Você está na página 1de 8
1978 A Incorporagao do Hospital na Tecnologia Moderna "incorporacion del hospital en ta tecnologia moderna’ (Eineorporation de Thopltal dans la tecnoloyie moderne": trad. D. Reynié). Revista Centroamertcanar de Ctencias de la Salud, n. 10, malo-agosto de 1978. p. 83-104. (Conferéneia promunciada no aimbito do curso de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, outubro de 1974.) Em que momento se comecou a considerar o hospital como um instrumento terapéutico, ou seja, como um instrumento de intervencéo na doenea. um Instrumento capaz, por isso mes- ‘mo ¢ por cada um de seus efeitos, ce tratar de um doente? © hospital, como um instrumento terapéutico, € um con- ceito relalivamente moderno, ja que ele data do final do século XVIII, Foi em torno de 1760 que apareceu a ideia de que 0 hospital podia e devia ser um Instrumento destinado a curar 0 docnte. Isso se produziu por meio de uma nova prdtica: a visita a obscrvacao sistematica e comparada dos hospttais. Comecow-se a se realizar na Europa uma série de viagens de estucos, Entre estas a do inglés Howard.’ que percorreu os hospitais e as prisoes do continente, de 1775 a 1780; houve também a do francés Tenon,? enviado a pedido da Academia das Ciéncias, no momento em que se formulava o problema da Feconstrucao do Hospital Municipal de Paris. Essas viagens de estuclo apresentavam muitas caracteris- tieas: 1. Sua finalidade consistia em definir, bascado cm uma en- quete, um programa de reforma ou de reconsirucao dos hospi- 1. Howard (J). The state of prisons in England and Wales, Londres, War: ington, 2 vol., 1777-1780 (Etat des prisons. des hopltaux et des maisons de force, rad. J. P. Bérenger, Pari, Lagrange, 2 vol. 1788), 2. Tenon (JR). Mémotres sur tes hépiiaus de Parts, Parts, Royes, 1788, 1978 A Incorporagao do Hospital na Teenologa Moderna 445 tais. Quando na Franca a Academia das Ciéncias decidiu enviar ‘Tenon a diversos paises da Europa para indagar sobre a situacao dos hospitais, ele escreveu a seguinte frase que me parece muito importante: “Sao os hospitais ja existentes que deve permitir avaliar 0s méritos, assim como os defeitos do novo hospital.” Considera-se, entao, que nenhuma teoria médica basta para definir um programa hospitalar. Além disso. nenhum plano de arquitetura abstrata esta em condigdes de oferecer a formula do bom hospital. Com efeito, trata-se aqui de um problema complexo, cujos efeitos ¢ consequéncias nao sao bem conhe- cidos. © hospital atua sobre as doencas, mas pode, contudo, agravé-las, multiplicé-las, ou, ao contrario, atenué-las. Somente uma investigacdo empfrica desse novo objeto que € 0 hospital, interrogado ¢ isolado de maneira também nova, podera dar uma ideia de um programa moderno de constru- do dos hospitals. © hospital cessa, assim, de ser uma simples figura de arquitetura e passa agora a fazer parte de um fato medico-hospitalar, que deve ser estudado tal como os climas, as doencas ete. 2. Essas investigacoes forneciam poucos detalhies do aspecto externo do hospital e da estrutura geral do edificio. Nao se tra- tava de descricdes de monumentos, como aquelas feitas pelos classicos viajantes dos séculos XVII c XVII, mas de descricoes funcionais. Howard e Tenon prestavam contas do nimero de doentes por hospital, da relacdo entre o mimero de pacientes € 0 ntimero de Icitos, co espaco itil da instituicao, do compri ‘mento c altura das salas, da quantidade de ar disponivel para ‘cada doente ¢, por fim, da taxa de mortalidade ou de cura Eles buscavam igualmente determinar as relagies que po- diam existir entre os fendmenos patologicos ¢ as condicoes proprias a cada estabelecimento. Assim, Tenon pesquisava quais cram as condicoes particulares para melhor tratar os casos hospitalizados devido a feridas e quais as menos favord- veis. Desse modo, ele estabelecia uma correlagao entre a taxa de crescimento da mortalidade dos feridos ¢ a proximidade com os doentes acometidos de febre maligna, como se costu- mava dizer naquela época. Ele demonstrava, também, que a taxa de mortalidade das parturientes aumentava quando elas cram alojadas em um comodo situado acima dos feridos. Do mesmo modo, ‘Tenon estudava os trajetos, 0 desloca- mentos, 0s movimentos do interior do hospital, em particular 446 michel Pouca Ditos Bseritos © percurso seguido pela roupa limpa, lencois. pela ro panos ulizados para euigar dos docntes ete. Fle busta oe terminar quem transportava esse material, para onde o levavi, a quem o distribuiam. Segundo ele, esse percurso explicar, diferentes fatos patolégicos préprios aos hospitals, a Ele analisava também porque a trepanacao, uma das opera. mais frequentemente praticadas nessa época, desenrola, va-se de modo muito melhor no hospital inglés de Bethleem do que no Hospital Municipal de Paris. Bxistiriam fatores internos A estrutura hospitalar ea distribuicao dos doentes que pudes- sem explicar essa situacéo? A questao se apresent siluacao das salas, de suas repartigdes, do transporte da rou. pa suja _3. Os autores dessas descrigdes funcionais da organizacao médico-espacial do hospital nao eram, porém, arquitetos. non era um médico € foi como tal que a Academia das Ciéncias © designou para visitar os hospitals, Se Howard nao era médi- co, ele, porém, fol um precursor dos filantropos e possuia uma competéneia quase sociomédica Foi assim que apareceu uma nova maneira de se ver 0 hos- Bibl. considerado um mecanismo que deveria curr e, para sso, deveria primeira corrigir 0 06 80, deverap zr 05 efeitos patol6gicos que podia Bra possivel alegar que isso nao era novo, que hé multo tempo os hospitais se dedicavam a tratar dos doentes. Poder- sc-ia afirmar que 0 que se descobre no século XVIII € que os hospitais nao curavam tanto quanto deviam: que nao se tra- tava de nada além de um refinamento de exigénetas clissicas formuladas em relacao ao instrumento hospitalar. Gostaria de formular uma série de objecdes a essa hipétese. © hospital que funeionava na Europa, a partir da Idade Mé- dia, nao era de modo algum um melo de cura, nem se quer nha sido concebido para isso. Na histérla dos tratamentos dados aos doentes no Ocicente, houve, na realidad, duas cate- gorias distintas que nao se superpunham, que com frequéncia se encontravam embora fossem fundamentalmente diferentes, a saber: a medicina ¢ o hospital 0 hospital como instituicdo importante ¢ mesmo essencial para a vida urbana do Ocidente, a partir da Idade Média, nao € uma instituico médica. Naquela época, a medicina nao era uma profissao hospitalar. E importante manter em mente essa 1978 ~ A taconporacto do Hospital na Tenologia Moderna 447 situacéo para se poder compreender a inovagéo representada pela introducao, no século XVII, de uma medicina hospita- lar ou de um hospital médico-terapéutico. Tentaret mostrar fa diferenca entre essas duas categorias a flm de situar essa inovacao, ‘Antes do século XVIIL, 0 hospital era essencialmente uma instituleao de assisténcia aos pobres. Ele era ao mesmo tempo uma instituigao de separacao € de exclusao. O pobre necessi- tava de assisténcia; como doente, ele era portador de doen. ca que ele arriscava propagar. Resumindo: ele era perigoso. Disso decorren a existéncia necessaria do hospital, tanto para recolhé-los quanto para proteger 0s outros do perigo represen- ado por eles. Até 0 século XVII, a personagem ideal do hos- pital nao era o doente, aquele que se devia tratar, mas 0 pobre ja moribundo, Trata-se aqui de uma pessoa que necesita de ‘uma assisténcla material ¢ espiritual, que precisava receber os {iltimos recursos e os uiltimos sacramentos. Essa era a funcao essencial do hospital. Dizia-se entao, € com raz4o, que o hospital era um lugar ‘onde se ia para morrer. O pessoal hospitalar nao se esforgava para tratar do doente, mas, muito ao contrario, esforgava-se para obter a sua salvagdo. Era um pessoal caritativo (compos- to por religiosos ou laicos) que trabalhava no hospital para realizar uma obra de misericérdia, garantindo, assim, a sua futura salvacdo. Por conseguinte, a instituicao servia para sal- var a alma do pobre no momento de sua morte, assim como a do pessoal médico que disso se encarregava. © hospital exercia uma funcao de transigao da vida para a morte, de salvagao es- piritual muito mais do que de funcao material, separando ao ‘mesmo tempo os individuos perigosos do resto da populacao, Para se estudar a signifieagao geral do hospital na Idade Mé- dia e durante o Renascimento, cabe ler Le livre de vie active de [Hétel-Dieu? escrito por um parlamentar, administrador do Hospital Municipal de Paris, em uma lingua chela de meti- foras, uma espécie de Roman de ta rose da hospitalizacio. mas que reflete perfeitamente a mistura das funcoes de assisténcia ‘¢ de conversio espiritual de que 0 hospital se encarregava, 3. Maitre Jehan Henri (membra do coral de Notre-Dame e presidente dCi thera das lnvestizacoes no Parlamento}, Le lore de vie active des retigeuses de (Hotel-Dieu de Parts, Paris. 1480, 448 Michel Foucault ~ tos ¢ Bseritos Essas foram as caraeteristicas do hospital até 0 comego dg século XVIII. O hospital geral. lugar de internacao onde ee tovelavan € se misturavam doentes. loucos, prostitutas ainda era, na metade do século XVII, uma espécie de instru mento misto de exclusio, asistencia € conversa espiritual, ignorando, assim, a funcao médica No que concerne a pratica médica, nenhum dos elemen- tos que a integravam ¢ Ihe serviam de justificativa clentites @ predestinavam a ser uma medicina hospitalar. A medicing medieval. ¢ também a dos séculos XVII € XVIII, era profune damente individualista para 0 médieo, a quem se reconhecia a condicao de médico depois de uma inietagao garantida peta Prépria corporagao médica. Ela compreendia um dominio dos textos, assim como a transmisséo de formulas mals ou menos secretas. A experiéncia hospitalar nao fazia parte da formagéo ritual do médico. AA intervengao do médico na doenca girava em torno do con- ceito de crise, O médico devia observar 0 doente e a doenga desde 0 aparecimento dos primeiros sintomas a fim de deter- minar 0 momento em que se deveria produzir a crise, Ac se representava o ifistante durante o qual se defrontavam no doenie sua natureza saudavel eo mal que o atacava, Nessa lta entre a natureza e a doenga, 0 médico devia observar os sinals, prever a evolucao e favorecer, dentro do possivel, o triunfo da satide ¢ da natureza sobre a doenca. No (ratamento, a nature- za, a doenca € 0 doente além do médico, todos entravam em Jogo. Nessa luta, médico preenchia uma funcao de predicao, arbitrio e aliado da natureza eontra a doenca. Essa espécie de batalha da qual o tratamento tomava forma sé podia se desen- rolar por meto de uma relacdo individual entre 0 médico € 0 doente. A ideta de uma vasta série de observacoes, recolhidas em um seio de um hospital, que teria permitido realcar as ca. racteristicas gerais de uma doenga ¢ os seus elementos parti- culares ete., nao fazia parte da pratica médica. Assim, nada ha pritica médica dessa época permitia a organizacao dos co- nhecimentos hospitalares. A organizacéio do hospital também do permitia a intervencao da medicina. Por conseguinte, até & metade do século XVIII, o hospital e a medicina permanece- 40 dois dominios separados. Mas como se produziu a trans- formagao, ou seja. como foi que se “medicalizou” 0 hospital ¢ como se conseguiu chegar até & medicina hospitalar? 1978 A lneorporacao do Haspit ‘a Teenologla Moderna 449 © fator principal da transformacaonao foi a pesquisa de «uma ago positiva por parte do hospitaicom relagao ao doente fou a doenca, mas simplesmente a anulcao dos efeitos negalt vos do hospital. Em primetro lugar. nip se. trava de medieall, zar o hospital, mas de purificé-lo dos saus efeitos nocivos, das desordens que ele ocasionava. Nesse caso, entendem-se por desordem as doencas que essa instituigao poderia engendrar nas pessoas tnternadas © propagar nacidade onde ela se en- contrava. Assim, o hospital era um niideo perpétuo de desor~ dem econamiea e social. Essa hipdtese de uma “medicalizagio” do hospital pela eli minagéo da desordem que ele produra foi eonfirmada pelo fato de que a primeira grande organizario hospitalar da Euro- pa apareceu no século XVI, essencialrente nos hospitals dos maritimos ¢ militares. O ponto de parila da reforma hospita Jar nao foi o hospital civil, mas 6 hospital dos maritimos, que era um lugar de desordem econémica, Com efelto, foi a partir dele que se organizou 0 tréfico das wereadortas, de objetos prectosos e de outras matérias raras provenientes das cold- nias, O traficante, fingindo-se doente, era levado 20 hospital quando de seu desembarque. Ali, ele dissimulava os objetos, ‘0 que os fazia escapar do controle econimico da alfindega. Os grandes hospitals maritimos de Londres, de Marseliia ou de La Rochelle {ornaram-se, assim, 6 local de um amplo trafico contra o qual protestavam as autoridates fiscats. Desse mado. o primeiro regulamenio hospitalar que apare- ceu no século XVI Se reporta a inspecio dos cofres que os ma- rinhelros, médicos € apoticérios conservavam nos hospitais. A partir dese momento, era possive inspect registrar o seu contetido. Se neles fossem encontradas mer- cadorias destinadas ao contrabando, sus proprietarios eram imediatamente punidos. E fol assim que apareceu nese ret Jamento uma primeira investigacdo econsmica. Por outro lado, outro problema aparecia nos hospitals ma- ritimos e militares: 0 da quarentena, quer dizer, 0 das doengas cpidémicas que as pessoas desembarcadas poderiam portar Os lazaretos estabelectdos, por exemplo, em Marselha ¢ em La Rochelle, constituiam uma espécie de hospital perfeito. Mas era essencialmente um tipo de hospiulizagao que nao conce- be o hospital como instrumento de cura, mas, sim. como um 0s cofres € 450 Michel Foucault = Dios e Bscetos meio de impedir 0 aparecimen til amet de impedir 0 ap io de um nticleo de desordem Se os hospitais maritimos € militares se tornaram mo da reongnizacto hospital fo1 por, corn mercantsage as regulamentacées econ6micas se fizeram mais restrltas. May foi também porque o valor do homem comecou a aumentay cada vez mais. Foi precisamente nessa época que a formactio do individu, sua eapacidade. suas aptidoes comegarain ater uum preco para a sociedade. Consideremos 0 exemplo do exército. Até a segunda meta- de do século XVII, nao havia nenhuma dificuldade para recru- far soldados. Bastava possuir alguns metos financeiros. Na Europa inteira havia desempregados, vagabundos, miseré vels, mendigos dispostos a se alistar no exéreito de qualquer poténcia, nacional ou religiosa, No final do século XVI. a in- {rodugao do fuzil tornow 6 exército muito mais técnico, muito mals sutil e eustoso. Para aprender a manejar o fuzil eram necessirias manobras, aprendizagens. instrucdes. Assim, o preco de um soldado exceclia o de um simples trabalhador, ¢ © custo do exéreito transformou-se em um lugar orcament: Flo de razodvel importincia para todos os paises. Do mesmo modo, quando um soldado se formava, nao se podia deixlo morrer. Se ele morresse, teria de ser em uma batalha, Soldat, e nao por essen de una docnga, Nao podenies es quecer que no século XVII a taxa dle mortalidade dos soldado: cra muito elevada. A titulo de exemplo, um exéreito austriaco que partiu de Viena em direcao a Itilla perdeu cinco sextos dle seus homens antes de conseguir chegar aos locais de com- bate, Essas perdas causadas pelas doencas. pelas epidemias © pelas desercoes constituiam um fendmeno relativamente comum, A partir dessa transformacio técnica do exéreito, o hospital militar se tornow um problema téenico e militar importante: 1. era preciso viglar os homens no hospital militar para evi lar que desertassem, ja que tinham sido formados 2 10 fertgue a formados a um custo 2. era preciso trata-los para que eles néo morressem di té-los para que eles ressem de doenca; 3. era preciso, enfim, evita uma vez restabelecidos. nao fingissem mais que estavam doentes. 1978 —A Incorporapio do 451 ovpllal na Tecnologia Mode Consequentemente, uma reorganizacéo administrativa e politica surgiu: um novo controle por meio da autoridade no Embito do hospital militar. O mesmo aconteceti com 0 hospital maritimo, a partir do momento em que a técnica maritima se tornou mais complexa e onde, aqui também, nao era possivel contentar-se em perder uma pessoa formada a um custo ele- vado. ‘Como foi que se realizou essa reorganizagao do hospital? © remanejamento dos hospitais maritimos ¢ militares nao se fundameniou em uma téenica médica, mas, essencialmente, em uma tecnologia que se poderia qualificar de politica, isto é, a diseiplina. ‘A disciplina é uma técnica de exercicio do poder que nao fot, para falar com propriedade, inventada, mas. sim, elaboraca ao ongo do século XVII. Com efeito, ela a existia no Medievo € até mesmo na Antiguidade. Nesse sentido, os mosteiros constitui- ram um exemplo de lugar do poder no seio dos quais reinava tum sistema disciplinar. A escravidao ¢ as grandes companhlas escravagisias existentes nas colonias espanholas, inglesas, francesas, holandesas etc. eram também modelos de mecants- mos diseiplinares, Poderiamos remontar a legido romana ¢ ali encontrarfamos também um exemplo de diseiplina, Desse modo, os mecanismos disciplinares datam dos ten pos arcaicos, mas parecem isolados, fragmentaclos até 08 tulos XVII e XVIII, quando o poder disciplinar se aperfetcoa, tornando-se uma nova técnica de gestao do homem. Fala-se com frequéncia das invencdes técnieas do séeulo XVII ~ a tec- nologia quimiea, a metalurgia ete. -. mas néo se menciona a invencao técnica de uma nova maneira de governar o homem, controlar seus multiplos aspectos, utiliza-los a maximo ¢ melhorar 0 produto «til de seu trabalho, de suas atividades, gracas a um sistema de poder que permite controli-lo, Nas grandes fabricas que comecavam a aparecer. no exército, nas escolas, nos grandes progressos da alfabetizacao observados por toda a Buropa, apareceram essas novas téenicas de poder {que constituiram nas grandes invengdes do século XVI. ‘A partir dos exemplos da escola e lo exército, 0 que se ve surgir nessa época? 1, Uma arte de repartigio espacial dos individuos. No exér- ito do século XVI, 0s individuos $40 amontoados formando aglomerados, com os mais fortes ¢ capazes postos a frente € 0s TT 452 Miche! Foucault -pitos¢ Bscritos ue nao sabem lutar, os covardes que ameacam fg, postog fos flancos ou pelo meio. A forca de um corpo militar resteig entio, no efeito de densidade dessa massa humana ‘ No século XVII, ao contrario, a partir do momento em queg soldado recebia um fuzil, era necessério estucar a distributeag dos individuos a fim de situé-los convenientemente al onde sua efiedcia poderia alcangar 0 maximo. A disciplina militae comeca a partir do momento em que se ensina a um soldado a 8e posicionar, deslocar, a estar all onde Ihe eabe estar. Do mesmo modo, nas escolas do século XVII, os alunos também so amontoados. O professor chamava um deles e, durante alguns minutos, ministrava-the uma liedo, depots o enviava de volta ao seu lugar para em seguida chamar outro, € assim por diante, O ensino coletivo era oferecido a todos os alunos ¢ simultaneamente supunha uma nova distribuicao es. pacial da sala de aula, A disciplina é antes de tudo uma anélise do espaco. E a individualizacao pelo espaco, a instauracdo dos corpos em um spaco individualizado, permitindo a classificacao ¢ as combi- nacoes. 2. A disciplina nao exeree 0 seu controle sobre o resultado de uma acao, mas sobre o seu desenvolvimento. Nas fébricas de tipo corporativo do século XVI, exigia-se do operario ou do proprietario a fabricacdo de um produto possuindo quali- dades particulares. A maneira de fabricé-los dependia do que Se transmitia de uma geracao a outra. O controle nio afetava © modo de produgéo. Da mesma maneira, ensinava-se a um soldado como lutar, ser mais forte que o adversario na luta individual ou no campo de batalha. A partir do século XVI, desenvolveu-se uma arte do corpo humano. Comecou-se observando os movimentos executadas, para determinar quafs scriam os mais efieazes, os mais rap. dos € mais bem ajustados. Foi assim que apareceu nas fabricas © famoso ¢ sinistro personagem do contramestre, encarregado. de observar nao quem estivesse fazendo o trabalho, mas de que maneira se poderia fazé-lo mais rapidamente c com movimen- tos mais bem adaptados. No exéreito, aparecia o suboficial ¢ com ele os exercicios, as manobras e a decomposicao dos mo- vimentos no tempo. O famoso regulamento da infantaria que garantiu as vitérias de Frederico da Prtissia compreendia uma série de mecanismos de direcdio dos movimentos do corpo. 178 - A tncorporagie do Hospital na Tenologa Moderta 453 3 plina é uma téenica de poder que implica uma observ-los de tempos em tempos, ou ver se o que eles fazem corresponde as Fegras.F preciso vikilos sem cessar pa ave a alvidade se realize, ¢ preciso submeté-los a uma pride manente de vigilancia. Assim, apareceu no exércilo uma soldado, além de uum sistema de inspecio, revistas, paradas. desfiles etc. que permitem observar em permanéncia cada in- dividuo. vente antec 4.8 discipina supoe um realstro permanente: anslag sobre 0 individuo, relagao dos acontecimentos, elemento dis- explinar, comuntcagéo das informacées para os escaloes Supe- riores, de tal forma que nenhum detalhe escape da descricao wad 0 da hierarquia bale descontinuo, Tratava-se do poder soberano sobre grupos Integrados por familias, etdades, parqulas, ou seja, por unt dades globais. Nao se tratava de um poder agindo cot mente sobre o individuo. - “cae aua ovate A dseiplina ¢o conjunto de ena em virtude das as sistemas de poder {ém por objetivo € resultado a singula instrumento fundamental reside no exame, O exame ¢ @ vig lancia permanente, elassifieadora. que permite repart 0 In- Aividuos,jug-os e avalos, locals e, assim, ullzd-tos ‘a0 maximo, Por melo do exame, a individualidade se torna wm elemento para o exercicio do poder. "Rinmadueso ae meanismos disiinares no espaco de sordenado do hospital iia permaitir sua mediealizagao’ Tl que aeaba de ser expostoexplica a razn de o hospital ter se disciplinado: razoes econdmicas, 0 favor atribuido 20 indivi duo, 0 desejo de evitar a propagicio de epidemias exptieam © controle diseiplinar ao qual os hospitals foram submeticos. Mas, se essa disciplina adquiriu um carter médico, esse poder diseipinar foi conflado ao médico, devemos a ele wma transformacdo do proprio saber médica, Devemos atefbulr @ formagao de wma medina hospitalar, de um lado. @ intro ducao da diseiplina dentro do espaco hospitalar e, 40 ou ‘ago que a pratica da medicina conhecet nessa 454. Michel Foucault - Dios € No sistema epistémico ou epistemolégico do sécul grande modelo de intcigbidade das docncas €. ote slassificagio de Lineu, Ela implica a necesaldade de peneae doengas como um fendmeno natural. Tal como para as plan: tas, hi, nas doengas, especies diferentes, de caracterstieas okt servavels, com tipos de evolucdo. A doenica é a natureza, re uma natureza devida A agdo particular do melo sobre o Indie duo. Quando a pessoa saudavel ¢ submetida a algumas acoes do meio, ela serve de ponto de apoio a doenca, fendmeno limite da natureza. A dua, 0 ar, a allmentagao, o regime geral const tuem as bases sobre as quais se desenvolvem em um individuo comm os eierentes tips de doen. sa perspeciiva, 0 tratamento ¢ conduzido por u 7 vencao medica que nao visa aleancar 1 doenga proprianete dita, como na medicina da crise, mas quase a margem da doen. cae do organismo, orientando-se para o meio ambiente: 0 ar. a ‘gua, a temperatura, o regime, a alimentagao etc, E uma medic. nna do meio que se constitui a medida que a doenca ¢ considera. da como wn fendmeno natural, obedecendo aes naturals a articulacao desses dois processos, ou seja, 0 deslaca- mento da inervengao médica €-4apleagao de sciping no espaco hospitalar, encontramos a origem do hospital médico, Esses dots fendmenos de origem diferente lam poder articu: lar-se gracas a introdugio de uma disciplina hospitalar, cuja funcao consistia em garantir as indagacées, a vigilancia, a apll- cagdo da disciplina em um mundo desordenado dos docntes ¢ das does, e, por fim, transformar o estado do meio que circundava os doentes. Da mesma forma, os Inaivealleadose distribuidos em um espace onde oe pocns Vigié-los e anotar os acontecimentos que tinham lugar. Moditi, cava-se também 0 ar que respiravam, a temperatura ambiente, 8 agua potive.o regime, de manera que © novo rosto do hos: Dial impost pela neu da disp esse ma fancao Se admitirmos a hipotese de que 0 hospital nascew das t6 © meio. compreenderemos as diferentes caracteristicas que possul essa instituicao. " 1. A localizacao do hospital ea distribuicao Interna do espa- 0. A questao do hospital do final do século XVII ¢ fundamen. talmente uma questo de espaco. Em rimeiro lugar, trata- 1978 ~A incorporacie de Hospital na Tecnologia Moderna 455 se de saber onde se situaré o hospital, para que ele deixe de ‘ser um lugar sombrio, obscuro ¢ confuso, em pleno centro da cidade, ao qual chegavam os homens na hora de sua morte, propagando perigosamente os seus miasmas, ar contaminado Agua suja etc. E preciso que o lugar onde se situara o hospital esieja em conformidade com o controle sanitario da cidade. ‘A localizacao do hospital deveria ser determinada a partir de uma medicina do espaco urbano. Em segundo lugar, era preciso calcular a distribulgdo inter- na do espaco dentro do hospital em funcao de alguns critérios. Se as pessoas estivessem convencidas de que uma aco exerci- da sobre o meio curaria os doentes, entao era preciso criar em torno de cada doente um pequeno espaco individualizado, es pecifico, modificado de acordo com 0 paciente, com a doenca € também com sua evolucao. Era necessarlo obter uma autono- mia funcional e médica do espaco de sobrevivéncia do doente. Assim fol estabelecido o principio segundo 0 qual 0s leltos nao poderiam ser ocupades por mais de um paciente. Suprimtiu- se, entao, o leito dormitério, no qual podiam amontoar-se por vezes até seis pessoas. Era também preciso criar em torno do doente um meio mo- dificdvel, permitindo aumentar a temperatura, refrescar 0 ar. dirigi-lo apenas para um $6 doente. A partir dai desenvolve- ram.se pesquisa sobre a individualizagao do espaco de vida e respiracao dos doentes, inclusive nas salas coletivas. Assim, por exemplo, formulou-se um projeto de isolar 0 lelto de cada doente com a ajuda de panos colocados sob as laterais € na parte de cima, mas de modo a permitir a eirculagio do ar, blo- {queando, ao mesmo tempo, a propagacdo dos miasmas. Tudo isso nos mostra como, na estrutura particular, 0 hospital constituit: um meio de intervengao sobre a doenca. A arquitetura hospitalar deveria ser 0 fator € 0 instrumento de itratamento hospitalar. O hospital aonde os doentes s6 chega- vam para morrer deveria cessar de existir. A arquitetura hos- pitalar se torna um instrumento de tratamento, tal como uma dicta alimentar, uma sangria ou qualquer outra ago médica. © espaco hospitalar medicalizou-se em sua fungio e em seus feltos. Essa foi a primeira caracterfstica da transformacao do hospital no final do século XVII 2. Transformacao do sistema de poder no scio do hospital ‘Ate a metade do século XVIII foi o pessoal religioso, raramente 456. Michel Foucault Ditos ¢ Bsertios © laico, que exereeu o poder. Ele era encarregado da vida co- lidiana do hospital, da salvacao ¢ alimentacao das pessoas in. ternas. Chamava-se 0 médico para se ocupar dos doentes mais gravemente acometidos. Menos que uma aco real, tratavacse de uma garantia, de uma simples justificagao. A visita médica era um ritual muito irregular. A prineipio, ela acontecia uma vez por dia e para centenas de doentes. Em suma, 0 médico dependia administrativamente do pessoal religioso, que tinha © poder de demiti-lo. A partir do momento em que o hospital fol coneebido como instrumento de tratamento € que a distribuigao do espaco se lornou um meio terapéutico, 0 médico assumiu a responsa- bilidade principal da organizacdo hospitalar. Era a ele que se consultava para determinar como construir ¢ organizar um hospital. Por isso, Tenon realizou a Investigacao jé menciona- da. A partir de entao, era proibida a forma de claustro. da co- munidade religiosa, que se utilizara até entao para organizar 0 hospital. Ademais, se 0 regime allmentar, 0 arejamento etc. se tornaram instrumentos de tratamento, ao controlar o regime do doente o médico se torna encarregado, até certo ponto, do funcionamento econidmico do hospital, o que. até entio, era um privilégio das ordens religiosas. Ao mesmo tempo, a presenca do médico se reafirma e in- tensifica. © ntimero de visitas aumentou em ritmo crescente a0 longo do século XVIII. Em 1680, no Hospital Municipal de Paris 0 médico visitava os doentes uma vez por dia. Muito di- ferentemente, no século XVIII diversos regulamentos foram es- tabelecidos para especificar sucessivamente que se deveriam efetuar visitas noturnas para os mais gravemente doentes. que cada visita deveria durar duas horas, e. para terminar, em tor- no de 1770, que um médico deveria residir no interior do hos- pital, a fim de estar em condigoes de intervir, nao importa a que hora do dia ou da noite. caso fosse necessario. Assim, apareceu 0 personagem do médico de hospital. que antes nao existia. Até 0 século XVIII, os grandes médicos ndo vinham dos hospitais. Eram médicos que faziam consul- tas tendo adquirido prestigio gracas a certo nimero de curas espetaculares. O médico ao qual recorriam as comunidades religiosas para as visitas ao hospital em geral era 0 pior da profissio. O grande médico de hospital, tio mais competente quanto maior era sua experiéncia nessas instituigées, € uma 1978 - A meorporagie do Hospital na Teenelogia Moderna 457 invengao do século XVIII, Tenon, por exemplo, fol médico de hospital. Da mesma forma, o trabalho que Pinel realizou em Bicétre foi possivel gracas 8 experiéncia adquirida no ambiente italar. ote ntervengio de ordem herdrqulca no bospta junta mente com o exercicio do poder pelo médico refletia-se no tual da visita, ou seja, um desfile quase religioso conduzido pelo médico e seguido por toda a hierarquta do hospital: assis- {entes, alunos, enfermeiras etc...que se apresentavam diante do leito de cada doente. Esse ritual codificado da visita que desig- na o lugar do poder médico era reencontrado nos regulamentos hospitalares do século XVIII. Eles indicavam onde devia situar- se cada pessoa, precisavam que a passagem do médico deveria ser anunciada por uma sineta, que a enfermeira deveria estar proxima da porta segurando um caderno para acompanhar o médico quando este iniciava a visita na sala ete. 3. Organizagao de um sistema de registros permanente ¢ completo, na medida do possivel, para que se anotasse tudo 0 que acontecia, Em primeiro lugar, consideremos 05 métodos de identificacao do doente. Amarrava-se em seu pulso uma pul- seira que permitia identificd-lo enquanto vivia, mas também se morresse. Na parte superior do leito, colocava-se uma ficha mencionando 0 seu nome ¢ a doenca que sofria. Do mesmo modo, comecou-se a utilizar uma série de registros que reu- niam e transmitiam informacao: 0 registro geral de entradas e saidas, no qual se insereviam o nome do doente, 0 diagnéstico do médico que 0 recebia, a sala na qual ele se encontrava e, por fim, se havia perecido, ou, ao contrério, se o haviam curado: 6 registro de cada sala preparado por uma enfermeira chefe: 6 registro da farmédcia, no qual figuravam as prescrigoes: 0 regisiro das diretivas que 0 médico formulava ao longo de sua visita, concernindo as prescri¢des, ao tratamento prescrito, ao diagnéstico ete. oo fina, impos-se para os médicos a obrigagi de eonon- tar suas experiéncias com seus registros, pelo menos uma vez por més, tal como preserevia o regulamento do Hospital Muni cipal de Paris em 1785, a fim de anotar os diferentes tratamen- tos administrados, os que deram resultados satisfatrios, os é jue obtiveram um maior ntimero de sucesso € s¢ as, {ocngas endémicas passavom de uma sala para ovtra, Dessa maneira, forma-se uma colecao de documentos no interior do 458 Michel Foucault Ditos€ Bseritos hospital. Assim, ele constituia no somente um lugar de tratge (rent, mas também umn lugar de produgao do saber medine O saber médico que, até 0 século XVII, estava localtzndo 1g livros, em uma espécie de jurispructéncia médica concentrate hos grandes tratados classicos da medicina, comega entio 5 oeupar um lugar que nio é mais © texto, e. sim, 0 hospital. Nag Se trata mais do que esti escrito ou impresso, mas do que xe recolhe todos os dias em uma tradicao viva, ativa e atual ques hospital passou a representar. Dessa maneira, afirmou-se, ao longo do periodo de 1780. 1790, a formacao normativa do médico hospitalar. Essa ins. Utuicao, além de ser um lugar de tratamento, & também um lugar de formacao médica. A clinica aparece como uma dimen. sao essencial do hospital. Entendo aqui por “clinica” a organ! zacao do hospital como lugar de formacao e transmissao do Saber, Além disso. com a introducao da disciplina do espaco hospitalar, que permite tanto tratar quanto acumular conhe. cimentos ¢ também formar, a medicina oferece, como objeto de observacao, um campo muito vasto, limitado, por um lado, pelo préprio individuo, e, por outro, por toda a populacao, A aplicacao da disciplina ao espaco hospitalar ¢ fato de ter sido possivel isolar cada individuo, instaléclo em um lelto, reserever-the um regime levaram a uma medicina individualt. zante. Com efeito, foi 0 individuo que passou a ser observado, Vigiado. conhecido € tratado. O individuo emerge como objeto do saber da pratica médica. ‘Ao mesmio tempo, por meio do sistema do espaco hospita- lar disefplinado, era possivel observar um grande mimero de individuos. Os registros feitos cotidianamente, quando com Parades aos dos outros hospitals ou aos de oulras resides, permitem estudar os fendmenos patolégicos comuns a toda populacao. Gracas 4 tecnologia hospitalar, 0 individuo e a populacdo Se apresentam simultaneamente como objetos do saber e da intervengao médica, A redistribuicao dessas duas medicinas sera um fenémeno proprio ao século XIX. A medicina que se forma ao longo do século XVIII 6, a um s6 tempo, medicina do Individuo e da populacao. 1979 Nascimento da Biopolitica Nalssance de Ia biopolitique”, Annuaire du College de France, 79° ant Histoire des systomes de pensée, année 1978-1979, 1979, p. 367-472. © curso deste ano afinal foi dedicado, por inteiro, ao que devia formar apenas sua introducao. O tema fixado era entao a “biopolitica’: entendiia, por isso, a maneira como se tentow, a partir so sécalo XVM raionatzar os problemas apresentados a pratica governmental pelos fendmenos préprios a um co junto de viventes consttuidos em popuiagao: sade, higene, natalidade. longevidade, racas... Sabe-se que lugar crescente esses problemas ocuparam a partir do efeslo XIK equals mé- beis politicos © econémicos eles constituiram até os dias de ve areceume nfo ser pssiveldlssociar esses problemas do AAmbito da ractonalidade politica. no interior do qual eles apa- receram ¢ adquiriram sua acuidade, a saber, o “liberalismo’ pois foi em relacao a ele que esses problemas tomaram 0 as- pecto de um desafio. Em um sistema preocupado com 0 res- pelto ao sujeto de direito e com a liberdade de iniciativa dos Individuos, como o fendmeno “populagao”, com seus efeitos € seus problemas especificos, pode ser considerado? Bm nome do que € segundo quais regras ele pode ser gerido? O debate ocorrido na Inglaterra em meados do século XIX. concernindo a legislacdo sobre a satide publica, pode servir de exemplo.

Você também pode gostar