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OrPn>Aa-IgMe PAN-OPFA Wu Jyh Cherng CSL ae J Este livro inclui, na integra, a obra Zuo Wang Lin (Tratado sobre Sentar e Esquecer), escrita no séc. POOR UL ECU PCL Unc) SCLC e Re RC CTU SCS Ou ee d(T aT MEDITACAO TAOISTA Wu Jyh Cherng KAM Coautoria para edicdo ¢ adaptacdd dos textos Marcia Coelho de Souza Mauad X Copyright @ by Herdeiras e sucessoras de Wu Jyh Cherng, 2008 Atualizagao ortografica, 2013 Direitos desta edigdo reservados & MAUAD Editora Ltda. Rua Joaquim Silva, 98, 5° andar Lapa — Rio de Janeiro — RJ — CEP: 20241-110 Tel.: (21) 3479.7422 — Fax: (21) 3479.7400 www.mauad.com.br Pesquisa, traducdo, organizacdo e comentarios: Wu Jyh Cherng Co-autoria para transcrigdo das aulas, edi¢do e adaptacdo dos textos: Marcia Coelho de Souza Sacerdotisa Taoista licenciada, disefpula do Mestre Wu Jyh Cherng Coordenagao das edigdes das obras de Wu Jyh Cherng e fotos: Lila Schwair Transliteragdo dos termos chineses para o sistema pin yin, ideogramas, versoes e traducdes literais das palavras do glossdrio: Tong Harr Lee discipula do Mestre Wu Jyh Cherng Projeto Gréfico: Niicleo de Arte/Mauad Editora Se voce estiver interessado em conhecer mais sobre 0 Taoismo ou conhecimentos afins, entre em contato com a Sociedade Taoista do Brasil. Sedes: Rua Cosme Velho, 355 Tel.: (21) 2225-2887 Cosme Velho, Rio de Janeiro (RJ) Aw, Liberdade, 113, 3° andar Liberdade, So Paulo (SP) (11) 3105-7407 e 9631-3005 ‘www.taoismo.org.br www.sociedadetaoista.com.br Dapos InTERNACIONAIS DE CATALOGACAO Na PuBLtcagao (CIP): Smipicato Nactonat. Dos Eprrores pe Livros, RI Wosm Wu, Jyh-Chemg, 1958-2004 Meditagio taista/[pesquisa, tradugio e comentérios] Wu Jyh Cherng ; coautoria para ‘esta edigdo e adapiago dos textos Marcia Coelho de Souza. - Ro de Janeio : Mauad X, 2008, “Este livro inclu, na integra, a obra Zud Wang Lun (Tratado sobre sentar e esquecer), eserita no séc. Vill pelo Patriarca Si Ma Chéng Zhen, da Dinastia Tang (618-907 4.C.), ‘Tradugdo diretamente do chinés e comentarios do Mestre Wu Jyn Cherng." Contém glossério ISBN 978-85-7478-533.2 1. MeditagBes taoistas. 2. Taoisme. |. Si, Ma Chéng Zhen, Zu Wang Lun. ll. Souza, Marcia Coelho de. 08-1908, CDD: 299.514435, COU: 290.513, Capa Fonte: figura do acervo de imagens deixado pelo Mestre Wu Jyh Cherng No Taoismo, o grou é 0 passaro-simbolo da Imortalidade. As lendas contam que o ser realizado no Caminho Espiritual Taois- ta, quando se retira do mundo manifestado para habitar 0 Mundo Sagrado, ascensiona montado num grou, que abre suas asas e voa em diregdo ao Céu, transportando o Imortal para a dimensao do Absoluto. Nota de Adverténcia As pessoas tém condig6es corporais e mentais di- ferentes umas das outras e, no exercicio da meditagao, essas diferengas podem ser causa de oscilagdes nos re- sultados encontrados. Por isso, nem os autores, nem a editora poderfo responsabilizar-se por eventuais con- sequéncias de prejuizos fisicos, energéticos ou mentais resultantes das praticas de meditagio apresentadas e sugeridas neste livro A qualquer sinal de indisposig&o ou de quaisquer outros efeitos colaterais indesejaveis, recomenda-se interromper a pratica imediatamente e recorrer a cor- reta orientagdo de um mestre de meditagao, capaz de acompanhar o desenvolvimento de seus discfpulos e guia-los na melhor escolha do exercicio indicado para cada caso. Agradecimentos Sou grata ao meu mestre Wu Jyh Cherng pelo Voto que fez de en- sinar 0 Taoismo e me possibilitar contar aqui 0 que aprendi em suas palestras. Devo aos seus ensinamentos a conduta que persegui, de con- cluir a tarefa com o mesmo coragio do inicio. Sou grata 4 sua esposa, Lila Schwair, pelo convite que me fez de prosseguir com 0 projeto de publicagao do livro apés a partida do meu mestre, levar sua edigao a termo e fazer as primeiras leituras do origi- nal, oferecendo sugestées preciosas que enriqueceram 0 seu contetido. Dedico esse trabalho 4 memoria da minha filha Lourdes Cristina, que contribuiu de maneira determinante para a realizacio e continui- dade do projeto, incentivando meu esforgo e ajudando com leituras e sugestées, na primeira fase do trabalho. Marcia Coelho de Souza Coautora Esclarecimentos sobre o uso de caracteres chineses O Pin Yin [Han Yu (Mandarim) Pin (ortografia) Yin (som)] ¢ um sistema ortografico que faz a transli- teracgao para os idiomas ocidentais do som dos ideogra- mas e caracteres da lingua chinesa, considerada mo- nossildbica e tonal. Assim, ao longo de toda a obra, incluindo o glossario, 0 leitor depara-se com expres- sdes escritas nesse sistema de romanizag4o, que em- prega simbolos ¢ sinais especificos para caracterizar © mecanismo de prontincia da fala original. A estrutura dos simbolos segue a padronizagaio adotada pela China, em 1958, como recurso de unifi- cacao da lingua por todo o pais. A norma foi adotada também pela Organizagdo das Nagdes Unidas, em 1972, como convengao que traduz os sons da lingua chinesa para linguas ocidentais. O Pin Yin vem sen- do amplamente utilizado no Ocidente, nas melhores publicagdes e mais respeitados estabelecimentos de ensino. indice Prefécio — Eva Wong - Apresentagao — Parte Primeira: Xin Zhai Fa, Método de Meditagao da Purificagao do Coracao — 1 - Introdugao — II — Fundamentos do Método — III — Consideragdes TeGricas — IV — Praticando a Meditagao — V — Ilustragdes — Parte Segunda: Zuo Wang Lun, Tratado Sobre Sentar e Esquecer, de Si Ma Chéng Zhén, com Comentarios de Wu Jyh Cherng — + Sobre o Autor — Prefacio — Capitulo 1 — Confianga e Respeito — Capitulo 2 — Romper os Lagos — Capitulo 3 — Recolher a Mente — Capitulo 4 — Simplificar as Atividades — Capitulo 5 — Auténtica Contemplagao — Capitulo 6 — Fixagao Pacifica — Capitulo 7 — Possuir Caminho — Posfacio — Glossario — Prefacio Mesmo sem ter conhecido o Mestre Wu Jyh Cherng em vida, senti uma conexdo muito forte com ele e seus ensinamentos no momento em que pisei pela primeira vez nos templos taoistas fundados por ele no Rio de Janeiro e em Sao Paulo. O que eu experimentei foram simplicidade, humildade e claridade — as virtudes incorporadas pelos sabios taoistas. Acredito que se tivéssemos nos encontrado pessoalmente, certamente terfamos nos tornado bons amigos. Mas 0 fato de nao termos nos conhecido neste reino mortal nao diminui a conexdo que existe entre nds. Fui informada pelos discipulos do Mestre Cherng da orientag4o que ele deu para que me procurassem, caso algum dia surgisse necessidade de aconselha- mento. A “necessidade” surgiu quando Wu Jyh Cherng faleceu ha alguns anos e foi atendida durante a minha visita ao Brasil, no inicio de 2008. O que seria um encontro casual com os companheiros praticantes do Taoismo transformou- -se numa forte amizade com a comunidade criada por ele, que permanece ativa no Rio de Janeiro e Sao Paulo, apés sua partida. Agora, o trabalho de toda sua vida e seus ensinamentos sobre meditagdo taoista so publicados neste livro e eu tenho a honra de ser convidada para dizer algumas palavras sobre a obra. Primeiramente, gostaria de registrar que a meditagao taoista, frequentemen- te, foi envolvida em mistérios e segredos. Como resultado, muitos dos ensina- mentos sao mal interpretados e praticados de maneira incorreta. O texto Xin Zhai Fa, na primeira parte do livro, aborda o tema de uma forma inovadora e direta, que une uma precisa interpretagaéo dos ensinamentos originais com 0 emprego moderno da sua pratica. Os ensinamentos deste livro so baseados também no texto Zhuowanglun (Tratado de Esquecer a Si Mesmo), do Patriarca Shangqing da dinastia Tang, chamado de Sima Zhengzhen. Zhuowanglun nao é apenas um dos mais impor- tantes textos taoistas que ja foram escritos; ele ¢ a obra definitiva da meditagdo taoista, conhecida por neiguan (Observagao Interna). Neiguan, como um mé- todo de meditagao, é simples e profundo ao mesmo tempo, muito eficaz para diminuir o pensamento discursivo ¢ dissolver 0 sentimento de permanéncia do ego, ou ‘si mesmo’. Deste modo, Sima Zhengzhen deu o titulo de Tratado de Esquecer a Si Mesmo asua obra. Neiguan, independentemente de ser praticado simplesmente como uma forma de relaxar 0 corpo e a mente, ou de ser usado como fundamento para ingressar, cultivar e estabilizar a quietude em estdgios mais avangados da meditacio taoista, é uma forma de meditag4o de valor in- calculavel. Em segundo lugar, Mestre Cherng fez uma contribuigio monumental, nao somente traduzindo e explicando o Zhuowanglun, mas também ensinando nei- guan de uma forma pratica, segura e acessivel. A introdugio do Xin Zhai Fa dé ao leitor uma base da linguagem e¢ filosofia do Taoismo, e a forma clara e conci- sa com que a técnica de neiguan é ensinada e guiada ao longo do livro oferece, tanto para 0 iniciante em meditagao taoista, como para 0 perito praticante, um valioso caminho para fortalecer a sua pratica. Ao ler 0 Meditagdo Taoista, vocé nao estar4 somente aprendendo uma das mais profundas praticas da meditagao taoista, mas, 0 que é mais importante, estard vendo 0 coragao e encontrando a mente do mestre taoista que 0 redigiu. Eva Wong Mestra taoista. Residente em Evergreen, estado do Colorado, EUA, pertence a décima nona linhagem do Taoismo Xiantianwujimen. E praticante de Quanzhen, Kunlun, e do Taoismo Maoshan Shangqing, e autora e tradutora de imimeros livros sobre o Taoismo, publicados em inglés. *Foram mantidas a grafia dos nomes em chinés e as tradugdes do chinés, conforme enviadas pela mestra “Tradugdo do Inglés para o portugués: Lila Schwair. Apresentagao' Esse livro fala de meditagdo, sabedoria e espiritualidade. Dirige-se, em es- pecial, 4s pessoas que buscam a serenidade interior e pode ajudar a todos os interessados em praticar 0 caminho da meditagao, com vistas a alcangar elevagao espiritual e integragao ao Dao. A obra é dividida em duas partes. A primeira, intitulada “Xin Zhai Fa, o Método de Purificagao do Coragao”, é resultado da compilagao que fiz de textos do C4non taoista?. E a segunda, Zud Wang Lin, é 0 titulo de um livro classico do Taoismo, que se traduz como Tratado sobre Sentar e Esquecer*. Na primeira parte, apresento aos leitores a técnica de meditagao taoista chamada Xin Zhai Fa. Para ensinar seus passos aos ocidentais, selecionei trechos de livros do C4non taoista, em busca de palavras de sabedoria que me ajudassem a sistema- tizar 0 ensinamento e a transcrevé-lo depois, na lingua portuguesa. A escolha do método foi determinada por orientagdo do meu mestre de meditacdo, Mestre Ma Hé Yang, um senhor de mais de 80 anos que vive em Taiwan, com quem me cor- respondo regularmente e visito sempre que posso*. Incluo ali 0 conto que originou 0 método e definiu seus principios basicos. Cito as diretrizes da pratica e acrescento comentarios e definigdes de conceitos, para explicar de maneira sucinta as etapas de desenvolvimento da meditagio e familiarizar os leitores com pensamentos larga- mente utilizados nos escritos taoistas. So informagées que facilitam e disciplinam o exercicio diario da meditag4o porque tratam objetivamente das técnicas, atitudes e posturas fisicas recomendadas para a pratica. Na segunda parte, reproduzo 0 texto sagrado Zud Wang Lin, escrito no século VIII por um dos mais importantes mestres taoistas da Dinastia Tang (618-907 d.C), o Patriarca Si Ma Chéng Zhén (647-735 d.C.)°. Através de sete capitulos, prefacio e posfacio, o autor discorre, de maneira clara e abrangente, sobre 0 objetivo que deve acompanhar 0 seguidor do Dao ao longo de sua vida: adotar o habito disciplinado da meditagAo e manter a equivaléncia entre esta pratica interior ¢ a pratica exterior de cultivo da virtude no mundo. Acrescento comentarios ao texto, para interpretar o sentido de suas palavras. Nas tradugées que fiz, diretamente do chinés para o portugués, adotei os critérios que orientam os meus trabalhos do género. Com relagao ao sentido intrinseco dos ideogramas, utilizo como principal fonte de conceitos os ensina- mentos contidos em Textos Sagrados da Tradi¢ao Taoista; e com relagao a gra- fia de nomes no idioma original, utilizo a transliteragao pelo sistema Pin Yin®. Procurei seguir o estilo linguistico dos autores da maneira mais fiel possivel, ja que os Homens Sabios do Taoismo tém um jeito de escrever 4 moda dos poetas, que tao bem exploram a sintese, no uso de poucas palavras bem escolhidas e bem combinadas, para transmitirem mensagens repletas de contetido. Concluido o trabalho e finalizados os acréscimos, o conjunto da obra foi divul- gado e comentado em palestras semanais abertas ao publico, no Templo-sede da Sociedade Taoista do Brasil, no Rio de Janeiro, entre maio de 1996 e maio de 1997. Depois de transcritas e revisadas, as palestras resultaram no projeto deste livro e receberam o formato dos textos originais traduzidos para o portugués, seguidos de comentarios de minha autoria proferidos em aula. Ali eu analiso e explico, a luz da doutrina tradicional taoista, conceitos empregados nas obras estudadas. Finalmente, é preciso ter em conta que, nao obstante minha tentativa de mitigagao, interpretar alguns trechos pode se tornar, algumas vezes, tarefa um tanto trabalhosa, face a profundidade de seu contetdo. Contra essa dificuldade, s0 posso prevenir 0 leitor e encoraja-lo a prosseguir na leitura, saltando frases a principio mais custosas ¢ voltando a elas mais adiante. E necessério trilhar pa- cientemente este caminho e controlar a avidez pela compreensdo répida, man- tendo-se ciente de que, a medida que ampliar sua consciéncia, mais abrangente se tornar4 o grau de sua percepgao. Para se chegar caminhando ao topo da montanha, inicia-se a escalada pas- sando primeiro por sua base — esse é 0 ensinamento que se espelha nas palavras de Lao Zi, escritas no Dao Dé Jing’, cap. 64: “Uma arvore de grande abrago gera-se de uma fina muda; Uma torre de nove andares levanta-se de actimulo de terra; Uma viagem de mil léguas inicia-se debaixo dos pés”. Wu Jyh Cherng Rio de Janeiro, janeiro de 2000 Notas ' Mestre Wu Jyh Chemg (Wii Zhi Chéng) redigiu esta Apresentagio por ocasidio de sua revistio final para a publicagio do livro, estimada para janeiro do ano 2000. Para melhor situar o leitor, decidimos manté-la na obra, com redagio e data originais (N.E.) 2 Canon taoista é o conjunto de livros sagrados tacistas. Sdo cerca de 1.500 textos escritos pelos Homens Sabios do Taoismo, originados, na maior parte, da China Antiga. A quase totalidade dessa biblioteca encontra-se hoje dividida entre Taiwan e Hong Kong, sob a guarda de auténticos mestres da linhagem taoista. Os textos contém a historia do Taoismo ditada pelas divindades, os prineipios da filosofia, alquimia, ciéncia, arte e misticismo e os ensinamentos secretos, transmi- tidos somente por via oral, de mestre para discfpulo. +A tradugao literal de Zud Wang Lin é Discussdo sobre Sentar e Esquecer, mas 0 Mestre Wu Jyh Cherng optou pelo titulo Tratado sobre Sentar e Esquecer, por considerar que a palavra “discus- so” geraria dividas com relagdo ao assunto abordado no texto (NE.) * Mestre Ma faleceu em Taiwan, em dezembro de 2002 (N.E.) 50 leitor encontraré o resumo da historia de vida de Mestre St MA na segunda parte deste livro. © O Pin Yin (nome completo: Han Yi Pin Yin) é um sistema ortogrifico de transliteragao de sons, utilizado para a romanizag3o dos ideogramas chineses, baseado na prontincia dos ca- racteres do dialeto de Béi Jing (Pequim), mandarim do Norte. Foi adotado pela China em 1958, como recurso de padronizagio da lingua por todo o pais, e pela Organizagio das Na- des Unidas, em 1972, como convengio que traduz os sons da lingua chinesa para lin- guas ocidentais. Utilizo o sistema quando cito palavras no idioma original, com excegdes para “Taoismo” (Dao jido ou Dao jia, que se refere a escola de Taoismo anterior ao Mes- tre Celestial) e “tacista” (dao rén), Estas serio mantidas com as grafias mais conhecidas, por serem ja amplamente difundidas com esses formatos, nos meios mistico e académico. 7 Lio Zi, Sublime Patriarea do Caminho Taoista, Segundo o Canon taoista, nasceu no horatio Mio (5-Ths.) do 25° dia da 2’ Lua do ano Géng Chén (Metal-yang/Terra-Yang) da era Wa Yin (no periodo entre 1408-1324 a.C.), no povoado Wé Yang, distrito de An Hui, China. Durante grande viagem em dirego ao Ocidente, hospedou-se por um periodo na antiga fronteira Yii Mén, que ficava entre a China e 0 Deserto de Gobi. Ali aceitou como seu discipulo 0 oficial-chefe da fronteira, Yin Xi, que Ihe solicitou ensinamentos. Lao Zi ditou varios escritos, incluindo o Dao Dé Jing, 0 Livro do Caminho e da Virtude, reverenciado como escritura sagrada, pelos mistérios que suas palavras revelam. PARTE PRIMEIRA Xin Zhai Fa Método de Meditac4o da Purificagao do Coracao Trechos de livros do Canon Taoista. Compilacao, tradugio e comentarios: Mestre WU JYH CHERNG 1 - Introdugao A traducio literal de meditagio, na lingua chinesa, é ‘sentar na quietude’ ou ‘sentar no siléncio’!. Externamente, o praticante senta sobre a almofada e para de fazer movimentos ou produzir rufdos, permanecendo parado, em siléncio. E internamente, ele interrompe os pensamentos para sentar-se no siléncio em que se transforma sua mente. O efeito imediato de uma sessao de meditagao bem feita é alcangar a tranquili- dade interior. Sentar no siléncio é como levar 0 corpo e a mente a experimentarem um profundo descanso. No final de um dia exaustivo, as pessoas costumam re- pousar para recobrar energia e normalmente fazem isso através do sono, afastan- do-se provisoriamente das manifestagdes do mundo externo. Quando acordam, estdo revigoradas, e ¢ desta maneira que 0 Taoismo explica os beneficios propor- cionados pela meditaco: um periodo de descanso, que tem 0 efeito de repor a energia, iluminar a mente e fortalecer o corpo fisico do praticante. Mas os beneficios terapéuticos nado representam 0 objetivo principal da me- ditacao taoista. Ela promove, de fato, a recuperacio fisica, energética e mental, livra do cansago cr6nico e da ansiedade, mas, acima de todos esses efeitos, tem como propésito primordial levar o praticante 4 Iluminagao. Por isso, é considera- da no Taoismo a ferramenta principal para se trilhar o Caminho e chegar ao Dao. Seus efeitos, portanto, nao podem ser confundidos com terapia: eles representam apenas acessérios, beneficios secundarios para 0 seguidor da Tradigao. Quem medita encontra o siléncio interior, mas, para chegar a este estado, precisa antes pa pessoa esquece os ruidos externos, os ruidos do seu corpo, suas palavras, seus dialogos interiores, seu ego, relaxa cada vez mais e, quando chega ao completo siléncio, esquece sua prépria identidade, 0 local em que se encontra, os fatos que aconteceram durante o dia, os projetos com os quais esté comprometida, esquece até que esta sentada, meditando. sar pelo processo de esquecimento sistematico. Aos poucos, a O iniciante costuma sentir medo diante desse ‘mundo de siléncio’ em que esta prestes a mergulhar. Na maioria das vezes, trata-se de uma situagao com- ‘Em chinés, o termo genérico para meditagdo é Jing Zu6. pletamente desconhecida e ele receia passar pelo iminente desligamento do mundo fisico e perder suas referéncias de vida, quando voltar da meditagao. O maior temor € perder por completo a consciéncia e, em alguns casos, nem mes- mo voltar dessa experiéncia. O medo, no entanto, é um sentimento infundado. Primeiro, porque quem penetra no mundo do siléncio volta obrigatoriamente para a vida mundana, exatamente porque seus apegos 0 trazem sempre de volta. E segundo, porque se sentar na quietude é uma ferramenta que leva ao Dao e se Dao é Iluminagao ou Consciéncia Pura’, isso mostra que o praticante ndo perde aconsciéncia. No completo esquecimento, a mente torna-se silenciosa, mas no interior da sua consciéncia, desencadeia-se um processo continuo de expansio, rumo ao Dao. O resultado dessa expansdo, portanto, depende do nivel do esquecimento Pprogressivo. Quanto mais pensamentos e emogGes a pessoa consegue esquecer durante a pratica, mais proxima estara da realizagdo espiritual. Por isso, é preci- so um esforgo deliberado para se desapegar de fatos, ideias e sentimentos que a impedem de entrar no esquecimento progressivo. Quanto mais apegos a pessoa tem, mais medos cultiva; e quanto mais medos, mais dificuldade encontra para se entregar sem receios 4 meditagao. No entanto, é forgoso reconhecer que, no inicio da pratica, as pessoas con- seguem se sentar, mas raramente conseguem penetrar na quietude e esquecer. Dessa forma, até alcangar esse estagio, 0 iniciante passa pela fase em que apren- de a esquecer e para is circunstancia, adotei na Sociedade Taoista do Brasil, sob escolha e¢ orientagio do meu mestre de meditag4o, Mestre Ma Hé Yang, o método milenar da medi- tagao taoista intitulado Xin Zhai Fa, que passo a explicar adiante. ser guiado por um método. Considerando a 2 Consciéneia Pura é a consciéncia imaculada que nfo retém impurezas, fonte do saber nfio-intencional, desprovido dos desejos do ego. Trata-se do mais alto nivel de consciéncia expandida que se consegue alcangar, com o trabalho da meditago. Il- Fundamentos 00 Método XIN significa coragao; ZHAI significa purificar e FA significa método. XIN ZHAI FA, portanto, significa ‘Método de Purificagdo do Coragio’, entendido como purificagdo do 4mago de uma pessoa. Seus fundamentos tém origem no conto de Zhuang Zi*, que transcrevo abaixo ¢ comento em seguida. Nele, 0 au- tor simula um breve dialogo, através do qual o Mestre King Fi Zi ensina a seu discipulo Yan Hui a maneira sutil e correta de meditar*. “Yan Hui perguntou: ‘Minha familia é pobre. Nao bebi vinho e nao comi comidas fortes por varios meses. Posso, portanto, ser considerado como estando purificado?’ K6ng Fi Zi respondeu: ‘Isso é 0 que se faz antes de uma ceri- ménia de sacrificio, ndo ¢ a Purificagao do Coragao’. Yan Hui continuou: “Posso perguntar o que é a Purificagado do Coragao?’ Kong Fi Zi respondeu: ‘Sua vontade devera ser uma. Nao ouga com seus ouvidos, mas com seu coragao. Nao ouga com seu cora- ¢4o, mas com seu sopro. Ouvidos podem apenas ouvir, 0 coragio pode apenas contemplar, mas 0 Sopro é 0 Vazio, receptivo a todas as coisas. O Dao esta relacionado ao Vazio ¢ 0 Vazio é purificador do coragao. Zhuang Zi é considerado o segundo maior pensador do Taoismo depois de Lao Zi. Tinha 0 habito de escrever didlogos idealizados, atribuidos a pessoas conhecidas, como Yan Hui e Kong Fi Zi, que existiram de fato, como mestre ¢ discipulo. Nesse exemplo, Zhuang Zi diz, através do nome de Kong Fi Zi, que dieta alimentar é aquilo que, nos costumes antigos, os sacerdotes faziam antes das cerim6nias de sacrificios, mas que ela, em si, nao garante a purificagdo do + Zhuang Zi (-369- -286 a.C.). In: “Capitulos Interiores”, livro No Mundo dos Homens. * Kong Fd Zi (551-479 a.C.), inspirador do Confucionismo, no Ocidente teve seu nome traduzido para Confiicio. Yan Hut foi um de seus mais notaveis discipulos. coragao. A relagao da alimentago saudavel com o processo de purificacao espi- ritual existe apenas na medida em que um grau mais alto de pureza fisica leva a uma satide melhor. E a satide em perfeito estado gera condigdes mais apropria- das para se receber a for¢a sagrada e maior bem-estar para se realizar a pratica. Nao se alcanga a purificagdo do coragao apenas com absten¢do de comidas e bebidas porque, se fosse assim, os homens mais pobres do mundo seriam ilumi- nados. A verdadeira Iluminagio vem de dentro da pessoa e nao de fora. Em seguida, o discipulo pergunta 0 que é a Purificagao do Coragao, procu- rando saber como alcanga-la. O mestre responde que, para isso, ele deve ter uma tinica vontade, esta é a primeira condigao. E continua: o discipulo nio deve ouvir com seus ouvidos, mas com seu coragao; nao deve ouvir com seu corago, mas com seu sopro. Ter vontade tnica é ter a vontade que nao se dispersa, concentrada em um Unico objetivo: manter a mente na respiragdo. Ouvir com os ouvidos € ouvir com os cinco sentidos; ouvir com o coragao é ouvir com o sentido unico, interior; ¢ ouvir com o sopro é se tornar sua prépria respiragaio. O método trabalha com trés etapas: concentrag4o, contemplagao e fusdo. Quem consegue se tornar sua pré- pria respiragdo alcanga a ultima etapa e encontra a Purificagdo do Coragao. O Taoismo ensina que 0 ser humano é constituido por quatro elementos: Jing, Qi, Shén e Xing (Esséncias, Sopro, Espirito e Natureza)°. O objetivo do Xin Zhai Fa é usar o Jing (corpo fisico) para unir o shén ¢ 0 qi (espirito e sopro), até alcangar o Xing (Natureza). Quando a uniao acontece, o praticante conclui as trés etapas do método e se funde com o Xing. A I* etapa do método é a concentragao, quando Kong Fi Zi diz “sua von- tade deve ser uma” e corresponde ao estdgio em que 0 praticante ouve com os ouvidos. Inicia-se, ai, o exercicio de concentrac4o da mente no ar que se respi- ra. Nesta etapa, ele percebe os ruidos e os movimentos do ar no seu aparelho 5 Fing so todos os fluidos fisicos, as esséncias vitais que compdem um corpo fisico, Shén ¢ a consciéncia ativa, que impulsiona a mente; e Qi é a energia vital, que impulsiona os movimentos. Entre o elemento fisico, predominantemente dirigido e dominado pelos fluidos, ¢ 0 elemento psiquico, dominado pela consciéneia, existe o Qi, que, apesar de invisivel, da vida, tanto para o nivel fisico quanto para o nivel psiquico. Acima de todos esses elementos est o Xing, que tam- bém € Sopro ou Consciéncia, mas de um nivel puro, do Absoluto. O Xing é também chamado de Natureza, como potencialidade de todas as existéncias. respiratério, como se estivesse fora do préprio corpo, auscultando a respiragio por meio de um estetoscopio. A consciéncia fica separada da energia, como 0 espectador que olha para um corpo do qual nao faz parte. Com frequéncia, a respiragdo se torna descompassada, ofegante ou aparen- temente suspensa. Neste caso, pode-se aumentar ou diminuir 0 grau de con- centrac4o, para restaurar a naturalidade no ritmo de entrada e saida do ar no organismo. Este esforgo fara o praticante desligar-se, naturalmente, de todas as manifestagdes da mente e eliminar os pensamentos desordenados, que se transformaréo num Unico pensamento concentrado: manter a naturalidade da respiracao — este é o sentido das palavras de Zhuang Zi, quando diz “sua von- tade deve ser uma”. A 2° etapa do método ¢ a contemplagao, quando Kong Fii Zi diz “nao ouga com seus ouvidos, mas com seu corag4o”. Ouvir com o coragao é deixar de perceber os rufdos e movimentos do ar no aparelho respiratério e passar a contemplar a respiracéo diretamente com o sentido interior. A contemplagio é alcangada quando se atinge o grau correto de concentragéo. Ao manter-se concentrado no ritmo natural da respiragio, 0 praticante esvazia sua mente de todos os pensamentos e sentimentos e, nesta condigao, assimila seu sopro através da contemplagao. Ao abstrair-se de seu corpo fisico e do mundo que 0 cerca, ele passa a identificar, no movimento da sua respirag4o, o automatismo fisico que comanda a sua energia vital. Continua assim, até integrar-se ao ar que respira e compreender que ele proprio s6 existe como consciéncia, que se manifesta inte- grada ao mecanismo auténomo da sua respiragéo. Nesse momento, ele passa a se deixar respirar pelo ar que entra ¢ sai do seu corpo fisico porque finalmente entende que o sujeito da sua respiragao nao é ele, e sim 0 ar ao qual ele se integra, enquanto contempla. A partir daqui, a pessoa deixa de ouvir a respiragdo com os seus ouvidos e passa a sent de Zhuang Zi, quando diz “nao ouga com seus ouvidos, mas com seu corac4o”. a.com 0 coragao — este ¢ o significado das palavras A 3" etapa do método é a fusio, quando Kéng Fi Zi diz “nao ouga com seu cora- ao, mas com seu sopro”. Ouvir com o sopro é a pessoa se tornar sua propria respira- cdo. E sendo sua respiracdo, ela serd a respiragdo de todos os seres do Universo’. Este §No nivel das particulas de ar que os seres respiram, nao existe diferenga entre a parcela que cabe a uns ou a outros: todos respiram o mesmo ar. Quem contempla essa caracteristica sente-se unido a todos os outros seres pelo ar que todos respiram. resultado surge quando o praticante alcanga a terceira etapa do Xin Zhai Fa e ocorre a fusao entre shén ¢ qi, ou espirito e sopro. Conforme o tempo ¢ o nivel de dedicagao a etapa da contemplagao, a distancia entre consciéncia e energia se reduz progressivamente, até desaparecer. O praticante, entao, ter4 a conscién- cia, ou shén, totalmente unida a energia, ou qi. O sopro do praticante passa a ser um sopro espiritual e seu espfrito passa a ser um espfrito energético. Somente entao, todas as manifestagdes do Universo passam a ser assimiladas através do sopro — este é o sentido das palavras de Zhuang Zi, quando diz “nao ouga com seu coragdo, mas com seu sopro”. Depois de explicar as trés etapas do método, Zhuang Zi prosseguiu com o ensinamento, falando para seus discipulos através de palavras atribuidas a Con- fucio e dirigidas hipoteticamente a Yan Hui. Ensinou que os ouvidos e 0 cora- cdo tém alcance limitado, conseguem apenas ouvir e contemplar, mas 0 sopro, por ser ele mesmo 0 Vazio, ¢ receptivo a todas as existéncias e possibilidades de existéncias —e por isso mesmo, tem o Dao relacionado a ele. Finalmente, por ser o Vazio e por ter o Dao relacionado a ele, o sopro é purificador do coragao. Este trecho foi escrito de maneira sintética e hermética e, para facilitar a compreensao do sentido de suas palavras, destaco a seguir o significado dos conceitos de Xing, shén e qi (Natureza, espirito e sopro) como categorias usa- das pela Tradicao Taoista para ensinar o Caminho que leva seu seguidor a Ilu- minagao; das palavras Dao e Vazio, utilizadas por Zhuang Zi no conto; e do sentido do Vazio, ou Xing, como purificador do coragdo de uma pessoa. Il - Consideracdes Tedricas 1— XING, SHEN E Qi Dentro da cosmogonia do Taoismo existe 0 conceito de que o Céu ¢ a Terra se se- pararam e, quando isso aconteceu, o homem ocupou 0 centro. Céu e Terra separados Tepresentam o surgimento do yin e yang; e o homem no centro é a consciéncia com poder de unir essas duas polaridades ¢ unir-se a elas. Essa consciéncia potencial, ca- paz de integrar Céu e Terra e integrar-se a ambos, é uma prerrogativa do ser humano, que o distingue de todos os outros seres vivos do Universo. Entretanto, essa condigio vem sendo gradativamente perdida, na medida em que a humanidade promove cada ‘vez mais a separagao entre yin e yang, em lugar de trabalhar para uni-los. Unir yin e yang é unir shén e qi, dois elementos basicos da vida, que, apreendi- dos separadamente, so a causa da consciéncia de nivel dual, mas quando se unem, elevam essa mesma consciéncia dual para o nivel da unidade. No mundo dual, a vida é gerada pelos contrarios, os seres interagem em permanente oposi¢io e existe uma constante complementaridade entre uns e outros. As pessoas estarao sempre de um lado da questao ou situacao, olhando para o outro lado. Quem vive no mundo dual jamais consegue estar no seu interior ¢ no seu exterior ao mesmo tempo, olhar para si mesmo e olhar para os outros seres, simultaneamente. No entanto, acima desse mundo diversificado e dualista em que vivem os seres humanos existem os mundos da Unidade, que ¢ indivisivel e infinito, e o mundo do Absoluto, como potencialidade de todas as existéncias. Derrubar a fronteira da dualidade, conseguir olhar conjuntamente para si e para todos os seres e ser, simul- taneamente, todos os seres olhando para todos, inclusive para o alcance da Unidade. Mas enquanto isso nao acontece, todos sao duais. i mesmo, representa A Unidade pode ser entendida como o mais alto nivel espiritual de fusio do shén com o qi. Ela é simbolizada pelo nimero Um’, concretizada no alcance da Consciéncia Universal® ou Consciéncia Pura ¢ representada pelo Tai Ji (Figura 1). Quem une Espirito e Sopro Puros? alcanga esse estado da Unidade. 7 Um, de uni-verso e de uni-dade. * Consciéncia integra, que nao se fragmenta, comum a todos os seres. °.O mais alto nivel de integridade a que podem chegar espirito e sopro. Yang do Céu Posterior Mi Yin do Céu Anterior Yang do Céu Anterior Yin do Céu Posterior Tai Jf Figura | Mas, além da Consciéncia Universal ou Tai Ji, existe uma espécie de Vazio ou Quietude, chamado Xing, Natureza, que é anterior 4 fusdo do shén com o qi porque € anterior a separacao dos dois. Esse € 0 nivel mais alto de pureza que se consegue alcangar no caminho espiritual taoista. Se a Consciéncia Universal cor- responde ao Um, o Xing, que ¢ anterior a ela, corresponde ao Zero, ou Absoluto. O Um pode se desdobrar em dois, trés, quatro ou mais, 0 quatro pode voltar a ser trés, dois ou um; isso é como as operagdes matematicas de multiplicar e dividir, aplicadas no nivel de hierarquia de qualidade do shén e do qi. Mas o Xing, por ser o Zero, por ser 0 Vazio, nao esta sujeito a essa alteragao: o Xing no se altera. Seguindo o raciocinio, é possivel compreender que a consciéncia ou a ener- gia do ser humano pode ocupar um nivel de qualidade espiritual mais alto ou mais baixo, mais proximo ou mais distante do Dao, enquanto o Xing, que é a Natureza Primordial que existe antes de todas as existéncias, jamais mudara de nivel. A consciéncia de uma pessoa pode ser mais licida ou menos licida, sua energia mais pesada ou mais leve, as duas podem estar mais unidas ou mais dispersas ¢ a pessoa ser muito simples ou muito complexa. Todas essas caracte- risticas sio manifestagdes do espirito ou do sopro em diferentes escalas de ni- veis, mas o Xing da pessoa, que 6 o mesmo Xing de todos os seres, permanece imutdvel, como Absoluto. Recuperar 0 nivel do sopro e do espirito unidos como Consciéncia Univer- sal, para eleva-los, depois, a condigao do Xing, Natureza ou Dao", é exatamente 0 objetivo do Xin Zhai Fa. Por isso, quando se alcanga a Unidade, na qual con- templador e contemplado se fundem e se tornam uno, chega-se a um nivel muito alto dentro do Caminho. Mas ainda assim, a realizagdo espiritual do praticante nao estard conclufda. Neste ponto, ele prossegue com 0 trabalho da meditacio e daf em diante acelera-se o processo de dilatagao da sua consciéncia, que deixa de ser limitada pelo ego, para se tornar, potencialmente, tao abrangente quanto 0 Vazio. Isso se torna possivel porque se 0 sopro no seu mais alto nivel espiritual alcanga o tamanho do Vazio, a consciéncia que esté integrada a ele ir crescer, também, acompanhando o sopro e, naturalmente, atingindo a abrangéncia do Vazio. Para alcangar o Xing ou o Dao, nada é mais importante que meditar e para iniciar essa prdtica, é preciso apenas possuir espirito e sopro, dois elementos que todo ser humano, em boas condigées de satide, possui. 2-DAO Dentro do Taoismo, a palavra Dao possui dois significados. No sentido filosofico, Dao significa Natureza Primordial ou Absoluto, como origem da vida. E no sentido literal, significa Caminho, mas como uma estrada que, para se tornar real, precisa de trés elementos atuando simultaneamente: a prépria estrada, a pessoa e a pessoa caminhando na estrada. Esse conjunto de con- ceitos remete & ideia de que para encontrar e compreender o Dao, é preciso vivenciar sua busca. Somente vivendo e integrando-se ao Dao sera possivel compreender seu verdadeiro significado. O sentido exato que se aplica ao caminho espiritual de um taoista, portanto, € 0 seguidor assimilar paulatina- mente o significado do Dao, enquanto vive seus preceitos. E se Dao é Cami- nho ou Absoluto, Taoismo é 0 caminho espiritual que leva seu caminhante ao reencontro com o Absoluto. © © Taoismo entende que o estado de pureza do sopro e do espirito, unidos e dissolvidos no Dao, € condigo primordial de todas as existéncias. Assim, quando o ser humano inicia 0 caminho espiritual que vai leva-lo a esse estigio, menos que encontrar sua origem, estaré retornando a ela. Por isso, usa-se o verbo ‘recuperar’ para designar esse reencontro. 3 - VAZIO Durante a meditagao profunda, no momento em que shén e qi se fundem e permanecem unidos, as atividades mental e respiratéria do praticante desapare- cem por completo. Ele deixa de ter pensamentos porque se transporta do nivel da mente para o nivel da Consciéncia Pura, onde inexistem pensamentos e sen- timentos. E sua respiragao torna-se praticamente imperceptivel porque passa do el da respiragao fisica para o nivel extremamente sutil do Sopro Puro. Aqui, 0 praticante alcanga a absoluta quietude: permanece sentado, imovel, mas deixa de sentir seu corpo fisico e sua mente. Ele se percebe apenas como uma respiragdo sutil e suave, pulsando num imenso espago que nao tem inicio, fim ou tamanho. rt O Taoismo chama esse estado de Vazio, Caos Primordial ou Céu Anteri Dentro dele existe apenas uma energia espiritual, que é 0 Sopro Espléndido, chamado pelos mestres taoistas de Dao Sopro do Dao. E 0 mesmo estado de antes da criagao do Universo, onde nao existem corpo fisico, respiragdo ou pensamentos. Quem chega a essa etapa volta a origem de todas as existéncias, inclusive da sua. A energia prépria desse estado nao possui forma porque é um Sopro que ainda nao se manifestou em qualquer sentido ou ideia. Assim, quem alcanga essa energia readquire essa caracteristica e deixa também de se perce- ber como forma: nao sente mais seu corpo fisico, sua mente ou sua respiragao. 4 - VAZIO COMO PURIFICADOR DO CORACAO Coragao, aqui, representa os sentimentos de uma pessoa. Na lingua chinesa, o ideograma coracao significa também mente ou consciéncia. Por isso, Xin Zhai Fa pode ser traduzido como ‘Método de Purificagdo do Coragao’, ou ‘Método de Purificagado da Mente’. Essa técnica promove a purificagao esvaziando a mente dos excessos de pensamentos e sentimentos. E esse esvaziamento se realiza como consequéncia da imagem figurada de uma ‘limpeza’, levada a efeito pelo ar que a pessoa respira, quando nessa respirag4o est4 concentrada sua consciéncia. " Céu Anterior € categoria da teologia tacista, onde esto representadas as divindades do mais alto nivel de realizagio espiritual. E Caos Primordial (Hin Tun) é 0 estado sutil chamado tec- nicamente de fixagdio, que o praticante aleanga apenas dentro da meditago, quando sai do Céu Posterior, antes de retornar ao Céu Anterior. Melhor explanago sobre o assunto sera encontrada no capitulo VI da obra Tratado sobre Sentar e Esquecer, de STM Chéng Zhen, na segunda parte deste livro. Excessos de pensamentos ¢ sentimentos sao os apegos, as raivas ¢ itritagdes, as invejas ¢ amarguras, os traumas, recalques, neuroses ¢ complexos, todos os sentimentos negativos guardados e acumulados no coragao, por muito ou pouco tempo, escondidos ou aflorados ao longo de uma vida. Durante a meditagao, a energia aliada 4 consciéncia adquire o poder de penetrar na mente da pessoa, remover aos poucos seus excessos e deixar, no lugar, consciéncia e energia de niveis mais elevados. Esse ¢ 0 processo continuo de esvaziamento ou purifica- ¢4o. Por isso, quanto mais esvaziada a mente, mais profunda é a penetragio do sopro e mais abrangente a purificagao. Mantendo-se perseverante no método, o processo alcangard os compartimentos mais intimos do coragao do praticante e transformard sua alma egoista em espirito iluminado. Quanto mais vazio, mais purificado é 0 coragao e para esvaziar o coragao, é preciso apenas observar dois preceitos basicos do Xin Zhai Fa: sentar-se em siléncio, preferencialmente em Iétus”, e concentrar a mente no ar que se respi- ra. A perspectiva de completo esvaziamento da mente, no entanto, pode gerar sentimentos de apreensdo e arrefecer 0 4nimo da pessoa inclinada a adotar 0 método. Mas esse receio é um sentimento infundado. Embora seja correto dizer que coracao purificado é corago esvaziado, esse estado nao supde auséncia de consciéncia, mas a existéncia de uma consciéncia de nivel elevado. Em lugar de eliminar a consciéncia, a pratica constante do Xin Zhai Fa trabalha elevando seu nivel, a partir do estagio em que se encontre a mente do praticante. O ponto essencial do método é exatamente a faculdade que possui de esvaziar 0 coragao, mas apenas das impurezas. A pessoa nao se transforma num ser vegetativo, in- capaz de pensar ou sentir. Pelo contrario, na medida em que preserva 0 coragio esvaziado, amplia sua consciéncia. Continua pensando e sentindo, mas agora os pensamentos e sentimentos estarao obedecendo aos estimulos da Consciéncia Pura, onde ideias e emogées so naturalmente serenas e harmoniosas, em lugar de obedecer a consciéncia impura do nivel do ego, onde ideias e emogies sio quase sempre agitadas e impulsivas. A pessoa recupera 0 equilfbrio de seus pen- samentos e sentimentos, o que se reflete na paz interior que passa a acompanha- -la, onde quer que esteja. ” Consultar mais adiante ‘Posturas Fisicas’, no item ‘Praticando a Meditagio’, para maiores informagdes sobre as posigdes recomendadas para a pritica da meditagio. IV - Praticando a Meditagao O Xin Zhai Fa utiliza dois tipos de técnicas: a principal e as complemen- tares. A técnica principal adota a simplicidade na postura fisica, a disciplina como requisito para um bom resultado e a disposig¢ao interna como vontade inabalavel. E as técnicas complementares funcionam como apoios provisérios, que facilitam e encurtam o caminho que leva a quietude. 1-TECNICA PRINCIPAL 1.1 — Principios Basicos Quando se prepara para meditar, 0 praticante precisa seguir normas que aliem naturalidade, relaxamento e conforto ao exercicio da pratica, para entrar com facilidade na meditag4o e permanecer por longo tempo nesse estado. Estas normas constituem os princfpios basicos da técnica principal e podem ser assim resumidas: 1) relaxar corpo e mente, para facilitar o trabalho de concentragao; 2) colocar a ponta da lingua no palato, proxima 4 localizagao dos incisivos superiores, para fechar o ciclo de fluxo energético e evitar a perda da energia trabalhada; 3) manter a coluna ereta, evitando curva-la ou inclinar-se para os lados!*; 4) encaixar-se no eixo, representado por uma linha imaginaria que passa pelo centro do seu corpo fisico, nas diregdes do céu e da terra, equidis- tante entre a direita e a esquerda, entre a frente e as costas; e 5) adotar comportamento mental de distanciar-se de todos os ruidos que estejam 4 sua volta e dos problemas que precisard resolver quando sair 8 0 gesto de curvar ou inclinar a coluna para os lados concentra energia na regitio abdominal lateral sobre a qual o praticante se curvou, 0 que sobrecarrega os 6rgios vitais localizados nessas regides. Com isso, a energia que circula naquele lado ficara bloqueada, o que prejudicara a fluidez procurada durante a meditagZio. Com relagdo a pressdio nas cavidades interiores, no entanto, 0 corpo do ser humano apresenta um grau maior de tolerancia quando a inclinagiio é frontal e, neste caso, com © tempo de meditago, a propria energia que se fortalece termina por esticar involuntariamente a coluna vertebral do praticante, o que significa colocar aos poucos seu corpo na postura correta. da meditag4o, evitando que obstaculos externos se transformem em im- pedimentos para 0 inicio da pratica. Desde que se encontre relaxada fisica e mentalmente, a pessoa pode medi- tar a qualquer hora, na posigdo que eleja de maior conforto, seja ela sentada, encostada ou deitada. E preciso, no entanto, tomar cuidado com dois aspectos do relaxamento, principalmente nos primeiros meses de trabalho. O primeiro se refere as posturas fisicas excessivamente confortaveis, que podem levar o praticante a dormir enquanto medita; e o segundo é com relagao ao queixo, que pode cair quando ele entra em estado de completo relaxamento. 1.2 - Posturas Fisicas Compreendidos e assimilados os princfpios basicos, o praticante escolhe a postura fisica mais indicada para a sua pratica, levando sempre em conta a prio- ridade do seu conforto, fisico e mental. Inicialmente, senta-se no chao, sobre a almofada. Se nao conseguir, senta-se num banco baixo, numa cadeira ou numa poltrona, experimentando as posigdes, até chegar a forma ideal. Encontrada a melhor postura, deve procurar manté-la todas as vezes que medita, alterando-a apenas eventualmente, se houver muita necessidade. ‘Perfeito Létus’ ou ‘Meia-posic&o de Létus’ — a postura mais indicada é o perfeito lotus (Figura 1, p. 37), devido ao grau de seguranga que infunde ao praticante. A pessoa senta sobre uma almofada macia colocada no chio, evita a utilizagdo de encostos, em especial paredes™, apoia-se na bacia ¢ estica a coluna vertebral, até encontrar a posigao confortavel em que nao sinta suas costas. Em seguida, coloca as maos espalmadas voltadas para cima, a direita sobre a esquerda, com os polegares tocando-se levemente. Cruza suavemente as pernas, na medida da flexibilidade de suas articulagdes, até coloca-las em perfeito lotus. Se nao conseguir, recorre 4 meia-posig4o de lotus (Figuras 2a e 2b, p. 38) ou a posi¢do mais proxima desta. Os joelhos podem ficar apoiados no chao, poucos centimetros abaixo da almofada, o que aumentara a estabilidade. 4 Eneostar-se em paredes traz para a meditagaio 0 risco dos choques de temperatura. Eles ocorrem quando a energia quente, yang, que flui nas costas do praticante, entra em contato com a energia fria, yin, da parede. Os choques provocam dores, ma circulagao, torcicolos, reumatismos e outras moléstias, 0 que dificultara a continuagdo da pratica Praticado dessa forma, o perfeito I6tus traz como beneficio a convicgao do prati- cante em saber que suas pernas em contato com 0 assoalho’ irao apoia-lo, no caso de movimentos involuntdrios do corpo. E se ainda assim ele vier a tombar para os lados, o fato de se encontrar bem proximo ao chao evitaré o risco de se machucar. O perfeito lotus e a meia-posigao de lotus costumam provocar na maioria dos praticantes, especialmente principiantes, dores nas costas ou formigamento nas pernas, 0 que os impede de se manterem nessa posi¢o por muito tempo. Esse desconforto acarreta demora no surgimento de resultados da meditagio, mas se for observado algum tipo de progresso, mesmo que lento, deve-se pros- seguir com a posigio. ‘Sentado, Desencostado’ vel ado- tar o perfeito lotus ou a meia-posigdo de lotus, o praticante deve tentar, nes- ta ordem, as posturas ‘sentado desencostado, num banco baixo de meditagao’ (Figura 3), “sentado numa cadeira, encostado em seu espaldar’ (Figuras 4a e 4b), ‘sentado numa poltrona macia, encostado no seu espaldar’ (Figura 5a) ou, finalmente, ‘sentado numa poltrona macia, recostado e com os pés na horizon- tal (figura Sb). O praticante podera também apoiar suas costas em almofadas confortaveis, ao utilizar-se da poltrona macia para meditar. Sentado, Encostado’ — se for impo ‘Deitado de costas’ e ‘Deitado de lado’ — 0 Xin Zhai Fa adota ainda uma outra posi¢éo, recomendada apenas para quem se encontre debilitado e nao con- siga levantar-se da cama. E a posigio deitada, que apresenta risco de o praticante adormecer, devido ao total relaxamento em que se encontra, somado 4 posi¢ao ideal para 0 adormecimento. Ao adotar essa postura, a pessoa precisa observar alguns cuidados: optar preferencialmente por deitar de costas e manter 0 rosto virado para cima (Figura 6), fazendo uma composi¢ao com travesseiros. Coloca- se a parte superior do corpo (da cintura para cima) ligeiramente mais elevada que a inferior, enquanto as pernas se mantém levemente dobradas, 0 que se consegue acomodando-se, habilmente, uma almofada por baixo dos joelhos. Esses cuidados levam a uma sensacgio de completo repouso, mas em situa- ¢des em que a postura horizontal ndo permita deitar de costas, é possivel dei- tar-se de lado (Figura 7). Em principio, o praticante pode virar indistintamente + Recomenda-se forrar o assoalho com um pequeno tapete, para eliminar diferengas de tempera- tura entre 0 chiio e 0 corpo fisico. sobre o lado esquerdo ou direito e, para isso, precisa apenas apoiar-se num travesseiro ou em seu proprio brago, evitando a inclinagdo muito acentuada da coluna vertebral. No entanto, é aconselhavel deitar sobre o lado direito para nao correr o risco de desencadear um processo de taquicardia durante o relaxa- mento. A pressdo que o peso do corpo exerce sobre 0 coragao, quando se deita do lado esquerdo, pode deflagrar uma alteragao nos batimentos cardiacos. A aceleragao, em si, nao representa um mal para a satide, mas interrompe a pratica e se torna mais um item de dificuldade a ser superado. 1.3 - O ritmo da respiracao e a medida da concentragao Definida a postura adequada, o praticante comega a trabalhar com as duas ferramentas basicas da meditagdo, procurando unir sopro e espirito através das etapas da concentragao, contemplagio e fusao. Mantém a coluna reta e a ponta da lingua no palato, fecha os olhos, relaxa corpo e mente e inicia o processo de concentragdo no ar que respira, sem contrair musculos, nem se tornar ansioso. A concentragdo deve ser feita na medida certa, sem apegar-se, nem desligar-se do ar que se respira. E de essencial importancia manter essa medida na concentra- ¢4o porque, se ela for excessiva, pode gerar doengas fisicas e psiquicas e, se for deficiente, gera devaneios. E também fundamental manter permanentemente a atengao no ar que se respira porque este ar unido a consciéncia sera 0 agente promotor da purificagao do coragao. Durante a meditagao, é normal sentir vibragSes pelo corpo. Elas podem ser re- sultado de desobstrugGes parciais nos canais energéticos ou do ingresso de energia sutil do Céu Anterior no organismo do praticante. Quando as pequenas desobstru- Ses acontecem, os nédulos de energia se movimentam aos saltos pelos canais, li- berando a energia concentrada e dando origem as vibrag6es involuntarias. E seme- Ihante ao efeito que aparece durante 0 sono: muitas vezes a pessoa acorda com um pulo involuntério do corpo porque liberou a energia que estava concentrada naquele local. Mas, em estados avangados da meditagdo, é possivel ocorrer, também, um outro fendmeno, em que o praticante fica ‘pulando’ seguidamente por um espago de tempo ininterrupto. Aqui, a causa é a completa e repentina desobstrugao dos seus canais energéticos, com a entrada ¢ a circulagéo vigorosa da energia do Céu Anterior nesses condutos. Dependendo do nivel em que se encontrava a energia corporal, a entrada da energia sutil pode provocar 0 efeito de vibragdo continua. 1.4 - Limites de tolerancia No inicio do processo, os praticantes costumam deparar-se com impedimen- tos que se manifestam nas esferas fisica, energética ou mental e isto ocorre em todas as posturas escolhidas para meditar. Devido a esses limites de tolerancia, algumas pessoas nao conseguem passar mais de dez minutos seguidos sem mo- vimentar bragos ou pernas, ou alguns poucos segundos sem pensar. A dificul- dade maior, no principio, é manter-se fisicamente parado na posi¢ao escolhida e sem elaborar pensamentos. Todos esses impedimentos, no entanto, apesar de se expressarem de formas diferentes, estao relacionados uns com os outros e, juntos, representam limitagdes para a pratica. Mas conforme o trabalho com a meditagao progride, as dificuldades diminuem e o praticante comega, lenta- mente, a esquecer os desconfortos caracterfsticos da fase inicial, até neutralizar corpo fisico e mente, romper a fronteira da forma e da imagem e ingressar na completa quietude, alcangando o Vazio. Nas intolerancias fisicas e energéticas, 0 corpo nao obedece a vontade da consciéncia e as pernas ficam dormentes, devido aos bloqueios que ocorrem nos canais energéticos. A melhor forma de combater esses sintomas é manter-se disciplinadamente dentro da pratica, insistindo em meditar sempre na posigio que se revelou confortavel no inicio, sem ultrapassar 0 limite que o préprio corpo estabelece. Aos poucos, a renovacdo energética, resultado da pratica dis- ciplinada, ira combater a desobediéncia do corpo, desobstruindo os canais que impedem a energia de fluir livremente pelo organismo. O Taoismo ensina que 0 iniciante nao deve usar da insisténcia pura e simples para ultrapassar seu limite maximo de tolerancia, tanto na questo da postura quanto do tempo. Quase sempre, depois de algumas tentativas nessa diregio, ele termina por se machucar seriamente ou adquire desconfortos, como dores fisicas e problemas circulatérios, 0 que leva ao abandono da pratica. Ao con- trario, quem respeita seus limites consegue expandir sua margem de tolerancia. Com isso, permanece mais tempo na pratica e mantém-se perseverante no pro- cesso da meditagao. Esse é 0 progresso gradual que, aplicado ao caminho espi- ritual taoista, como resultado da disciplina adotada, consegue levar, de maneira paulatina, uma pessoa a Iluminagio. As intolerancias mentais podem ser de ambito racional ou emocional. No ni- vel racional, caracterizam-se pela dicotomia que se estabelece no momento em que 0 praticante senta para meditar e em sua mente surgem duas forgas oponen- tes que disputam a primazia do seu raciocinio. Um lado da mente ordena que ele se concentre e faga siléncio, enquanto o outro desfia razdes infindaveis para demové-lo desse objetivo. A pessoa se sente como se estivesse empreendendo uma briga consigo mesma e termina sua prdtica mais cansada do que estava quando se sentou para meditar. Ela se debate entre duas ordens contraditérias, sem conseguir definir a qual das duas obedecer. Quando isso ocorre ¢ 0 prati- cante percebe que nao conseguira interromper a discussao, ele deve levantar-se para espairecer e voltar a meditar mais tarde, naquele mesmo dia ou no dia seguinte, quando se sentir em condigées de controlar a contenda interior. Esse tipo de atitude faz com que a pessoa permanega menos tempo em meditagio, mas agir assim é respeitar seu limite de tolerdncia, o que ir4 produzir resultado de melhor qualidade para a pratica. No nivel emocional, a intolerancia mental est4 mais ligada 4 angtistia causa- da pelo siléncio que se encontra durante a pratica. A pessoa nao suporta 0 pro- cesso de meditacao porque nao consegue conviver com a auséncia de didlogos interiores. Se o iniciante insistir em forgar seu limite, permanecendo sentado em busca do siléncio que n§o tolera, estaré se arriscando a passar por uma ex- plosao emocional, 0 que acarretard consequéncias danosas, lesivas ao seu siste- ma nervoso. Considerando que o Xin Zhai Fa é uma ferramenta espiritual usada por quem trilha o Caminho em diregao ao Dao, uma atitude obstinada como essa torna-se despropositada porque a caminhada deve ser vivida de forma sua- ve e€ nao como ‘terapia de explosao’. Nessa circunstancia, ela precisa exercitar © desapego, para se sentir confortavel com a auséncia dos pensamentos. Cabe a cada um reconhecer seus préprios impedimentos e aprender a lidar com eles, até descobrir a forma ideal de meditar. O método é 0 mesmo, mas as pessoas sao diferentes umas das outras. Assim, cada pessoa deve encontrar a maneira que considera mais apropriada para si. Dependendo do temperamento, da bagagem de vida e do modo como o praticante encara o mundo, talvez seja melhor meditar sentado em l6tus, talvez sentado numa poltrona, ou meditar deitado numa cama. Talvez seja melhor meditar pela manh, ou 4 noite; talvez seja melhor tomar um copo de leite antes, ou meditar primeiro, para depois se alimentar. Cada praticante precisa descobrir a maneira de meditar que melhor se revele para ele, na situagdo e no estégio em que se encontre, no momento de vida pelo qual esteja passando, na condigao em que atue. Se néo consegue Ppermanecer muito tempo sentado, procurando a quietude fisica e mental, deve buscar uma posi¢ao confortavel e reduzir 0 tempo da meditagio para trinta, quinze ou mesmo cinco minutos; qualquer espaco de tempo ¢ indicado para se comegar. 1.5 - Horarios disciplinados, como expressio da vontade inabalavel A disciplina faz parte do método e também é responsavel pelos resultados. Para ser implantada, necessita de uma vontade sélida do praticante. O ideal é fazer duas sessGes didrias de meditagdo. Uma pela manhi, antes de entrar em atividade, e outra a noite, antes de dormir, depois de encerradas todas as ativida- des. Se o praticante, por exemplo, tem que estar no trabalho as 9 horas e precisa tomar o desjejum as 7, para sair de casa as 8, acorda bem cedo e medita as 5 ou 6 horas. Depois da meditag4o, deixa de pensar na pratica e passa a realizar suas atividades naturalmente, com o sentimento de ter cumprido a tarefa diaria. A noite, encerrado o ciclo de atividades, ele senta-se para meditar mais uma vez, antes de adormecer. Esses costumam ser os dois momentos mais serenos no dia de uma pessoa, e por isso sdo sugeridos para a meditacdo. Mas a escolha dos hordrios depende de cada praticante, de acordo com os periodos considerados por ele mais serenos no desenrolar das suas obrigagGes didrias. O praticante deve meditar sempre, todos os dias, disciplinadamente, mesmo que s6 consiga fazer uma sess4o, ou quando esteja ciente de que nao conseguira manter-se mais do que cinco ou dez minutos na pratica. De modo inverso ao que Ppossa parecer, para Os resultados da meditag4o, nio apenas colaboram os dias em que a pessoa medita e consegue entrar em siléncio, como também os dias em que a pessoa medita e nao consegue aprofundar-se na quietude. O esfor¢o disciplinado de se sentar diariamente, de preferéncia nos mesmos hordrios ¢ locais, adotando a mesma postura, é exatamente o ato inicial de disciplinar pri- meiro 0 corpo para depois 0 espirito ou consciéncia, um dia, alcangar 0 Vazio. 2 - TECNICA COMPLEMENTAR: A CONTAGEM DOS NUMEROS As técnicas complementares tém por objetivo ajudar o praticante a combater as intolerancias iniciais, que dificultam a pratica da meditagao, até alcangar fa- ses mais avancadas do processo e se sentir pronto para libertar-se dos apoios. A técnica que ensinamos adiante é a contagem dos ntimeros, mas 0 iniciante pode usar qualquer exercicio que aumente sua capacidade de concentragao ¢ traga melhor elasticidade para 0 seu corpo fisico. A contagem dos numeros ¢ utilizada para eliminar os pensamentos excessi- vos, evitando a dispersio da mente e favorecendo a concentragao. Conta-se o numero da respiragao de um a dez, apenas no ato de expirar. Em seguida, com- plementa-se com o ato de inspirar, sem contagem e sem pensamentos. Quando chega ao dez, volta, mais uma vez, para o nimero um. E recomega a contagem, até o nimero dez. Se esquecer em que nimero esté ou ultrapassar o nimero dez, suspende de imediato a contagem e reinicia a partir do nimero um. No entanto, quando 0 esquecimento s6 é percebido depois que o praticante sai da meditacao, nio ha motivo para preocupagées: significa que ele esta se libertan- do da necessidade de utilizar a técnica complementar. A contagem é ideal para os principiantes e para as pessoas que tém fortes apegos fisicos, energéticos e mentais. Coloca-se a mente dentro do ar que se expira e esse ar carrega junto com ele, para o exterior, os apegos, neuroses e sofrimentos que povoam a mente, pelo menos naquele momento, para se con- seguir meditar por alguns minutos. O gesto deliberado de expelir do organismo a mente no nivel dos apegos representa um ato de rentincia e esta é uma das maneiras que o praticante tem ao seu alcance para se exercitar na pratica do desapego. Por conscientizar a rentincia, esse método tem efeito sedativo, rela- xante e purificador. Por isso, é particularmente indicado para as pessoas muito presas as ideias e aos efeitos sensoriais. A sequéncia de ntimeros que vai de um a dez tem origem na simbologia do Yi Jing. Foi inspirada num aparelho denominado Mapa do Rio (Hé Tu), considerado sagrado pela teologia taoista, e representa a ordem e a integridade que regem o Universo'’. Algumas escolas de meditagao utilizam os métodos da Contagem Infinita (1,2,3... até o praticante se exaurir de contar), Contagem Re- troativa (100,99,98,97... até o 1) ou Contagens Multiplas (1,2,3... 100,99,98...; 16. © Mapa do Rio (Hé Tu) era um objeto esférico, com desenhos de constelagdes e varios es- critos. Segundo livros de Hist6ria, foi encontrado na China Antiga, no leito do Rio Amarelo e estudado por varios sabios, até ser destrufdo num grande incéndio ocorrido no Depésito Real da China, durante a dinastia Xi Jin, ou dinastia Jin Ocidental (265-313 d.C.). O sabio chinés Fit Xi, considerado criador do Yi Jing, Livro das Mutages, estudou seus sinais por mais de cem anos. Para alguns pesquisadores, a denominagdo ‘rio’ refere-se 4 origem da descoberta, mas outros entendem que a denominagio rio faz referéncia a Via Lactea (Yin Hé ou Yin Hin). Assim, Mapa do Rio significa Mapa do Corpo Celeste, Fonte: I Ching: a alquimia dos niimeros, de Wu Jyh Chemg (Rio de Janeiro: Mauad, 1993). 1,100/2,99/3,98... etc.), evitados pelo Xin Zhai Fa por serem hiperestimulado- res da mente. No Xin Zhai Fa, a contagem sucessiva do um ao dez, repetida- mente, ao contrario de transformar a mente comum em mente hiperestimulada, tem o propésito de levar o praticante a alcangar, com mais facilidade e rapidez, a etapa final do método: a plena realizagao espiritual dentro do Caminho Taois- ta, simbolizada pela fusdo do espirito com 0 sopro. V - Ilustragdes Praticante de Xin Zhai Fa mostra posigGes corretas: Figura 1: ‘Perfeito Lotus’ Figuras 2a e 2b: “Meia-posigao de Lotus’ Figura 3: ‘Sentado desencostado, num banco baixo de meditacao’ Figuras 4a e 4b: ‘Sentado numa cadeira, encostado em seu espaldar’ Figura Sa: ‘Sentado numa poltrona macia, encostado no seu espaldar’ Figura 5b: ‘Sentado numa poltrona macia, recostado e com 0s pés na horizontal’ Figura 6: ‘Deitado de costas’ Figura 7: ‘Deitado de lado’ PARTE SEGUNDA ZUO WANG LUN Tratado Sobre Sentar e Esquecer, de SI MA CHENG ZHEN, com Comentarios de Wu Jyh Cherng Sobre o Autor St Ma Chéng Zhén GR AURRAOET : RRM 647-795), MRERBL. FFM, BEM, TARA. HESEER, COMBE, MOLELE, EAE. GEMLELEGE, OEM, ROMER, GELAAERGM, WE], MONA, Ra LAMOROZ. SERA, MERA ERK, AN RAARF. HNARLRLATD FAST ARGE BARAT. RAFHAM: RUAMAS SEAS, MBER, MA GTR. RPRRAOE (711), BAS? , SARBARNEE 2S, LOSER RR RA, A. BSEK, BUMERBRE. MLM TAF (721%), REBMAR, REM. MAtEE (727), RBA BS, WEERUA RE , REMARKS, LRA REAMERABA—h. SRR. M. BA-M. R' SHIR. LREHREE FRERETERE HERD, MRAM, thie , MRA RA R, BB A-KEs. MASA: TSRARWARVECMRAB AM , HER, ME AHR ALEER RAANRBFAMUIZRE, REWREN, | BRAM, , MEAT, MA Mik. ERE (Mutad +, RH TBE Ot WR, . VEGA MUREPREE MA, . eR Me. EBM. . MBAS. CMM A, ML BO Sm, OH "DTS RORMEA, UROREMEAR, . VASA: LAR SRHML AAD ATRA-S. ATA SSH, VBR. MR. "SBMS, TRAM MR, WRAL. REAPRHAMEAERERORRALRE SHER. HREM. St Ma Chéng Zhén A Vida — Si Ma Chéng Zhén (647-735 d.C.) foi um renomado monge taoista da Dinastia Tang (618-907 d.C.). Renomeou-se Zi Wéi e adotou o nome religioso de Dao Yin. Nasceu numa familia de oficiais, no distrito de Wén, em Hé Béi. Foi muito devotado aos estudos ¢ simpatizante do Dao desde tenra idade. St Ma Chéng Zhén nao se interessou em seguir a carreira de oficial, pois desejava manter-se afastado do mundo. Foi discipulo do Mestre Pan Shi Zhéng, um monge taoista da Monta- nha Song, que lhe tinha muito apre¢o, por seus esforgos ¢ arduo empenho. Com seu mestre, estudou 0 “Método do Tratado da Transparéncia Sublime” (Shang Qing Jing Fa), o “Registro dos Selos e Talismas” (Fu Lu), exercicios fisicos (dao yin) e inges- tao de ervas. Com isso, torou-se regente sucessor da quarta geragao da “Escola da Transparéncia Superior” (Shang Qing Pai). Posteriormente, depois de percorrer todas as montanhas famosas, direcionou-se para uma vida reclusa no Pico Yu Xiao, na Montanha Tian Tai (Tian Tai Shan Yu Xiao Féng). Adotou, entdo, o nome de Mestre Nuvem Branca da Montanha Tian Tai (Tian Tai Bai Yun Zi). Manteve-se em contato proximo com dez oficiais graduados ¢ refinados eruditos, tais como 0 Alto Oficial Chén Zi Ang ¢ 0 poeta Li Bai, que eram chamados por seus contemporaneos de “Dez Amigos da Escola da Imortalidade” (Xian Zong Shi You). Lagos taoistas com imperadores — A imperatriz Wu Zé Tian ouviu falar de Si Ma Chéng Zhén e mandou chamé-lo a capital. Ela emitiu um decreto, escrito de pro- prio punho, elogiando suas realizagdes no Taoismo e sua nobre conduta. No segundo ano Jing Yun, durante o reinado do imperador Rui Zong, da dinastia Tang (711 d.C.), Si Ma Chéng Zhén foi chamado a corte e arguido sobre a arte magica da adivinhagao Yin Yang e sobre a governabilidade da nagao. Sua resposta, de que a “Nao-Agdo” (Wu Wéi) deveria ser a fundamentagao do governo, foi altamente apreciada pelo im- perador. Assim, ele foi honrado com um precioso instrumento de corda e um chapéu bordado. No nono ano Kai Yuan (721 d.C.), o imperador Xuan Zong, da Dinastia Tang (Tang Xuan Zong), enviou um mensageiro para convida-lo 4 corte, para re- ceber Registro dos Métodos em pessoa. No décimo quinto ano de Kai Yuan (727 d.C.), Si Ma Chéng Zhén foi novamente chamado a corte e convidado a escolher um bom lugar para estabelecer o Templo da Plataforma Solar (Yang Tai Guan) como seu domicilio. Além disso, o imperador ordenou a construgdo de um Templo do Senhor Verdadeiro (Zhén Jiin Ci) em cada uma das Cinco Montanhas Sagradas (Wt Yué). Si Ma Chéng Zhén era muito habil em esculpir selos e redigir em caligrafia oficial. E possuia um estilo unico, denominado “Caligrafia da Tesoura Dourada” (Jin Jian Dao Shi). O imperador Xuan Zong ordenou-lhe que escrevesse 0 livro de Lao Zi, O Dao e sua Virtude [Dao Dé Jing], em trés estilos de caligrafia e 0 gravasse em pedra. Apds sua morte, St Ma Chéng Zhén foi honrado como “Senhor Homem Genuino” (Zhén Rén Xian Shéng) ¢ foi-lhe conferido o titulo de “Grande Oficial Sénior da Luz Azul Prateada’” (Yin Qing Guang Lu Da Fa). Ideais taoistas: Mestre Si Ma extraiu de Confucio as ideias de devogao, e das teorias budistas, os conceitos de acalmar a mente e obter sabedoria. Na elaboragao das teorias taoistas de “Cultivo do Caminho” (Xia: Dao) e “Alcance da Imortalida- de” (Chéng Xian), Mestre St Ma afirma que os seres humanos sio dotados com a qualidade de imortais. Para alcangar a imortalidade, é necessdrio, apenas, “cultivar 0 sopro do esvaziamento (Xiii W6 Xi Qi)”, “seguir sua propria natureza (Sui W6 Zi Ran)” e “manter-se em harmonia com o Dao (Yu Dao Xiang Shéu)”. No seu livro Discussao sobre Sentar e Esquecer" (Zuo Wang Lin), Si Ma Chéng Zhén descreve sete estagios para 0 cultivo do Dao. Além disso, ele classificou 0 processo do cultivo do Dao e do alcance da imortalidade em cinco portais de progresso (Jié Ci) e declarou que “as cinco maneiras de atingir a imortalidade (Xiti Lian) sao unificadas em um”. Ele defende que os cinco portais do progresso e sete est4gios podem ser aglomerados em trés mandamentos: “diminuindo envolvimentos com assuntos mundanos”, “nao tendo desejos” e “acalmando a mente”. E declarou que “o Dao chegard para aque- les que observarem estes trés mandamentos, regular e constantemente, mesmo que eles nao estejam a procura do Dao, propositadamente”. Ele afirma que aqueles que estudam o Dao podem tomar-se imortais, se seguirem 0 seguinte método: “voltando- -se internamente para seu corpo, torna-se inconsciente do proprio corpo; e voltando- -se exteriormente para o Universo, torna-se inconsciente do Universo”; “penetra-se numa comunhio sutil com 0 Dao ¢ todas as preocupagées desaparecem”; ¢ “quando a pessoa esquece o mundo e esquece de si mesma, essas duas instancias nao se refle- tem mais em sua mente”. As teorias taoistas de Si Ma Chéng Zhén exercem algumas influéncias no desenvolvimento das teorias taoistas de ‘Cultivo e Refinamento’ e na formacio da Escola filosofica Neoconfucionista da Dinastia Song do Norte. Fonte: http://www.taoism.org.hk Traducdo direta do chinés para o portugués (p. 49 e 50): Tong Harr Lee, discipula do Mestre Wu Jyh Cherng. "'Conforme explicado na Nota 3 da Apresentagio (p.15), “discussi0” é a tradugao literal (N-E.)

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