumas teses sobre o estatuto da verdade do passado e sobre a im- portincia da meméria para nés, hoje, nesse presente que tantas vezes se diz pés-modemo e relativista. Preciso minha interrogacao inicial e pergunto: o que se manifes- ta, tanto no plano teérico como pratico, na nossa preocupagao ativa coma verdade do passado? Por que fazemos questdo de estabelecer a hist6ria verdadeira de uma nacao, de um grupo, de uma personalida- de? Para esbocar uma definigao daquilo que, neste contexto, chama- mos de verdadeiro, no devemos analisar primeiramente essa preo- cupacao, esse cuidado, essa “vontade de verdade” (Nietzsche) que nos, move? Entendo com isso que a verdade do passado remete mais a uma “ética da acao presente que a uma problematica da adequagao (pret samente cientifica) entre “palavras” e “fatos”. Tentarei explicité-la por meio das reflexes que seguem. 1 Fsta€ a versdo, ligeiramente modificada, de um artigo escrito em francés, publicado no niimero de junho de 1998 da revista Autre Temps, de Paris. Agea- deco a Ana Claudia Fonseca Brefe pela tradugio. ‘Verdade € meméria do passado. 39 | te foe, 4, Say mss cess “Sobue eosin BS" tse sta: “Articular historicamente o pay Ther Benjamin declar 0 Passa, 1940, Walter Benjanun ‘o ele proprlamente for” Signe . r seres humanos cuja lembranca deveria igualmente se apagar. _| Enquanto Homero escrevia para cantar a gléria ¢ o nome dos herdis e Herddoto, para ndo esquecer 0s grandes feitos dees, o histo, riador atual se vé confrontado com uma tarefa também essencial, mas sem gl6ria: ele precisa transmitr o inenarrével, manter viva a memé, tia dos sem-nome, ser fiel aos mortos que no puderam ser enterra- dos. Sua “narrativa afirma que o inesquecive existe"!9 ‘io podemos descrevé-lo, Tarefa altament final” preten- face da historia e da meméria. Essa tica de exterminagéo: apoderarem do fron- mesmo se nés ica.e, num sentido amplo, especificamente pe Lavras do historiador ajudam a enterrar‘; luto que nos deve ajudar, 16s, 05 vivos, a nos lembrarmos dos nior- £08 para melhor viver hoje. Assim, a preocupasao com a verdade do assado se completa na exigencia de um presente que, taml sa ser verdadeiro. —_ +2 Citado por Janine Altounian na sua bela coletinen Ouvrez-moi seulement les chemins d'Arménie, Pats, Les Belles Letes, 1990, p. 1. 3 Como diz Kirkor Bled Alrounian) em Altounian, op. (teadutor do jornal de deporagio de Vehear p. 118, Verdade e meméria do passado 4, MEMORIA, HISTORIA, TESTEMUNHO Gostaria de pensar as questdes que nos ocupam durante este co- — questées politicas ¢ éticas, questées dolorosas— a partir de alguns conceitos emprestados a filosofia de Walter Benjamin, Com feito, Benjamin nao € somente, por sua biogra ddesses exilados-refugiados sem papéis nem teto que encontramos hoje, Por todas nossas cidades e que, talvez, sejam a figura de nosso pro © pensamento de Benjamin se ateve a questées que ele no resolveu e que ainda sio nossas, questes que sua irresolucao, preci- samente, torna urgentes. Talvez.nossa tarefa consista em colocé-las de forma diferente. Uma destas questies essenciais e sem resposta poderia ser defi- rida, em termos benjaminianos, como o fim da narragao tradicional. Ela se coloca com fora em toda literatura moderna e contemporinea, nas discusses histéricas e historiograticas e na reflexo filos6fica atual — chamada ou néo de “pés-moderna” — sobre “o fim das grandes narrativas”.! Esta discussdo também sustenta as narrativas, simulta- neament impossiveis ¢ necessdrias, nas quais a memoria traumatica, apesar de tudo, tenta se dizer — narrativas ¢ literatura de testemunho ue se tornaram um género tristemente recorrente do século XX, em 4quase contemporaneos, tratam deste tema: “Experiéncia e pobre de 1933 e “O narrador”, escrito entre 1928 ¢ 1935. Por que partir des- tes dois textos? Porque eles iniciam com descrigbes semethantes, as veres literalmente semelhantes, para chegar a conclusdes que podem parecer opostas, contraditérias até. E a presenca desta oposi¢ao que 1os assinala, justamente, a gravidade da questo colocada. bee o tema, Jean-Frangois Lyotard, La condi 1979, 1 postmoderne, Pa- ris, Min ‘Meméria, historia, testemunho 9 Arabos 08 cAsalos| pattem Caduilo que Benjamin ch, da ou de declinio da experiéncia (Verfall der Erfabrun, oe de ber. experigncia no sentido forte e substancial do termo, qe 6 da clissica desenvolveu, que repousa sobre a possbilidade 4 S0ia dicao compartilhada por uma comunidade humana, tragic ™ da ¢ transformada, em cada geracio, na continuidade doo" vra transmitida de pai para filho. A importancia desta tray’ sentido concreto de transmissao e de transmissibilidade, eo em ambos os ensaios, pela lenda muito antiga (provavelnen fabula de Esopo) do velho vinhateiro que, no seu leito de ma fia a seus filhos que um tesouro esté escondido no solo de Os filhos cavam, cavam, mas nao encontram nada, Em compen quando chega 0 outono, suas vindimas se tornam as mais abel tes da regio. Os filhos entZo reconhecem que pai nao fhe aan nenhum tesouro, mas sim uma preciosa experiéncia, e que sua rique za Ihes advém dessa experiéncia Pode-se, naturalmente, interpretar esta fabula como ailustracio da nobreza do trabalho e do esforco. Benjamin, entretanto, nioa we para fins moralizantes. E a encenago da histéria que lhe interessa, Nao € 0 contetido da mensagem paterna que importa; aids, 0 pai pro- mete um tesouro inexistente e prega uma pega a seus filhos para con- vencé-los. O que importa é que © pai fala do seu leito de morte eé ouvido, que 0s filhos responder a uma palavra transmitida nese miar, e reconhecem, em seus atos, que algo passa de geragio para geracio; algo maior que as pequenas experiéncias individu par culates (Erlebnisse), maior que a simples existéncia individual dora um pobre vinhateiro, porém, que étransmitido por ele slg Portes to, que transcende a vida e a morte particulares, masnelas se O52 que concerne aos descendentes, Uma dimensio que mln transcende e “porta” a simples existéncia individual +n ada, nte uma rte, con vinhedo, Ben ne “o sagrado”s nés. Podemos chamé-la “o simbélico” ou pe o signo de i A isso ta jamin nao nomeia essa dimensio ¢ tal om edad este rigncia acareet cde narrative E is na um grande pudor. Ele insist, als, murto mais na PoP cia que a fabula de Esopo encenava. A perda um outro desaparecimento, © de sim ce nessa tra narragio, que tém sua fonte nessa comunidad ¢ Seon : go prove 5 lidade, As razées dessa dupla desaparigio Proven da Gr s que, segundo Benjamin, culminaram com 3 foi Mundial Guerra — hoje, sabemos que a Primeira Guerrs ‘© comeco desse pracesso. Os s Fas, obser iventes que voltaram das trinchei- voltaram mudos. Por qué? Porque aquilo que no podia mais ser assimilado por palavras, Nesse diagndstico, Benjamin retine reflexdes oriundas de duas roveniéncias: uma reflexao sobre o desen das forcas pro- dutivas e da técnica (em particular sua aceleragio a servigo da orga nizagao capitalista da sociedade) e uma reflexio convergente sobre a ‘meméria traumética, sobre a experiencia do choque (conceito-chave das andlises benjaminianas da lirica de Baudelaire), portanto, sobre a impossibilidade, para a lingvagem cotidiana e para a narracao tradi. cional, de assimilar 0 choque, 0 trauma, diz Freud na mesma epoca, Porque este, por definicao, fere, separa, corta ao sujeito 0 acesso ao simbélico, em particular & linguagem. E precisamente esta impossibilidade de uma resposta simbolica classica que pode nos ajudar a compreender por que Benjamin desen- volve conseqiiéncias tdo diferentes nos dois textos em questio, ape- sar da identidade do ponto de partida — a constatagao da perda da experiéncia e da narragao tradicional Em “Experiéncia ¢ pobreza”, Benjamin insiste justamente nas mutagdes que a pobreza de experiéncia acarreta para as artes con- tempordneas. Nao se trata mais de ajudar, recontortar ou consolar ‘0s homens pela edificagao de uma beleza ilusoria. Contra uma esté- tica da interioridade, da harmonia, da suavidade e da grasa, Benja- min defende as provocagdes e a sobriedade aspera das vanguardas Sao seus famosos exemplos, emprestados a arquitetura, do material moderno — 0 vidro, elemento frio, cortante, transparente, que impe- de a privacidade ¢ se opde aos interiores aconchegantes, repletos de tons pastéis e de chiaroscuro, nos quais o individuo burgués procura tum refigio contra 0 anonimato cruel da grande cidade (e da grande nddstria). Emblema desse ideal ilusério: o veludo, exato oposto do vidro, 0 veludo macio, acolhedor e, sobretudo, profundamente im- pregnado de privacidade, porque ¢ nele que o feliz proprietério dei xa, com a maior facilidade, sua marca, a marca de seus dedos, con- trariando a regra de ferro que governa a vida moderna, a saber, no deixar rastros. E nesse contexto que Benjamin cita 0 famoso poema de Brecht, “Verwisch die Spuren” (Apague os rastros).2 Deve-se ressaltar que 0 2 “Apague as pegadas”, traduz Paulo César de Souza em Poemas: 1913- Meméria, hist testemunho st écitado de mane eae eesas", como Be nes das Prd que nao levam em conta a ru cm. Praticas que 2A ni Broce a tama emporanca ndo pode eludir: que a experignc sei que a A ore mais possvel, que a transmissio da tragic? — Eife oconsegunte, 0s ensaios de recomposicdo da a: se eh a ogrs individualistas e privados (resta saber se ee, eae ane realmente exist, mas esta € uma outra questagy barmonia per grece er uma importancia decisiva para refletirme) Esse Pom er das anlises benjaminianas, sobre as dificuldade, juntos, Ba poem ao restabelecimento da tradicZo ¢ da nant sree noses scedades “posmodernas” e p6s-foalitiras isso sg So mbér que, inflizmente, os bons sentimentos nunca bastan ra reparat 0 passado. crtico de deninca porque evoca, de maneira simultaneamente sobria ¢ profes, as pratcas do Estado totalitério moderno, Cito as duas tltimas estrofes do poema: \doras ¢ lamin ¢ tra 6s. “O que vocé disser, nao diga duas vezes. Encontrando seu pensamento em outra pessoa: negue-o. Quem nao escreveu sua assinatura, quem nao deixou [retrato Quem nao estava presente, quem nada falou Como poderao apanhé-lo? Apague os rastros! Cuide, quando pensar em morrer Para que nao haja sepultura revelando onde jaz Com uma clara inscrigio a Ihe denunciar Eo ano de sua morte a Ihe entregar Mais uma vee: Apague os rastros! (Assim me foi ensinado,)” 1956 (Berle Brech, ‘wt da minha cannons) 20 Editora 34, 2000, pp. 57-8). Em razto d0 6°" POSIGAO, Prefiro trady ‘ir “Apague os rastros”. 52 do a lemos como contraponto cruel a fabula do vinhatene aa fa tei. to de morte, também quando lembramos que o primeiro sentido da Palavea grega “séma” é justamente 0 de timo, de sepultura, dese signo ou desse rastro que os homens inscrevem em meméria des mor, tos — esses mortos que 0 poeta e o historiador, nas palavras de Le. rédoto, néo podem “deixar cair no esquecimenta”, E dessa tarefa que trata 0 segundo ensaio de Benjamin, aliés muic to mais conhecido, “O narrador”, Pode-se observar novamente que ambos os textos so contemporneos e que devemos, portanto, Ie jos em confronto, em suas semelhangas e em suas diferencas. *O nar. rador” formula uma outra exigéncia; constata igualmente o fim da narragao tradicional, mas também esboga como que a idéia de uma ‘outra narragdo, uma narragao nas ruinas da narrativa, uma trans sio entre os cacos de uma tradi¢ao em migalhas.> Deve-se ressaltar que tal proposicio nasce de uma injungao ética e politica, é assina- lada pela citagdo de Herédoto: nao deixar o pasado cair no esqueci- mento. O que nao significa reconstruir uma grande narrativa épica, herdica da continuidade hist6rica. Muito pelo contrério, otiltimo tex. to de Benjamin, as famosas teses “Sobre o conceito de Histéria”, é bastante claro a esse respeito. Podemos reter da figura do narrador lum aspecto muito mais humilde, bem menos triunfante. Ele é, diz Ben- jamin, a figura secularizada do Justo, essa figura da mistica judaica cuja caracteristica mais marcante é 0 anonimato; 0 mundo repousa sobre os sete Justos, mas nao sabemos quem sio eles, rlvez eles mes- ‘mos o ignorem. O narrador também seria a figura do trapeiro, do Luompensammler ou do chiffonnier,$ do catador de sucata e de lixo, esta personagem das grandes cidades modernas que recolhe os cacos, 08 restos, 05 detritos, movido pela pobreza, certamente, mas também 2 Para Benjamin, Kafka encarna, sem divida, uma das possibilidades con- temporiineas desse nova narrador. Pademos nos lembrat da narrativa da *Men- sagem imperial", que um imperador, eambém em seu lito de more, ransmite a tum augusto mensageiro que nunca chegard até nds, apesar de sua desteza e mes- mo que nao paremos de esperar por ele. 4 Alusdo ao pocma “Le vin des chiffonniers”, das Flores do Mal, pois, para Renjamin, Baudelaire & 0 primeito poeta verdadeiramente moderno, aquele que trata dos reais habitantes das grandes cidades histéria, testemunho 53 Ae Pee, 5 pelo dex de no deixar nada se perder (Benjamin intoduy : aqui Conceito teol6gico de apokatastasis, de recolecgao de todas as ‘qui g almas ‘no Paraiso). A iro (0 his © é ase narrador sucateio (0 historiador também € um Lampe, sammley)8 n20 tem por alvo eecolher os grandes feitos. Deve mug, sank apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que nae fem significacao, algo que parece nao tet nem importincia nem sen, fido, algo com que a historia oficial ndo sabe 0 que fazer. O que sig cases elementos de sobra do discurso histérico? A tesposta de Ben. jamin € dupla, Em primeiro lugar, 0 sofrimento, o sofrimento ingizs. ‘el que a Segunda Guerra Mundial levaria ao auge, na crueldade dog campos de concentragao (que Benjamin, alias, nao conheceu gracas a seu suicfdio). Em segundo lugar, aquilo que nao tem nome, aqueles que nfo tém nome, 0 andnimo, aquilo que nao deixa nenhum rastro, aquilo que foi tio bem apagado que mesmo a meméria de sua exis, téncia nao subsiste — aqueles que desapareceram tio por completo ‘que ninguém lembra de seus nomes. Ou ainda: a narrador ¢ o histo- riador deveriam transmitir 0 que a tradico, oficial ou dominante, jus- ‘Fon tamente nao recorda. Essa tarefa paradoxal consiste, ento, na trans” ‘mo — principalmente — quando nao conhecemos nem seu nome nem Ti Evidentemente, tal histéria nao pode ser o desenrolar tranqiiilo ear de uma narrativa continua. Sem querer entrar aqui em deta- thes, penso que um dos conceitos importantes que poderia nos ajudar a pensé-la € 0 conceito de cesura (comum a Holderlin ¢ a Benjamin) ou 0 de interrupgao (comum a Brecht ¢ a Benjamin). A exigéncia de meméria, que varios textos de Benjamin ressaltam com forga, deve levar em conta as grandes dificuldades que pesam sobre a possibil dade da narragio, sobre a possibilidade da experiéncia comum, enfim sobre a possibilidade da transmissao ¢ do lembrar, dificuldades a¥e evocamos no inicio desta exposigao. Se passarmos em siléncio sobre elas em proveito de uma boa vontade piegas, entao 0 discurso sobre © dever de meméria corre o risco de recair na ineficacia dos bons seo" timentos ou, pior ainda, numa espécie de celebragao vazia, 3p wee”, bff 9 ago delving Wohlfarth, “Etcetera? De Phistorien come er Heinz Wismann (org.). Walter Beniamsin et Paris, Paris» Cet mente confiscada pela historia oficial.® Proporia, entio, uma di ‘io entre a atividade de comemoracdo, que desliza perigosamente para jos0 ou, entdo, para as celebragoes de Estado, com paradas ¢ bandeiras, e um outro conceito, o de rememoracao, assim traduzindo aquilo que Benjamin chama de Fingedenken, em oposigao a Erinne- rung de Hegel e as varias formas de apologia. Tal rememoracio i plica uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repe- tir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, a0 quecido e ao recalcado, para dizer, com hesitagbes, solavancos, in completude, aquilo que ainda nao teve direito nem a lembranca nem 4s palavras. A rememorago também significa uma atencio precisa a0 presente, cm particular a estas estranhas ressurgéncias do passado no presente, pois nao se trata somente de nao se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao pasado, nao sendo um fim em si, visa a transformacao do presente. Essa ligagdo com o presente me leva a contar uma terceira his- t6ria de transmissao e de morte. Comecamos pela fabula do vinhateiro que falava aos filhos do leito de morte. Opusemos-lhe 0 poema de Brecht, “Apague os rastros”. A iiltima figura de narragdo que gosta- ria de citar 6 a do sonho de Primo Levi no campo de Auschwitz, so- ho sonhado, descobre ele, por quase todos os seus companheiros a cada noite. Sonha com a volta para casa, com a felicidade intensa de contar aos proximos o horror jé passado e ainda vivo e, de repente, percebe com desepero que ninguém o escuta, que os ouvintes se levan- tam e véo embora, indiferentes. Primo Levi pergunta: “Por que 0 so- frimento de cada dia se traduz, constantemente, em nossos sonhos, na ‘cena sempre repetida da narrago que os outros nao escutam?”.” Essa narrativa foi feita, estd sendo feita, mas, como ressaltam todos 0s so- breviventes, ela nunca consegue realmente dizer a experiencia inenar- ravel do horror. J se teceram muitos comentarios a respeito dessa irrepresentabilidade, Na narrativa do sonho de Primo Levi, gostaria de me ater a um outro personagem, aquele que se levanta vai embo- ra, na indiferenga. Vou tentar justiticar esta escolha. «6 Remeto aqui ao artigo de Gérard Namer que tem o sugestivo titulo de “La confiscation sociopolitique du besoin de commémocer”, revista Autrement, n° SA, Travail de mémoire 1914-1998”, Paris, janeiro de 1999. Rocco, 1988, p. 60. 7 Primo Leviy£ isto umn homem?, Rio de Janeiro, Hoje, quando 0s iim sobrevivenes de pois dos outros, morrem de morte dita naeen dobramento de empresas de meméria, Fen Para retomar o titulo provocativo de Todos ig0s. $6 citarei dois deles: uma fixaca, Nietasche, no fim do século XIX, jé tinh cy diversos sintomas do ressentiment de bem viver no presente); , chy } assistimgg ? "de, * Comportam yao catia 20 passadg HaBnosticado com oat © listo é, também a inca SMe na esteira dessa fixacao, ‘denen muitas vezes patoldgica, por individuos, que nay Si0 necessaae? te nem os herdeios diretos de um massan mortifera do algoz ¢ da vitima: como Fepeticao do (neo)nazi ou, trucéo de uma infancia no campo de Madjanek ( Binjamin Wilkomirski, aliés, Bruno Doessckeer) > As teflexdes de duas descendentes de sobreviventes do genocia arménio, Héléne Piralian ¢ Janine Alrounian, podem nos Se contexto, Esse genocidio é tio mais tersivel, na medida em quecon tinua, até hoje, sendo ignorado e denegado pela comunidade pote internacional, E como se houvesse herdeiros de mortos que, simbol camente falando, nunca existiram, que ndo pertenceram aos vivos¢ nao podem, portanto, pertencer hoje aos mortos, tornando seu lato 80 dificil — uma dificuldade anéloga, quase uma impossibilidae atormenta os familiares dos “desaparecidos” na América Latina. Agora, como tentar pensar um lugar fora desse ctculo de fi S40 € de identificagdo? Nao temos que pedir desculpas quando, - sorte, nao somos os herdeiros diretos de um massacre; € se, ape nao somos privados da palavra, mas, ao contrario, se Lopaeh aa do exercicio da palavra um dos campos de nossa atividade ee xemplo,na universidade),entio nossa tarefa consists tale ‘mais em restabelecer 0 espaco simbélico onde se possa articula 995. * Tayetan Todorov, Les abus de la mi ee ” Alusio ao liveo Bruchsticke, publicado em 1995 pela SuhckamP 4 para varios paises, inclusive o Brasil (Fragmentos: mem 1939-1948, Sao Paulo, Companhia das Letras, 1998). Saudado como eat Faas frtemuntos sobre a Shoah, fi denunciado poneinXE Bet do uma autobiografia fieticia — escrita pelo falsario ou esquiz ego oessckker, sugo de uns cinaientaanas,filhoiegtimo de uma ‘#do, ainda crianga, por um casal de médicos de Zurique- ue Héléne Piralian ¢ Janine Alrounian chamam de “terceiro” — isto Q aquele que nao faz parte do circulo infernal do torturador e do tor- a fungo dos ouvintes, que, em vez disso € para desespero do sonha- dor, vio embora, no querem saber, no querem permitir que essa palavras diferentes. Nesse sentido, muha se torna necessSria: testemunha no ser 2 ‘vu com seus proprios olhos, o histor de Hlerédoto, a test zeta, Testemunha também seria aquele que nao Val & nisi” yin Caine Coo ees Michel, 1999, p. S41. Ver a Wee = arr de cn poles erodes fs ema 7 ‘Ver também, de Janine Altour ‘Le trement 84, cides in Parler des camps, penser les gino, ei Memaria hstéra,testemunbo

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