Você está na página 1de 4
" CAIO PRADO JUNIOR. . - Edgard Carone * Depois ‘de um longo perfodo.de doenga,.em qué passou quase seis anos em vida vegetativa, faleceu em 24 de novembro de 1990, Caio da Silva Prado Jiinior. Nascido em 11 de fevereiro de 1907, sua vida passa Por trajetoria extensa e complexa. Estuda em S. Paulo, no Colégio S. Luis ¢ em Eastborn, na Inglaterra; depois faz a Faculdade de Direito (1928), na capital paulista, exerce a profissdo de advogado e até pu- blica obra juridica, A Unificagdo do Direito Privado (1926). E a revolugdo de 1930 e as suas ramificag6es que o desviam da trajetéria conservadora de sua familia aristocrdtica e de seu ambiente. Nomeado para a Delegacia Revolucionéria de Ribeirdo Preto, realiza viagem pelo interior do Estado, ocasido em que depara com a teia de interesses na qual se forma o poder coronelfstico. A constatagao, leva-o a tomar posig&o critica e, finalmente, a entrar no Partido Co- munista do Brasil, em 1932. O processo é r4pido: estando no PCB, no ano seguinte produz obra marxista, que é Evolugdo Polltica do Brasil: ensaio de interpretagdo materialista da historia brasileira. A elaboragio do trabalho s6 poderia ser resultado do acimulo de seus co- nhecimentos hist6ricos anteriores, que se somam, a partir de 1930 ou 1931, com a leitura de obras marxistas existentes no mercado, com cer- ta abundancia, em espanhol ¢ francés. A comprovacdo desta assertiva confirma-se pela tradugdo que Caio Prado Junior faz da teoria do Ma- terialismo Historico, de Bukarin safdo sem 0 nome do tradutor, pela Edigdes Caramuru, em 4 volumes, em 1935. No ano de 1933, ele viaja 4 Russia, momento em que expressa suas observagdes em novo livro URSS, um novo mundo. Comp. Editora Nacional, 1934. A 2? edigdo, de 1935, € apreendida pela polfcia. * Professor Associado do Departamento de Histéria da FFLCH/USP 214 Entre 1933 ¢ 1935, sua atividade militante ¢ grande, o que o leva a ocupar © cargo de Presidente da recém-formada Alianga Nacional Libertadora, em S. Pauld. Por esta raz4o, ser4 preso em novembro de 1935, ap6s o movimento insurrecional em Natal, no Recife e no Rio. Permanece no presfdio Maria Zélia até 1937, sendo solto com a ma- cedada (1937). Aproveitando-se desse momento democrdtico, que antecede a instauragéo do golpe do Estado Novo, foge para a Europa ¢ [4 participa da luta a favor dos republicanos espanhdis, contra Fran- co. Volta ao Brasil nos meses que antecedem a Ila. Guerra Mundial e na hora em que o PCB praticamente deixara de existir. Além de par- ticipar da agdo do pequeno grupo de comunistas paulistas. prepara sua grande obra hist6rica que € Formagdo do Brasil Contemporéneo: Co- l6nia (1942), livro que revoluciona a andlise interpretativa de nossa historia. A partir de 1942/1943, ele se mostra contrério ao CNOP, isto €,aala do Partido que apéia a luta contra 0 nazismo, a0 mesmo tempo que aceita a permanéncia de Getilio Vargas no poder. E em 1945, com a safda de Lufs Carlos Prestes da prisdo, que os diversos grupos dissi- dentes do CNOP, acabam aceitando a sua lideranca e incorporando-se ao PCB, Em 1945 publica a Histéria Econdmica do Brasil, livro escrito para a Colegdo Tierra Firme, da editora mexicana Fondo de Cultura Eco- nomica. Ao mesmo tempo retorna a atividade partiddria, é eleito de- putado estadual em 1947, e cassado, como seus companheiros, em 1948. Neste espago de tempo, tem papel importante na discusséo so- bre Constituiggo do Estado. Nos anos posteriores, participa do V Congresso do PCB (1956) e de inGmeras outras atividades partiddrias. E, paralelamente, continua a produzir trabalhos, torna-se editor da Revista Brasiliense, tendo fundado a Editora Brasiliense (1942), com Monteiro Lobato. Além de indmeros livros de filosofia marxista, co- mo pode ser visto na lista anexa, duas obras continuam a marcar o seu amor pelo socialismo militante: O mundo do Socialismo (1962), im- PressOes de uma viagem de retorno a Rissia, ¢ A Revolugdo Brasileira (1966), ponto de vista critico sobre as posig6es do PCB. Caio Prado Junior marcou a sua vida pela coeréncia de suas posi- G6es polfticas, pela modéstia de suas atitudes, pela batalha infatigével de sua militancia escrita ¢ de agSo. Critico, seguindo com atengéo a polftica do PCB, depois do V Congreso (1956), por varias razdes, afasta-se da vida partid4ria. A se- Paracao provoca a curiosidade de uma amiga, que lhe pergunta: "Caio, vocé saiu do PCB, ¢ ainda continua comunista?" A resposta veio rapi- da: "Continuo comunista cada vez mais". © compromisso com seu ideal se expressa também, ¢ permanentemente, nos atos do cotidiano de sua vida. De famflia rica, nao deixa transparecer em atos sua origem social. Ao contrario, nunca d4 a entender o que pratica, como por exethplo, o auxilio que presta aos outros. Por depoimentos de tercei- fos, sabemos dos recursos financeiros que cede aos militantes do Par- 215 tido, perseguidos pela polfcia, ou as fam{lias dos companheiros foragi- dos ou necessitados; das casas que "“empresta” para reftigio de mii tantes que fogem das autoridades. Para nao falarmos do pagamento das despesas € aluguéis, resultantes do perfodo de vida da Alianca Nacio- nal Libertadora, em Sdo Paulo. Intelectualmente, a coeréncia se mostra na capacidade de sua pro- dugSo, cujo total atinge quase a casa de vinte obras. Mas grande parte de sua produgio se encontra espalhada em jornais ¢ revistas, nestes anos de sua fecunda produco, entre as décadas de trinta e sessenta. A maior parte dos leitores conhece seus editoriais e artigos safdos na Revista Brasiliense, porém, querendo pesquisar melhor, ver-se-4 que sua presenga est4 também em A Platéia (1935), O Estado de S.Paulo, em capftulos de varias obras, nas discuss6es sobre a Reforma de Base, etc. Paralelamente a esta atividade, nota-se a persisténcia com que se dedica aos estudos hist6ricos: as duas primeiras obras nesse campo — Evolugdo Polttica do Brasil e Formagdo do Brasil Contempordneo — sSo produzidas em momentos relativamente diferentes: em 1933 a primeira, em 1942 a segunda. A Formagdo é gestada apés a volta do exflio (1939), mas a sua elaboragSo faz que aptauda a reedigdo de alguns classicos inteiramente esgotados. E com prefacio esclarecedor € penetrante que aparecem as edigdes fac-similadas do jornal O Tamoio (1823) pela Editora Zelio Valverde, 1944, ¢ de A Coreografia Brastlica de Aires de Casal (1.N.L., 1945). Outro traco curioso de sua trajet6ria editorial € 0 fato de ser 0 Au- tor cuja obra, em maioria esmagadora, saiu publicada com recursos proprios. A Evolugdo Politica do Brasil nfo tem o nome da editora, mas unicamente o da grafica, Revista dos Tribunais; A URSS, um novo mundo € © Gnico livro publicado por uma editora (Comp. Editora Naciona); Formagdo tem a chancela da Livraria Martins, mas sabe-se que foi financiada por Caio Prado Junior. As obras posteriores, na sua totalidade, saem pela Editora Brasiliense, de sua propriedade. A nos- sa observac4o n&o pretende mostrar limite nenhum ao fato, mas ape- nas revelar a coincidéncia do fendmeno, pois, sem davida, pelo valor e prestigio do Autor, nao faltariam, na maior parte dos casos, editores que quisessem publicar os seus livros. Finalmente, outro aspecto de sua contribuigdo, que em geral € marginalizado, € a valorizagdo do fendmeno geografico como um dos fatores do conhecimento histérico. Caio Prado Junior utiliza-o diale- ticamente, mostrando a sua relacio na formagao brasileira, no sentido Positivo e também no negativo. Nos capitulos.da Formagdo, a sua pte- senca € fundamental, nas partes sobre “Povoamento" e¢ . "Vida Material", 0 que mostra como ele foi discipulo da Escola Francesa de Geografia- Humana, de Vidal de la Blanche, que, na década de 30, € difundida pelas Faculdades de Filosofia, do Rio de Janeiro e de Séo Paulo. Entre nés, dois franceses ocupam lugar de destaque: Pierre Deffontaines e Pierre Mombeig, que vieram ao Brasil, o primeiro, em 216 1934, o segundo, em 1935. Cabe a Mombeig a fundagao da Sociedade Geogrdfica Brasileira e a publicagdo da revista Geografia. Das reu- nides da Sociedade e das publicagées da revista, Caio Prado participa, © que resulta excelentes trabalhos seus sobre Geografia e Histéria: 0 fator geogrdfico na Formagdo e Desenvolvimento da Cidade de S.Pau- Jo, € nos estudos que tratam da Contribuigdo para a Geografia Urbana da Cidade de Sao Paulo. ‘Um ailtimo trago que queremos ressaltar (existem muitos outros) é a sua capacidade de procurar € auscultar o real. Em entrevista de 1978, Caio Prado diz que "é preciso deixar o povo falar". E é com esse povo € esse pafs que ele gosta de manter contacto, para conhecé-los, sentir a sua realidade. Eu 0 vi varias vezes, tomando Onibus na cidade, como conhego suas declaragbes, dizendo preferir viajar pelo Brasil, para sentir a sua realidade, a passear pelo estrangeiro. E no exflio, em Pa- ris, em 1971, ao pensar em conhecer a América do Sul, € indagado sobre o meio de transporte que usaria: "De Snibus, ora essa, ou voces sabem de alguma forma melhor para conhecer a realidade? respondeu do alto de seus 64 anos retos de corpo e coragem, aqueles exilados que poderiam ser seus filhos" (David Lerer in Folha de S. Paulo, 28.11.1990, Painel do Leitor) Algumas indicagées bibliogréficas do autor: A Republica Velha (2-vols.); O Estado Novo. A Republica Liberal Seu 6htimo livro intitula-se. Classes Sociais ¢ 0 movimento operdrio. 217

Você também pode gostar