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Referéncias Ananres, A.A. O que é cultura popular. S20 Paulo: Brasiliense, 1984, Cuoay, F. Lallégorie du patrimoine. Paris: Seul, 1996. Ienian. O regisiro do patriménio imaterial. Braslia: MinC, 2000. frio Nacional de Referéncias Culturais, Brasilia: Departa mento de [dentificagao e Documentagiio do Iphan, 2000. MECISPHAM/ENPM. Protegto e revitalizacio do patriménio cultural no Brasil: uma trajetéria. Brastlia: MEC/SPHAN/FNPM, r80. SaNTAwNa, M. Da cidade-monmento a cidade-documento: a trajetéria da norma de preservagio de éreas urbanas no Brasil (1937-1990). Dis sertagtio (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1995. Senna, 0.).T. O simbolismo da cultura. Salvador: Centro Editorial ¢ Di ditico da UFBA, 1991 _. inven tt PARA ALEM DA PEDRA £ CAL: POR UMA CONCEPGAO AMPLA DE PATRIMONIO CULTURAL MARIA CECILIA LONDRES FONSECA, A imagem que a expressio “patriménio hist6rico e artistico” evoca entre as pessoas é a de um conjunto de monumentos ant os que devemos preservar, ou porque constituem obras de arte excep- cionais, ou por terem sido palco de eventos marcantes, referidos em documentos e em narrativas dos historiadores. Entretanto, € forcoso reconhecer que essa imagem, construfda pela politica de patriménio conduzida pelo Estado por mais de sessenta anos, est longe de refletir a diversidade, assim como as tensdes ¢ os confli- tos que caracterizam a produgao cultural do Brasil, sobretudo a atual, mas também a do passado. Quando se olha, por exemplo, a Praga XV, no centro do Rio de Janeiro, um dos icones do patriménio histérico nacional, a evo- cagdo mais dbvia é a do poder real, suscitada pelo Pago Imperial, sede da Corte. Ao fundo, a antiga catedral, hoje igreja de Nossa Senhora do Carmo, atesta a importancia, no Brasil colonial ¢ im- perial, do poder da Igreja. E ponentes, tanto do ponto de vista da ocupagao e da permanéncia ses so testemunhos materiais im- no espago da cidade, quanto dos padroes estéticos hegemGnicos, valorizados como expressdes de cultura a época do tombamento desses bens pelo SPHAN. Essa leitura da Praga XV, no entanto, esta longe de evocar plena- mente o passado, a sociedade da época ¢ a vida que se desenvolvi naquele espago. Poucos foram os registros que, como os deixados por Debret, Hildebrandt (Fundacio Bienal de Sao Paulo, 200 outros, captaram ainda a presenca, nesses espacos, de mercado- res, escravos domésticos, ne ros de servigo e alforriados, enfim, da sociedade complexa e multfacetada que por ali ctculava. Era, so- bretudo, o olhar distante dos viajantes estrangeiros, movido menos pela necessidade de construir uma imagem ideal, em moldes eu ropeus, do pafs, que pelo interesse em documentar o que lhes pare cia peculiar, e proprio daquelas terras, que costumava “incluit” na gem 0s “excluidos”, no apenas daqueles espagos, que tam: ‘ocupavam, mas da meméria coletiva, exemplo da Praca XV ¢ significativo. Nesse local nio € posst- vel encontrar nenhuma marca ou mengao, atualmente, & presenga constante dos escravos pegando égua no Chafariz.do Mestre Valen tim, que lé ainda permanece apenas como mera extensiio do Paco Imperial. Se, como pesquisas hist6ricas vem comprovando, o Rio de Janeiro foi uma cidade quase africana durante a primeira metade do século XIX; stio identificados como patrimdnio cultural brasileiro, nem na leit essa informacao nao ficou registrada nos bens que ali ra que deles fazem os érgios de preservagio. Isso foi agravado pela falta de documentagao sobre essa vertente da histéria do Brasil Mesmo em relagio a centros histéricos, como 0 da cidade de Gois, tombado pelo Iphan em 1978, pertanto ja em fase mais re cente da politica federal de preservacao, a perspectiva nao é muito diferente. Ha muito tempo realiza-se, na Semana Santa, nessa ci 1réu, de que as igrejas, ruas e pracas so elementos fundamentais, assim como os rituais, a indumentaria e, sobretudo, as formas espectficas de participagao da comunidade Entretanto, a condigio de patrimOnio cultural da nagao é atribui- da, pelo drgio federal encarregado, apenas ao conjunto urbano edificado, além de alguns iméveis isolados. Embora fugaz, pois s6 se realiza uma vez.no ano, a Procissao do Fogaréu confere a esse cenério e & cidade um significado particular, indissocisvel de sua identidade como patrim6nio cultural Na cidade de Belém, cujo centro hist6rico a beira do rio Amazo- nas tem feigao portuguesa, é imposstvel deixar de perceber, no mer cado Ver-o-Peso, a forte presenga indigena nos produtos trazidos da {Conform noicapublieda no ral do Bras, em 9 de agosto de 2001, pin 9, con pte-americana Mary Kerasch,inttlado A vida dos exravor no Pio de fei 1808-1850. = 2a selva ¢, especialmente, nos modos de usé: dos pelos vendedores. No espaco do me gbes de valor arquitetdnico e artistico, como os mercados do Peixe Jos, também transmit lo, coexistem edifica: e da Carne, com tendas e esteiras em que ficam expostos ervas, cheiros e outras tantas mercadorias; € um lugar onde “se concen- tram e se reproduzem praticas culturais coletivas”, referentes aos grupos que, nesse espago, efetuam trocas materiais e simbélicas. ‘Trata-se de um raro exemplo de local em que coexistem claramente marcas de culturas tao distintas como a portuguesa e a indigena, sendo que apenas as primeiras foram identificadas e reconhecidas, via tombamento, como patrimdnio cultural brasileiro.s Também a Feira de Caruaru, em Pernambuco, é um lugar com as mesmas caracter(sticas do mercado paraense, com a diferenga de que, em seu perfmetro, no hi qualquer edificagao que pos sa ser tombada pelos critérios reguladores desse instrumento de protegao. Em barracas iguais a diversas outras, e nos espagos entre elas, convivem as manifestagdes mais variadas da cultura nordestina rural e urbana: o artesanato da regio, suvenires para turistas, comidas tipicas, bandas de pifanos, folhetos de cordel A Feira de hoje 6, sem divida, muito menos homogénea, ou “au téntica”, como muitos diriam, que a de cinquenta anos atrés, de caréter essencialmente rural. Todavia, é impossivel negar que con- tinue a ser uma referéncia da cultura nordestina, que incorpora cada vez mais intensamente outras influéncias que nfo apenas as da tradicao sertaneja. Um lugar como esse, porém, sem nenhuma edifi até a edigio do Decreto 3.551/2000, 0s requisitos para integrar 0 agdo ou paisagem de “excepcional valor’, néo apresentava, ‘Gita de trecha relative ao Livo das lugares, no incso IV do § 1 do artigo #”— Decreto 3: Também na cidade de Belém e ern municipios veinhos ocoreanualmente, no seg domingo de outubro, 0 Cio de Navaré, considerada a maior festa da eitandade pelo aimero de pes na Figura no repertcoofcalmente cons ‘do do pati 4.0 Decreto 3351, de 4 de agosto d iattuio Registro de Bens Culuras de N tureza material que constituem patrminio cultural brasileira © Programa Nacional do Patino que culminaram na publicgio do nal ~ universo de bens considerados pelo Estado patrim6nio hist6rico e artistico nacional Na verdade, do conjunto de bens e manifestagdes culturais ci- tados, apenas uma pequena parte foi, até agora, integrada ao pa triménio cultural brasileiro, constitufdo por legislagio federal © Paco Imperial, 0 Chafariz e a antiga Catedral, na Praga XV; 0 conjunto arquitetonico e paisagistico Ver-o-Peso, em Belém; ¢ as edificagdes jé mencionadas em Goids. Sao esses os bens passi- veis de tombamento, ¢ a leitura deles feita, como incorporados a0 patriménio, est centrada em seus aspectos arquitet6nicos, integrando marginalmente dados hist6ricos ¢ anélises de sua re~ lagdo com a cidade e a paisagems ‘A Constituigto Federal de 1988 (2003), em seu artigo 216, en- tende como patrimdnio cultural brasileiro 1s bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referéncia a ientidade, a agdo, } meméria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: 1. as formas de expressio: II. 08 modos de criar, fazer e viver, IIL as criagies cientificas, artsticas ¢ tecnolégicas IV. as obras, objetos, documentos, edificagdes e demais espagos destinados as manifestagbes artistico-culturais, V. 05 conjuntos urbanos e sitios de valor histérieo, paisagistico, artistico, arqueolégico, paleontoldgico, ecoldgico e cientfico > das arvdades dr Comisio edo Grupo de Tabula do Pa ‘iseibuda pelo Iphan e pela Secretaria do Ptriménio, Museus Artes Psticas do Minis ‘deo da Cults (Fonsecs, 022), riménio Tatra, produrkla © 5, Uma proposta de leita mals ica dos ambientes naturale constrtdo nserindo nessa itu sua dimensto histrca, foi fla pelo arguiteto do Iphan Luis Fernando Franco, na 23/986. Cabe notar que 0 Guiedos bens tmbador (Carazon, 1987), apesar do que tule suger, abrange apenss os bens indvlsiscits nos Livos do Tombo do Iphan (que. na verdad, constituetnsesmagadora maioria dos hens tombed: brsicameneinformagbes de cariter forma, estiistic earuitetOnico. Esse gua de grande ede fo elaborado com base na consulta as process de tmbarsento, 0 que s6 ern a mara tipo de letra Feit pelos tcnicos do Iphan, predominantemente auiteos. yz a Portanto, de acordo com o entendimento do legislador, © con- junto de bens passiveis de ser tombados (artigo 216, incisos IV e /) constitui apenas parte* do que, no texto constitucional, é con- siderado patriménio cultural brasileiro. Para esses, aplica-se um tipo de protegdo legal que visa a assegurar sua integridade podendo inclusive limitar-se, com essa finalidade, o direito indivi dual a propriedade. Entretanto, o que deveria ser uma das moda lidades de formacao desse patriménio terminou por ser, durante mais de sessenta anos, a tinica dispontvel.” No caso da maior parte das “criagSes cientificas,artisticas e tec nol6gicas" (inciso II), sobretudo as de autoria individuel, existem mecanismos préprios de registro, transmissao, protecao e difusio. As leis de propriedade intelectual e de di senvolvidas com essa finalidade, assim como o depésito legal de ica, to autoral foram de- publicagdes na Biblioteca Nacional. Embora no tenham como objetivo atribuir valor cultural aos bens a que se apliquem, es ses instrumentos € essas préticas terminam por contribuir para a construcao do patriménio cultural brasileiro, na medida em que identificam essas criagdes € asseguram o acesso a elas, trazendo garantias e beneficios a seus produtores. No caso especifico das criagdes artisticas de caréter erudito, so muitas as instancias de atribuigio de valor cultural, como pre- miagdes, referencias em textos de hist6ria da arte ou de critica, integragao em colegdes particulares, principalmente de museus, divulgagao em exposighes etc. Esses critérios de atribuigao de valor foram mencionados por Mario de Andrade (1981, p. 39-54), em seu anteprojeto para a criago do Servigo do Patriménio Artistico Na- cional, elaborado em 1936. No entanto, hé toda uma gama de bens e manifestagdes cultu- rais significativos como referéncias de grupos sociais “formadores da 6. Em depoimento eo Conseho Federal de Cultura, em janeiro de 1968, Rodrigo Melo Franco de Andrade (198, p. 71) diz qu, ente “os bens a proteger de valor arquenlipco, histérco,artstico e natural (..] avutam, porém, os monumentosarguitetnlcos, com leo primacil de noso patria! 7-A proteeo dos monumentos arqueoligicose préhistéricos€ objeto de legisla fea, a Let 3924, de 26 de jul deg, sociedade brasileira” (Brasil, 2503, p. 146-147) a que nao se podia aplicar, até recentemente, nenhum instrumento legal que os cons- titufsse como patriménio, [sso significa que muitos deles poderiam desaparecer sem deixar nenhum vestfgio, seja material, seja na ‘meméria da nagio, pelo fato de nao terem sido considerados “de valor excepcional’, conforme determina o artigo 1° do Dec.-Lei 25, de 30 de novembro de 1937, que cria 0 tombamento, ou por tratar de manifestagdes de carater proces: quer forma de protegio que tenha por objetivo fixar determinada feicdo fisica do bem. A limitagao, durante mais de sessenta anos, dos instrumentos disponiveis de acautelamento teve como consequéncia a produ- de uma compreensao restritiva do termo “preserva costuma ser entendido exclusivamente como tombamento. Tal si tuago veio reforgar a ideia de que as politicas de patriménio intrinsecamente conservadoras e elitistas, uma vez que 0s critérios adotados para o tombamento terminam por privilegiar bens que referem os grupos sociais de tradigao europeia, que, no Brasil, sao aqueles identificados com as classes dominantes, ‘A consciéncia desses problemas, que também ocorrem, com as devidas diferengas, na grande maioria dos estados que desenvol- vem politicas de patriménio, tem levado, nos foros nacionais e in- ternacionais, como a Unesco, a solugdes diferenciadas, visando a ampliar a abrangéncia de tais politic mente recente e, na Unesco, é fruto tanto da erftica ao eurocentris- mo da nogio tradicional de patrimdnio histérico e artfstico quan- to da reivindicagao de paises e grupos de tradigao nao europeia, al, a que néo se aplica qual » Esse movimento € relativa: 15. Cabe lembraro proceso de tombamento do Santuirio de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, ‘que fot arquitado porque o relator, o ant log Lue de Casto Farias, em 1968, via umn ‘onflta entre a conservagao da edificasio e seu uso a putica de “um cult de cunho popular ue tnha uma dinimica propria ensolendo “ampigio,renovagboe mesmo ino tagio" do espogo. Argumento semelhane fl invcada como abjego 20 tombamento do Terreiro da Casa Brance, em 198, mas, nesse cas, o bem fol insrite no Liv hstrico« no Lior arguecigio, etmogrfcn paagisico. «9. Ver Lev Strauss (india). © antopélogoacompanhou atkamente os tabalhos de pre Parag da proposta da decteo, desde o Semindeio de Fortaleza, em 1997. Ver também © texto publiedo no dosse, etd na nota 4 no sentido de verem reconhecidos os testemunhos de sua cultura como patrim@nio cultural da humanidade. No Brasil, a publicagao do Decreto 3.551/2000 insere-se numa trajet6ria a que se vinculam as figuras embleméticas de Mario de Andrade e de Alofsio Magalhaes, mas em que se incluem também patrim6nio cultural brasileiro, montada a partir de 1937." Contri- buem, ainda, para essa reorientagao nao s6 0 interesse de univer- sidades ¢ institutos de pesquisa em mapear, documentar e analisar as diferentes manifestagdes da cultura brasileira, como também a multiplicagao de érgaos estaduais e federais de cultura, que se empenham em construir, via patriménio, a “identidade cultural” das regides em que estado situados. Entretanto, ante a existéncia, hoje, de um contexto favoravel & ampliagao do conceito de patriménio cultural e & maior abrangén- cia das politicas pablicas de preservacao, ficam no ar algumas pet ‘guntas: 0 que se entende por “patriménio imaterial’, se € que essa Qual o objeti: vo do Estado ao criar um instrumento especffico para preservar ma: nifestagdes que nao podem e naa devem ser congeladas, sob o risco de, assim, interferir-se em seu processo espontineo? E como evitar que esse registro venha constituir um instrumento “de segunda classe”, destinado as culturas materialmente “pobres”, porque a seus testemunhos nao se reconhece o estatuto de monumento?* Nao se pretende aqui responder a essas perguntas, apenas fazer algumas consideragdes que auxiliem no mapeamento dessa nova expressiio nao constitui uma contradi¢a0 em termo 1o, Essa obserago no deve ser entndida como uma erica 8 aso passada do SPHAN, 0 que sigafcaia um anaconismo (Fonseca, 197, p20) 1 Um exomplo ¢ 0 projto "Conhecer para preserva’, apresentado eo prémio Rode fp Melo Franco de Andrede, em 1997, pela Secretaria de Estado de Educagio Culura do Tocantins, que se prope a fazer ust iventrio em nove cidades histreas do estado recémcriado, lindo asim 3 emaneipagt poli uma emanipasi0"simbolica. A pro Pst, um importance material para o estado do patio cultural de natureza material no Brasil &consituid pelos tabalhosapresentados aos prémios Silvio Romero, do Centro [Nacional de Folclore e Cultura Popular da Funarte, e Rodtigo Melo Franco de Andrade, so phan. 12. A"Carta de Venez’, de 1g6s,estende a nogio de monument histtico “também as obras modestas que tenham adguirido com o tempo uma significa cultural” (Cartas Patrimoniis, 1995, p. 10). avilleg representacdo, mais ampla, do patrimOnio cultural brasileiro, € @ tracar politicas inclusivas, que contribuam pata aproximar 0 patri- ménio da cultura produzida no pats. A fungao de patriménio eas politicas publicas A questo do patriménio imaterial, ou, conforme preferem outros, patriménio intangivel, tem presenga relativamente recente nas poli- ticas de patrimdnio cultural. Em verdade, é motivada pelo interesse em ampliar a nogao de ‘patriménio histérico e artistico’, entendida ‘como repert6rio de bens, ou “coisas”, ao qual se atribui excepcional valor cultural, o que faz com que sejam merecedores de protecio por parte do poder paiblico. Voltadas para monumentos e visando & conservagio de sua inte gridade fisica, as politicas de patriménio centradas no instituto do tombamento certamente contribuiram para preservar edificagées obras de arte, cuja perda seria irreparsvel. Contudo, esse entendi ‘mento da pritica de preservacao terminou por associé-la as ideias de conservacio € de imutabilidade, contrapondo-a, portanto, 2 nogio de mudanga ou transformagao, e centrando a atengo mais no ob- jeto e menos nos sentidos que The sio atributdos ao longo do tem: ‘po. Como observa 0 antropdlogo José Reginaldo Gongalves (1996, p. 22), a énfase na ideia de “perda’ ¢ tributéria de uma nogao de historia como “processo inexordvel de destruicao [...] sem que se Jevem em conta, de modo complementar, os processos inversos de permanencia e recriacdo das diferengas em outros plan E necessario pensar na produgao de patrim@nios culturais nfo ape- nas como a selecdo de edificagées, sitios e obras de arte que passam ater protegao especial do Estado, mas, conforme prope 0 autor cita- do, como “narrativas’, ou, como sugere Mariza Veloso Motta Santos 1992), tomando de empréstimo a formulagao de Michel Foucault, como uma “formagao discursiva’, que permite “mapeat” contetidos simbélicos, visando a descrever a “formagao da nagao” e constituir uma “identidade cultural brasileira”. Em verdade, as politicas de pa- Fe triménio, tal como sto estruturadas atualmente, com certeza estdo longe de cumprir esses objetivos, ainda mais numa sociedade que se queira demoeritica Uma anélise eritica dos Livros do Tombo, do Iphan, revela que essa limitagao tem consequéncias mais graves que a mera exclu- stio de “tipos” de bens culturais desse repertério. Na realidade, essa estratégia produziu um “retrato” da naco que termina por se identificar & cultura trazida pelos colonizadores europeus," repro- duzindbo a estrutura social por eles aqui implantada, Reduzr 0 patrimOnio cultural de uma sociedade as expressoes de apenas algumas de suas matrizes culturais ~ no caso brasileiro, as de origem europeia, predominantemente a portuguesa ~ é to proble- mético quanto reduzir a funcio de patriménio a protegio fisica do bem. E perder de vista 6 que justifica essa protegiio, que, evidente ‘mente, representa também um énus para a sociedade e para alguns cidadlaos em particular. Para que essa fungao se cumpra, é neces sério que a acao de “proteger” seja precedida pelas ages de “identifi car" e “documentar” ~ bases para a selecdo do que deve ser protegido = seguida pelas agoes de “promover’ e “difundir’, que viabilizam a reapropriagao simbolica e, em alguns casos, econémica e funcional dos bens preservados. ‘Todas essas ages encontram-se fundamentadas em critérios nido apenas técnicos, mas também politicos, visto que a “represen: tatividade” dos bens, em termos da diversidade social e cultural do pats, é essencial para que a fungi de patrimdnio realize-se, no sentido de que os diferentes grupos sociais possam se reconhecer esse repertétio. Porém, nao basta uma revisio dos critérios ado- tados pelas instituigdes que tem o dever de fazer com que a lei seja aplicada, tendo em vista a dindmica dos valores atributdos. E necessétia, além disso, uma mudanga de procedimentos, com 0 propésito de abrir espagos para a participacio da sociedade no pro: cesso de construgao e de apropriagao de seu patriménio cultural 15, Ver Rubino (gai. Ver também a mensagem do entio ministro da Cultura, Francis Wilf, 0 Conselho Cans do Pan de Cultura, proferida em 2 de dezemibro de do Iphan, epublleads no dss referido Sobre a nocao de patriménio imaterial Quando se fala em patriménio imaterial ou intangivel, ndo se est referindo propriamente a meras abstragdes, em contraposi¢ao @ bens materiais, mesmo porque, para que haja qualquer tipo de co municagdo, é imprescindivel um suporte fisico (Saussure, 1969) Todo signo (e no apenas os bens culturais) tem dimensio ma: terial (0 canal fisico de comunicagao) e simbélica (0 sentido, ou ‘melhor, os sentidos), como duas faces de uma moeda. Cabe fazer 1 distingo, no caso dos bens culturais, entre aqueles que, uma vex produzidos, passam a apresentar relativo grau de autonomia em relacdo a seu processo de producao, ¢ aquelas manifestagdes que precisam ser constantemente atualizadas, por meio da mobi- lizagio de suportes fisicos — corpo, instrumentos, indumentéria e ‘outros recursos de caréter material -, 0 que depende da acto de sujeitos capazes de atuar segundo determinados cédigos ‘A imaterialidade é relativa e, nesse sentido, talvez. a expressao “patrimdnio intangivel” seja mais apropriada, pois remete ao tran- sit6rio, fugaz, que ndio se materializa em produtos durdveis. Em relagaio a Procissao do Fogaréu, por exemplo, apenas algum tipo de registro documental pode viabilizar um acesso continuo (e re- lativo) a essa manifestagao cultural Talvez o melhor exemplo para ilustrar a especificidade do que se esta entendendo por patrimdnio imaterial — ¢ assim Cae Io, para fins de preservagio, do chamado patrimdnio material ~ seja a one dos repentistas. Embora a presenca fisica dos cantadores ¢ de seus instrumentos seja imprescindivel para a realizacao do repente, 6a capacidade de os atores usarem, de improviso, as técnicas de composigdo dos versos, assim como sua agilidade, como intetlo: cutores, em responder a fala anterior, que produz, a cada “perfor mance”, um repente diferente. Nesse caso, estamos no dominio absoluto do agui e agora, sem possibilidade, a nio ser por meio de algum registro audiovisual, de perpetuar esse momento “Outro exemnplo 60 da pintura corporal, praticada por varias tri- bos indigenas no Brasil. Imposstvel nao Ihe reconhecer valor es- tético, apesar de ser estranho que nao costume figurar em nossos compéndios de artes visuais. Assim como o repente, tem caracte risticas que a distinguem da tradigdo pictérica moderna, de caréter individualista, que busca a originalidade como valor: os padres relativos Aquela pintura sao codificados pela tradicio e funcionam como sinais distintivos entre membros do grupo. Trata-se, portan- to, de uma prética ritual, cujo valor simbélico s6 tem sentido num determinado contexto. Se nao forem consideradas essas particula- ridades, corre-se 0 risco de entender essa pritica em seu aspecto puramente formal, projetando sobre ela valores estranhos aos con- textos culturais @ que se refere Essa abordagem da questo do patriménio cultural vem eviden: ciar um aspecto que a pratica de preservagtio des monumentos, centrada nos aspectos técnicos da conservagio e da restauragao, tende a ocultar: a ideia de que a preservacao do patriménio cultu ral € uma “prética social” (Arantes, 1989, p. 12-16), que implica um processo de interpretagao da cultura como producdo nao apenas material, m também simbslica, portadora, no caso dos patrim6- nios nacionais, “de referéncia a identidade, 2 ago, 8 meméria dos diferentes grupos formadores da sociedade” (Brasil, 2003, p. 146). Mesmo quando a iniciativa parte do Estado, esses valores preci sam ser aceitos e constantemente reiterados pela sociedade, a par tir de critérios que variam no tempo e no espaco. Nessa linha de reflexao, fica claro que a elaboracao e a aplica 80 de instrumentos legais, como 0 tombamento, nao sio sufi cientes para assegurar que um bem venha a cumprir efetivamente sua fungao de patrimdnio cultural em uma sociedade. E necesséria uma constante atualizagao das politicas especrficas, tanto mais se tais politicas desenvolvem-se num contexto democratico. E, portanto, a partir de uma reflexiio sobre a fungao de patrimé- hio e de uma critica & nocao de patriménio hist6rico e artistico, que se passou a adotar — no s6 no Brasil ~ uma concepgio mais ampla de patriménio cultural, nio mais centrada em determinados obje- tos — como os monumentos -, ¢ sim numa relagao da sociedade com sua cultura. Nesse sentido, as palavras de Alofsio Magalhaes (1985) nao perderam sua atualidade Ocorre, entretanto, que o conceito de bem cultural no Brasil conti nua restrito aos bens méveis ¢ imbveis, contendo ou ndo valor cria tivo préprio, impregnados de valor hist6rico essencialmente voltados para o passado, ou aos bens da criagao individual espontinea, obras, que constituem 0 nosso acervo artstico (miisica, literatura, cinema, artes plisticas, arquitetura, teatro), quase sempre de apreciagao eli tista. Aos primeiros deve-se garantir a protegio que merecem e a possibilidade de difusio que os tome amplamente conheeidos. Deles podem provir as referencias para a compreensio de nossa trajetéria fo no futuro. Quanto como cultura e os indicadores para uma proje aos segundos, basta assegurar-lhes a liberdade de expressio € 05 re- cursos necessérios a sua concretizagzo, Permeando essas duas categorias, existe vasta gama de bens — procedentes sobretudo do fazer popular ~ que, por estarem in seridos na dindmica viva do cotidiano, nao so considerados bens culturais nem utilizados na formulagdo das politicas econdmica e tecnolégica. No entanto, é a partir deles que se afere o potencial, se reconhece a vocagio ¢ se descobrem os valores mais autenti- cos de uma nacionalidade. Além disso, é deles ¢ de sua reiterada presenga que surgem expressées de sfntese de valor eriative que constitui o objeto de arte (p. 52-53). [..o] Eu diria que minha missdo talver seja temporéria nesta dupla fungi [de Secretério de Assuntos Culturais e Secretério do Patrimo: nio Histérico e Artstico Nacional]; talvez seja apenas o tempo neces sdrio para estabelecer uma adequaga0 mais nitida, dentro do sistema do trato cultural, da responsabilidade do Estado, e talver. definir me Thor o que sejam as duas grandes vertentes do bem cultural: vertente jo cultural, Parece nitida essa divisao patrimonial e a vertente da a aque, na verdade, é mais para efeito de trato metodoligic, e no pro priamente uma divsio de éreas. Na imagem que me ocore, a vertente patrimonial lembra uma rotagZo ou eireulo de didmetro muito amplo ¢ rotagio lenta, enquanto a ago cultural, na criagdo do bem cultural 61m circulo de diametro curto e rotagao muito répida, Ambas as rotagh ras tm os seus tempos e a sua dinfmica propros ¢ especificos. Se ambos 0s efculas trabalham, interagindo um com 0 outro, for possivel neste trabalho identificar melhor as duas vertentes ¢ esta- térios de adequagao dessas vertentes ~ a quem compete © qué, como ¢ quando, onde essas vertentes se encontram, belecer melhor os e elas se encontram frequentemente, alimentando-se mutuamente, na verdade — talvez seja possivel chegarmos a uma visio de conjunto mais compre siva do que seja 0 bem cultural, dentro do quadro geral da nagao brasileira (p. 133-134) Nessa visio, 6 evidente que o patrim@nio nfo se constitui apenas de edificacdes e pecas depositadas em museus, documentos escri- tos ¢ audiovisuais, guardados em bibliotecas e arquivos. Interpre- tages musicais e cénicas (documentadas ou nio) e, mesmo, ins- tituigdes, como 6 0 caso da Comédie Frangaise ou do Balé Bolshoi (Rigaud, 1996, p. 73), também integram um patriménio cultural coletivo. InterpretagGes e instituigdes, assim como lendas, mitos, ritos, saberes e técnicas, podem ser considerados exemplos de um patrimdnio dito imaterial. Esse entendimento amplificado da no- ao de patriménio cultural apresenta trés consequencias. Em primeiro lugar, vem diluir certas dicotomias que, tradicio- nnalmente, organizam o campo das politicas culturais: produgio x preservacao; presente x passado; processo produto; popular x erudito. Impossivel negar, por exemplo, que a arte do repente seja um patrim6nio cultural do Brasil, mas imposstvel também “tombé-la"" Sua manutengio depende, sobretudo, da adocao de medidas de apoio a seus produtores, no sentido de preservar, na medida do possivel, condigdes de produgio, divulgacao e forma- 0 de pablico, assim como costumam ser orientadas, por exem- plo, as politicas voltadas para as artes cénicas. A plena fruigao de um repente supde a presenca fisica de seus produtores frente @ um ptiblico (do mesmo modo que uma pega teatral precisa de intérpretes), 0 que nao ocorre na leitura de um livro ou na apre ciagdo de uma obra de arte visual ou de um monument. 14. Haja vista os efeitos indcuos do tombamento da edicagto e dos equipamentas da fi: brica de vinho de cau Tito Siva, em Joo Poss, realizado em ig8, vsando 8 preservago dbesse mod de faze 7 Stine Em segundo lugar, vem esclarecer certos mal-entendidos, como 0 que restringe a ideia de patrimonio imaterial a folelore e/ou cul: tura popular, Embora essas éreas venham a ser das mais benefi ciadas por uma politica de patriménio mais abrangente, na medida ‘em que tém ficado bastante desassistidas pelas politicas pablicas de cultura, nao é a suposta imaterialidade ou, pior, uma hipotéti- ca “pobreza” de seus testemunhos materiais que constituiriam 0 diferencial em relagao a bens culturais de natureza material, que seriam assim associados as manifestagdes de cardter erudito.'* Em terceito lugar, a questo abre espaco para estender a grupos € nagées de tradigao nao europeia as politicas de patriménio cul- tural. Foi a pressao de pafs da Africa, manifestada na conferéneia de Nara, realizada em 1994, no Japao, e em outras ocasides, que levou a uma revistio dos cri térios da Unesco para inscrigéo na lista do patrimonio mundial. ‘A impossibilidade de incluir na lista bens como 0 Templo de Ise, naquele pafs, que é sistematicamente destrufdo e reconstrufdo no como 0 Japao e outros do Oriente e mesmo local," ou a arquitetura no Norte da Africa, cujas edifica~ ‘des devem ser constantemente refeitas devido a agéo do vento, constituta um desafio para o Comité do Patriménio Mundial. Nos dois casos, ¢ em outros tantos, a protegao fisica do bem € invi vel, mesmo porque essa nao é a logica de sua preservacao. O que importa para esses grupos sociais € assegurar a continuidade de uum processo de reproducao, preservando os modos de fazer € 0 respeito a valores como 0 do ritual religioso, no caso do Templo de Ise, ¢ 0 sentido de adequagao da técnica construtiva as condig&es ‘geol6gicas e climsticas, no caso da arquitetura em terra do deserto norte-africano, ‘A ampliagio da nogo de patrimonio cultural é, portanto, mais «um dos efeitos da globalizagao, na medida em que ter aspectos de sua cultura, até entdo considerada por olhares externos como tos: ca, primitiva ou exética, reconhecidos como patriménio mundial 5, Sabre esses questbes, ver 0 textos do Seminsro “Folelore e Cultura Pop th pelo entio Instituto Nacional do Foleloce da Funart, em 1988 (2000) 16. Em 1993, 0 templ fi reconstruido pela 63!vex > = contribui para inserir um pais ou um grupo social na comunidade internacional, com beneficios nao s6 politicos, mas também eco- némicos. Por outro lado, essa abertura no processo de producao dos pa- trim6nios culturais apresenta novos problemas para uma prética de carter essencialmente seletivo, e que tem sido restrita a espe- cialistas. Se os critérios de atribuigao de valor tornaram-se mais flexiveis, se ha maior preocupagdo com a dimensio politica dessa pritica social, o que significa a participagao de novos atores e um permanente questionamento dos critérios adotados, hé estudiosos (que alertam para o risco de banalizagao no pressuposto de que tudo pode se tornar patriménio (Chastel e Babelon, 1980, p. 5-32). Cabe, entio, a pergunta: banalizagio ou dessacralizagao, como conside- ram outros estudiosos, que veem nesse movimento uma orienta democratizante? O fato € que, tendo em vista fendmenos recentes como os in- tensos fluxos migratérios, os processos de comunicagao cada vez mais dgeis, a presenca e a interpenetracao de tradigdes culturais distintas, mesmo em paises de cultura consolidada, como a Fran- a, movimentos que podem ser resumidos no que tem sido deno- minado “desterritorializacao da cultura” (Gupta e Fergusson, 2000 Gvidas de que essa ampliaga0 no conceito de patriménio cultural contribui para aproximar as politicas culturais icos, multirreligiosos ¢ extremamente hete rogeneos, que caracterizam as sociedades contemporineas. dos contextos multiét Nesse raciocinio, tora-se necesséirio ampliar também o reperté rio das praticas de preservacdo, que até recentemente eram identi ficadas, no Brasil, exclusivamente com o tombamento. No caso das ‘manifestagdes citadas no inicio e ao longo deste capitulo, o que se pode preservar sao registros (escritos, sonoros, visuais etc.) dessas formas de expressio e informagées sobre 0 contexto em que ocor- rem, assim como 0s sentidos que tém para os diferentes produtores € destinatérios, o que tem um interesse evidente para a sociedade (Fonseca, 2000). A preserva tages musicais e cénicas, rituais religiosos, conhecimentos tra- dicionais, praticas ter produgio ¢ de reciclagem, cultural, tem uma série de efeitos: 1) aproxima o patriménio da produgao cultural, passada e presente; 2) viabiliza leituras da produgao cultural dos diferentes grupos so ciais, sobretudo daqueles cuja tradigao € transmitida oralmente, que sejam mais préximas dos sentidos que essa produgo tem para seus produtores e consumidores,” dando-Ihes voz nao ape nas na produgo, mas também na leitura e na preservago do sentido de seu patriménio: 3) cria melhores condigées para que se cumpra o preceito consti- tucional do “direito & meméria” como parte dos da meméria de manifestagbes, como interpre- euticas, culindrias e kidicas, técnicas de que é atribuido valor de patriménio ‘direitos cultu- rais” de toda a sociedade brasileira; 4) contribui para que a insercio em novos sistemas, como o mer- cado de bens culturais e do turismo, de bens produzidos em con- textos culturais tradicionais possa ocorrer sem 0 comprometi mento de sua continuidade hist6rica, contribuindo, ainda, para que essa insergo aconteca sem o comprometimento dos valores que distinguem esses bens e lhes dio sentido particular. Consideracées finais Para Lyndell Prot (Unesco, 2000, p. 157), ages voltadas para a identificagdo, a preserva rial (que a Unesco entende aqui, prioritariamente, como conheci- a valorizagto do patriménio imate- mentos € modos de vida tradicionais) tém objetivos variados. a7. Em recente vistas novas sala do Museu do Louvre, em que esto expostas pogas mut to antigs de cultura aficanas,asiticase da Oceania, oui do chefe do Senso Cultral do Museu, Jean Galard, uma obserago sobre dificaldade dos curadores de apresentare contextuaizar a peas, po alta, patieamentesbsolus de informagies complementaes, fo que ot lvave de modo inenorvel a fazer uma letra predominantemente estétca dos bens, pelo que vinhamn send enicados sobretido por historadorese antropslogos Para os que mantém esses estos de vida, o prop6sito pode ser o de preservar 0 conhecimento tradicional e um valioso modo de vida para as futuras geragées; pode ser, igualmente, a sobrevivencia fisica, uma vez que a adaptacao tradicional ao meio ambiente € ca: paz de evitar um estilo de vida, em tiltima instancia, insustentével Para um Estado, o objetivo pode ser o de manter tratamento médi- co local de baixo custo para populagGes no limite da subsisténcia, para outros, a intengio pode ser a de ganhar tempo para inventariar ¢ explorar exaustivamente recursos, como 0 conhecimento tradi cional de propriedades vegetais (médicas, biol6gicas e agricolas), de modo a apropriar-se delas para ganho economico; para cientis- tas, 0 objetivo pode ser o de viabilizar a pesquisa sobre modos de vida sustentéveis ou sobre diversidade do desenvolvimento huma- no como evidenciado, por exemplo, nos milhares de Iinguas hoje ameagadas de extingao, ou na sobrevivencia de espécies desconhe- cidas fora de sua comunidade, como parte dos recursos biol6gicos da Terra. Ainda outros grupos podem querer utilizar elementos tra- dicionais em sua cultura como fonte de renda, a ser autorizada para uso de outros ou reservada para eles prdprios, a fim de prover-Ihes recursos econdmicos. Pode-se preservar um modo tinico de vida como uma fonte de dignidade, de orgulho cultural e de identidade, ou usé-lo como uma atragao turistica para gerar renda. Nao € coincidencia o fato de que, no texto citado, patriménio natural ¢ cultural praticamente nao se diferenciem. Cada vez.mais, a preocupagiio em preservar estd associada A consciéncia da im: portincia da diversidade ~ seja a biodiversidade, seja a diversidade cultural - para a sobrevivéncia da humanidade. No caso da biodiversidade, hé uma clareza cada vez maior, por parte da opinio publica, de que se trata de um patriménio de todos os cidadaos, acima de interesses particulares. Talvez as ori- gens do movimento ambientalista, que nasce associado & pesquisa cientifica e as organizagées da sociedade, tenham favorecido essa mobilizagdo em torno da necessidade de preservar 0 meio am biente, dificultando a apropriagao dessa “causa” por facgbes polf- ticas ou sua associagao a posturas ideolégicas, como elitismo ou conservadorismo, ~ fe A! 76 MEMORIA PATRIMONIO Por sua ver, 0 conceito de patrimdnio histérico e artistico € for mulado tendo como pano de fundo a questao nacional. Raros so 6s autores que, como Alois Riegl (1984), pensam a questao do pa- triménio cultural a partir da dinamica de valores que 0 constitu Dado 0 modo como se implantaram as politicas de patrimdnio, predominantemente associadas & construgao dos Estados-nagao e de uma representagio de “identidade nacional’, e dada também sua precéria apropriagio pela sociedade como um todo, essas po- Iiticas terminaram por referir-se predominantemente dqueles gru- pos sociais que detém o poder de produzir a representagao hege- ménica do “nacional Sem dtivida, a ampliago do conceito de cidadania — 0 que im- plica reconhecimento dos “direitos culturais” de diferentes grupos que compsem uma sociedade, entre eles o direito & meméria, ao acesso 8 cultura e a liberdade de criar, como também reconheci mento de que produzir e consumir cultura sio fatores fundamen: tais para o desenvolvimento da personalidade e da sociabilidade veio contribuir para que o enfoque da questo do patrimdnio cultural fosse ampliado para além da questio do que é “nacional”, beneficiando-se do aporte de compor como a Antropologia, a So- ciologia, a Estética e a Histéria Outra analogia com a questo ambiental diz respeito a posigio, nesse novo cenério, dos paises em desenvolvimento. Nesse caso, menos se torna mais: a manutengo, em geral involuntétia, dos recursos naturais, torna-os “ricos” nesse sentido, assim como a sobrevivéncia de formas de vida, ou melhor, de “formas de ex- pressio” e “modos de criar, fazer e viver” diversificados, em geral ‘mais apropriados aos recursos disponiveis na regido, torna nao s6 esses recursos, como os conhecimentos a eles associados, uma riqueza” que tem sido cobicada e, em muitos casos, expropriada pelos paises desenvolvidos.” Pensar em formas de preservar esse 18. Essa foi a principal premissa das ideas desenvolvidas por Alotsio Magalhaes (1985) e do trabalho que desemole a frente das ciferentesinsaiges plc que dg, de 975 si, ao de eu falecinento, 19. No rai ese assunotem sid objeto dos tabalhoe do Gro Intense Pro priedade Intelctal (Gi), que fanciona ne Casa Cl da Presidncia da Repl, em {ue ba i subjupo qu ie expeicamente dos conhecimentos tadicona patriménio, como também sua relagio com seus produtores ¢ con- sumidores, passa a ser estratéyica para 0 desenvolvimento de ais regides. Como se vé, as questdes levantadas por essa nova concepeto, ampliada, de patriménio cultural, abrem em muito o leque de cam- pos de saberes e de instituiges que passam a se envolver, direta ou indiretamente, com a produgio, gestdo e promogio desse patri- ménio. No mesmo sentido, as novas questdes levam a sociedade a uma compreensdo mais rica da nogio de patriménio cultural, € certamente mais préxima de seus interesses. Para finalizar, o processo de releitura da questi do patrim@nio nifo se esgota no nivel conceitual. Implica, sim, o envolvimento de novos atores e a busca de novos instrumentos de preservago e pro mogio, Frente a esse novo quadro, muito mais complexo e desa- fiador, é fundamental que se formulem e se implementem politicas que tenham como finalidade enriquecer a relagao da sociedade com seus bens culturais, sem que se perca de vista os valores que justificam a preservacio.” Falar em politicas significa ir além dos conceitos, embora sem- pre os tendo como referencia. Significa formular diretrizes, defi- nir critérios e prioridades, elaborar projetos, realizar intervengSes, mantendo sempre como parmetro a tensio entre necessidades, demandas e recursos dispontveis. E, ainda que os conceitos con- tinuem imprecisos, € imperioso passar da teoria A prética, na es- peranca de que as experiéncias venham, como de costume, en- riquecer a reflexo, numa dialética do processo de produgao do conhecimento e de transformagio da realidade. Referéncias Anprape, M. de. Cartas de trabalho. 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