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1982 O Sujeito e o Poder “The subject and power" "Le sujet et le powolr trad, F. Duran-Bogert (nm Dreyfus (H.) € Rabinow (P). Michel Foucault: beyond structuralism and hhermeneuttes. Chicago, The University of Chicago Press, 1982, p. 208-226, POR QUE ESTUDAR O PODER: A QUESTAO DO SUJEITO As idetas que eu gostaria de tratar aqui nao fazem as vezes nem de teoria nem de metodologia. Eu gostaria de dizer primeiramente qual foi 0 objetivo do meu trabalho nesses tiltimos 20 anos. Nao foi de analisar os fendmenos de poder nem de lancar as bases de tal andlise. Procurel, antes, produzir uma hist6ria dos diferentes modos de subjetivacao do ser humano em nossa cultura; tratel, nessa Stica, dos trés modos de objetivacdo que transformam os seres humanos em sujeitos. Hi, inicialmente, os diferentes modos de investigacdo que procuram aceder ao estatuto de ciéneia; penso, por exemplo, na objetivagdo do sujeito. falando de gramatica geral, de Mlolo- gia e de Linguistica. Ou, entao, sempre nesse primeiro modo, ara objeuvacao do sujelto produtivo, do sujeito que trabalha, ‘em ¢conomia ¢ na andlise das riquezas. Ou, ainda, para tomar uum terceiro exemplo, na objetivacdo somente do fato de estar em vida, na histéria natural ou na biologia Na segunda parte do meu trabalho, eu estudei a objetivacdo do sujeito no que chamarei as “praticas divisoras". 0 sujelto € ou dividido no interior dele mesmo, ou dividido dos outros. Esse processo faz dele um objeto. A separacio entre 0 louco € © homem sao de espirito, o doente e o individuo em boa satide, © criminoso e 0 “rapaz gentil” ilustra essa tendéncia Enfim, procuret estudar ~ esse é meu trabalho em curso =a maneira como um ser humano se transforma em sujel 1982-0 Sujeito eo Poder 119) orientet minhas pesquisas para a sexualidade, por exemplo, a maneira como 0 homem aprendcu a se reconhecer como sujet to de uma “sexualidade’ Nao €. pois. 0 poder, mas 0 sujeito que constitui o tema ge- ral de minhas pesquisas, E verdade que fut levado a interessar-me de perto pela ques- tao do poder. Evidenciou-se-me logo que. se o sujeito humano esta preso em relagoes de producao e em relacoes de sentido, ele esta também preso em relacées de poder de uma grande ‘complexidade. Ora, acontece que dispomos, gracas & historia © A Woria econdmicas, de instrumentos adequados para este: dar as relagées de producao; assim também, a linguistica ¢ a semiotica fornecem instrumentos ao estudo das relagdes de sentido, Mas. quanto as relagdes de poder. nao havia nenhum instrumento definido: recorriamos a maneiras de pensar o po- der que se apoiavam seja em modelos juridicos (0 que legitima © poder?), seja em modelos institucionais (0 que é 0 Estado?) Era, entéo, necessario ampliar as dimensoes de uma de- finigéo do poder. se quiséssemos utilizar essa definicéo para estudar a objetivacao do sujeito, Seri que precisamos de uma teoria do poder? Uma vez que toda teoria supoe uma objetivacdo prévia, nenhuma pode ser- vir de base para o trabalho de andlise. Mas o trabalho de andl. se nao pode ocorrer sem uma conceitualizagdo dos problemas tratados, E essa conceitualizacao implica um pensamento cri- tico ~ uma verificacao constante, E preciso certificar-se inicialmente do que chamarei as “ne- cessidades conceituais”. Entendo por isso que a conceitualiza- a0 nao deve fundamentar-se em uma teoria do objeto: 0 ob- Jeto conceltualizado nao € unico critério de valiciade de uma conceitualizacao. Precisamos conhecer as condicées histéricas que motivam tal ou tal tipo de conceitualizacao. Precisamos ter uma consciéncia historica da situaggo na qual vivemos. Segundo, é preciso certificar-se do tipo de realidade com que somos controntados. Um Jornalista de um grande jornal francés exprimia, wm dia, sua surpresa: “Por que tantas pessoas levantam a questio do po- der hoje? Seria um assunto to importante? E tao independente que se possa falar dele sem levar em conta outros problemas?” Essa surpresa me deixou estupefato. E dificil, para mim, acreditar que fol preciso esperar 0 século XX para que essa poder mao sst enfim. levantada. Para nés, de toda manetra, 9 Poder ndo € somente uma questao teérica, mas algo que faz de suas “Tormas patoldgieas” - essas duas “doengas io poder” ie go 0 fascismo € o stalinismo. Uma das inimeras restce que fazem com que sejam para nds tio desconcertantes que, 3 Gespelto de sua singularidade histérica, elas nao sap cone Plelamente originals. O fascismo eo stalinismo ulilizaran ¢ (randeram mecanismos jd presentes na maior parte das out has soctedactes. Nao somente isso, mas, apesar de sita loutwea ea cles uUlizaram, em ampla medida, as ideias ¢ os pron cedimentos de nossa racionalidacle politica. Aauilo de que precisamos é de uma nova economia das re- lacdes de poder —e eu utlizo aqui a palavra “economia” oxy Ma entido te6rico e pratico. Para dizer de outro modo: desde Kant 0 papel da flosofia ¢ impedir a razdo de exceder os lnat 1.2 Go ae ¢ dado na experiéncia; mas, desde essa époce, tam, bem isto é, desde o desenvolvimento do Estado motterno da Fane ponlica da sociedacte -, a filosofia tem, igualmente. por [insto viglar os poderes excessivas da racionalldade pollen E € pedir-Ihe muito. AW esto fatos de uma extrema banalidade, que todo mundo Conhece. Mas nao € porque eles so banals que nao existen O que se deve fazer com os fatos banais € descobrir oe pelo cries: tentar descobrir ~ que problema especifico ¢, talver, original a eles se liga. {A relacdo entre a racionaltzagao e os excessos do poder po- litco € evidente. E nao deveriamos ter de esperar a buroerieng Be oe Campos de concentracéo para reconhecer a existéneia Ge Telagoes desse tipo. Mas o problema que se apresenta oo Seguinte: 0 que fazer de uma tal evidéncia? IF Breciso fazer o processu da razao? A meu ver, nada seria ‘mals estéril. Primeiro, porque o campo a cobrir ada tem a seen # culpabilidade ou a inocéncia, Em segulda, porque é absurdo referir-se 4 raza0 como a entidade contraria da nau see 740. Enfim, porque tal processo nos condenariaa exereey aha Ae arbitraria.e macante do ractonalista ou do isractonaliate Vamos tentar analisar esse tipo de racionalism que parece FrOprlo & nossa cultura moderna e que enicontra sett ponte de Taciie na Aufktérung? ‘Tal fol a abordagem de alguns mene bros da Escola de Frankfurt. Meu objetivo, porém nae ¢ de 1982-0 Sujeitoeo Poder 121 importantes comegar uma discussao de suas obras, 0 Ee ae ak ee ¢ precios. Mas antes, propor outro mo jacoes entre a racionalizacio e o poder. sniGiernesdibkeis "sSem dvida, seria mais prugente DAO Considerar gba mente a raclonalizaco da socidade ou da cultura, mas, antes anulisr 0 proceso em vir dominion, doe quale cada wn remete a uina experiéncia fundamental: a 10u te, ocrime, a sexualidade etc, eeu panto que a plavra racionatzagso™ Perigpsa. 0 ae deve fazer ¢ anallsar racionalidades especies mals do que i vocar sncessantemente o progresso da racionalizaga em aa Mesmo se a Aufikldrung constituit uma fase mi ns Haber tante de nossa histria edo desenvoivimento da teenologia po- Mea, acredito que se deve remontar a processes muito mals istantes, se se quer compreender por que mecantsmo une nea elsmeiroeemnonen BSE TROT Gostaria de sugerir aqui outra maneira de caminhar para uma nova economia das rlagBes de poder. que sea, a0 mesmo tempo, mals empiric, mats diretamente Igada & nossa situa sao presente. ¢ que implique mals relagdes entre @ teorla © & Brea. Base novo modo de Investigagao consiste em (omar as formas de resistencia aos diferentes tipos de poder como onto de para. Ou, para ulizar outra metsora, ele cons ‘ae im utlizar ess resisténcia como um catalisador quimico que Permitecolocar em evidéncla as relagoes de poder. ver onde elas se inscrevem, descobrir seus pontos de encores Mic pout todos que elas uilizam, Mais do que analisat‘0 poder do ponto Ge vista de sua sactonalidade interna, trate de an sar as "elacoes do poder por meio do enirentamento das estates. For exemplo, seria, talve,necessiri, para compreender 0 tue a soctecade entende por “ser sensato”. analisar 0 = Svan ea a aoe avontece no campo da igaldade, para compreende 0 que nos aueremos dizer quando falamos de legalidade Quanto a rela {oes de oder, para compreender em que elas consist etl lalvez, necessirio analisar as formas de rence despendidos para tentar dissociar essas relagoes. . Propore, como ponto de Partida, tomar uma série dopo" sles que se desenvolveram nesses titimos anos: a oposicio ao poder dos homens sobre as mulheres, des pats sobre seus filhos, da psiquiatria sobre os doentes mentais, 122. aiehet Foucault Ditos ¢ Rseritos sobre a populacao, da administracao sobre a maneira como as pessoas viver. Nao basta dizer que esas oposicées sao lutas contra a au- toridade: deve-se tentar definir mais precisamente o que elas tém em comum. 1. Sao lutas “transversais"; quero dizer assim que elas nao se limitam a um pais particular. E claro, certos paises favo- Fecem seu desenvolvimento, facilitam sua extensao, mas elas nao sao restritas a um tipo particular de governo politico ou econémico. 2. O objetivo dessas lutas sao os efeitos de poder como tais. Por exemplo, a censura que se fez A profissao médica nao é iniclalmente de ser uma tarefa com fim Iuerativo, mas de exer- cer sem controle um poder sobre os corpos. sobre a satide dos individuos, sua vida e sua morte. 3, Sao Iutas “imediatas”, e isso por duas razées, Primeiro porque as pessoas criticam as instncias de pocer que esto mais proximas delas, as que exercem sua acdo sobre os indivi- duos. Blas nao procuram 0 “inimigo néimero um", mas o inimt- go imediato, Em seguida, ndo consideram que a solucao para 0 seu problema possa residir em um futuro qualquer (isto é, em uma promessa de liberacao, de revolucdo. no fim do confito das classes). Quanto a uma escala tedrica de explicacao ou a ordem Fevolucionaria que polariza o historiador, so Iutas anarquicas, Mas nao sao essas suas caracteristicas mais originais. Sua espectficidade se define, antes. como segue: 4, Sao lutas que colocam em questao 0 estatuto do indivi duo: por um lado, elas afirmam o direito a diferenca e desta- ‘cam tudo 0 que pode tornar os individuos verdadeiramente individuais. Por outro, dizem respeito a tudo o que pode iso- lar 0 individuo, corté-lo dos outros, cindir a vida comunitaria, obrigar o individuo a se curvar sobre ele mesmo e o ligam & sua identidade propria. Bssas lutas nao séo exatamente por ou contra o “individuo", mas se opdem ao que se poderia chamar 0 “governo pela indi- vidualizacao". 5. Elas opoem uma resisténcia aos efeitos de poder que es- tao ligados ao saber, a competéneia ¢ a qualificacao. Elas lu- fam contra os privilégios do saber. Mas se opdem também ao mistério, a deformacao € a tudo 0 que pode haver de mistifica- dor nas representacdes que se impoem as pessoas. 1982-0 Sueito eo Poder 123 fo ha nadia de “cientifcista” em tudo 880 listo é, nenbuma renga dogmatica no val do saber clentifico), mas também nao ha recusa cética ou relativista de toda verdadeatestada. O que colocado em questao éamaneira como 0 saber cireula ¢ funclo- jna, suas relagdes com o poder. Em resumo, o regime do saber. ‘6. Enfim, todas as lias atuais giram em torno da mesma questao: quem somos nis? Elas sdo uma rejelgzio dessas abs iracées, uma rejeicéo da violéneia exercida pelo Estado eco- nomico € Ideoldgico, que ignora quem nds somos Individu- almente, ¢ também uma rejeicao da inquisicao cientifiea ou administrativa que determina nossa identidade. Para resumir, o principal objetivo dessas lutas ndo ¢ tanto criticar tal ou tal instituigao de poder, ou grupo, ou classe, ou elite, mas uma técnica particular, uma forma de poder, Essa forma de poder se exerce sobre a vida quotidiana ime- dita, que classifica os individuos em categorias, designa-os por sua individualidade prépria, liga-os & sua Wentidadle, impoe- thes uma lei de verdade que Ihes & necessirio reconhecer € que ‘08 outros devem reconbecer neles. E uma forma de poder que transforma os individuos em sujeitos. Ha dots sentidos para a palavra “sujelto”: sujeto submisso 20 outro pelo controle ¢ pela dependéncia, e sujelioligado a sua propria tdentidade pela consciéncia ou pelo conhecimento de si. Nos dots casos, essa palavra sugere uma forma de poder que subjuga e submete. De maneira geral, pode-se dizer que ha trés tipos de lu- tas: as que se opéem as formas de dominacao (étnteas, socials ¢ religiosas); as que denunciam as formas de exploracao que separam o individuo do que ele produz: ¢ as que combatem tudo 0 que liga o individuo a ele mesmo e garante, assim, sua submissao aos outros (lutas contra a submissao, contra as di- versas formas de subjetividade e de submissao), ‘A histéria € rica de exemplos desses trés tipos de Iutas so- clais, produzam-se elas de maneira isolada ot conjunta, Mas. mesmo quando essas lutas se misturam, hi sempre uma que domina. Nas sociedades feudais, por exemplo, so as lutas contra as formas cle dominacao étnica ou sockal que prevale- cem, enquanto a exploracio econdmica poderia ter constituido ‘um fator de revolta muito importante. Foi no século XIX que a Iuta contra a exploracéo chegou a0 primeiro plano. E, hoje, é a luta contra as formas de sujeigao — contra a sub- missao da subjetividade- que prevalece cada vez mals, mesmo 124. Miche! Foucault ~ Ditos € Eseritos se as Iutas contra a dominacao e a exploragdo nao desaparece- Fam, muito pelo contrario, Tenho o sentimento de que nao é a primeira vez que nossa sociedade se acha confrontada com esse tipo de luta. Todos esses movimentos que ocorreram no século XV © no século XVI, encontrando stia expressio e sua justificagao na Reforma, devem ser compreendidos como os indices de uma crise maior que afetou a experiéncia ocidental da subjetividade e de uma revolta contra o tipo de poder religioso e moral que tinha dado forma, na Idade Média, a essa subjetividade. A necessidade entdo ressentida de uma participagao dircta na vida espiritual, no trabalho da salvacdo, na verdade do Grande Livro ~ tudo Isso testemunha uma luta por uma nova subjetividade. Eu set que objecoes se podem fazer, Pode-se dizer que todos 08 tipos de sujeicao s’o apenas fendmenos derivados, as conse- quéncias de outros processos econémicos socials: as forcas de producao, os contlitos de classes ¢ as estruturas ideoldgicas que determina 0 tipo de subjetividade ao qual se recorre. E evidente que nao se podem estudar os mecanismos de sujeigdo sem levar em conta suas relacoes com os mecanismos de exploracdo e de dominacao. Mas esses mecanismos de sub- missdo nao constituem simplesmente o “terminal” de outros mecanismos, mais fundamentais. Eles mantém relacdes com- plexas ¢ circulares com outras formas. A razao pela qual esse po de luta tende a prevalecer em Rossa sociedade é devida ao fato de que uma nova forma de poder politico se desenvolveu de maneira continua a partir do século XVI. Essa nova estrutura politica 6 como todos sabem, 0 Estado. Mas, na maior parte do tempo, o Estado ¢ visto coma ‘um tipo de poder politico que ignora os individuos, ocupando- se somente dos interesses da comunidade ou, eu deveria dizer de uma classe ou de um grupo de cidadaos escolhidos, E (otalmente verdadeiro. Entretanto, eu gostaria de desta- car 0 fato de que 0 poder do Estado ~ e ai esté uma das ra- ‘26es de sua forga - € uma forma de poder, ao mesmo tempo, slobalizante e totalizadora. Jamais, eu penso, na histéria das sociedades humanas — e até na velha sociedade chinesa -, en- controu-se no interior das mesmas estruturas politicas uma combinacao tao complexa de técnicas de individualizacao e de procedimentos totalizadores. 1982-0 Sujetioe oPeder 125 Isso se deveu ao fato de que © Estado ocidental moderno Integrou, sob uma forma politica nova, uma velha técnica de poder que tha naseido nas instituigdes eristas. Essa técnica Ge poder. chamemo-la de poder pastoral. fh para comecar, algumas palavras sobre esse poder pas- toral : Frequentemente se disse que o cristianismo tinha dado ori- gem a um codigo de étca funtamentalmente diferente daquele dio mundo antigo. Mas insiste-sc em geral menos sibre 0 fato tle que o eristiantsmo propds c estendeu a todo o mundo ant hhovas relagoes de poder. we Ceristanismo €a unica regio que se organizon na gre. E, como Igreja, o cristanismo postula em teoria que alguns Individuos sao aptos, por sua qualidade religiosa, a servir ou- tfos, nto como prinepes, magsteados, profeas,alivinhos. benftores ou educadores, mas como pastores, Bast pala, articular. todavia, designa uma forma de poder bem par 1 Euma forma de poder eujo objetivo final égarantir a sal 1 dos individos no outro mundo ono poder pastoral nao € simplesmente uma forma dle po: der que ordenas ele deve também estar pronto @s seriear pela vida pela salagan do se rebanho, Niso ck se sti: fie, entao, do poder soberano, que exige um sacrifieo da parte fos seus siditos a fim de salvar 0 trono. 3 uma forma de poder que nao se preocupa somente com fo conjunto da comunidade, mas com cada individio particu far. durante toda a sua vida . 1 Bnfim, ess forma de poder nao pode exererse sem co- necer 0 que aeontece a eabeca das pessoas, sen explorar Sas amas se vgs revere eg mats th thos. Ela implica um conhecimento da conscienct tidao a dirigila ss team om. sigao ao poder politico}. Ela € oblativa (em oposicio ae prin- tiple de soberania) individualzante (em oposiio 20 poder rao}, Bla €coextensiva vide em seu protongmerntos ela std ligada a uma producao da verdade ~a verdadedo préprio, individuo. : fo voce rience a histiria: a pas- Mas, me dirao vocés, tudo 18s0 perten e oral. se nao desapareceu, perdu, pelo menos, ossercial do aque fazia sua eficacidade 126 sche! Foucault - Ditos ¢ Bseriios E verdade, mas penso que se deve distinguir entre dois as- Pectos do poder pastoral: a institucionalizacdo eclestistica que desapareceu, ou, pelo menos, perdeu seu vigor a partir do século XVIII, ea funcao dessa institucionalizacao, que se esten- deu e se desenvolveu fora da instituigao eclestéstica. Produziu-se, por volta do século XVIII. um fendmeno im- portante: uma nova distribulea0, uma nova arganizacdo desse lipo de poder individuatizant Nao ereio que seja necessario considerar 0 “Estado moder- no” como uma entidade que se desenvolveu com 0 desprezo pelos individuos, ignorando quem eles sao ¢ até sua existéncia, mas, ao contrarlo, como uma estrutura muito elaborada, na qual os individuos podem ser integrados com uma condicdo: que se atribua a essa individualidade uma forma nova e que seja submetida a um conjunto de mecanismos especificos. Em um sentido, pode-se ver no Estado uma matriz da indi- vidualizagéo ou wma nova forma de poder pastoral. Gostaria de acrescentar algumas palavras a respeito desse novo poder pastoral. 1. Observa-se, no curso de sta evolucao, uma mudanga de objetivo. Passa-se da preocupacao em conduzir as pessoas para a salvacao no outro mundo a idela de que se deve garanti- 1a aqui embaixo. E, nesse contexto, a palavra “salvacao” toma varios sentidos: ela quer dizer saiide, bem-estar (isto é, nivel de vida correto, recursos suficientes), seguranca, protegao contra 08 acidentes, Certo ntimero de objetivos “terrestres” vém subs- {ituir as aspiragées religiosas da pastoral tradicional, e isso, de maneira mais facil que esta tiltima, por diversas razées, sem- pre se atribuiu acessoriamente alguns desses objetivos: basta pensar no papel da medicina e em sua fungao social que por muito tempo garantiram as Igrejas catdlica e protestante. 2. Assistiu-se conjuntamente a um reforco da administra- cdo do poder pastoral. As vezes, essa forma de poder fot exer- cida pelo aparelho do Estado, ou, pelo menos, uma instituicso putblica, como a policia. (Nao esquecamos que a policta fol in- ventada no século XVIII nao somente para zelar pela manu- tencdo da ordem ¢ da lei ¢ para ajudar os governos a lutar contra seus inimigos, mas para garantir 0 aprovisionamento das eldadies. proteger a higiene c a satide, assim como todos os critérios considerados como necessirios a0 desenvolvimento do artesanato ¢ do comércio.) As vezes, 0 poder foi exercido 1982-0 Sujetioeo Pode 127 por empresas privadas, sociedades de assisténcia, benfeitores e, de uma maneira geral, filantropos. Por outro lado, as velhas instituicdes, como, por exemplo, a familia, foram elas também mobilizadas para preencher fangoes pastorais. Enfim, o poder fol exercido por estruturas complexas, como a medicina, que englobava, ao mesmo tempo, as iniciativas privadas (a venda de servicos na base da economia de mercado) € algumas Insti- tuigdes piiblicas, como os hospitals. 3. Enfim, a multiplicacdo dos objetivos e dos agentes do po- der pastoral permitiu centrar o desenvolvimento do saber no homem em torno de dois polos: um, globalizante e quantitatl- vo, dizia respeito a populacdo: 0 outro, analitico, dizta respeito a0 individuo. Uma das consequéncias € que o poder pastoral, que tinha sido ligado, durante séculos — de fato, durante mais de um mi- lénio -, a uma instituicdo religiosa bem particular, estendeu-se, de repente, ao conjunto do corpo social; ele encontrou apoio em uma multidao de instituigdes. E, em vez de ter um poder pastoral ¢ um poder politico mais ou menos ligados um ao ou- tro, mais ou menos rivals, viu-se desenvolver-se uma “tatica” individualizante, caracteristica de toda uma série de poderes miultiplos: o da familia, da medieina, da psiquiatria, da educa- cao dos empregadores ete. No fim do século XVII, Kant publica em um Jornal alemao~ 0 Berliner Monatschrift — um texto muito curto, que ele intitula “Was heisst Aufklarung?”. Considerou-se por muito tempo ~ ¢ se considera ainda - esse texto como relativamente menor. ‘Mas nao posso deixar de achéclo, ao mesmo tempo, surpre- endente e interessante, porque, pela primeira vez, um fil6sofo propée como tarefa flos6fica analisar nao somente o sistema ou 65 fiindamentos metafisicos do saber cientifico, mas um aconte- cimento historico ~ um acontecimento recente, de atualidade. ‘Quando Kant pergunta, em 1784; "Was heisst Aufklarung?”, ele quer dizer: “O que acontece neste momento? © que nos acontece? Que mundo é este, este periodo, este momento pre- ciso em que vivemos?” (Ou, para dizer as coisas de outra maneira: “Quem somos nds?” Quem somos n6s como Aufkldrer, como testemunhas deste século das Luzes? Comparemos com a questao carte- siana; quem sou eu’? Mas, como sujeito nico, mas universal © ndo histérico? Quem sou eu, eu, porque Descartes € todo mundo, em qualquer lugar € em qualquer momento, 128 Miche! Foucault -Ditos ¢ Rseritos Mas a questdo apresentacla por Kant € diferente: quem so- ‘mos nés, neste momento preciso da historia? Essa questao €, a0 mesmo tempo, nds € nossa situacao presente que ela analisa, Esse aspecto da filosofia se tornou cada vez mais importan- te. Pensemos em Hegel, em Nietzsche. O outro aspecto, o da “flosofia universal”, nao desapareceu. Mas a andilise critica do mundo no qual vivemos constitui cada vez mais a grande tarefa filoséfica. Sem diivida, o problema floséfico mais infalivel € o da época presente, do que somos neste momento preciso. ‘Sem diivida, 0 objetivo principal, hoje, nao é descobrir, mas Fecusar 0 que nés somos. Devemos imaginar e construir 0 que poderiamos ser para nos livrarmos dessa espécie de “dupla obrigacao” politica que sao a individualizacao e a totalizagao simultdneas das estruturas do poder moderno. Poder-se-la dizer, para concluir. que o problema, ao mesmo tempo, politico, ético, social e filos6fico que se apresenta ands, hoje, nao € de tentar liberar 0 ndividuo do Estado e de suas instituigdes, mas de nos livrarmos. nés, do Estado e do tipo de individualizacao que a ele se prende. Precisamos promover novas formas de subjetividade, recusando o tipo de individua- lidade que se nos imp6s durante varios séculos. © PODER, COMO SE EXERCE? Para alguns, interrogar-se sobre 0 “como” do poder seria limitar-se a descrever seus efeitos, sem relacionéclos jamais ‘nem com causas nem com nenhuma natureza, Seria fazer des- se poder uma substancia misteriosa que se esquiva de inter- Togar ela propria, sem diivida porque se prefere nao “questio- né-la”. Nessa maquinaria da qual ndo se conhece razao, cles suspeltam de um fatalismo, Mas sua propria desconfianca nao mostra que eles mestios supéem que o poder é algo que existe com sua origem, por um lado, sua natureza. por outro, suas manifestacdes, finalmente. Se confiro certo privilégio provis6rio A questao do “como”, do € que eu queira climinar a quesiao do qué e do porque. E para colocé-los de outra maneira: melhor: para saber se ¢ le- gitimo imaginar um poder que retine um qué, um porqué, um como. Em termos bruscos, eu direi que iniciar a andlise pelo “como” ¢ introduzir a suspeita de que o poder nio existe: é per- 1982-0 Sugiloeo Peder 129 guntar-se, em todo caso, a que conicidos atribuiveis se pode visar quando se faz uso desse terme majestoso, globalizante © substantificador: € suspeitar que sedeixa escapar um conjunto de realidades muito complexas, quando se marca passo indefi- nidamente diante da dupla interroggio: “O poder, o que 6? O poder, de onde vem?" A pequiena questo, completamente pla- nna e empirica: “Como acontece?”, eviacka como exploradora. nao tem como funcao transformar en fraude uma “metafisica”, ‘ow uma “ontologia” do poder; mas tetar uma investigagao eri- tica na tematica do poder. 1. *Como”, nao no sentido de “mo se manifesta”, mas de “como se exerce?”, como acontece quando indlividuos exer- ‘cem, como se diz, Seu poder sobre outros?” Desse poder, deve-se dlistinguir rimeiro 0 que se exerce So- bre as coisas e que dé a capacidade de modificé-las. utillzé-las, consumt-las ou destrui-las — um poder que remete a aptidées di- retamente inseritas no corpo ou mediatizadas por dispositivos instrumentais. Digamos que se traaai de “capacidade”. O que caracteriza, em compensacao, 0“poder” que se trata de analisar aqui € o que coloca em jogo relagies entre individuos (ou entre grupos). Porque nao devemos nos engunar quanto a isto: se fa- lamos do poder das leis, das inslinigoes ou das ideologias, se falamos de estruturas ou mecanismosde poder. é na medida so- mente em que supomos que “alguns” exercem um poder sobre outros. O termo “poder” designa reagdes entre “parceiros” (© por isso nao penso em um sistem de ogo, mas simplesmente, ficando, no momento, na maior generlidade, em um conjunto de agdes que se induzem € se correspondem umas as outras). E necessdrio distinguir, também, as relacdes de poder das relagées de comunieagao que transmitem uma informacdo por meio de uma lingua, um sistema de signos ou qualquer outro meio simbélico. Sem diivida, comunicar € sempre certa ma- neira de agir sobre 0 outro ou os outros. Mas a producao e a colocagao em circulagéo de elementos significantes podem muito bem ter por objetivo ou por consequéncias efeitos de poder: estes nao sao simplesmente um aspecto daquelas. Que ¢las passem ou nao por sistemas de comunicacao, as relacoes de poder tem sua especificidade, *Relacdes de poder”, “relacées de comunicacao", “capaci- dades objetivas” nao devem, pois, ser confundidas. O que nao quer dizer que se trate de trés dominios separados: € que have- 130 stichel Foucault Ditos Rseritos a, por um lado, o dominio das coisas, da técnica finalizada, do trabalho e da transformacao do real: por outro lado, o dominio dos signos, da comunicacdo, da rectprocidade e da fabricacao do sentido; enfim, 0 dominio da dominacéo dos meios de obri- gacho, da desigualdade ¢ da agao dos homens sobre os homens.! Nao se trata de tres pos de relagdes que, de fato, sao sempre Imbricadas unas nas outras, dando-se um apoio reeiproco & servindo-se mutuamente de instrumento. A operacionalizacao de capacidades objetivas, em suas formas mais clementares, implica relagdes de comunicacao (que se trate de informacao prévia ou de trabalho dividido): ela esta ligada, também, a re- lagdes de poder (que se trate de tarefas obrigatorias, gestos im- postos por uma tradicao ou uma aprendizagem, subdivisées ou reparticao mals ou menos obrigatéria de trabalho). As relacoes de comunicacao implicam atividades finalizadas (funclonamen- to “correto” dos elementos significantes) ¢, somente no fato de modificar 0 campo informative dos parceiros, clas induzem efeitos de poder. Quanto as proprias relacées de poder, clas se exercem para uma parte extremamente importante por meio da producdo e da toca de signos: ¢ nao sao dissocivels também das atividades finalizadas, que se trate das que permitem exer- cer esse poder (como as técnicas de treinamento, os processos de dominacao, as maneiras de obter a obediéncia) ou das que recorrem, para se desenvolver, a relagées de poder (assim na divisdo do trabalho ¢ na hierarquia das tarefas) E claro, a coordenacao entre esses trés tipos de relacoes nao € nem uniforme nem constante. Nao ha em certa sociedade lum tipo geral de equilibrio entre as atividades finalizadas, os sistemas de comunicacdo € as relagdes de poder. Ha, antes, diversas formas, diversos lugares, diversas circunstancias ou focasides em que essas inter-relacées se estabelecem sobre um modelo especifieo. Mas ha também “blocos” nos quais 0 ajusta- mento das capacidades, as redes de comunicacao e as relagoes de poder constituem sistemas regrados ¢ concertados. Seja, por exemplo, uma instituicao escolar: sua disposicao espacial, oregulamento meticuloso que rege sua vida interior, as diferen- tes allvidades que ai sao organizadas, os diversos personagens LNA.) Quando Habermas distingue dominagio, comuntcagii « ative f- naltzada, ele nao vé nlsso, eu penso, és dominios diferentes, mas tres “trans: cendentats 1982-0 Sujeto eo Poder 13.1 ‘que ai vivem ou se encontram, cada um com uma fungao, um lugar, um rosto bem-definido; tudo isso constitul um “bloco™ de capacidade-comunicacao-poder. A atividade que garante a aprendizagem e a aquisicao das aptidées ou dos tipos de com portamento af se desenvolve por meio de todo um conjunio de comunicagdes regradas (licdes. questoes ¢ respostas. ordens. exortacdes, signos codificados de obediéncia, marcas diferen ciais do “valor” de cada um e dos niveis de saber) e por melo de toda uma série de procedimentos de poder (encerrament. vig{ldncia, recompensa e punicao, hierarquia piramidal) Esses blocos em que a operacionalizacao de capacidades téenicas, o jogo das comunicacées ¢ as relagdes de poder s80 ajustados uns aos outros, segundo formulas refletidas, cons: tituem o que se pode chamar, ampliando um pouco o sentido da palavra, de “disciplinas”. A andlise empirica de algumasdis- ciplinas tais como elas se constituiram.historicamente apre- senta por isso mesmo certo interesse. Primeiro, porque as disciplinas mostram segundo esquemas artificialmente claros decantados a maneira como podem se articular uns aos ou- tros os sistemas de finalidade objetiva, de comunicacdese de poder. Porque elas mostram, também, diferentes modelos de articulagdes (ora com preeminéncia das relacoes de podere de obediéncia, como nas disciplinas de tipo mondstico ou de tipo penitenciario, ora com preeminéneia das atividades finaliza- das, como nas diseiplinas de oficinas ou de hospitais, ora com preeminéncia das relagdes de comunicagao, como nas discipli- nas de aprendizagem, ora, também, com uma saturagdo dos trés Upos de relagées. como, talvez, na disciplina militar, em que uma pletora de signos marea até a redundancia relagoes de poder estreitadas e euidadosamente calewladas para forne- cer certo mimero de efeitos técnicos). E 0 que se deve entender pela disciplinarizagao das socie- dades, a partir do século XVIII, na Europa, nao €, com certezz que os individuos que dela fazem parte se tornem cada vez mais obedientes: nem que elas se ponham todas a se parecer com casernas, escolas ou prisdes: mas que ai s€ procuray wit ajustamento cada vez mais bem controlado ~ cada vez. miais racional e econdmico — entre as atividades produtivas, as redes de comunteacao ¢ 0 jogo das relacoes de poder. Abordar o tema do poder por uma anéllise do “como” é, et do, operar, em relagao a suposi¢ao de um poder fundamental, 132 Michel Foucault -Ditos Eseritos varios deslocamentos criticos. E dar-se por objeto de andlise relacdes de poder. c nao um poder: relagoes de poder que si0 distintas das capacidades objetivas tanto quanto relagées de comunicagao; relagdes de poder, enfim, que se podem apreen- der na diversidade de seu encadeamento com essas capacida- des ¢ essas relacdes, 2. Em que consiste a especificdade das relagées de po- der? O exercicio do poder nao é simplesmente uma relacao en- ire “parceiros", individuats ou coletivos: é um modo de acao de alguns sobre alguns outros. O que quer dizer, € claro, que ao ha algo como 0 poder. ou poder que existiria globalmente, macicamente ou no estado difuso, concentrado ou distribufdo: 86 ha poder exercido por “uns” sobre os “outros”; 0 poder s6 existe em ato, mesmo se, € claro, ele se insereve em um campo de possibilidade esparso, apoiando-se em estruturas perma nentes, Isso quer dizer, também, que o poder nao é da ordem do consentimento; ele nao é nele préprio rentincia a uma li- berdade, transferéncia de direlto, poder de todos e de cada um delegado a alguns (0 que nao impede que o consentimento Possa ser uma condigao para que a relacdo de poder exista ¢ se mantenha); a relacdo de poder pode ser o efeito de um consen- timento anterior ou permanente: ela nao estii em sua natureza propria, a manifestacdo de um consenso. Isso quer dizer que € necessario procurar 0 cardter proprio as relagoes de poder junto a uma violéncia que seria sua forma Primitiva, 0 segredo permanente e recurso tiltimo - 0 que aparece em tiltimo lugar como sua verdade, quando ele € obri- gado a tirar a mascara ¢ mostrar-se tal como ele €? De fato. 0 ‘que define uma relacao de poder é um modo de aco que nao age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua acao prépria, Uma acdo sobre a acao, sobre agées even- tuais, ou atuais, futuras ou presentes. Uma relacao de violéncia ‘age sobre um corpo, sobre coisas: ela forca, ela dobra, ela que- bra, ela destrét: ela fecha todas as possibilidades; ela nao tem, entao, junto a ela, outro polo sendo o da passividade; e se ela encontra uma resisténcla, nao tem outra escolha senao empre- ender reduzi-ta, Uma relacao de poder, em compensacdo, se articula sobre dots elementos que Ihe sio indispensdvels para ser justamente uma relacdo de poder: que “o outro” (aquele sobre o qual ela se exerce) seja bem reconhecido e mantido até 1982-0 Sujeito eo Poder 133 o fim como sujeito de acao; ¢ que se abra, diante da relagao de poder, todo um campo de respostas, reacoes, efeitos, inven oes possivels. _ (0 funcionamento de relacées de poder nao é evidentemen- te mais exclusivo do uso da violencia que da aquisicao dos consentimentos; nenhum exercicio de poder pode, sem divi da, dispensar um ou outro, frequentemente os dois ao mesmo tempo. Mas, se eles sao seus instrumentos ou seus efeitos, n30 constituem seu prineipio ou sua natureza. O exercicio do poder pode bem suscitar tanta aceliacdo quanto se quiser: ele pode acumular as mortes ¢ se abrigar por tras de todas as amcacas que pode imaginar. Ele nao ¢ em si uma violéncia que sabe- ria, &s vezes, esconder-se, ou um consentimento que, implict lamente, se reconduziria. E um conjunto de agdes sobre acdes possivels: ele opera no campo de posstbilidacle em que vein inscrever-se o comportamento de sujeitos agentes: ele incita ele induz, ele desvia, ele facilita ou torna mais dificil, cle ampli ou ele limita, ele torna mais ou menos provavel: no limite, ele obriga ou impede absolutamente; mas € sempre uma maneita de agir sobre um ow sobre sujeitos agentes, ¢ Isso enquanto cles agem ou sao suscetiveis de agir. Uma acao sobre acées. 0 termo “conduta” com seu proprio equivoco é, talvez. wm dos que permitem melhor aprender 0 que ha de especifico nas relagées de poder. A “conduta” é, ao mesmo tempo, 0 alo de “conduzir" os outros (segundo mecanismos de eoergao mals, (ou menos estritos) € a maneira de se comportar em um campo mais ou menos aberto de possibilidades, O exercicio do poder consiste em “conduzir condutas” ¢ em arranjar a probabilida- de. O poder, no fundo, é menos da ordem do enfrentamento entre dois adversarios, ot do engajamento de um em relacio a0 outro, do que da ordem do “governo”. Deve-se deixar a ess palavra a significacao muito ampla que ela tinha no século XVI. Ela nao se referia somente a estruturas politicas € & gest#o dos Estados, mas designava a maneira de dirigir a conduta de individuos ou de grupos: governo das criancas, das almas, das ‘comunidades, das familias, dos doentes. Ela nao recobria sim- plesmente formas instituidas € legitimas de sujeicao politica ‘ou econdmica, mas modos de acao mais ou menos refletidos ¢ calculados, todos destinaclos a agir sobre as possibilidades de aco de outros individuos. Governar, nesse sentido, € estrutu rar o campo de aco eventual dos outros, O modo de relacio 134 Michel Foucault Ditose Eseritos proprio ao poder nao deveria, pois, ser procurado junto & vio- Jenela € € luta, nem junto ao contrato ¢ ao elo voluntario (que nao podem ser, no maximo, sendo instrumentos), mas junto a esse modo de aco singular ~ nem guerreiro nem juridico ~ que 0 governo. Quando se define o exercicio do poder como um modo de agio sobre as agdes dos outros. quando sao caracterizadas pelo “governo” dos homens uns pelos outros ~ no sentido mais amplo dessa palavra -, inclul-se nele um elemento importante: © da liberdade. O poder 86 se exerce sobre “sujeitos livres", € enquanto sao “livres” ~ entendamos por isso sujettos indivi- duals ou coletivos que tém diante de si um campo de possibili- dade em que varias condutas, varias reagoes ¢ diversos modos de comportamento podem apresentar-se. Ai onde as determi- nacées sto saturadas nao ha relacéo de poder: a escravidio nao 6 uma relagao de poder quando o homem esta acorrenta- do (trata-se, entao, de uma relacdo fisica de obrigagdo). mas Justamente quando ele pode deslocar-se ¢, no limite, escapar. Nao ha, pois, um face a face de poder e de liberdade, com uma relacio de exclusdo entre eles (por toda parte onde o poder se exerce, a liberdade desaparece); mas um jogo muito mais com- plexo: nesse Jogo, a liberdade vai aparecer como condigéo de existéncia do poder (ao mesmo tempo, prévio, visto que é ne- cessdrio que haja liberdade para que o poder se exerca, € am- bém seu apoio permanente, visto que, se ela se retirasse intei- ramente do poder que se exerce sobre ela, este desapareceria pelo préprio fato ¢ deveria encontrar para ele um substituto na coergao pura ¢ simples da violéncia); mas ela aparece também. como 0 que 86 poder opor-se a um exercicio do poder que tende, afinal de contas, a determing-la intelramente, A rclacao de poder ¢ a Insubmissdo da liberdade nao po- dem, pois, estar separadas. O problema central do poder nao € 0 da “servidao voluntaria” (como podemos desejar scr es- cravos?): no cerne da relacao de poder, “provocando-a” inces- santemente, hé a relatividade do querer e a intransitividade da liberdade. Mats do que um “antagonismo" essencial, valeria mais a pena falar de um “agonismo™ ~ de uma relacdo que €, a0 mesmo tempo, de incitacao reciproca e de luta: menos de uma oposicdo termo a termo que os bloqueia um diante do outro do que de uma provocagao permanente. 3. Como analisar a relacao de poder? 1982-0 SwetoeoPeder 135 Pode-se ~ quero dizer: ¢ perfeitamente legitimo analisé-la em instituicoes bem-ceterminadas: estas constituindo um ob- servat6rio privilegiado para compreendé-las, diversificadas, concentradas, colocadas em ordem e levadas, parece. 2 seu mais alto ponto de eficacidade; é ai, em primeira abordagem. que se pode esperar ver aparecer a forma ¢ a légica de seus mecanismos clementares. Entretanto, a anélise das relagoes de poder em espacos institucionals fechaclos apresenta certo néimero de inconvenientes. Primeiro, o fato de que uma parte Importante dos mecanismos colocacios em funcionamento por ‘uma instituicao ¢ destinada a garantir sua prépria conservagao traz o risco de deetfrar, principalmente nas relagbes de poder "intrainstitucionais”, funcdes essencialmente reprodutoras, Em segundo lugar, nés nos expomos, analisando as relacoes de poder a partir das instituigdes, a buscar nestas a expleacao © origem daquelas, isto 6, em suma. a explicar 0 poder pelo poder. Enfim, na medida em que as instituigoes age essen cialmente pelo funcionamento de dots elementos: resr@s (exp citas ou silenciosas) e um aparelho. com 0 risco de dar a um e a outro um privilégio exagerado na relagio de poder. & €nt@0, nao ver nestas senao modulagdes da lei ¢ da coerca0. Nao se trata de negar a importancia das instituigdes na ad- ministracdo das relacdes de poder. Mas sugerir que se devem, antes, analisar as instltulgdes a partir das relagdes de poder, € no 0 inverso; que 0 ponio de fixagao fundamental destas. mesmo se elas ganham corpo e se cristalizam em uma institu 10, deve ser buscado aquém. veerarnemos a falar da definicao segundo a qual o exercicto do poder seria uma maneira para alguns de estruturar 0 campo dle acao possivel dos outros. © que seria, assim, o préprio de uma relacao de poder é que ela seria um modo de agée sobre aces. O que quer dizer que as relacoes de poder se enraizam onge no nexo social; € que elas nao reconstituem, alma da “sociedade”, uma estrutura suplementar ¢ da qual se poderia, talvez, pensar no apagamento radical. Viver cm sociedade é de toda forma, viver de maneira que seja possivel agit sobre 2 aco uns dos outros. Uma sociedade “sem relagées de poder 0 pode ser uma abstracao. O que. diga-se de passagem. (ornia politicamente tanto mais necesssria a andlise do que elas $40 em uma sociedade dada, de sua formagao histérica. do que as torna sélidas ou frageis, das condigdes que so necessairias 136 mtchet Faves para transformar algumas, abolir as outras. Porque dizer que nao pode haver sociedade sem relacao de poder néio quer dizer nem que estas que sdo dadas sao necessdrias, nem que, de qualquer maneira, o poder constitua, no cerne das sociedades, uma fatalidade incontornavel; mas que a aniilise, a elaboracao. © questionamento das relacoes de poder, e do “agonismo” en- tre relagdes de poder ¢ intransitividade da liberdade, so uma {arefa politica incessante; e que é mesmo isso a tarefa politica inerente a toda existéncia social. Concretamente, a anilise das relacdes de poder exige que se estabeleca certo mimero de pontos. 1, O sistema das diferenciacdes que permitem agit sobre a aco dos outros: diferencas juridicas ou tradicionals de es- tatuto e de privilégios; diferencas econdmicas na apropriacao das riquezas e dos bens: diferencas de lugar nos processos de producao; diferencas linguisticas ou culturais; diferencas no savoir-faire nas competéncias etc. Toda relacao de poder coloca em opcracao diferenciacdes que sao para cla, ao mesmo tempo, condicées ¢ efeitos. 2. 0 tipo de objettvos perseguidos pelos que agem sobre a agao dos outros: manutencao de privilégios, acumulagio de proveitos, operacionalizacao de autoridade estatutaria, exerci cio de uma funcao ou de um oficio. 3. As modalidades instrumentais: conforme o exercicio do poder seja exercido pela ameaca das armas, pelos efeitos da palavra, por melo de disparidades econémicas, por mecanis- mos mais ou menos complexos de controle, por sistemas de vigilancia, com ou sem arquivos, segundo regras explicitas ou nao, permanentes ou modificdveis, com ou sem dispositivos materiais ete. 4. As formas de institucionaltzagdo: estas podem mistu- rar disposicées tradicionais, estruturas juridicas, fendmenos de costume ou de moda (como ¢ visio nas relagées de poder que permelam a instituicao familiar): elas podem, também, as- sumir 0 comportamento de um dispositivo fechado sobre ele mesmo com seus lugares especificos, seus regulamentos pré- prios, suas estruturas hierarquicas cuidadosamente desenha- das ¢ uma relativa autonomia funcional (assim nas institulcdes escolares ou militares); clas podem, também, formar sistemas muito complexos dotados de aparelhos miiltiplos, como no caso do Estado, que tem por funcdo constituir o invélucro ge- | 1982 © Sujetioeo Poder 137 ral, a Instancia de controle global, o principio de regulacao ©. em certa medida, também, de distribuigao de todas as relagées de poder em um conjunto social dado. 5. Os graus de racionalizacdo: porque o funcionamento das relagdes de poder como acao sobre um campo de possibilidade pode ser mais ou menos elaborado em funncao da eficacidade dos instrumentos e da certeza do resultado (refinamentos tec nolégicos maiores ou menores no exercicio do poder}. ou. ain da, em funcao do custo eventual (que se trate do “custo” econd- mico dos meios utilizados ou do custo “reacional” consti pelas resisiéncias encontradas). O exereieio do poder nao é um fato bruto, um dado institucional, nem uma estructura que se mantém ou se quebra: ele se elabora, se transforma, se organi- za, se dota de procedimenias mais ou menos ajustados. Ve-se por que razao a analise das relacoes de poder em uma sociedade nao pode se reduzir ao estudo de uma série de ins- tituigdes, nem mesmo ao estudo de todas as que mereceriam 0 nome de “politica”. As relacoes de poder se enraizam no con- junto da rede social. Isso nao quer dizer, no entanto, que haja um principio de poder primeiro e fundamental que domina até 0 menor elemento da sociedade; mas que, a partir dessa pos- sibilidade de acao sobre a acao dos outros que € coextensao a toda relacao social, formas mltiplas de disparidade individual de objetivos, de instrumentacdes dadas sobre nds ¢ os outros, de institucionalizacao mais ou menos setorial ou global, de or- ganizacdo mais ou menos refletida definem formas diferentes de poder. As formas e os lugares de “governo” clos homens uns pelos outros sao miiltiplos em uma soctedade; eles se super- poem, se entrecruzam, se limitam e se anulam, algumas vezes. se reforgam em outros casos. Que o Estado nas sociedades contemporaneas nao seja simplesmente uma das formas ou tum dos lugares - por mais importante que fosse - de exercicio do poder. mas que, de certa maneira, todos 0s outros tipos de relacio de poder se referem a ele, isso € fato certo. Mas nao porque cada um deriva dele, F, antes, porque se produziu uma estatizacdo continua das relacdes de poder (ainda que ela nao tenha tomado a mesma forma na ordem pedagogica, Judicla- ria, econdmica, familiar). Referindo-se ao sentido, desta vez restrito & palavra “governo”, poder-se-la dizer que as relacdes de poder foram progressivamente governamentalizadas, Isto elaboradas, racionalizadas e centralizadas na forma ou sob @ caucao das instituicdes estatais. 138 sticnetFoucaul—Ditos¢ Eseriios 4. Relacdes de poder e relacées estratégtcas. A Palavra estratégla é empregada correntemente em trés Sentidos. Primetro, para designar a escolha dos meios utllicg, Gos para chegar a um fim; trata-se da racionalidade posta oy acdo para atingir um objetivo. Para designar a maneira come de barcelro, em um dado jogo, age em funcao do que ele penea dever ser a agao dos outros e do que el utilizados em um enfrentament : tamento — guerra ou jogo - em que 0 Sbjelivo € aair sobre um adversério de tal maneira que s lata cate aE Cle lmpossivel. A estratégia se define, entao, pela on olha das solugées “ganhadoras”. Mas € preciso ter ent weves Existem outros em que € precise we : " tera distingao el diferentes sentidos da palavra estratégia, sso ene os Referndo.se ao prnelzo sent ia Refering imeiro s lo indicado, pode-se chamar de “stratégia de poder” 0 conjinto dos meio and an eer funcionar ou para manter um dispositivo de Poder. Pode- Se. lanbém, falar de estratega propria a hates we ee confronto. Porque, se é verdade ° $e 6 y que, no cerne das relagées cs poder ¢ como condii¢io permanente de sua existéneis’ re nao has Dinissio” ¢ liberdades essencialmente renitentes, maneira bastante constante ¢ com suficient © ¢ com suficiente certeza a conduta dos outros; para uma relacao de confronto, desde que nao seja ‘uma luta de morte, a fixacio de uma relagdo de poder consiitey 1082-0 syjto co oder 139 lum ponto de mira - ao mesmo tempo, seu cumprimento e sua propria suspensio. E, em retorno, para uma relagao de poder. a estratégia de luta constitu, ela também, uma fronteira: aque- la em que a inducao calculada das condutas entre os outros nao pode mais ir além da réplica sua propria acao. Como nao poderia haver relagoes «le poder sem pontos de insubmis- sao que por definicdo Ihe escapam, toda intensificacao, toda extensio das relagdes de poder para submeté-los s6 podem conduzir aos limites do exercicio do poder: este encontra, en- to, scu botaréu, seja em um tipo de acao que reduz 0 outro a impoténcia total (uma “vitéria” sobre o adversirio se substitui a0 exercicio do poder'. seja em um reviramento dos que sio governados ¢ sua transformacdo em adversérios. Em suma, oda estratégia de confronto imagina tornar-se relacdo de po- der; ¢ toda relagao de poder se inclina, tanto se ela segue sua Propria linha de desenvolvimento quanto se ela se choca com Fesisténcias frontais, a tornar-se estratégia ganhadora. De fato, entre relagao de poder e estratégia de luta, ha ape- lo reciproco, encadeamento indefinido ¢ inversio perpétua. A cada instante, a relacdo de poder pode tornar-se, e, em alguns Pontos, se torna, um enfrentamento enire adversérios. A cada instante, também, as relagdes de adversidade, em uma socie- dade, dao lugar & utilizacdo de mecanismos de poder. Insta- bilidade, entéo, que faz com que os mesmos processos, os mesmos acontecimentos ¢ as mesmas transformagées possam dectirar-se tanto no interior de uma historia de lutas quanto no das relagées ¢ dos dispositivos de poder. Nao sero nem (0s mesmos elementos significativos, nem os mesmos encade- amentos, nem os mesos Upos de inteligibilidade que apare- cerdo, ainda que seja ao mesmo (ecide Ist6rico que eles se reflram ¢ embora cada uma das duas andlises deva remeter outra, E € justamente a interferéncia das duas leituras que faz aparecer esses fendmenos fundamentais de “dominacéo” que apresenta a historia de grande parte das soctedades hu- manas. A dominagéo é uma estrutura global de poder da qual se podem encontrar, As vezes, as significagdes ¢ as consequén- clas até na trama mals ténue da sociedade; mas é, ao mesmo tempo, uma situacao estratégica mais ou menos adquirida € solidificada em tum confronto de longo aleance histérico entre adversarios. Pode acontecer que um fato de dominacéo seja somente a transcricao de um dos mecanismos de poder de 140 Miche! Foucault Ditose Eseritos uma relagao de confronto ¢ de suas consequéncias (uma estru- tura politica derivando de uma invasao): € possivel, também, que uma relacdo de luta entre dois adversarios seja 0 efeito do desenvolvimento das relagdes de poder com os conflitos € as clivagens que ele provoca. Mas 0 que faz da dominagao de um grupo, de uma casta ou de uma classe, e das resisténcias ou das revoltas com as quais ela se choca, um fenomeno central na hist6ria das sociedades é que clas se manifestam, sob uma forma global e macica, na escala do corpo social completo, 0 disparo das relagdes de poder sobre as relacdes estratégicas e seus efeitos de encadeamento reciproco. 1982 Entrevista com M. Foucault ‘Entrelien avec M, Foucault’ (entrevisia com J. P Joccker, M. Overd © A, Sanzio), Masques, n. 13, primavera 1982, p. 15-24 = 0 livro de K. J. Dover, Homossexualidade grega.' apre- senta um esclarectmento novo sobre a homossexualidade na Grécia antiga. ~ O que me parece mais importante nesse livro & que Dover mostra que nosso recorte das condutas sexuais entre homo € heterossexualidade nao é absolutamente pertinente para os _gregos ¢ os romanos. Isso significa duas coisas: por um lado, que eles nao tinham nocao disso, nao tinham 0 conceito, €, por outro lado, que eles nao tinham essa experiéneia. Uma pessoa que se deitava com outra do mesmo sexo nao se reconhecia como homosexual, Isso me parece fundamental Quando um homem fazia amor com um rapaz, a clivagem moral passava pelas questdes: esse homem é ativo ou passivo ¢ ele faz amor com um rapaz imberbe - 0 aparecimento da barba definindo uma idade limite - ou nao? A combinacéo dessas duas espécies de clivagem instaura um perfil muito comple- xo de moralidade e de imoralidade. Nao hé, entdo, nenhum sentido em dizer que a homossexualidade erat (olerada entre os gregos. Dover valoriza bem a complexidade dessa relacao entre homens € rapazes, que era muito codificada. Tratava-se de comportamentos de fuga e de protecio para os rapazes, de perseguicao e de cortejo para os homens, Existia, pois, toda uma civilizacdo da pederastia, do amor homem-rapaz, provo- cando, como sempre, quando ha uma codificacao desse tipo. a valorizagéo ou a desvalorizacao de certas condutas. Eis ai, entenda isso, 0 que reterei do livro de Dover; Isso permite, me 1 Dover (K. J. Greek Homosexuatty, Londres, Duckworth, 1978 (Homo: sexuilté greeque, trad. S. Said, Grenoble, La Pensée Sauvage, 1982)

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