Você está na página 1de 72

ENUMA ELISH

O poema mesopotâmico da criação

Tradução, adaptação, apresentação e notas de Sueli Maria de Regino


Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás

O LEGADO MILENAR DO ENUMA ELISH

Sobre o poema e sua tradução

Quando os arqueólogos Austen Henry Layard (1852-1896) e


Hormuzd Rassam (1850-1854) escavavam em Nínive as ruínas de um
palácio assírio, descobriram mais de 24 mil placas de argila cozida com
textos sobre religião, medicina, leis, matemática, astrologia, geografia e
poesia, registrados em escrita cuneiforme. Entre os textos encontrados na
biblioteca de Nínive está o Enuma Elish, poema que conta a criação do
mundo e dos primeiros deuses, escrito para glorificar o deus Marduk,
descrever sua vitória sobre as divindades ancestrais e contar como
conquistou o poder e a soberania sobre deuses e homens.
Encontrado em 1849, o Enuma Elish foi publicado pela primeira vez
por George Smith (1840-1876), assiriologista do Museu Britânico, em
1876. As fontes de Smith foram as pranchas de argila encontradas por
Layard e Rassam na biblioteca do palácio de Assurbanípal II (c. 669-626
a.C.), às margens do rio Tigre, em uma área que hoje pertence ao Iraque. A
versão do Enuma Elish ali encontrada é assíria, datada de 650 a.C., é uma
cópia de versões mais antigas, que provavelmente se inspiraram em textos
sumerianos, de mais de cinco mil anos. Enuma Elish são as duas palavras
iniciais do primeiro verso do poema:

Enuma Elish la nabu shamamu


Shaplitu ammatum shuma la zakrat

Em português, esses versos podem ser assim traduzidos:

Quando no alto o céu não havia sido nomeado


e a firme terra abaixo ainda não recebera um nome.

O poema tem cerca de mil linhas, distribuídas em sete pranchas ou


tábuas de argila, cada uma com, aproximadamente, 160 linhas. Está escrito
em acádio, ou acadiano, uma língua semítica derivada do antigo sumério. O
termo “acádio” deriva de “Acádia” nome de uma das mais importantes
cidades da antiga mesopotâmia.
A tábua número cinco estava em péssimo estado de conservação,
quase totalmente perdida, mas por volta de 1952 foi encontrada uma cópia
em Sultantepe, na Turquia, na antiga cidade assíria de Huzirina. Alguns dos
textos descobertos em meio às seiscentas tábuas de Sultanepe foram
publicados a partir de 1953 por Oliver Robert Gurney (1911-2001), do
Instituto Britânico em Ancara, em Anatolian Studies. Entre esses textos
estava uma edição do Enuma Elish, o que permitiu acrescentar mais
elementos para a tradução da quinta tábua. De qualquer forma, as lacunas
nos textos ainda são muitas e nenhuma tradução pode ser considerada
definitiva.
O texto-fonte da tradução de George Smith teve origem nas tábuas
de cerâmica encontradas por Layard. Algumas dessas tábuas estavam
partidas, com partes danificadas, mas ainda assim legíveis. Essa primeira
tradução foi publicada com o título: The Chaldean account of Genesis. Em
1890, Peter Jensen, no seu livro Die Kosmologie der Babylonier, publicou
nova tradução com comentários e, alguns anos depois, em 1895, Heinrich
Zimmerm editou em língua alemã a sua tradução do poema mesopotâmico.
Outro pesquisador do Museu Britânico, Leonard William King (1869-
1919), publicou uma nova versão do texto em 1902, sob o título The Seven
Tablets of Criation. Depois dessas primeiras traduções, vieram as dos
alemães A. Deimel, em 1912, e Ebeling, em 1921; do inglês S. Langdon,
em 1923 e do assiriologista francês E. Dhorme, em 1927, com a publicação
de versões continuamente aumentadas. Mais recentemente, E. A. Speiser e
A. K. Grayson trouxeram novas contribuições para a restauração do texto
acadiano e novas versões continuam a surgir, à luz de diferentes
interpretações e novas descobertas.
Na antiga Mesopotâmia a luta entre o caos e a ordem cósmica,
presente em todos os mitos cosmogônicos, foi transformada em um drama,
expresso no poema Enuma Elish. Trata-se de um poema dramático, escrito
para ser entoado, representado, ou recitado solenemente no início de cada
ano, no quarto dia da festa do Ano Novo. Speiser observa que o poema, em
seu idioma original, embora sem a presença de rimas ou aliterações,
apresenta alguma assonância, como os cantos gregorianos, e de forma
semelhante aos poemas gregos, devia ser cantado com acompanhamento
musical. O Enuma Elish conta a criação do universo e estabelece a
genealogia dos deuses mesopotâmicos. Narra o nascimento de Marduk, os
eventos que levaram esse deus a obter a supremacia sobre os outros deuses
e os que levaram à construção da cidade de Babilônia.

Um pouco de história
Mesopotâmia é um termo grego que significa “entre rios”
(meso/meio, pótamos/rios). O nome dado pelos gregos descreve bem a
região: um grande planalto delimitado pelos vales dos rios Tigre e Eufrates,
que nascem nas montanhas da Armênia e deságuam no Golfo Pérsico,
formando grandes deltas. A Mesopotâmia apresenta duas regiões
geográficas bem distintas: a região Norte, montanhosa e árida, e a Sul,
beneficiada pelas cheias dos rios, de solo muito fértil para a agricultura.
Os sumérios chegaram ao delta dos rios Tigre e Eufrates por volta
de cinco mil anos a.C., vindos, provavelmente, do Vale do Indo. Próximo ao
local onde posteriormente se ergueria a cidade de Ur, os primeiros
sumérios, saídos do neolítico, fabricavam objetos de cobre, cerâmica e
tijolos para construção, que usaram para erguer as primeiras cidades de que
a humanidade tem notícia: Quish, Uruk, Eridu, Ur, Lagash e Nipur. No
decorrer do quarto milênio a.C., com a chegada à região de um novo grupo
sumério, teve início o período de Uruk. Foram introduzidas novas técnicas
de metalurgia e olaria, com aprimoramento dos artefatos de metal e
cerâmica. Os templos, por sua vez, se tornaram maiores, mostrando o
crescimento do poder dos sacerdotes. No final desse período foi criada a
escrita cuneiforme, usada cada vez mais intensamente nos períodos que se
seguiram.
Além das cidades, dos grandes templos e palácios, o povo sumério
construiu canais de irrigação e açudes, que abasteciam as cidades nos
períodos de seca. Esses canais formavam um complexo sistema hidráulico
que, por volta do ano 3000 a.C., garantia a colheita de cereais como o trigo
e a cevada, além de contribuir para evitar as temidas inundações. Os
sumérios conheciam o arado semeador, a grade e os carros de roda. Além de
cereais, cultivavam o linho, o gergelim, árvores frutíferas, raízes e
leguminosas. Além da agricultura, dedicavam-se à criação de animais e ao
artesanato em junco, argila, madeira, couro e metais. Em decorrência dos
excedentes de produção, os sumérios desenvolveram o comércio com
outros povos e criaram um bem elaborado sistema financeiro, com a
utilização de recibos, escrituras e cartas de crédito. Em meados do terceiro
milênio a.C., grupos de nômades vindos da Síria, chamados acadianos,
começaram a penetrar nos territórios sumérios e acabaram por dominar suas
cidades. Por volta do ano 2000 a.C., os amoritas, povos semitas vindos do
deserto sírio-árabe, estabeleceram-se na região. Sob o reinado de Hamurabi,
conquistaram a Suméria e a Acádia, formando o Primeiro Império
Babilônico.
Em torno de 1800 a.C., Hamurabi estabeleceu um código de leis,
com base nas leis dos sumérios, composto por 282 artigos. O texto inicial
do Código de Hamurabi expõe como Anu, o senhor dos Anunaki, e Bel,
senhor dos céus e da terra, decretaram todos os destinos e deram ao
poderoso Marduk, filho de Ea, o domínio sobre a humanidade. Em seguida,
Hamurabi afirma ter sido escolhido pelos deuses para trazer à terra
esclarecimento e justiça. As leis do código assegurariam o bem-estar dos
homens na terra, impedindo que os fortes ferissem os fracos, castigando os
maus e destruindo os criminosos. As leis instituídas pelo Código de
Hamurabi buscavam disciplinar a vida social e a econômica, garantindo a
ordem e o respeito à propriedade privada.
No final do segundo milênio a.C., os assírios, povo semita que
habitava as margens do rio Tigre, conquistaram as cidades mesopotâmicas,
expandindo em seguida os seus domínios até o Egito. O centro
administrativo do império era a cidade de Nínive, situada à margem
ocidental do rio Tigre. Um de seus mais notáveis soberanos foi
Assurbanípal (c. 690 - 627 a.C.), criador da Biblioteca de Nínive, que
reunia milhares de textos em escrita cuneiforme. No início do primeiro
milênio a.C., um povo de origem também semita, os caldeus, se estabeleceu
na Mesopotâmia. Os caldeus foram os principais responsáveis pela derrota
dos assírios e pela organização do Segundo Império Babilônico, que teve o
seu ponto alto com Nabucodonosor (c. 605 - 563 a.C.). Após a morte desse
rei, Babilônia entrou em declínio, até ser invadida, por volta de 539 a.C.,
pelo Império Aquemenida, liderado por Ciro II, o Grande.

Cosmologia e religião sumero-acadiana


Os sumérios imaginavam a Terra como um disco achatado, sobre o
qual se erguia o espaço vazio do céu, fechado por uma superfície sólida em
forma de abóbada. Os princípios componentes do universo eram An, o Céu,
e Ki, a Terra, geralmente designados pelo termo composto an-ki, que
significava “Céu-Terra”. O espaço entre o Céu e a Terra era preenchido por
lil, uma substância invisível e impalpável. O termo lil pode ser traduzido
por sopro, espírito, ar ou vento, e sua matéria, acrescentada de luz, formava
o Sol, a Lua e todos os outros astros. Envolvendo tudo isso, havia o oceano
primordial e infinito. Esses componentes universais (céu, terra, ar e água)
estavam subordinados às quatro divindades criadoras: An, deus celeste; Ki,
deusa da terra; Enlil, deus do ar e Enki, deus da água. Para os sumérios, as
leis universais que todos os seres deviam respeitar e obedecer, haviam sido
concebidas por esses seres.
O sistema de base usado pelos sumérios para identificar horas e
ângulos era o sexagesimal, baseado no número 60. Dessa forma, dividiram
o ano em 12 meses e o dia em doze danna, horas duplas que completavam
um total de vinte e quatro horas. Os sumérios também dividiram o espaço
celeste em doze casas astronômicas, o Zodíaco, criando uma espécie de
mapa do céu. Cada casa zodiacal recebia o nome de uma constelação e cada
planeta era relacionado a um dos deuses de seu panteão. O calendário, de
doze meses era, ao mesmo tempo, lunar e solar. Os sumérios conheciam três
paralelos: o equatorial, que chamavam de “Caminho das estrelas de Anu”, o
Trópico de Câncer, que recebia o nome de “Caminho de Enlil” e o Trópico
de Capricórnio, chamado “Caminho de Ea”. Além da divisão do ano em
doze meses, os povos mesopotâmicos dividiam os meses em semanas de
sete dias.
Entre os caldeus, a matemática se desenvolveu para acompanhar as
necessidades de cálculo, geradas pelos estudos astronômicos. Os povos
mesopotâmicos dividiram o círculo em 360 graus. Conheciam as quatro
operações fundamentais, calculavam equações de segundo grau, raízes
quadradas e cúbicas. Além disso, elaboraram tábuas semelhantes às tabelas
de logaritmos atuais e inventaram meios de determinar medidas de
comprimento, superfície e peso.
Como os astros representavam divindades, os mesopotâmicos
davam aos estudos astronômicos importância religiosa e as torres dos
templos eram usadas pelos sacerdotes como observatórios astronômicos. A
observação de que os movimentos dos astros anunciavam eventos
climáticos cíclicos e que esses influenciavam a vida sobre a Terra, levou à
crença de que essas divindades poderiam também atuar sobre os destinos
individuais. E assim, dos registros astronômicos, surgiu a astrologia, com o
objetivo de gerar previsões de toda ordem. A astrologia mesopotâmica foi
modelo para a astrologia do Ocidente e algumas das constelações do
Zodíaco grego, como a de Leão, Touro e Escorpião, vieram da tradição
mesopotâmica.
Os sacerdotes sumérios formavam uma classe influente, intocável,
que elaborou um complexo sistema cosmológico por meio do qual tentavam
explicar todas as questões relativas ao homem, à sociedade e à natureza. As
religiões que durante quase cinco mil anos dominaram a região
mesopotâmica basearam-se nos mitos e ritos dos povos sumérios, cujas
crenças sobreviveram em forma de sincretismos, influenciando os povos
que em levas históricas ocuparam os vales do Tigre e do Eufrates.
Na religião suméria, a natureza, as atividades humanas, os objetos
de culto ou de trabalho e todos os fenômenos cósmicos eram presididos por
mais de três mil divindades. Os deuses mais importantes eram os que
representavam os grandes domínios da natureza: o céu, a terra, o ar e as
águas. Os doze deuses do primitivo panteão sumeriano são: An e sua esposa
Ki, Enlil, Enki, Ninmah, Nannar, Inana, Utu, Ninnurta, Damuzid, Marduk e
Ningizida. Ao lado desses grandes deuses, os sumérios cultuavam
divindades menores, semelhantes aos daimons gregos, que protegiam as
famílias e as aldeias.
No panteão mesopotâmico, duas tríades divinas se destacavam. A
primeira delas era composta por Anu, o deus do céu, Enlil, que tinha a terra
sob o seu domínio e Ea, divindade reinante sobre as águas. A segunda tríade
era formada por deuses astrais: Sin, o deus-lua, Shamash, o sol, e Ishtar, o
planeta Vênus. As duas tríades, portanto, não se organizavam de acordo
com a tradicional formação familiar, que reúne pai, mãe e filho, ou filha,
mas pela co-relação de seus papéis na natureza.
Em seus cultos, os deuses sumérios exigiam sacrifícios, preces e
oferendas de alimentos, bebidas, roupas e adereços, pois tinham as mesmas
necessidades dos seres humanos e os mesmos sentimentos. Padeciam de
fome, sede, amor e ódio. Seus desejos e intenções eram comunicados ao
povo por intermédio dos sacerdotes e os templos sumérios destacavam-se
por sua estatura grandiosa. À medida que as cidades prosperavam, os
templos tomavam a forma de grandes torres escalonadas, com largas
escadas e um altar no alto, onde eram realizados os rituais e os sacrifícios
aos deuses. Essas estruturas piramidais, chamadas zigurates, também eram
usadas como grandes celeiros, o local onde os sacerdotes armazenavam as
dádivas dos fiéis.
A estrutura do poema
Na antiga Mesopotâmia a luta entre o caos e a ordem cósmica foi
transformada em um drama, o Enuma Elish. O poema é resultado do
sincretismo religioso sumério-acadiano, pois integra concepções do
pensamento sumério, modeladas pela visão semítica. Possivelmente foi
escrito para ser entoado, representado, ou recitado solenemente diante da
estátua de Marduk, no quarto dia do Akitu, festival babilônico do Ano
Novo. No primeiro dia da cerimônia, o deus era simbolicamente confinado
em um local que os textos chamam de “Montanha”, termo que também é
usado como sinônimo para zigurate. Por três dias, Marduk permanecia no
mundo subterrâneo, reino do caos e da morte. No quarto dia, com a
encenação ritual do Enuma Elish, o deus era trazido de volta à vida. O
renascimento de Marduk acontecia, simultaneamente, com o nascer do Sol
no Equinócio da primavera, quando então se comemorava o Ano Novo. O
final de cada ano representa o tempo anterior à criação do mundo,
dominado pelo caos, que deve desaparecer antes de tudo ser recriado.
Os versos da primeira tábua contam sobre um tempo anterior à
existência do universo. Um tempo em que nada havia além de Apsu, as
águas doces e Tiamat, as águas salgadas. Nos momentos iniciais da criação,
a unidade formada pelas águas misturadas de Apsu e Tiamat dividiu-se,
assumindo dois aspectos: o masculino e o feminino. Surgiram então Lahmu
e Lahamu, macho e fêmea primordiais, que representavam o horizonte, a
linha divisória entre a terra e o céu. Lahmu e Lahamu geraram Anshar, a
terra, e Kishar, o céu. Essas divindades geraram Anu, a abóboda celeste,
que por sua vez gerou Nudimmud-Ea, o senhor da sabedoria.
Depois que a ruptura desfez a imobilidade, surgiram as primeiras
gerações de deuses e, com elas, os conflitos que levariam o deus Marduk a
lutar contra Tiamat, conquistando o poder soberano sobre todos os deuses.
Após descrever os momentos iniciais da criação do universo, a primeira
tábua narra como os deuses das novas gerações, ruidosos e agitados,
perturbavam os mais velhos, impedindo-os de dormir. O barulho
insuportável levou Apsu a planejar a morte de seus filhos. Esses, porém, ao
tomarem conhecimento do que os ameaçava, enviaram Nudimmud-Ea, que
lançou um encantamento sobre Apsu, fazendo com que caísse em um sono
profundo. Depois de matar Apsu, Ea ergueu sua casa sobre o corpo inerte
do deus ancestral, acima do grande abismo de águas doces. Ali o deus Ea
uniu-se a sua esposa Dankina, gerando um filho: o poderoso Marduk.
Instigada pelos velhos deuses, Tiamat decidiu vingar a morte de Apsu e,
após criar um exército de seres monstruosos, escolheu seu filho Kingu para
marido e comandante de suas hostes.
A segunda tábua narra o avanço das forças lideradas por Kingu e
Tiamat. Ao tomar conhecimento da situação, Nudimmud-Ea procurou seu
avô Anshar, que o aconselhou a enfrentar Tiamat com os mesmos
encantamentos que ele usara contra Apsu, mas quando Ea se viu diante das
forças poderosas de Tiamat, teve medo e retornou sobre seus passos. Depois
dele, Anu foi enviado, mas também se atemorizou e voltou para trás.
Quando os deuses pensavam que ninguém mais poderia enfrentar o poder
de Tiamat, Marduk se apresentou diante de Anshar, dizendo-se pronto para
lutar contra a deusa, sob a condição de, em troca, ocupar o lugar supremo
entre os deuses.
Na terceira tábua, Anshar se dispõe a aceitar os termos de Marduk e
envia o seu conselheiro Kaka para um encontro com os deuses da primeira
geração: Lahmu e Lahamu. Kaka, o conselheiro de Anshar, deverá lhes
repetir toda a história, contando sobre o exército de Tiamat, e convidá-los
para um banquete, no qual serão conhecidas as condições de Marduk. Nessa
tábua ocorre a repetição de passagens anteriores que descrevem o
aterrorizante poder de Tiamat. Essas recorrências sugerem algo como os
refrões poéticos e deviam causar poderosa impressão àqueles que assistiam
à representação.
Na quarta tábua é narrado como a assembleia dos deuses se reuniu e
os ancestrais testaram os poderes de Marduk. Vitorioso no teste que lhe foi
apresentado, o jovem deus seguiu o caminho que o levava aos seus
inimigos. Suas armas eram o arco, a pesada clava, uma rede tecida por Anu
e os ventos que reuniu sob seu comando. Marduk foi até Tiamat, que o
desafiou para um combate corpo a corpo. Depois de envolvê-la em sua
rede, o deus enviou o vento Inhullu para inflar seu ventre e atirou uma
flecha, atravessando com ela as suas entranhas e o seu coração. Após
vencer Tiamat, Marduk capturou Kingu, matou os seres monstruosos que
ele comandava e dividiu em duas partes o corpo da mãe ancestral. Com
uma das metades criou a terra e com a outra metade formou o céu, nele
estabelecendo o lugar dos deuses: Anu, Enlil e Ea.
Na quinta tábua, é contado como Marduk definiu os lugares que os
outros deuses deveriam ocupar na abóboda celeste e como estabeleceu a
duração dos dias, meses e anos. Além de definir as “estações”, ou seja, os
lugares ocupados pelos deuses no firmamento, Marduk determinou as fases
da lua, criou a chuva para fecundar a terra, o nevoeiro sobre as águas, os
rios Tigre e Eufrates, as montanhas e os vales. Por fim, estabeleceu a cidade
de Babilônia como o lugar de seu culto na terra e se dispôs a criar escravos
que trabalhassem para os deuses.
A sexta tábua relata a criação dos seres humanos com o sangue e os
ossos de Kingu. As tribos dos homens de cabeças negras, ou cabelos
negros, são criadas por Marduk para servir os deuses. Em agradecimento,
os deuses construíram o templo de Esagila, na cidade de Babilônia. Depois,
reuniram-se para uma grande festa, onde todos louvaram Marduk e o
agraciaram com nomes de grande honra e poder.
Na sétima tábua continua a exaltação de Marduk como senhor dos
deuses. Com cinquenta nomes os deuses o glorificam, enaltecendo o seu
papel na criação do mundo. No final, os homens são instruídos a guardar
em suas lembranças o deus e seus grandes feitos, invocando o nome de
Marduk em suas preces. O fato de todos os nomes de Marduk citados na
última tábua serem sumérios, pode indicar a origem suméria do texto fonte.

Sobre as traduções do poema


O poema Enuma Elish, encontrado na biblioteca de Assurbanipal II,
foi escrito em um dialeto acádio. A língua acadiana, usada pelos povos
assírios e babilônicos na Mesopotâmia pós-sumeriana, pertence ao grupo
oriental das línguas semíticas, e foi utilizada durante muito tempo como
língua internacional no Oriente Médio e no Egito. O Enuma Elish é
apresentado em cerca de mil e duzentas linhas distribuídas em sete pranchas
ou tábuas de argila, cada uma com um número aproximado de cento e
sessenta linhas. As tábuas descobertas em Nínive apresentam trincas e
danos diversos, que dificultam a leitura de vários trechos. Por volta de
1952, porém, foi encontrada outra cópia do poema em Sultantepe, Turquia,
na antiga cidade assíria de Huzirina. Alguns dos textos descobertos em
meio às seiscentas tábuas de Sultanepe foram publicados a partir de 1953
por Oliver Robert Gurney (1911-2001) do Instituto Britânico em Ancara.
Entre esses textos, novos fragmentos do Enuma Elish possibilitaram a
ampliação das traduções pioneiras. De qualquer forma, as lacunas ainda são
muitas e nenhuma tradução do poema mesopotâmico pode ser considerada
definitiva. As versões que até agora foram descobertas são cópias redigidas
entre os séculos XI e II a.C., ou seja, desde a época em que foi fundada a
primeira dinastia real, e abrangem quatro tradições: as de Assur, de Kish, de
Nínive e da Babilônia.
Várias foram as fontes desta versão para a língua portuguesa do
poema Enuma Elish. Diante das diferentes traduções e dos muitos conflitos
entre os significados de termos e expressões, procurou-se fazer um estudo
comparativo entre as traduções disponíveis, buscando as melhores soluções.
O ponto de partida foi o texto de Leonard William King, The Seven Tablets
of Criation, de 1902, seguido das anotações de George Smith em The
Chaldean account of Genesis, containing the description of the creation, the
fall of man, the deluge, the tower of Babel, the times of the patriarchs, and
Nimrod e o trabalho de Stephen Langdon (1876-1937), The Epic of
Creation, de 1923, obras que estão disponíveis, na íntegra, em bibliotecas
virtuais. Os hiatos dessas traduções foram preenchidos com dados
fornecidos por traduções mais recentes, tais como as de E. A. Speiser e N.
K. Sandars.
As trincas e os danos na superfície dos fragmentos das tábuas de
argila impedem a leitura de parte do texto cuneiforme. Muitas das palavras
em acadiano apresentam diferentes interpretações dos tradutores e têm
gerado discórdias acadêmicas, devido às divergências nas interpretações.
Outras escavações realizadas em Assur, Sultantepe e outros campos
arqueológicos, trouxeram à luz outras versões do poema Enuma Elish, mas
todos esses textos diferem muito pouco e parecem retomar sempre um
mesmo modelo. Speiser observa que, embora sem a presença de rimas ou
aliterações, o poema apresenta, em seu idioma original, alguma assonância,
como os cantos gregorianos. Possivelmente era cantado com
acompanhamento musical, de forma semelhante aos poemas gregos. A
partir desses dados, buscou-se elaborar, em língua portuguesa, uma versão
que preservasse o tom solene de um texto religioso, sem perder de vista os
aspectos e o ritmo da linguagem dramática, que não podem ser ignorados,
considerando-se o caráter de drama-ritual do poema Enuma Elish.
Esta tradução não teve maiores pretensões além de tornar acessível
aos leitores de língua portuguesa este fascinante poema milenar. Procurou-
se dar prioridade ao encanto das narrativas míticas e, por meio de notas ao
final do texto, oferecer informações que pudessem ser úteis aos leitores
pouco familiarizados com a religião, a cultura e a história dos povos da
Mesopotâmia. As setenta e quatro notas que acompanham o texto foram
resultado de pesquisa nas obras relacionadas na bibliografia. Os sites
consultados foram de grande utilidade, especialmente por facilitarem a
consulta a dicionários, artigos acadêmicos e obras esgotadas, como os
textos de George Smith, King, Langdon e outros, encontrados em
bibliotecas virtuais de universidades e museus.
PRIMEIRA TÁBUA

Quando no alto o céu não havia sido nomeado


e a firme terra abaixo ainda não recebera um nome,
havia somente Apsu[1], o primeiro, aquele que tudo gerou,
e Mummu Tiamat[2], aquela que a tudo pariu.
Suas águas misturadas formavam um só corpo[3].
Não havia juncos trançados, nem lodaçais,
pois nenhum dos deuses havia sido gerado
e nenhum deles tinha nome ou destino a cumprir.
Então, no seio dessas águas, dois deuses se criaram:
Lahmu e Lahamu[4], assim eles foram chamados.
Depois de crescerem em idade e estatura,
os deuses geraram Anshar e Kishar[5],
que estenderam seus corpos para separar
o que no alto se erguia, daquilo que havia embaixo.
Longos dias se passaram e anos se sucederam,
até que nasceu Anu[6], feito à imagem de seu pai.
Anu, primogênito e herdeiro de Anshar,
gerou Nudimmud-Ea[7], que de seus pais recebeu
grande força e o dom de dominar toda a sabedoria.
Ea era ainda mais forte que seu avô Anshar,
deus sem rival entre os deuses, seus irmãos.
E foi assim que surgiram as gerações divinas.

Os jovens deuses, porém, a todos incomodavam


com gritos e tumultos que agitavam, inquietavam,
e faziam tremer as profundezas de Tiamat.
Apsu insistia para que os filhos silenciassem,
mas não conseguia fazer com que o ouvissem.
Enquanto isso, Tiamat permanecia angustiada.
Como os filhos seguissem cada vez mais arrogantes,
Apsu, o criador dos grandes deuses,
chamou Mummu[8], seu conselheiro, e falou:

“Mummu, que traz conselhos e alegria ao meu espírito,


vem comigo. Juntos iremos encontrar Tiamat”.
Diante de Tiamat eles se sentaram para decidir
o destino que dariam aos deuses, seus primogênitos.
Apsu se adiantou e disse à resplandecente Tiamat:

“O comportamento deles é realmente insuportável.


De dia não tenho repouso e à noite não posso dormir.
Meu desejo é destruí-los e acabar com tudo isso.
Só assim teremos de volta nossa tranquilidade
e poderemos, enfim, voltar a dormir em paz.”
Ao ouvir essas palavras, Tiamat ficou aflita,
sentiu grande angústia dominar seu coração.
Ela se lamentou, lançou maldições e disse a Apsu:

“Nós não podemos destruir os filhos que geramos,


mesmo que seu comportamento nos perturbe.
Vamos esperar que se acalmem e nos deixem em paz.”

Então Mummu ofereceu a Apsu seus conselhos,


e suas palavras foram hostis aos deuses:

“Pai, destrói todos eles numa grande investida, pois só assim


teremos paz durante o dia e à noite poderemos dormir.”

Ao ouvir essas palavras Apsu ficou radiante,


pois desejava lançar o mal contra os deuses, seus filhos.
Ele abraçou Mummu, envolvendo o seu pescoço,
e depois o colocou sobre os joelhos para beijá-lo.
Mas tudo o que tramavam foi descoberto pelos deuses [9].
De início houve tumulto e medo, mas depois
todos ficaram em silêncio, e mudos permaneceram.
Nudimmud-Ea, deus habilidoso e de grande sabedoria,
a inteligência brilhante que tudo vê e tudo sabe,
pensou sobre a questão e imaginou um plano.
Então Ea fez um feitiço e o lançou contra Apsu[10].
Suas poderosas palavras chegaram até as profundezas[11]
e espalharam-se sobre Apsu, que ao ser tocado pela magia,
inclinou-se vencido pelo sono e assim permaneceu.
Mummu, o conselheiro, não teve poder para reagir.
Então, Nudimmud-Ea rasgou o manto de Apsu
e arrancou de sua cabeça a coroa flamejante,
de onde removeu o halo, colocando-o sobre si.

Ao encantar Apsu, Nudimmud-Ea o matou.


E antes de estabelecer sua morada sobre Apsu,
imobilizou Mummu e o ergueu, preso a uma corda.
Após subjugar os inimigos, esmagando-os sob os pés,
Ea adormeceu na paz de seu leito sagrado e descansou.
Por fim, Ea se apossou do santuário de Apsu,
e construiu sua casa no abismo das águas,
onde viveu em esplendor com sua esposa Damkina[12].
E na câmara do destino, na morada das decisões,
foi gerado um deus: o mais sábio e poderoso dos deuses.
No coração de Apsu[13] Marduk foi gerado.
No coração sagrado de Apsu foi criado Marduk.
Sobre o abismo profundo, do poder mais absoluto,
foi concebido Marduk, no sagrado seio de Apsu.
Lahmu, seu pai, o engendrou e Lahamu, sua mãe, o pariu[14].
Muitas deusas alimentaram Marduk ao seio,
e protegeram o deus, dando-lhe extraordinários dons:
um corpo esplêndido e olhos que irradiavam luz.

Ao ver o filho que havia gerado, Ea ficou exultante,


com o coração cheio de alegria, pois o fizera perfeito.
E para aumentar seus dons, deu-lhe uma dupla cabeça divina.
Marduk era o maior entre todos, de altura jamais vista,
e desde o primeiro momento engendrou com força viril.
Impossível conceber a perfeição de seus membros.
Quatro eram seus olhos, de ilimitada visão,
e quatro eram os ouvidos, que tudo escutavam[15].
Quando seus lábios se moviam, projetavam uma língua de fogo
e seus olhos ligeiros examinavam todas as coisas.
Era o mais forte dos deuses e a todos superava em estatura.

“Mariyutu, Mariyutu![16] Meu filho! Sol divino!”

Seu corpo se revestia com o esplendor de dez deuses


e poderosos relâmpagos refulgiam ao seu redor.
Então Anu se ergueu para criar os quatro ventos.
Colocou cada um deles em um quadrante
e deu a Marduk o poder de comandá-los.
O jovem deus modelou redemoinhos de poeira
e fortes tufões, que perturbaram Tiamat.
Atormentados pelas tempestades, muitos deuses
ficaram furiosos por não conseguir descansar.
E então, começaram a conspirar em segredo.
Juntos eles decidiram contar a sua mãe, Tiamat,
a razão de seu descontentamento e de suas tramas:

“Quando eles mataram Apsu, teu companheiro,


tu ficaste indiferente e nada fizeste para ajudá-lo.
Agora, com sua serra[17], Anu criou ventos terríveis,
que vêm dos quatro quadrantes e nos perseguem
cheios de furor, sem nos dar paz e descanso.
Precisas trazer Apsu de volta ao teu coração.
Lembra-te também de Mummu, que foi derrotado,
e pensa em tudo aquilo que ainda está por vir.
Agora tu estás sozinha, sem teu companheiro.
Em vez de te lamentares, confia em nós,
teus filhos, os deuses que foram criados por ti.
Vinga-te deles, mãe! Acabe com a força do vento!”

Em resposta às palavras dos deuses, disse Tiamat:

“Aceito vosso conselho. Vamos enfrentá-los.


Criarei seres que lutem ao nosso lado.”[18]

Então, todos se reuniram e acompanharam Tiamat.


Os deuses seguiam furiosos, gritando insultos,
tramando vinganças, dia e noite sem cessar.
Depois de formar o conselho de guerra,
eles se prepararam para começar a luta,
mas foi Mummu-Hubur[19] quem fez todas as coisas.
Ela criou armas invencíveis e pariu seres monstruosos
de enormes mandíbulas, presas afiadas e rugir assustador,
em cujos corpos imensos corria veneno em vez de sangue.
E esses seres terríveis apresentavam-se como deuses,
pois estavam vestidos com o esplendor da glória divina.
Quem os contemplava era tomado pelo terror da morte
e quando se erguiam para o ataque, nada os fazia recuar.
Então ela criou a Víbora-dragão e o monstro Lahamu[20],
grandes leões, cães furiosos, homens-escorpiões,
o Demônio da tempestade, o Homem-peixe e o Dragão voador, [21]
que jamais fugiam da luta com suas armas cruéis.
Tiamat os comandava com firmeza e nada lhes podia resistir.
Depois desses, ela pariu mais onze espécies de monstros.
e dentre os seus filhos, da primeira geração, escolheu Kingu,
o mais impetuoso, para comandar a guerra e as assembleias.
Tiamat exaltou Kingu, o seu escolhido, e deu-lhe o comando
daqueles que avançavam para a luta, de armas erguidas.
Seria Kingu a dar o sinal de ataque e a dirigir o combate.
E pela mão de Tiamat ele foi conduzido à presença dos deuses.

“Por ti usei a magia e na assembleia dos deuses te exaltei.


A ti dei o poder de aconselhar e dominar todos os deuses.
Agora, tu és o senhor supremo, o esposo que escolhi,
e tua palavra prevalecerá sobre todos os Anunaki [22].”

Tiamat deu a Kingu as Tábuas do Destino[23]


e, em seguida, prendeu-as sobre o seu peito:

“A palavra saída de tua boca será obedecida


e o teu comando jamais será contestado!”.

Ao receber o poder que antes pertencera a Anu,


Kingu decretou, junto a Tiamat, o destino dos deuses, seus filhos:

‘O hálito de tua boca, como poderosa arma,


extinguirá o fogo e mostrará o teu poder na batalha!’”
SEGUNDA TÁBUA
Ao dar por terminado o trabalho de suas mãos,
Tiamat se preparou para lutar contra sua prole.
Para vingar Apsu ela planejou crueldades,
mas um dos deuses revelou esses planos a Ea.
Ao saber o que acontecia, o deus ficou prostrado.
Mergulhou em profundo silêncio e encheu-se de ira.
Com o passar dos dias, porém, sua cólera foi se aplacando.
Nidmmud-Ea se lembrou de procurar os outros deuses
e seguiu até os domínios de Anshar, pai de seu pai.
Diante dele, Ea revelou os planos de Tiamat.

“Meu pai, aquela que nos gerou nos odeia.


Tiamat reuniu a assembleia dos deuses e, furiosa,
levantou suas hostes, que gritam raivosamente.
Muitos dentre os deuses a quem deste a vida
já se preparam para marchar ao seu lado.
Eles conspiram sem cessar, dia e noite,
tramando o combate e reunindo suas forças.
E é Mummu-Hubur, a que deu forma a todas as coisas,
a primeira de todas as mães, que alimenta essa nova geração.
Ela criou armas invencíveis e pariu monstros-serpentes
de enormes mandíbulas, dentes afiados e rugido assustador.
Em seus corpos imensos corre veneno em vez de sangue
e coroados de halos eles resplandecem como se fossem deuses.
Quem os enfrenta é tomado pelo terror da morte,
pois quando se erguem para o ataque, nada os faz recuar.
Ela também criou a Víbora-dragão e o monstro Lahamu,
grandes leões, cães furiosos, homens-escorpiões,
o Demônio da tempestade, o Homem-peixe e o Dragão voador.
Com suas armas cruéis, eles jamais fogem da luta
e sob o comando de Tiamat, nada lhes poderá resistir.
Depois de parir onze monstros de enorme estatura,
Tiamat escolheu, entre os deuses da primeira geração,
o seu filho Kingu, que irá comandar a guerra.
Ele erguerá suas armas, dando o sinal para o ataque,
e ordenará a batalha, pois Tiamat exaltou seu poder.
Ao criar seu exército, ela deu a Kingu o mais alto posto,
confiando-lhe o comando da luta e seu lugar na assembleia.
‘Por ti lancei a magia e na assembleia dos deuses te exaltei.
A ti dei o poder de aconselhar e dominar todos os deuses.
Agora tu és o senhor supremo, o esposo que escolhi,
e tua palavra prevalecerá sobre todos os Anunaki.’
Tiamat colocou as Tábuas do Destino sobre o peito de Kingu.
‘A palavra saída de tua boca será obedecida
e o teu comando jamais será contestado.’
Kingu recebeu o poder que antes pertencera a Anu
e assim foi decretado o destino dos deuses.
‘O hálito de tua boca, como poderosa arma,
extinguirá o fogo e mostrará o teu poder na batalha!’ ”

Anshar se inquietou ao saber das ações de Tiamat


e o terror silenciou as palavras em sua boca.
Com o coração sombrio, primeiro ele se lamentou,
depois tentou convencer Nudimmud-Ea a lutar.
“Tu que dominas o poder das palavras, [24]
pois com elas venceste Mummu e Apsu,
faze o mesmo com Kingu, o parceiro de Tiamat!”

Nudimmud-Ea, com o coração angustiado, contestou:

“Mas Tiamat deu a Kingu o poder de Anu ao lhe entregar


as tábuas do destino. Quem poderá se opor ao seu domínio?”

Por fim, Ea se decidiu e atendeu ao pedido de Anshar:

“Irei até Tiamat. Quando ela se acalmar, ouvirá minhas palavras”.

Ao se aproximar das legiões de Tiamat, porém,


Ea, o mais sábio dos deuses, assustado, retrocedeu.
Então Anshar chamou Anu, seu primogênito:

“Irresistíveis são teus poderes e tua força, meu filho.


Vai até Tiamat e espera que seu ânimo se acalme.
Ela ficará mais terna, abrirá seu coração e há de te ouvir.
Porém, se Tiamat não te escutar, usa a magia das palavras
pois talvez assim ela possa ser apaziguada”.

Anu ouviu os conselhos de Anshar, atentamente,


e tomou o caminho que levava a Tiamat.
Quando se aproximou o suficiente para ver suas legiões,
voltou sobre seus passos e, cheio de medo,
disse a Anshar que seria impossível enfrentá-la.
Com os olhos voltados para o chão,
Anshar sentiu seus cabelos se arrepiarem.
Sem palavras, sacudiu sua cabeça, cheio de temor.
Todos os deuses reunidos no palácio, os Anunaki,
em grande silêncio, com os lábios fortemente cerrados,
permaneceram em seus lugares, em profunda reflexão.
Nenhum deus seria capaz de enfrentar Tiamat.

Depois que Anshar, o pai dos deuses, ponderou sobre os fatos,


ergueu-se em seu esplendor e perguntou aos Anunaki:

“Quem dentre nós é o mais impetuoso na batalha?


Quem será forte o bastante para nos vingar?”

Então Ea chamou Marduk a um lugar secreto


e o aconselhou, confiando-lhe seus pensamentos:

“Marduk, tu és o filho que conforta o meu coração.


Quando fores até Anshar, deves caminhar até ele,
sem hesitar, como se partisses para uma batalha.
Diante dele, ergue o corpo e mostra a tua altura.
Com essa atitude acalmarás o coração de Anshar.”

Marduk exultou ao ouvir as palavras de seu pai


e fez o que Nudimmud-Ea lhe recomendara.
Avançou confiante até Anshar, mostrando sua força,
e levantou seu olhar para o grande deus.
Ao ver Marduk, o coração de Anshar transbordou de alegria.
Ele beijou os lábios do herói e livrou-se de todo o desespero.
“Anshar, quebra o silêncio e liberta tuas palavras,
pois vou realizar o que mais deseja o teu coração.
Que espécie de criatura viril ousa lutar contra ti?”

“Tiamat é somente uma criatura fêmea,


Mas ela nos desafia com todas as suas armas”.

“Meu pai, logo o pescoço de Tiamat estará sob os teus pés”.

Anshar regozijou-se com as palavras de Marduk:

“Meu filho, tu que dominas a sabedoria das palavras,


aplaca Tiamat com a força da magia sagrada.
Deves partir agora, na tempestade, que é o teu carro.
No confronto com Tiamat, os ventos estarão ao teu lado
e teu sangue não há de ser derramado. Tu voltarás.”

Com o coração exultante, Marduk disse a Anshar:

“Criador de deuses, tu és aquele que decide os destinos.


Se devo ser teu vingador, derrotar Tiamat e salvar tua vida,
reúne a Assembleia e proclama o meu destino!
Será de Marduk o poder supremo sobre todos os deuses.
Quando nos sentarmos juntos no Ubshukinna[25],
serei eu, e não Anshar, a decidir os destinos do mundo.
Meus decretos jamais serão alterados ou anulados
e minhas palavras permanecerão até o final dos tempos!”
TERCEIRA TÁBUA

Anshar quebrou o silêncio de seus lábios


e se voltou para Kaka[26], seu conselheiro:

“Os teus conselhos, Kaka, alegram o meu espírito,


pois sabes usar com sabedoria a justiça e a persuasão.
Por isso te enviarei até Lahmu e Lahamu.
Com teu discernimento, convida os deuses ancestrais
para que se sentem conosco em um banquete.
Que venham todos para festejar, comer pão, beber vinho,
e confirmar o destino de nosso vingador, Marduk!
Segue o teu caminho, Kaka, e ergue-te diante deles
para repetir cada uma das palavras que agora direi:
Foi Anshar, vosso filho, quem me enviou até aqui
e me encarregou de dar voz a seus secretos desígnios.
Ele disse que Tiamat, a mãe que os gerou, odeia seus filhos,
pois reuniu hordas de seres que rugem com terrível fúria.
Muitos deuses juntaram-se a ela e conspiram, dia e noite,
preparando-se para a luta. Os que dela receberam a vida
lançam gritos terríveis e se organizam para a guerra.
Mummu-Hubur, a que gerou todas as coisas,
também criou armas invencíveis, pois pariu seres-serpentes
de mandíbulas ferozes e dentes aguçados,
em cujos corpos corre veneno em vez de sangue.
Vestidos de glória, coroados de halos como os deuses,
quem os contempla é coberto pelo terror da morte,
pois quando se erguem, nada pode impedir seu ataque.
Ela também criou a Víbora-dragão e o monstro Lahamu,
grandes leões, cães furiosos, homens-escorpiões,
o Demônio da tempestade, o Homem-peixe e o Dragão voador.
Com suas armas cruéis, eles jamais fogem à luta
e sob o comando de Tiamat, nada lhes poderá resistir.
Depois, mais onze espécies de monstros terríveis ela criou.
Com os deuses, seus primogênitos, compôs a assembleia
e escolheu seu filho, Kingu, para ser o chefe supremo.
Ele erguerá suas armas, dando o sinal para o ataque,
e ordenará a batalha, pois Tiamat exaltou o seu poder.
Ao criar seu exército, ela deu a Kingu o mais alto posto,
confiando-lhe o comando da luta e seu lugar na assembleia.
‘Por ti lancei a magia e na assembleia dos deuses te exaltei.
A ti dei o poder de aconselhar e dominar todos os deuses.
Agora tu és o senhor supremo, o esposo que escolhi,
e tua palavra prevalecerá sobre todos os Anunaki.’
Tiamat colocou as Tábuas do Destino sobre o peito de Kingu.
‘A palavra saída de tua boca será obedecida
e o teu comando jamais será contestado.’
Kingu recebeu o poder que antes pertencera a Anu
e assim foi decretado o destino dos deuses.
‘O hálito de tua boca, como poderosa arma,
extinguirá o fogo e mostrará o teu poder na batalha!’
Eu, Anshar, enviei Anu, mas ele não enfrentou Tiamat,
Nudimmud-Ea também recuou, cheio de horror.
Ergueu-se então Marduk, um jovem deus de linhagem sagrada.
Seu coração, cheio de sabedoria, o impelia a enfrentar Tiamat.
E foram estas as palavras que ele dirigiu a mim, Anshar:
‘Se devo ser teu vingador, aquele que irá derrotar Tiamat,
salvando a vida dos deuses, reúne a Assembleia
e me concedas a supremacia sobre todos os demais.
Quando nos sentarmos juntos no Ubshukinna,
que seja a minha palavra a determinar os destinos.
Serei eu, e não Anshar, a decidir a natureza do mundo.
Meus decretos jamais serão alterados ou anulados
e minhas palavras permanecerão até o final dos tempos!’
Portanto, venham logo e confirmem o destino de Marduk,
pois ele deve partir para encontrar a grande adversária!"

Então Kaka partiu em busca de Lahmu e Lahamu.


Ao chegar, curvou-se até o chão e beijou os pés dos ancestrais.
Em seguida, transmitiu aos deuses a mensagem que trazia.

“Foi Anshar, vosso filho, quem me enviou até aqui,


encarregado de dar voz aos propósitos de seu coração.
Ele diz que Tiamat, a que nos pariu, nos odeia.
Em transbordante fúria, conclamou a Assembleia
e todos os deuses se reuniram para ouvi-la.
Ao lado de Tiamat estão os deuses paridos por ela
e muitos daqueles que foram gerados por vós.
Com gritos de ódio eles se preparam para a luta
e conspiram todos, sem cessar, dia e noite,
tramando o combate e reunindo suas forças.
Mummu-Hubur, a que gerou todas as coisas,
também criou armas invencíveis, pois pariu seres-serpentes
de enormes mandíbulas e dentes afiados,
em cujos corpos corre veneno em vez de sangue.
Vestidos de glória, coroados de halos como os deuses,
quem os contempla é coberto pelo terror da morte
e quando seus corpos se erguem, nada pode deter seu ataque.
Estão prontos para a luta: a Víbora-dragão e o monstro Lahamu,
grandes leões, cães furiosos, homens-escorpiões,
o Demônio da tempestade, o Homem-peixe e o Dragão voador.
Com suas armas poderosas, eles jamais fogem à luta
e estão todos reunidos, firmemente, em torno de Tiamat.
Depois desses, ela criou mais onze monstros de enorme estatura
e escolheu seu filho mais velho, Kingu, a quem exaltou,
fazendo dele o chefe de todos os deuses na assembleia.
Kingu foi o deus escolhido para comandar a batalha
e com suas armas dará o sinal de avançar para a luta.
Tudo isso Tiamat confiou em suas mãos!
Após revestir Kingu de esplendoroso poder,
ela o fez ocupar lugar de honra na assembleia e falou:
‘Por ti lancei a magia e na assembleia dos deuses te exaltei.
A ti dei o poder de aconselhar e dominar todos os deuses.
Agora, tu és o senhor supremo, o esposo que escolhi.
E tua palavra prevalecerá sobre todos os Anunaki.’
Tiamat colocou as Tábuas do Destino sobre o peito de Kingu.
‘A palavra saída de tua boca será obedecida
e o teu comando jamais será contestado.’
Kingu recebeu o poder que antes pertencera a Anu
e assim foi decretado o destino dos deuses.
‘O hálito de tua boca, como poderosa arma,
extinguirá o fogo e mostrará o teu poder na batalha!’ ”
Eu, Anshar, enviei Anu, mas ele não enfrentou Tiamat,
Nudimmud-Ea também recuou, cheio de horror.
Ergueu-se então Marduk, jovem deus de linhagem sagrada.
Seu coração, cheio de sabedoria, o impelia a enfrentar Tiamat.
E foram estas as palavras que ele dirigiu a mim, Anshar:
‘Se devo ser teu vingador, aquele que irá derrotar Tiamat,
salvando a vida dos deuses, reúne a Assembleia.
e me concedas a supremacia sobre todos os demais.
Quando nos sentarmos juntos no Ubshukinna,
que seja minha palavra a determinar os destinos.
Serei eu, e não Anshar, a decidir a natureza do mundo.
Meus decretos jamais serão alterados ou anulados
e minhas palavras permanecerão até o final dos tempos!’
Portanto, venham logo e confirmem o destino de Marduk,
pois ele deve partir para encontrar a grande adversária!"

Ao ouvirem isso, Lahmu e Lahamu gritaram alarmados.


Todos os Igigi[27] compreenderam o perigo e se lamentaram.

“Juntos teremos que tomar esta terrível decisão,


pois não podemos aceitar os atos de Tiamat.”

Então, ergueram-se as divindades que determinam os destinos


e se puseram a caminho, atendendo o chamado de Anshar.
Os grandes deuses se beijaram ao chegar no Ubshukinna
e ocuparam seus lugares para ouvir os ancestrais.
Eles comeram pão, misturaram o vinho e festejaram
enchendo seus copos com deliciosos licores.
A bebida forte deixou seus corpos pesados e sonolentos,
mas os espíritos dos deuses estavam leves e elevados,
quando estabeleceram o destino de Marduk, seu vingador.
QUARTA TÁBUA

Os deuses ergueram um trono para Marduk,


que presidiu a assembleia diante dos ancestrais.

“Marduk é o mais honrado dentre os deuses


e suas leis são mais justas, porque vieram de Anu[28].
A honra de Marduk é maior do que a de todos os deuses,
pois sua palavra é eterna e mais justas são as suas leis!
Suas mãos guardam o poder de elevar à glória ou humilhar.
Que seu comando jamais seja contestado
e nenhum deus ouse transgredir os seus limites!
Entre os mais belos santuários destinados aos deuses,
o mais sagrado pertence a Marduk, nosso vingador.
Soberano seja o seu domínio sobre todo o universo.
Quando Marduk se sentar na Assembleia dos Deuses,
suas palavras serão supremas, pois suas armas não falharão
e ele saberá esmagar todos os nossos inimigos.
Oh, Senhor, protege aqueles que confiam em tua força,
mas não poupe a vida daqueles que seguem o mal.”

Então os deuses ancestrais fizeram surgir os trajes reais,


para com eles vestiram Marduk, seu primogênito.

“Oh, Senhor, ser supremo entre os deuses,


tuas palavras têm poder para criar ou destruir.
Com os sons de tua boca, faz desaparecerem essas vestes,
e que elas voltem a aparecer quando falares novamente.
A uma palavra de Marduk as vestes desapareceram
e quando falou outra vez, elas voltaram a aparecer.
A força de suas palavras fez os deuses se alegrarem
e então, eles o abençoaram e bradaram: “Marduk é rei!”

Ofereceram-lhe o cetro, o trono, as vestes reais


e lhe deram armas sem igual, para enfrentar os inimigos.

“Agora vá e tire a vida de Tiamat. Que seu sangue


seja espalhado pelos ventos até os limites do mundo.”

O destino de Bel[29] foi revelado pelos deuses ancestrais


para que ele seguisse o caminho das conquistas e vitórias.
Então Marduk construiu um arco, marcou a arma que seria sua,
e colocou uma flecha de encontro à corda.
Com a mão direita, bem alto, o deus ergueu sua clava
e em seu ombro, pendurados, estavam o arco e as flechas.
Diante dele os relâmpagos se projetavam em formidáveis clarões,
e grandes explosões de chamas faziam seu corpo refulgir.
Anu, então, teceu a rede que seria usada contra Tiamat
e os ventos se posicionaram para que nada pudesse escapar.
Marduk dispôs os quatro ventos: Sul, Norte, Leste e Oeste,
cada um em seu lugar, e estendeu a rede, presente de Anu.
Imhullu, o vento terrível, a tempestade, o redemoinho, o furacão,
o vento quádruplo, o vento sétuplo e o úmido ciclone, ventos sem igual.
Sete ventos terríveis foram criados, para que penetrassem
nas entranhas de Tiamat e revolvessem suas vísceras.

Sobre o seu carro de guerra, a tempestade, com os ventos atrás de si,


Marduk ergueu o tornado Abuba e comandou o terrível ataque.
O grande deus tomou as rédeas de seus apavorantes corcéis:
Matador, Implacável, Pisoteador e Veloz[30].
Os terríveis corcéis espumavam veneno,
entre os dentes agudos de suas bocas abertas,

e mostravam-se hábeis na arte de escoicear e matar.


À sua direita ele colocou Golpeador, assombroso na batalha,
à sua esquerda, Combate, que aniquilava os mais bravos.
Com um manto de terror ele envolveu sua armadura
e um espantoso halo se ergueu sobre sua cabeça.
Então Marduk tomou o caminho que conduzia
ao grande clamor da ira crescente de Tiamat.
Levava entre os lábios uma prece mágica,
em sua mão, uma erva que curava venenos,
e ao seu redor, seguiam os deuses ancestrais.
Assim seguiu Marduk, ao encontro de Tiamat.
Ele se aproximou, sondou suas profundezas
e observou Kingu, o consorte da deusa.
Diante do que viu, Marduk perdeu seu caminho.
Sua vontade vacilou e os que o seguiam se confundiram.

De repente, os olhos dos deuses que o acompanhavam,


daqueles que marchavam ao seu lado, ficaram sombrios.
Tiamat, sem voltar sua cabeça, gritou um desafio:

“Tu que te aproximas como se fosses o senhor dos deuses.


Lutas por esses que deixaram suas casas, ou lutas por ti?”

Então Marduk ergueu seu vento mais poderoso, o furação,


uma arma terrível, e lançou palavras para enfurecê-la:

“Por que falas assim, tão exasperada,


levando a discórdia aos que foram gerados por ti?
Teu coração dividiu os deuses em facções,
e fez os filhos rejeitarem seus pais.
Mãe de todos os deuses, por que queres gerar a guerra?
Escolheste Kingu, aquele incapaz, para teu esposo
e de forma ilegítima deste a ele o poder de Anu.
Contra Anshar, senhor dos deuses, planejaste o mal,
fizeste ameaças aos deuses, meus pais,
e incentivaste a luta, criando armas de guerra.
Levanta-te, portanto, que lutarei sozinho contra ti!”

Quando Tiamat ouviu as palavras de Marduk,


cheia de fúria estremeceu como louca.
Lançou um grito terrível, firmou-se sobre seus pés
e recitou palavras de encantamentos e maldições,
enquanto os deuses da guerra afiavam suas armas.
Então Marduk, o mais arguto entre os deuses,
a enfrentou em um combate corpo a corpo.
Com a força de seu braço, lançou a rede sobre Tiamat,
e o vento Inhullu[31], que o acompanhava, fustigou-lhe a face.
Quando Tiamat abriu sua boca, com intuito de o engolir,
Marduk lançou Inhullu, para que seus lábios não se fechassem
e ventos terríveis pudessem penetrar em suas entranhas.
Assim ficou Tiamat, o corpo distendido e a boca bem aberta.
Nesse momento, Marduk atingiu seu estômago com uma flecha,
rasgando-a por dentro e atingindo o seu coração.
Após vencer Tiamat e acabar com sua vida,
ele atirou sua carcaça ao chão, esmagando-a com o pé.
Aquela que comandara a insurreição estava morta.
Seu corpo jazia despedaçado e seu bando fora disperso.
Todos os que haviam marchado ao lado dela,
cheios de terror voltaram suas costas ao perigo
e tentavam fugir para preservar suas próprias vidas.
Todos eles, porém, foram cercados e não puderam escapar.
Marduk encontrou cada um dos que haviam se escondido
e após capturá-los com sua rede, esmagou suas armas.
As celas das prisões se encheram com os gemidos
dos filhos de Tiamat, que ali remordiam sua ira.
As onze criaturas paridas por ela, o bando terrível
que ela havia armado para marchar ao seu lado,
Marduk os lançou ao solo, de joelhos,
e depois de amarrar suas mãos, ele os pisoteou.
Seu comandante, Kingu, o usurpador, foi subjugado
e enviado para acertar suas contas com Uggae[32].
As Tábuas do Destino, que Kingu usava ilegitimamente,
Marduk as tomou para si, marcou-as com seu selo
e colocou-as penduradas sobre o seu próprio peito.
Depois de conquistar e subjugar os orgulhosos adversários,
de estabelecer completamente o triunfo de Anshar
e de fazer valer a vontade de Nudimmud-Ea,
Marduk apertou as cordas que atavam os prisioneiros,
voltando-se para o corpo de Tiamat, que jazia acorrentado.
Então ele pisoteou as pernas da deusa e as esmagou.
Em seguida, manejando sua clava implacável,
Marduk espatifou-lhe o crânio e cortou suas artérias.
O sangue de Tiamat jorrou na direção do Vento Norte,
que o espalhou por lugares desconhecidos.
Os ancestrais festejaram a vitória alegremente
e cheios de gratidão enviaram presentes ao vingador.
Ao contemplar o imenso corpo sem vida de Tiamat,
Marduk teve a idéia de rasgar ao meio a sua carne,
dividindo-a em duas partes, como a um peixe.
Metade dela foi estendida no alto, formando o manto do céu,
e a outra metade do corpo da deusa, empurrada para baixo,
foi assentada como uma barragem para as águas.
Depois de colocar guardas em cada quadrante,
para que jamais suas águas pudessem escapar,
Marduk cruzou o céu e contemplou cada região.
Deteve-se sobre Apsu[33], onde Ea construíra sua morada.
Então o grande deus mediu as dimensões de Apsu
e de tamanho semelhante, na imensidão do firmamento,
ele construiu sua morada, Esharra[34], o seu grande palácio.
Por fim, fez Anu, Enlil e Ea ocuparem seus lugares no céu[35].
QUINTA TÁBUA

Marduk definiu os lugares que os deuses ocupariam no céu,


fixando suas imagens nas formas das constelações[36].
Mediu o ano e ordenou suas partes, dando-lhe começo e fim.
Para cada um dos doze meses assinalou três estrelas fixas[37]
e depois de marcar os limites do ano pelas estrelas celestes,
definiu o lugar de Nebiru,[38] estabelecendo seus limites
para que ninguém pudesse se enganar ou se perder.
Após dispor junto a si os lugares de Ea e Enlil[39],
abriu os grandes portais do Leste e do Oeste,
mas colocou fortes cadeados à esquerda e à direita[40].
Com as entranhas de Tiamat [41], Marduk fixou o zênite[42].
Fez o deus Lua[43] brilhar como uma joia, confiando-lhe a noite,
e deu a essa criatura noturna o poder de determinar dias e meses.

“A cada mês, quando surgires e te ergueres sobre a terra,


por seis dias crescerão teus chifres luminosos,
até que, no sétimo dia, apareça a metade de tua coroa.
Ela voltará a brilhar inteira no décimo quinto dia
e nesse ponto dividirás os meses em duas metades.
Porém, quando Samash[44] se erguer, adiantando-se a ti,
tua luz, aos poucos, começará a se retrair e,
ao desvaneceres, teu crescimento se inverterá[45].
Ao final de trinta dias, porém, recomeçarás a crescer,
pois defines os destinos ao caminhar pelo céu.
Como Samash, tu revelas a justiça dos julgamentos retos[46]
e tens o poder tanto de preservar como de destruir.”

Depois de assinalar os dias para Shamash


e de estabelecer os domínios da noite e do dia,
Marduk tomou a saliva de Tiamat e criou o nevoeiro.
Depois de formar as nuvens e as encher de água,
ergueu-as com a força do vento e fez cair a chuva fria.
Com suas próprias mãos Marduk espalhou as nuvens
e pressionou o pesado corpo de Tiamat sobre as águas,
posicionando sua cabeça, sobre a qual ergueu montanhas.
Depois, abriu os caminhos para as correntes profundas
e delas surgiram as fontes que alimentam os rios.
Dos olhos de Tiamat fluíram o Eufrates e o Tigre,
mas suas narinas foram vedadas, para evitar as inundações.
Marduk criou elevadas montanhas dos seios de Tiamat
e fez surgir os vales, que conduzem as águas das fontes.
Então, ele torceu a cauda de Tiamat e a fixou em Durmah[47].

Marduk assentou as colunas que sustentam o céu


junto a Apsu, no abismo das profundezas,
e firmou a terra sobre poderosos alicerces.
Por fim, do umbigo de Tiamat fez fluir os oceanos
e definiu os limites entre os céus e a terra.
Depois de concluir sua obra, da forma que idealizara,
Marduk fundou templos na terra e os entregou a Ea.
As Tábuas do Destino, usurpadas por Kingu,
foram devolvidas a Anu como um presente de gratidão.
E os deuses que haviam se dispersado após a luta,
Marduk os conduziu à presença dos ancestrais.
Quanto às onze monstruosas criaturas de Tiamat,
tiveram suas armas destroçadas e foram atadas pelos pés.
Ele criou imagens semelhantes a esses seres monstruosos
e as colocou junto às Portas de Apsu, o abismo, dizendo:

“Isto é para que Tiamat jamais seja esquecida!”

Ao verem esses atos, todos os deuses se alegraram.


Lahmu e Lahamu, os pais ancestrais, caminharam até Marduk.
Anshar lhe deu boas-vindas, mostrando sua gratidão,
enquanto Anu, Enlil e Ea lhe ofereceram presentes.

Ao receber o presente de Damkina, sua mãe,


a face de Marduk se iluminou com intenso brilho.
A Usmu[48] ele confiou sua casa secreta no Apsu,
e fez dele o guardião dos santuários de Eridu[49].
Os Igigi se ajoelharam diante de Marduk,
enquanto os Anunaki beijavam os pés do grande deus.
Todos o reverenciavam bradando: “Marduk é rei!”
e os deuses ancestrais admiravam os seus dons.[50]
Depois de se banhar, Marduk vestiu roupas limpas
e se apresentou como o senhor dos deuses.
Um halo de glória circundava sua cabeça.
Na mão direita levava sua clava de guerra,
na mão esquerda, erguia o cetro do poder.
Ele trazia o arco preso às costas e, também,
a rede com que prendera Tiamat.
Sua glória era absoluta e tocava as profundezas
quando subiu ao trono erguido no templo.
Damkina, Ea, todos os Anunaki e Igigi bradaram:[51]

“Antes, Marduk era apenas um filho bem-amado,


agora, porém, ele é nosso rei e proclama sua realeza!”

E todos os deuses gritaram juntos, a uma só voz:


“Teu nome será Lugaldimmerankia[52], aquele em quem confiamos!”

Depois de aclamarem a soberania de Marduk,


os deuses desejaram boa sorte e felicidade ao escolhido:

“Para todo o sempre protegerás os nossos santuários,


e cumpriremos tudo aquilo que nos ordenares.”

Marduk refletiu sobre essas palavras,


e disse aos deuses ali reunidos em sua presença:

“No passado, todos habitavam sobre o Apsu,[53]


mas eu fiz a terra como um espelho dos céus
e consolidei seu solo para receber fundações.
Construirei minha casa à semelhança de Esharra.
Nesse local sagrado estabelecerei minha morada
e seus aposentos serão usados por todos os deuses.
Aqueles que vivem nas profundezas de Apsu,
quando vierem às assembleias, ali encontrarão acolhida
e poderão passar a noite dormindo com conforto.
Quando os deuses das alturas descerem para as assembleias,
também encontrarão guarida e conforto para dormir à noite.
Darei a esse lugar sagrado o nome de Babilônia,[54]
pois lá se erguerá a morada dos grandes deuses,
construída com arte e engenho, de acordo com os meus planos.”

Quando os deuses, seus pais, ouviram essas palavras,


fizeram uma pergunta a Marduk, seu primogênito:
“E quem representará a tua autoridade
sobre tudo o que criaste com tuas próprias mãos?
Quem haverá de representar tua autoridade?
Quem exercerá o poder de emitir julgamentos
sobre tudo o que há nesta terra criada por ti?
Deste a Babilônia um nome auspicioso
e para sempre ela será a nossa morada!
Deves criar escravos para que nos sirvam, dia após dia,
e que o teu poder assegure para sempre nossos privilégios!”

Quando Marduk, o conquistador de Tiamat,


ouviu as palavras ditas pelos deuses,
alegrou-se e respondeu as suas perguntas.
Ele, o vencedor de Tiamat, tudo lhes esclareceu
e as palavras de sua boca foram sábias e nobres.

“Criarei escravos que nos prestarão serviços, dia após dia,


e o poder de minha vontade há de assegurar vossa posição.”

Então os deuses se inclinaram para o adorar


e o aclamaram com o título de Lugaldimmerankia:

“Antes, Marduk era apenas um filho bem-amado,


agora, porém, ele é nosso rei e proclama sua realeza!
Invocaremos o nome daquele que nos deu a vida,
o senhor do esplendor, da clava e do cetro.
Ea, hábil em todas as artes, será o arquiteto de Babilônia.
Ele desenhará a planta e seus construtores seremos nós!
SEXTA TÁBUA

Quando Marduk ouviu as palavras dos deuses,


teve o desejo de criar uma obra de refinada arte.
O deus então revelou para Nidimmud-Ea, seu pai,
os projetos que concebera no mais profundo de seu coração.

“Usarei meu próprio sangue e o juntarei a ossos


para formar seres, aos quais chamaremos ‘homem’.
Esses homens criados por mim deverão habitar a terra
e trabalharão para que os Anunaki possam descansar.
Eu os farei à imagem dos deuses e os dividirei em dois grupos,
que se ocuparão de diferentes trabalhos, igualmente abençoados.”

Ea escolheu bem suas palavras e respondeu a Marduk,


oferecendo-lhe outro plano para o benefício dos deuses:

“Que apenas um dentre os nossos seja tomado. [55]


Somente um deve morrer para dar vida aos homens.
Que todos os deuses se reúnam em assembleia
e decidiremos quem morrerá para que os outros vivam.”

Marduk convocou os grandes deuses para a assembleia


e presidiu a reunião com cortesia. Suas palavras sábias
foram ouvidas pelos Anunaki com grande atenção:

“Se foi verdade aquilo que antes dissestes,


declarai agora, diante de mim, sob juramento:
Quem foi aquele que levantou calúnias e se rebelou?
Quem instigou Tiamat à guerra e liderou a batalha?
O culpado será entregue para receber sua punição
e assim todos poderão viver em paz para sempre.”

Então os Igigi responderam ao conselheiro dos deuses,


Lugaldimmerankia, o senhor dos céus e da terra:

“Foi Kingu quem instigou os deuses à rebelião,


fez Tiamat erguer as águas salgadas e liderou a batalha.”

Buscaram Kingu e o fizeram ajoelhar-se diante de Ea.


Como punição, várias de suas artérias foram cortadas
e com seu sangue foi criada a humanidade,
aqueles que trabalhariam no lugar dos Anunaki.
Assim que o deus terminou a obra de criação dos homens,
Ea lhes impôs o trabalho, que antes era dos deuses,
nas construções grandiosas projetadas por Marduk
e realizadas pela sabedoria de Nudimmud-Ea.
Então Marduk, senhor dos deuses, dividiu os Anunaki.
Uma parte ficou acima, nos céus, e outra parte, abaixo.
Anu foi designado para fazer cumprir estas resoluções:
trezentos deuses permaneceriam no céu, em guarda,
cinco vezes sessenta cuidariam dos caminhos da terra.
No céu e na terra, seiscentos deuses ocuparam seus lugares.
Depois que Marduk estabeleceu novos preceitos
e definiu os domínios dos deuses nos céus e na terra,
os Anunaki dirigiram-se a Marduk, o seu senhor:

“Agora que nos libertaste e aliviaste o nosso trabalho,


queremos honrar nosso senhor e retribuir esses benefícios.
Construiremos um santuário, ao qual chamaremos
‘pousada para o descanso noturno’, onde nos reuniremos
uma vez a cada ano em assembleia e elevaremos altares para ti.”

Quando Marduk escutou essas palavras,


Seu semblante brilhou intensamente, como a luz do dia.

“Babilônia deverá ser construída de acordo com nossos planos.


Seus tijolos serão moldados e será chamada Parakku[56].”

Os deuses Anunaki pegaram suas ferramentas


e durante um ano inteiro dedicaram-se a moldar tijolos.

Quando o segundo ano chegou, eles haviam erguido


o templo de Esagila[57] e construído a torre em degraus[58],
que de tão alta, assemelhava-se ao grande Apsu.
Dentro dela havia aposentos para Marduk, Enlil e Ea.
Majestosamente, após sentar-se em seu lugar,
Marduk lançou o olhar para as fundações de Esharra[59].
Depois de terminarem a construção de Esagila,
os Anunaki construíram seus próprios santuários.
Os Igigi, por sua vez, se reuniram com Marduk, em assembleia,
e o deus criou um lugar nas alturas para construírem suas casas.
Por fim, Marduk ofereceu um banquete aos deuses e proclamou:

“Esta é Babilônia, o nosso lugar, nosso lar.


É nossa em toda sua amplidão, e sua posse nos alegra!”

Os grandes deuses tomaram seus lugares,


serviram-se de vinho e participaram do banquete.
Depois de se alegrarem no esplendor de Esagila,
os deuses cumpriram todos os rituais sagrados,
cujas normas haviam sido fixadas segundo os presságios.
E cada um deles tomou o lugar que lhe havia sido apontado.
Cinquenta grandes deuses ocuparam seus assentos
ao lado dos sete deuses que determinam o destino
e trezentos deuses receberam seus lugares nos céus.
Então, Enlil ergueu bem alto o arco de Marduk,
em seguida, levantou a rede que Anu havia tecido.
Todos louvaram o trabalho da rede e a beleza do arco
e seus pais se orgulharam do que ele havia realizado.
Anu levantou o arco e dirigiu-se à assembleia dos deuses:

“Este é o arco de meu filho e a ele darei nomes sagrados:


O primeiro nome é Longo Arco e o segundo, Arco da Chuva,
o terceiro é Arco das Estrelas, pois ele as fará brilhar no céu[60].”

E assim Anu fixou o triplo destino do arco.


Após determinar os nomes do arco de Marduk,
Anu levou-o ao trono real, no ponto mais alto do Esagila,
ocupando, em seguida, o seu lugar entre os deuses.
Na assembleia, todos celebraram o destino de Marduk
e juntos pronunciaram as palavras de poderosos sortilégios.
Os deuses juraram pela água, pelo óleo e por sua vida,
concedendo a Marduk o domínio sobre o céu e a terra.

Anshar deu a Marduk o nome Asarluhi[61], de maior distinção.

“Nós te reverenciaremos ao ouvir o teu nome.


Que a palavra de tua boca seja sempre obedecida,
e que acima e abaixo, teu comando seja supremo.
Toda glória será dada ao filho, nosso vingador!
Teu império não terá rival e jamais será superado.
Marduk será o atento pastor do povo de cabelos negros,
que até o final dos tempos respeitará e aclamará suas leis.”

“Teu nome jamais será esquecido pelos seres que criaste.


Eles levarão oferendas nindabu[62] aos deuses, seus pais,
e jamais deixarão de adorá-los e de cuidar de seus templos,
pois entre o perfume do incenso e o murmúrio das preces,
os deuses viverão na terra assim como vivem nos céus.”

“Marduk criou os de cabelos negros para que o adorassem.


Eles sempre o terão em sua mente e venerarão seu deus,
sem esquecer de reverenciar as deusas em suas preces.
Que eles trabalhem na terra e construam suas moradas,
que levem oferendas nindabu aos deuses e deusas,
e que os sustentem sem esquecê-los jamais.
Quanto a nós, qualquer que seja o nome pelo qual o chamemos,
ele é nosso deus e o proclamamos com cinquenta títulos.”

“Marduk foi o nome com que seu pai o chamou ao nascer.


Seus caminhos serão gloriosos, assim como os seus atos,
pois ele alimenta as pastagens e deixa cheios os estábulos.
Com as grandes inundações ele abate os insolentes.
E que os deuses resguardem os homens desse sofrimento.
Filho do Sol, o mais radiante dos deuses, esse é seu nome.
Sob o brilho de sua luz, todos poderão caminhar para sempre.
Quanto ao povo que ele criou, aqueles aos quais deu a vida,
esses trabalharão para aliviar os deuses de suas tarefas.
Criação e destruição, distribuição de graças e punições,
todo poder virá de Marduk e seu nome será glorificado.

Marukka é o nome verdadeiro do deus que tudo criou,


aquele que agraciou os Anunaki e apaziguou os Igigi.

Marutukku, o jovem deus armado, escudo da terra,


é aquele a quem os homens erguem suas mãos em preces.

Barashakushu é o que se levanta e toma em suas mãos


as rédeas do mundo, com seu ânimo indomável e seu calor.
Lugaldimmerankia foi o nome aclamado pela assembleia,
quando sua soberania sobre os deuses, seus pais, foi exaltada.
Verdadeiramente ele é Bel[63], o senhor de todo o universo,
cujas palavras são obedecidas pelos deuses da terra e dos céus.

Nari Lugaldimmerankia é o nome do senhor do mundo.


Nos céus e na terra ele fundou nossas casas e nos trouxe paz.
Foi ele quem estabeleceu os lugares dos Anunaki e dos Igigi.
Ao ouvir seu nome os deuses são tomados de forte tremor.

Asaruludu[64] foi o primeiro nome proclamado por Anshar.


Ele é, verdadeiramente, a luz divina, o grande guia,
é aquele cujo poder protege os deuses e todo o universo.

O segundo nome, proclamado por Lahmu, foi Namtillaku,


aquele que mantém a vida dos deuses e dos homens.
Sua palavra conjura a morte, cura as doenças,
destrói o inimigo e o submete a sua vontade.

O terceiro nome proclamado foi Namru, o brilhante,


deus que purifica nosso caminho com suas chamas.
Anshar, Lahmu e Lahamu proclamaram esses três nomes
e, depois disso, disseram aos deuses, seus filhos:

“Marduk recebeu um nome de cada um de nós


e agora vocês também deverão lhe dar novos nomes.”

Alegremente os deuses atenderam a esse pedido


assim como acontecera na assembleia em Ubshukinna.

“Exaltaremos o nome de nosso filho, nosso herói,


e daremos glória àquele que nos defende e luta por nós.”

Os deuses se sentaram juntos na assembleia


para moldar o destino de Marduk com suas palavras
e estabelecer os nomes de adoração do deus em seus rituais.

SÉTIMA TÁBUA
Ele é Asaru, que conduz a água nos canais e faz a erva crescer.
Ele criou o grão e definiu o tempo de semear e de colher.

É Asarualim, o que ocupa o lugar de maior honra na assembleia,


para quem os deuses se voltam cheios de esperança e temor.

E é Asarualimnunna, luz e glória dos que o geraram,


pois é quem dirige as ações de Anu, Enlil e Ninigiku[65],
determinando a parte que cabe a cada deus.
Ele multiplica os grãos e nutre a todos com abundância.

Ele é Tutu, o deus que cria a vida e a renova.


Aquele que purifica os santuários para apaziguar os deuses,
concebe encantamentos para que eles possam descansar
ou para que mudem seu ânimo, quando se entristecem.
Ele é, verdadeiramente, supremo na assembleia
e entre os deuses não há nenhum que o iguale.

Como Tutu, ele é chamado Ziukkinna, a vida que nos anima.


Colocou os deuses no firmamento e definiu seus caminhos,
determinando o lugar ocupado por cada um.
Que jamais seja esquecido pela multidão de homens
e suas obras sempre sejam lembradas por todos.

Tutu também é chamado Ziku, o que purifica a vida,


senhor da graça, da benevolência e do hálito benigno.
É aquele que produz riquezas e propicia a abundância,
o deus que transforma pobreza em prosperidade
e nos momentos difíceis oferece o conforto de seu alento.
Que em sua glória ergam-se cânticos para exaltá-lo.

O nome Agaku também engrandece Tutu,


senhor do encanto divino, que faz reviver os mortos.
Aquele que teve piedade dos deuses vencidos,
que acabou com a opressão sobre seus adversários
e criou a humanidade para que servisse aos deuses.
Ele é o deus compassivo, em cujo poder repousa a vida.
Que suas obras perdurem e jamais sejam esquecidas
pelos homens de cabelos negros, sua criação.

Tutu também é Tuku, o que murmura encantamentos,


cujas palavras sagradas protegem contra todo o mal.

Ele é Shazu, que conhece o coração dos deuses


e sonda o homem em suas profundezas.
De seu olhar não escapam os que fazem o mal.
Foi ele que reuniu a assembleia dos deuses
alegrando seu coração ao fazer os rebeldes se curvarem.
Ele assegura a justiça e esclarece palavras ambíguas,
pois onde estiver, o certo e o errado são discernidos.

Shazu, aquele que lê o íntimo dos deuses, também é Zisi.


Ele silenciou os rebeldes e trouxe paz aos deuses, seus ancestrais.

O terceiro nome de Shazu é Suhrim, o das armas poderosas,


que venceu o inimigo e dispersou seus planos ao vento.
Os ímpios o temem e diante dele seus joelhos estremecem.
Que os deuses proclamem seu triunfo nas assembleias!

O quarto nome de Shazu é Suhgurim,


o que ouve as queixas dos deuses ancestrais.
Ele destrói seus inimigos, extinguindo sua descendência
e arrasando suas obras para que deles nada mais reste.
Seu nome será lembrado e repetido sobre a terra.

Que as gerações vindouras conheçam Shazu como Zahrim


e glorifiquem aquele que perseguiu os inimigos em fuga,
trazendo os deuses de volta aos seus santuários.
Seu nome perdurará e será por todos conhecido.

Ele também receberá a honra do nome Zahgurim,


pois sozinho destruiu o inimigo no campo de batalha.

Ele é Enbilulu, o senhor que traz prosperidade.


Poderoso é o que chama seu nome e lhe oferece sacrifícios,
pois ele é o deus que regula o crescimento das pastagens,
faz surgir as fontes e proporciona água em abundância.

Enbilulu será também invocado como Epadun,


o senhor dos campos e das cheias, da umidade dos céus e da terra.
Aquele que cuida da semente plantada na terra arada
e mantém em bom estado as barragens e os canais de irrigação.
Ele também receberá o nome de Gugal,
o que irriga as leiras e os pomares dos deuses,
senhor das abundantes colheitas que enchem os silos,
o deus que conduz a água nos canais e faz germinarem os grãos.

Ele é Hegal[66], o que acumula riquezas para todos os homens


e faz chover sobre a terra, trazendo aos campos abundante verdor.

Sirsir é o nome daquele que, pela força de suas armas,


tomou a carne de Tiamat e sobre ela ergueu as montanhas.
Ele zela sobre os caminhos do mundo como um pastor fiel.
São dádivas de Marduk: os campos cultivados, a terra arada
e os canais de irrigação. No entanto, no auge de sua ira,
como uma ponte ele se ergueu sobre o mar devorador[67].

Sirsir também recebe o nome de Malah[68],


pois Tiamat, o mar salgado, é o barco que ele conduz.

Ele também é Gil, que armazena os grãos em grandes montes.


Aquele que protege os cereais, os rebanhos e as sementes na terra.

Ele é Gilma, o que promoveu a união entre os deuses.


Seu fogo jamais se extingue, pois permanece protegido, em segurança.
Ele é a cinta que une as tábuas do barril para conter coisas boas.

Agilma é o nome daquele que arroja a coroa dos nefastos[69].


O que criou o nevoeiro sobre as águas e fez eterno o firmamento.
Ele é Zulum, o que designa o lugar dos deuses,
divide entre eles as oferendas e protege seus santuários.

Ele é Mummu[70], aquele que com sua palavra tudo criou.


Também é Zulummu, cujo poder nenhum deus pode igualar.

Gishnumunab é o nome do deus criador dos homens,


daqueles que vivem nos quatro cantos do mundo.
Foi ele quem destruiu os deuses aliados de Tiamat
e com a sua substância criou a humanidade.

Ele é Lugalabdubur, que enfrentou Tiamat e destruiu suas armas.


Em todos os quadrantes, sólidos são os alicerces que ele estabelece.

Ele é Papalguenna, o primeiro de todos os senhores.


Em sua excelsa morada, seu inigualável poder é exaltado.

Lugaldurmah é o nome daquele que une o céu e a terra.


O mais sublime dos deuses é exaltado em sua morada real.

Seu nome é Aranunna, o conselheiro de seu pai Ea.


Inigualável é a soberania do criador dos deuses ancestrais[71].

E ele também é Dumuduku, a montanha brilhante,


e nada pode ser decidido sem sua presença no templo.

Lugallanna é seu nome, o de poderosa força,


aquele que sustenta o grande Anu nas alturas[72].
Seu nome supera o de Anshar, que o chamou e escolheu.

Ele é Lugalugga, o senhor da morte em meio à luta.


O que guarda toda a sabedoria e reúne a totalidade do saber.

Ele é Irkingu, que arrebatou Kingu na fúria da batalha,


guiou os deuses na luta e sobre eles estabeleceu sua soberania.

Kinma é aquele que guia e aconselha os deuses.


Seu nome traz terror, como o rugido do tornado.

Esizkur é o nome do que está assentado na casa das preces.


Que os deuses lhe tragam todos os seus tributos
e seja ele o primeiro a escolher seus presentes.
Sem ele, nenhum deus poderá usar as artes mágicas,
ou cobrar tributos das quatro espécies de homens que ele criou.
Sem ele, nenhum deus conhece a razão de seus dias.

Ele é Gibil, o que mantém aguçado o fio de sua espada


e criou novas armas para a batalha contra Tiamat.
Vasto é o seu conhecimento e a sua sabedoria,
cujos limites os deuses jamais alcançarão.

Seu nome também é Addu, o que cobre de nuvens o céu.


Bem-vindo seja o rugir de seus trovões sobre a terra,
pois sua voz anuncia a chegada da chuva fecunda,
da água que a todos garante a bênção dos alimentos.
Asharu, como diz esse nome, é o senhor dos destinos[73].
É ele que guia os deuses e todos os homens sobre a terra.

Ele também é Nebiru, pois traçou o caminho das estrelas


e estabeleceu percursos para os deuses no firmamento,
não permitindo que transitassem entre o acima e o abaixo.
Nebiru ocupa o centro do céu e a tudo ofusca com seu brilho.
Todos os que erguem seus olhos, ao vê-lo no alto o aclamam:

“Como ele forçou seu caminho através de Tiamat,


terá por nome Nebiru, o que passa pelo centro,
e irá controlar o curso das estrelas no céu,
reunindo os deuses como um pastor a suas ovelhas.
Ao derrotar Tiamat e acabar de vez com sua vida,
ele a afastou para sempre das futuras gerações
e assim a manterá, até que os dias envelheçam.
Por ter dado forma ao céu e criado a firme terra,
seu pai Enlil o chamou pelo nome Bel Matati[74].”

Ao ouvir os nomes com que os deuses aclamavam Marduk,


disse Ea, com seu coração exultante, pleno de alegria:

“Aquele que os grandes deuses glorificam,


que o seu nome também seja Ea, o nome de seu pai.
Ele terá o poder de estabelecer meus rituais,
seguirá meus preceitos e cumprirá minha vontade.”

Com cinquenta títulos os deuses o aclamaram


e ao proclamarem esses nomes, traçaram seu caminho soberano.

“Que os nomes de Marduk sejam sempre lembrados


por aqueles que conduzem e governam os homens.
Que o sábio e o aprendiz discutam sobre eles.
E que o pai os repita e os ensine aos seus filhos.
Chegarão aos ouvidos de pastores e lavradores,
que se alegrarão pela glória de Marduk, o senhor dos deuses.
Sob seu domínio, a terra será fértil e sua vida prosperará.
O que partir de sua boca, nenhum deus poderá mudar.
Inalteráveis serão suas palavras e eterna a sua vontade.
Que nenhum deus enfrente ou despreze sua fúria,
pois insondável é seu coração e imparcial a sua justiça
para malfeitores e sacrílegos, que tremem em sua presença.
O que se falava antes dele, foi fixado por um escriba
e revelado nessas palavras que ouvimos agora,
preservadas por Marduk para os tempos vindouros.
Que os Igigi, que construíram o seu templo,
e todos os Anunaki proclamem a glória de Marduk,
vencedor de Tiamat e soberano entre os deuses.”
Bibliografía

ABETTI, Giorgio. História de la Astronomía. 1.ed. México: Fondo de


Cultura Económica, 1956.

AMIET, Pierre. As civilizações antigas do médio Oriente. Tradução de


Alcides de Campos. Lisboa: Publicações Europa-América, 1971.

AYMARD, André. & AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga.


Tradução de Pedro Moacyr Campos. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil,
1993.

BABILÔNIA BRASIL: Pequeno Glossário de Religião da mesopotâmia,


1996. Disponível em:
http://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/glossa1.html Acesso em: 8
ago 2019.

BOUZON, Emanuel. Ensaios babilônicos; sociedade, economia e cultura


na Babilônia pré-cristã. Porto Alegre: Edpucrs, 1998.

CAMPBEL, Joseph. As máscaras de Deus: mitologia primitiva. São Paulo:


Palas Athena, 1997.

CAPLICE, Richard. Introduction to Akkadian, Rome: Biblical Institute


Press, 1988.

CARDOSO, Ciro Flamarion. Deuses, múmias e ziguratts; uma comparação


das religiões do Egito e da Mesopotâmia. Porto Alegre: Edipucrs, 1999.

CARDOSO, Ciro Flamarion. Sete olhares sobre a Antigüidade. Brasília:


Ed. Universidade de Brasília, 1994.

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio


de Janeiro: José Olympio, 1997.

CONTENAU, Georges. A civilização de Assur e Babilônia. Rio de Janeiro:


Otto Pierre, 1979.

CROUZET, Maurice (org.). O Oriente e a Grécia antiga. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil SA, 1993.

DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. Petrópolis:


Vozes, 1997.

ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins


Fontes, 1993.
GRAVES, Robert & PATAI, Rafael. O livro do gênese: mitologia hebraica.
Rio de Janeiro, Xenon, 1994.

HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

HAUSER, Arnaud. História social da literatura e da arte, v. I. São Paulo:


Ed. Mestre Jou, 1972.

HEIDEL, Alexander. The Babylonian Genesis, The University of Chicago


Press, Chicago, 1963.

HOOKER, J.T. (eds.) Lendo o Passado – Do Cuneiforme ao Alfabeto. A


História da Escrita Antiga, Brasil: Melhoramentos, Co-edição Edusp, 1996.

KING, Leonard William. Babylonian magic and sorcery. London: Luzac,


1896. Disponível em:
https://openlibrary.org/books/OL7177153M/Babylonian_magic_and_sorcer
y Acesso em: 09 ago 2018.

__________. The seven tablets of Criation. London: Luzac, 1902.


Disponível em:
https://archive.org/details/seventabletsofcr02kinguoft/page/n12 Acesso em:
19 ago 2018.

__________. Legends of Babylon and Egypt in relation to Hebrew


tradition. London: Oxford University Press, 1918. Disponível em:
https://archive.org/details/legendsofbabylon00king/page/n4 Acesso em: 21
jul 2018.

KRAMER, Samuel Noah. Os sumérios. 5.ed. Lisboa: Livraria Bertrand,


1977.

LANGDON, Stephen. The Babylonian epic of creation, Oxford Clarendon


Press, 1923.
Disponível em: https://archive.org/details/babylonianepicof00languoft
Acesso em: 20 jun 2018.
McCALL, Henrietta. Mitos da Mesopotâmia. São Paulo: Ed. Moraes, 1994.

MILLER, Douglas B. An Akkadian Handbook: Paradigms, Helps,


Glossary, Logograms and Sign List. Library of Congress, 1996 Disponível
em:
https://books.google.com.br/books?
id=27m3y6MNRzYC&pg=PR8&lpg=PR8&dq=CAPLICE,+Richard.+Intro
duction+to+Akkadian,+Rome:+Biblical+Institute+Press,+1988.&source=bl
&ots=alM-
QdL8Gc&sig=ACfU3U1sPAua8OcO51pOczsp65FI2HqpKA&hl=pt-
BR&sa=X&ved=2ahUKEwi74Pf2wfbjAhUTHrkGHX4NA4MQ6AEwCHo
ECAkQAQ#v=onepage&q=CAPLICE%2C%20Richard.%20Introduction%
20to%20Akkadian%2C%20Rome%3A%20Biblical%20Institute%20Press
%2C%201988.&f=false Acesso em: 07 ago 2019.

PRITCHARD, James B. Ancient Near East Texts: Relating to the Old


Testament with supplement. Princeton University Press, New Jersey, 1969.
Disponível em:
https://wordandsilence.files.wordpress.com/2017/01/ancient-near-eastern-
texts-relating-to-the-old-testament-i.pdf Acesso em: 15 abr 2018.

SANDARS, Nancy K.. Enuma Elish Babylonian Creation Myth. Queens


Colege, CUNY.
Disponível em: https://www.coursehero.com/file/37254110/Enuma-
Elishpdf/ Acesso em: 22 jun 2018.

__________. Poems of Heaven and Hell from Ancient Mesopotamia. New


York: Penguin, 1971.

SMITH, George. The Chaldean account of Genesis. London, 1876.


Disponível em:
https://archive.org/details/chaldeanaccounto00smit/page/n10 Acesso em: 20
jun 2018.

SODEN, Wolfram von. The Ancient Orient, William B. Eerdmans


Publishing Company, Grand Rapids, Michigan, 1994
SOLLBERGER, Edmond; KUPPER, Jean-Robert. Inscriptions royales
sumeriennes et akkadiennes. Paris: les éditions du Cerf, 1971.

SPEISER, Epharaim Avigdor. Akkadian Myths and Epics. Ed. James B.


Pritchard. Princeton University Press, New Jersey,1955.

_________. Enuma Elish the Epic of Creation. Genius Community.


Disponível em : https://genius.com/Translated-by -ea-speiser-enuma-elish-
the-epic-of-creation-annotated Acesso em : 15 jun 2019.

SPENCE, Lewis. Guia ilustrado: Mitologia egípcia. Lisboa: Editorial


Estampa, 1996.

THIEL, Rudolf. E a Luz se fez... O romance da Astronomia. Tradução de


Marina Guaspari. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1982.

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro:


Difel, 1977.

[1]

Notas
Apsu personifica as águas subterrâneas, representando, na cosmologia suméria, o oceano primordial
de água doce de onde provêm as fontes, os rios e as águas fertilizantes da chuva. É a água que flui,
sustentando a vida sobre a terra e dando sabedoria aos homens e deuses. Na cosmologia babilônica,
Apsu é marido de Tiamat e pai dos primeiros deuses. Após sua morte, tornou-se o lar de Ea e dos
Sete Sábios Divinos, os Apkalu, que foram enviados sob a forma de peixes, antes do dilúvio, para
ensinar à humanidade as artes da civilização. O nome Apsu também pode ser encontrado grafado
Absu, Apzu ou Abzu.
[2]

Tiamat representa o caos fecundo das águas salgadas, matriz de toda a forma de vida. Geradora de
deuses, monstros e tempestades, foi esposa de Apsu e mãe da primeira geração de deuses. O termo
Mummu, que aqui surge como um epíteto de Tiamat, pode significar mãe, aquela que gera vida, que
dá voz, já que a raiz da palavra “mummu” é acadiana, com o significado de “falar”.
[3]
As águas doces de Apsu e as águas salgadas de Tiamat permaneciam misturadas, formando um único
corpo primordial que pairava em um universo inerte.
[4]

Lahmu e Lahamu são os primeiros seres que emergem das águas de Apsu e Tiamat. Alguns textos os
descrevem como duas grandes serpentes, seres sinuosos que reproduzem com seu movimento a
ondulação das águas. Pesquisadores acreditam que Lahmu e Lahamu sejam Tiamat e Apsu
encarnados como macho e fêmea, deus e deusa, para que gerassem Kishar e Anshar. O termo Lahmu
também pode ser interpretado como “turvo”, referindo-se certamente à fértil lama, depositada nos
deltas dos rios Tigre e Eufrates, origem das fartas colheitas naquela região.
[5]

Anshar e Kishar, filhos das divindades primordiais Lahmu e Lahamu, representam a linha do
horizonte que divide o céu (An) e a Terra (Ki), ou ainda, os pólos celestes. O deus sumério Anshar,
depois absorvido pela religião acádia, reúne os termos “céu” (An) e “pleno” (shar). Era esposo da
deusa Kishar (o termo Ki significa “terra”), com quem gerou o deus Anu.
[6]

Anu é uma palavra sumeriana que significa céu. Na religião suméria, Anu era filho de Nammu,
deusa mãe das águas primordiais, e esposou Ki, deusa da terra, com quem gerou Enlil, o poderoso
senhor dos ventos. Deus principal entre as divindades mais antigas, Anu tinha como símbolo uma
coroa de chifres. Na tradição acadiana, também era o deus do céu, o firmamento vazio, formado a
partir da existência da linha do horizonte, ou seja, dos deuses que o geraram: Anshar e Kishar. Com
sua esposa Antu, Anu gerou os Anunnaki, deuses do mundo subterrâneo.
[7]

Nudimmud-Ea é o nome acadiano do deus sumério Enki, cujo nome aglutina os termos “en”
(senhor) e “ki” (terra). Nudimmud-Ea atua sobre as águas doces, a sabedoria e as artes. Por dominar
os encantamentos, o conhecimento mágico das palavras, trouxe a civilização aos homens e
determinou seu destino. Nudimmud-Ea, ou Enki, levou a ordem ao universo, encheu as águas de
peixes, inventou o arado, ensinou aos homens o trabalho na terra e a lida com animais. Na tradição
acadiana, Nudimmud-Ea é filho de Anu, embora em algumas variantes seja considerado filho de
Anshar. Senhor das águas, é ele quem controla as cheias e domina o mar.
[8]

Mummu é conselheiro e mensageiro de Apsu. O termo “mummu”, nesse contexto, pode significar
“aquele que fala” ou “o que transmite algo com a fala”.
[9]

Na tradução de L.W. King, os próximos cinco versos estão muito fragmentados. O texto desta versão
foi elaborado a partir dos fragmentos de frases do texto de King e dos acréscimos das traduções de
Langdon e Sandars.
[10]

A partir desse ponto, na tradução de King, as 30 linhas seguintes estão praticamente ilegíveis. O texto
desta versão foi elaborado a partir dos fragmentos de frases que restaram em King, com acréscimos
de traduções mais recentes de Langdon e Sandars.
[11]

Apsu se incomodava com a agitação de um mundo que se tornara irremediavelmente dinâmico, em


contínuo movimento, impulsionado pelo signo da transformação. A magia de Nudimmud-Ea levou
Apsu a um estado de sono que reproduzia a imobilidade primordial.
[12]

Damkina era o nome acádio da deusa-mãe suméria Damgalnuna. Na mitologia babilônica, Damkina
desposou Ea e gerou Marduk.
[13]
A expressão “o coração de Apsu” se refere às profundezas das águas subterrâneas. Nudimmud-Ea, o
vencedor de Apsu, torna-se o senhor das águas doces, que emergem das fontes para formar rios e
lagos.
[14]

Lahmu e Lahamu, os nomes assumidos por Ea e Damkina ao gerarem Marduk, são os mesmos nomes
assumidos anteriormente por Apsu e Tiamat, ao se erguerem como deus e deusa, para gerarem
Anshar e Kishar. O primeiro termo, Lahmu, corresponde a “macho” e complementa o termo Lahamu,
“fêmea”.
[15]

Quatro é o número que expressa a matéria e desde o neolítico foi utilizado para representar o mundo
material, aquilo que é perceptível pelos sentidos. Quatro são os pontos cardeais, os ventos, os pilares
da terra, as fases da lua, as estações do ano. O número quatro representa o universo em sua
totalidade. Quatro olhos e quatro ouvidos dão a Marduk, simbolicamente, o poder de tudo ver e ouvir.
[16]

O termo “Mariyutu”, provavelmente um epíteto de Marduk, poderia ser traduzido por “meu pequeno
filho”.
[17]

A serra era arma e instrumento que caracterizava alguns dos deuses solares. Anu, deus dos céus, pai
de Enlil e Ea, criava os ventos com sua serra. No Museu Britânico há um selo acádio que mostra
Shamash, o Sol, brandindo uma serra e emitindo raios de luz, ao emergir entre os picos das
montanhas.
[18]

Na tradução de King, os onze versos seguintes estão muito fragmentados e as reconstruções desse
trecho apresentam soluções diferentes em traduções mais recentes. O texto desta versão foi elaborado
a partir dos fragmentos de frases identificados por King, considerando-se também os acréscimos das
traduções da Langdon e Sandars.
[19]

Em King, esse epíteto de Tiamat é grafado Ummu-Hubur. Em versões mais recentes, porém, aparece
a grafia Mummu-Hubur, que geralmente é traduzido como “mãe de monstros”.
[20]

O monstro-fêmea.
[21]

A relação dos monstros criados por Tiamat tem sido um dos pontos de discordância entre os
tradutores do Enuma Elish. Segundo a tradução de King, tem-se: She set up vipers and dragons, and
the monster Lahamu, and hurricanes, and raging hounds, and scorpion-men, and mighty tempests,
and fish-men, and rams. Sandars, por sua vez, traduz: She made the Worm, the Dragon, the Female
Monster, the Great Lion, the Mad Dog, the Man Scorpion, the Howling Storm, Kulili, Kusariqu.
Nesta tradução, optou-se pelas sugestões oferecidas por Pritchard, em Ancient Near East Texts:
Relating to the Old Testament with supplement.
[22]

Anunaki (grafa-se também como Anunnaki ou Anunaku) é um nome comum aos deuses sumérios e
acadianos. Estão relacionados aos Annuna, cinquenta deuses maiores, e aos Igigi, deuses menores.
Eram divindades da quinta geração, filhos de Anu, o céu, e Ki, a terra (anu-na-ki), e participavam do
conselho dos deuses, onde eram liderados por Anu. Distribuídos entre a terra e o mundo subterrâneo,
zelavam pela fertilidade do solo. Entre os Anunnaki mais importantes estão: Asaru, Asarualim,
Asarualimnunna, Asaruludu, Namru, Namtillaku, Tutu e Enki ou Ea para os acadianos.
[23]
As Tábuas do Destino davam a seu possuidor o poder supremo sobre deuses e homens. Nessas tábuas
os destinos individuais eram escritos e selados.
[24]

Os 52 versos seguintes estão muito fragmentados na edição de King. O texto desta versão, referente a
essas linhas perdidas, foi elaborado a partir das traduções de Langdon e Sandars.
[25]

King adota a grafia Ubshu-ukkinna. Trata-se do nome sumério para a sala da assembleia dos deuses,
na montanha sagrada de Duku, que era reproduzida simbolicamente nos grandes templos e
considerada a sala de reunião dos deuses na terra. O termo também pode ser grafado como Ubshu-
ukkinakku.

[26]
King adota a grafia Gaga, enquanto outros tradutores optam por Kaka ou Kakka.
[27]

Os Igigi, divindades menores do panteão sumério, trabalhavam abrindo canais e cultivando a terra. O
termo significa, possivelmente, “aquele que vigia”.

[28]
Anu era o guardião das Tabuas do Destino, antes que Tiamat as entregasse a Kingu. Foi Anu
quem gerou os Anunnaki.
[29]

Bel é um dos nomes de Marduk e corresponde ao deus Baal dos fenícios.


[30]

Os nomes dos cavalos do carro de guerra de Marduk, como os cavalos de Ares, o deus grego da
guerra, descrevem o terror das batalhas.
[31]

O termo Inhullu foi traduzido por King como “Vento Maligno”.


[32]

Uggae é o deus sumeriano da morte. Em King, o nome é grafado “Dug-ga”.


[33]

Nesse trecho, King traduz o termo Apsu por “abismo”. O termo grego αβυσσος (abyssos) poderia ter
sua origem no acádio Absu (ou Apsu).
[34]

King grafa como E-sara, mas o termo é encontrado mais freqüentemente com as grafias Esharra e E-
shara, nome dado a vários templos como o de Anu em Uruk e o de Enlil na cidade de Assur. Esharra
pode ser traduzido como “casa de todos” ou ainda, “cidade”.
[35]

Os grandes deuses foram colocados por Marduk no céu, onde podem ser reconhecidos nas
constelações.
[36]

King traduz esse verso como: “The stars, their images, as the stars of the Zodiac, he fixed.” Na
tradução desse verso, contudo, não utilizamos o termo “zodíaco” (do grego zoidiakós /círculo dos
animais), por considerá-lo inadequado, já que esse conceito só foi definido no Egito helenista.
[37]

Marduk elabora um calendário lunar, de um ano de doze meses sinódicos, ou seja, cada mês com
29,5 dias, tempo correspondente ao intervalo entre duas luas novas.
[38]

O termo Nebiru (em acádio é um dos nomes de Marduk), diz respeito ao planeta Júpiter, que desde
muito cedo foi usado como um ponto de referência celeste. O termo também pode significar polo ou
pivô. Nesse caso, Nebiru também poderia indicar o Polo Norte celeste, uma importante referência
para quem observa o céu em rotação.
[39]

Na mitologia suméria, Enlil, deus dos ares, filho de Anu, era o mais importante e poderoso deus da
nova geração. Inicialmente foi líder do panteão, mas depois renunciou seu posto para Anu. Entre os
sumérios, Enlil foi o criador da humanidade e também o responsável pelo grande dilúvio. Entre os
babilônicos, foi substituído por Marduk.
[40]

O céu era dividido em três faixas paralelas por onde se distribuíam as várias constelações. Cada faixa
era o caminho de um deus. No caminho de Enlil havia trinta e três estrelas principais. No caminho de
Anu, vinte e três, e no de Ea, quinze.
[41]

As entranhas, os intestinos, se apresentam em forma de longa corda. Durante milênios, tripas de


animais dissecadas foram usadas como fios para costurar peles ou cordas para instrumentos musicais.
[42]

Zênite é o ponto superior da esfera celeste. Para um observador que está sobre a Terra, é o ponto
que se projeta na abóboda celeste, partindo exatamente do alto de sua cabeça. Trata-se de um marco
referencial de localização para a rosa dos ventos.
[43]

Sin, ou Suen, é o nome acádio de Nana, o deus Lua sumério. Casou-se com a deusa Nikkal,
correspondente à deusa sumeriana Ningal. Tem como símbolo um disco em forma de crescente e é
responsável pelos calendários. Deus protetor dos juramentos, costumava ser representado com chifres
e longa barba. Seu templo era chamado Enushirgal. O eclipse da Lua era um sinal de desastres e
infortúnios.
[44]

Samash é o nome acadiano do deus Sol, originalmente chamado Utu pelos sumérios, filho de Ningal
e de Sim, o deus-Lua. Era irmão de Inanna, a Ishtar acadiana. O sumeriano Utu era um deus
poderoso, reverenciado como deus da justiça, pois ao cruzar a Terra, via tudo o que sobre ela
acontecia. Marduk não era Shamash, mas assumiu muitos atributos do sol como parte da elevação de
sua condição divina no período do Segundo Império Babilônico.
[45]

Esses versos descrevem as sucessivas fases da lua: nova, crescente, cheia e minguante, que ocorrem
no espaço de um mês lunar.
[46]

Na tradução de King, as cinquenta linhas seguintes estão muito avariadas. Os fragmentos de texto
sugerem que Marduk, após criar a Lua, criou o Sol. A sequência dos versos foi sugerida pela
tradução de Sandars.
[47]

O termo Durmah é sumério e significa, possivelmente, lugar alto, pois entre os nomes de Marduk, o
trigésimo oitavo é Lugal-durmah, geralmente traduzido como “senhor dos lugares altos”.
[48]

Usmu (Ushmu ou Ismud) é um deus sumério, conselheiro de Ea, dotado de duas faces como o deus
romano Jano.
[49]

Eridu era uma antiga cidade suméria, localizada a sudoeste de Ur, onde se erguia o santuário de Ea
(Enki).
[50]
As quinze linhas que seguem estão muito fragmentadas na tradução de King. As poucas palavras
legíveis sugerem a descrição de uma cerimônia em que Marduk recebe o poder, diante das gerações
de deuses. A reconstrução do texto foi feita a partir das traduções de Langdon e Sandars.
[51]

Em King, a partir dessa linha, o texto foi completamente perdido. Esta versão foi elaborada a partir
das propostas de Langdon e Sandars.
[52]

O termo Lugal-dimmer-ankia pode ser compreendido como: senhor dos céus e da terra.
[53]

Após ter sido encantado por Ea, restou de Apsu somente um abismo de águas doces, lugar de
moradia de deuses.
[54]

O termo Babilônia provém etimologicamente de babili, ou seja,“portal dos deuses”.


[55]

Em King, a partir desse verso, quase toda a sexta tábua está ilegível. Os textos de Langdon e Sandars
possibilitaram o levantamento de dados para esta versão.
[56]

O termo é acádio e significa santuário.


[57]

Esagila era o nome do templo dedicado a Marduk na cidade de Babilônia. O termo é sumério e pode
ser traduzido como “casa da cabeça erguida”.
[58]

Ao sul de Esagila está o zigurate Etemenanki, cuja memória foi perpetuada no mito da Torre de
Babel. Pode ser essa a construção citada no texto.
[59]

Templo dedicado ao deus Assur (Enlil ou Ansar) na antiga capital da Assíria, a cidade de Assur.
Esharra significa “casa da totalidade”.
[60]

As referências ao arco de Marduk podem descrever fenômenos perceptíveis no firmamento, tais


como: a curvatura do horizonte, o arco-íris, o arco de estrelas da Via-Láctea.
[61]

Asarluhi significa algo como “aquele que domina o destino pelo poder das palavras”.
[62]

Originalmente as ofertas nindabu consistiam em um pão ou uma medida de cereais, entregue aos
sacerdotes nos templos. Com o tempo, também se passou a oferecer tecidos, objetos artesanais,
sacrifícios de animais e queima de incensos aos deuses.
[63]

O termo Bel, assim como Lugal, significa “senhor” e Marduk também recebe os títulos de bel rabim
“grande senhor” e bêl bêlim “senhor dos senhores”.
[64]

Asaruludu significa “luz dos deuses” e na mitologia sumero-acadiana é o nome de um dos Anunnaki.
Trata-se de uma divindade benéfica e luminosa, que trazia saúde e prosperidade.
[65]

Ninigiku (nin /senhor , igi / olho e ku / prata) ou senhor dos olhos de prata, é um dos epítetos de Enki
ou Nidmud-Ea.
[66]

O termo Hegal significa “abundância”.


[67]

O “grande mar devorador” é Mummu Tiamat e os terrores do mar são dominados por Marduk.
[68]

Malah significa “barqueiro” e, mais uma vez, tem-se a idéia de Marduk em situação de domínio
sobre o mar.
[69]

Esse termo, em Spiser, está grafado “Arilma”


[70]

O termo Mummu aparece aqui com o significado de “palavra criativa”, ou ainda, “o verbo que cria
vida”.
[71]

Marduk, ao criar o universo, deixa de ser filho para se tornar o pai dos deuses. Observa-se o mesmo
na Teogonia de Hesíodo, pois o poder supremo conquistado por Zeus faz dele o pai de todos os
outros deuses e o novo criador do universo.
[72]

O poder de Marduk sustenta Anu, a abóboda celeste. Essa imagem de um deus que sustenta o céu
com sua força e poder está em várias outras mitologias.
[73]

O termo Asharu, nome do deus dos destinos, é a origem etimológica do termo azar, que nas línguas
neolatinas aparece com diferentes acepções, podendo significar tanto desgraça e infortúnio, como
acaso, casualidade ou sorte. Na língua árabe, az-zaHar é o nome que se dá ao dado usado nos jogos e
na língua suméria asharu é o destino, que tanto pode trazer boa ou má sorte.
[74]

Bel Matati significa “senhor das terras”, ou “senhor do mundo”.

Você também pode gostar