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Paulo Bauler

DELÍRIO ANTROPOFÁGIKO
(Ou O Que Bem Quiseres)

EDIÇÃO ANTROPÓFAGOS ERÓTIKOS


2000
À GUISA DE SISOS:

Sou um poeta perplexo com a minha poesia. Vejo um


mundo múltiplo. Um mundo feito de fragmentos. Fragmentos
derivados de uma grande implosão íntima. No coração da
Humanidade. No momento mesmo em que Razão e Emoção se
tocam. Como dois fios desencapados.
Mas creio terrivelmente em Deus e nos Humanos. E que
aos apocalipses espirituais porque passam indivíduos e
coletividades sempre se seguem ressurreições.

II

De tudo tenho feito para deixar-me morrer as indagações.


Mas de tudo resulta uma poda fora de estação. E um Big Bang
íntimo ainda grita seus sons.
Isto é o que são estes delírios.

III

Resulta da Poesia que retorno aos tempos de Demócrito e


Heráclito, e isto ainda me é de todo estranho, neófito que sou,
brasileiro, na arte de pensar. Portanto, que não se espere obter
lições de sabedoria nestas delirantes páginas antropofágicas que
se seguem. Apenas recolho os fragmentos de um Tudo que ainda
não mostrou sua face.

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IV

Resulta da Poesia que me entregue desbragado,


embriagado, ao Grande Mistério de Eros. E que qualquer
resposta seja apenas a próxima pergunta.

Resulta da Poesia que me enxergue um ser antropofágico,


filho de uma terra antropofágica, de onde a Humanidade segue
em direção às estrelas. Apenas tento estabelecer uma
despretensiosa ponte para o além-do-humano.

VI

Se somos, poetas, antenas da raça, há linhas cruzadas,


interferências, balbúrdia de sons e palavras, entrecruzando-se por
todo o planeta Terra. Desconfio que mesmo dos céus balbuciam-
se discursos.

VII

Por tudo isso que, ainda poeta, apenas recolho materiais


para os que constroem templos. Sou um mero servente em meu
carrinho de mão, com a alma de um biguá capelo gaivota
assobiando a bachiana brasileira n.5 do Villa.
Ainda irremediavelmente poeta, tudo o que sei, da Poesia,
é que é Amor. E talvez aí se revele o grande mistério da pedra
paradoxal.

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De resto, alerto que sou poeta, apenas poeta, nada mais que
poeta.

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1

A História das Idéias Brasileiras tem sido, no mais puro e


genuíno sentido dos termos, e o que nos distingue dos demais
povos, Delírio Antropofágico.
Delírio, porque: nem somos, a exemplo dos lusos, um povo
que pensa a partir do “concreto” das realidades, sem que por isso
sejam realistas ou empiristas; nem somos, a exemplo dos povos
eruditos, um povo que pensa a partir do “abstrato”, idealista, em
que a realidade é pensada a partir de projeções ideais das boas
intenções. Nem mesmo somos “um no cravo, outro na
ferradura”, como os norte-americanos, equilíbrio cotidiano entre
gregos e romanos.
Vivemos a nos debater em arremedo dessas todas
concepções que nos transitam: realismo /idealismo,
individualismo/coletivismo, Grécia/Roma, sem que possamos ser
uns ou outros. Daí que importamos de umas/outras,
indiferentemente, circunstancialmente.
Daí o delírio que é aplicá-las, utilizá-las em nossa vida,
nossa identidade cultural.
Dizer “carnavalização” é pouco, tanto que o termo – como
se o Brasil não fosse o país que inventou o Carnaval como
prática social e artística – tem sido utilizado por “filósofos” de
elite do primeiro mundo.
Delírio porque tudo segue direto para o caldeirão
delirante dos fatos e idéias exemplares.
Vez em quando fazemos aquele ar de seriedade, em volta
do caldeirão.
Vez em quando, fazemos esses ares de seriedade, em volta
do caldeirão, quando na concha nos vêm um “eisbein”, um
“escargot”, ou um “hamburger”,
Entreolhamo-nos por instantes, fazemos murmúrios, caras
e bocas a nos concedermos importâncias, para....passado o susto,
cairmos todos na gargalhada íntima. Afinal, é “a grande sopa”
tudo o que nos interessa. E quem é que está com a concha.

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Antropofágico porque: e para muito além/aquém do
Manifesto Antropófago, essas brasilidades todas são mesmo para
lusobrasileiro ver...
O que nos importa mesmo é comer!

Sim, o caminho dos pintores de Heráclito, reto e curvo;


caminhando a duas pernas, a dois braços, aos cinco sentidos, e
aos sons do coração.

Alegria. Alegria do espírito, da alma, e do corpo físico, é o


que sustenta a harmonia de toda a filosofia, de toda a poética.
Alegria e Vida são os requisitos básicos de toda a Estética. Todo
o resto são guizos, ao sorriso dos sisos, que soarão um dia...

Cá no Brasil, engatinha-se na filosofia, apenas, enquanto


engendrarmos meros cronistas e/ou colunistas de filosofia, e
todos esses falsos antípodas. Engatinhamos na filosofia, apenas,
enquanto o mundo nos implora que sejamos realmente filósofos.

Zombam tanto de nós, antropófagos eróticos, esses fariseus


de thanatos, que temem a mais óbvia palavra que pronunciamos.

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Logo de nós, que lhes damos, quando muito, algumas sílabas,
letras solteiras, realmente sem sentido.

Assim falou Kamatrusta: Sigfried e Parsifal não são


sucesso entre os brasileiros porque o brasileiro não é vontade de
poder; o brasileiro é vontade de comer. Brasileiro adora uma
carmina burana.

Quando famintos, os antropófagos comem: idéias brutas ou


macias. Mas não são assim os seus domingos, fariseus de
thanatos?

No princípio era O Puro. Mas aí não existíamos. Nossa


existência se deve à promiscuidade dos átomos. Foi assim que
saímos das águas e ainda assim é que sairemos das terras.
A vida, a vida mesma, planetária, é promíscua e
antropofágica.

No banquete das almas há pratos variados. Os jornais, a


televisão e o cinema, em toda sua crueza, nos oferecem, o mais
das vezes, carnes temperadas. Alguns livros oferecem, inteiros,
vísceras e carne crua.

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De uma vez por todas sejamos sinceros: pouco sabemos


sobre a genealogia do bem e do mal.

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Tudo carrega em si o seu oposto. Portanto, somos todos - e


sempre - de oposição.

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Hipócritas esses fariseus de thanatos. Toda e qualquer


invenção que aumenta o poder limitado do nosso físico é mais
antinatural que qualquer prática sexual condenada pela moral
deles. Pois não é conforme a natureza de cada um o modo como
se obtém prazer sexual? Nenhuma diferença afinal há entre um
desejo sexual qualquer e o desejo de voar, ver à distância, ou de
comer arenque defumado no almoço.

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A literatura, afinal, foi “desmascarada” pelos telejornais.


Só existe uma coisa: a realidade. Tudo já aconteceu, está
acontecendo, ou acontecerá um dia. Tolos os que só lêem jornais,
só vêem televisão, só vão ao cinema. Sem literatura não há
meditação. Sem meditação não há crescimento. Sem crescimento
não há criação. Sem criação seríamos meras sinonímias de
símios.

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Não importa o que façamos: viver implica viver em


contradições.

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O holismo até que seria um bom começo. Mas ao final


sempre vence o elogio da organização linear, de cima para baixo,
ou de baixo para cima. Mas, é tão sutil a divergência das
organicidades... De qualquer forma os antropófagos simplificam
essa e outras questões: todos ao caldeirão!

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Se o universo está em expansão, o que a espécie humana


está fazendo? Puxando-o pelo rabo, ou dando-lhe um pontapé no
traseiro? Ou somos mesmo absolutamente irrelevantes?

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Quando os antropófagos ouvem falar da expansão do


universo têm todos a mesma atitude: lamber os beiços.

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Os filósofos do século XIX foram o martelo; os do século


XX, a bigorna; mas os antropófagos continuam donos da
ferrageria do século XXI.

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Um país governado pelos seus mortos-vivos é um grande


campo de putrefação. O antropófago erótico só aos vivos leva em
consideração.
Dizer que a geração atual é a continuação da geração
passada, é uma grande balela. Como pode o que está vivo ser a
continuação do que está morto? Os antropófagos eróticos não
comem carne putrefata.

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Tudo porque somos um permanente vir a ser. Os que


vieram antes de nós passam-nos o bastão da espécie espiritual de
que somos meros embriões e, por isso, os homenageamos e os
guardamos nos anais dos tempos. Algo assim como as estrelas
que já se apagaram e ainda recebemos as suas luzes.

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As idéias são matéria: energia se movimentando no interior


do nosso cérebro. As almas não pensam. As almas são os
pensamentos.

22

Do sêmen e do óvulo das carnes faz-se a carne. Mas a alma


faz-se do sêmen e do óvulo das almas.

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23

Na forma ou na essência, arte é sempre a novidade, a


originalidade, a singularidade. Pois a criação jamais repete a
criação, por ontogênese absurda. Só se cria o in-criado.

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Nada é mais incompatível que sexo e moral. Portanto,


livremo-nos da moral.

25

O fato de haver seis bilhões de seres humanos sobre a


Terra, prova que a morte, por mais forte, pouco pode contra a
vida. Eros sempre vence Thanatos. Mesmo com as camisinhas de
todo gênero.

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A mulher, nessa virada de milênio, retoma sua jornada


antropofágica-erótica. Há que aceitá-la falar, falar, falar, falar.
Que, ao calar-se, ela compreenderá que o homem, em tudo e por
tudo, tudo o que deseja é tê-la como companheira de Kama.

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In vino veritas. Às mulheres se oferece merlots. São a


ponte entre os paladares ying e yang. Em matéria de vinhos, o

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máximo de cumplicidade que o homem pode oferecer,
franqueando-lhe a masculinidade, sem exageros. Será uma noite
feita de verdades, mistérios, prazeres. Cuidado com as mulheres
que bebem outros vinhos. Elas guardam a entrada do paraíso.

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Nada há sob o céu que A Mulher não intua. Nada há sobre


a terra que O Homem não saiba. A Inteligência, portanto, é
andrógina.

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A alma é pensamento. Por isso não há, tempo ou espaço,


que a alma não possa.

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A existência antropofágica é imanente a todas as coisas


vivas. Tudo quanto vive possui a sua própria filosofia
antropofágica, encerrada em si mesmo, o seu mistério. Não cabe
ao filósofo debruçar-se sobre o objeto como um sujeito exterior a
acumular informações sobre a coisa em si. É preciso tornar-se o
próprio objeto para conhecer, exercer e ampliar as suas
qualidades. Só a poesia antropofágica propicia, em profundidade,
tal metamorfose.

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Todo texto filosófico é, por primeiro, prosa poética.


Demócrito, Heráclito, Platão, Hegel, Rousseau, Thoreau, Marx,
Sartre, Nietzsche, Freud, Jung, Marcuse, enfim, o que primeiro
me assombra em seus textos é a poética presente em suas
entrelinhas. Portanto, e por primeiro, a filosofia é um fato
poético; por segundo, a poesia é um modo de conhecimento do
mundo, uma epistemologia.

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Era uma fonte, tão límpida e clara, as águas que banhavam


a minha iara. Não sei de onde, se ouviam, sons de uma lira antiga
e clássica. Para que eu ficasse assim, ao sabor de uma brisa...
(Prosa ou poema, essa poética?)

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Todas as religiões nascem do escuro. Deus mora na


escuridão dos homens. Do claro, porém, nascem todas as ciências
e filosofias. Só a poesia nasce do claro e do escuro.

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Em todos os seres vivos o thanatos mais profundo é o


thanatos da solidão.

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A única revolução verdadeira é a revolução sexual, levada


a cabo por milhares de humanos comuns, anônimos em sua
maioria, e que, nos estreitos limites de suas kamas, abrem as
portas da percepção às outras dimensões.
Poetas como Safo, Ovídio, Sade, Masoch, Júlio Ribeiro e
Nelson Rodrigues, apenas revelaram ligeiros transbordamentos
antropofágicos. Tudo o que vem sendo chamado de
revolucionário é conseqüência da vontade antropofágica de poder
(Nietzsche) com vistas à economia sexual denunciada por Reich.
Por isso, de Marx a Freud, não atacaram senão as conseqüências,
os efeitos. Desde a Política ao Direito, a Sociologia e a
Psicologia, a Antropologia, a própria Filosofia e, especialmente,
a História, tudo tem sido, até o nosso século apenas Moral
Antropofágica. A moral do poder antropofágico, bem entendido,
que reprime violentamente Eros, com um arsenal que vai desde a
pornografia (catalogação de “Eros”; o eros-burocrata) até os
xiitismos religiosos. A consciência revolucionária de tal fato, a
antropofagia erótica, verdadeira consciência de si, abre aos
indivíduos a perspectiva de elevar o animal ao humano, o
humano a Eros, de Eros à humanidade prometida. E desta ao
além-da-humanidade.

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Ou seja, a poesia é também um método de saber. O modo


predileto de Deus falar aos homens; imaginação traduzida em
nossa precária razão humana.

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Toda a filosofia do futuro terá como base a essência sexual.


Mero antropofagismo, primeiro; antropofagismo erótico, por
segundo; depois, éons...

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Nem Marx, nem Freud, nem mesmo Nietzsche, no


particular (porque não avançou sua revolucionária percepção da
trieb), ao colocarem a filosofia de cabeça para baixo, ou para
cima, ou seja lá para onde for. Os antropófagos eróticos sabem
que há muitos modos de estar no mundo. E os kama-sutras são
apenas alguns deles.

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A antropofagia erótica é parte do prelúdio à filosofia do


futuro. Portanto, deverá superar-se e ser superada. Por enquanto,
a consciência erótico-antropofágica pode prestar os seus serviços.
Um bom começo, naturalmente. Mais prazeroso que erguer
braços, empunhar armas, ou carregar carrancas de cenho
franzido.
Mais que tentarmos arrancar-nos (prematuros) a raiz
antropofágica, melhor é deixarmo-nos crescer a vida que a
transforma em árvore.

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Há inúmeras possibilidades de se viver sobre a Terra.


Nenhuma sem Sexo (Eros Cosmológico).

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Será a Terra um óvulo da Eternidade?

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Só no Brasil pode tomar fôlego e impulso a consciência


erótico-antropofágica. Nós, brasileiros, somos antropófagos
eróticos por natureza e trópicos.
Mas é preciso deixar descer aos intestinos a sífilis
ideológica herdada do brasil-colônia. E não esquecer de puxar a
descarga.

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A vida humana nasce da sexualidade, assim a alma. A


morte é ausência de sexo. Portanto, ausência de sexo é morte. A
sobrevivência da alma, mais ainda que a da matéria, está
diretamente ligada à consciência de eros em si. Pois não é o eros
a liga dos nossos átomos? Ou por qual outra razão se ligariam os
átomos do universo? Ou ainda: como nasce toda matéria viva?
Como nascem as flores, as pombas e as crianças?
Portanto, Eros é o Sopro de Deus.

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Não há que temer ou aceitar o neo-puritanismo moral


daqui ou de fora. Nem se deixar engabelar por suas novas táticas.
Imoral é o uso abusivo dos poderes obtidos à custa dos esforços
de todos, a privilegiar a tacanha ideologia de alguns, venha de
onde vier.

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Liberdade é o primeiro dom de Eros. O banquete está
servido; tomemos assento em volta o caldeirão, esse cadinho de
raças temperadas a moralismo pseudocristão. Bom apetite,
antropófagos eróticos!

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Quanto aos antigos e aos nem tão antigos colonizadores...


bem, comam as migalhas e roam os ossos os que não têm olhos
de ver.
Mas, reparem! Há carne fresca nos vídeos da mídia. E para
todos os gostos.

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Somente quando toda a Humanidade na Natureza, e toda a


Natureza na Humanidade, se amarem e se tornarem o Om
Erótico, presente tanto na arte cavalheiresca do arqueiro zen,
quanto nas Bachianas Brasileiras nº 5, somente então se superará
o homo homini lupus antropofágico.

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Mas, por enquanto, não há nenhum problema que uma boa


masturbação, no mínimo, não minimize. Que uma boa tarde de
amor, no mínimo, não salve a semana.

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O Universo está em permanente expansão. O que implica,


necessariamente, em mutação, transformação. Portanto, nós,
como parte do Universo, também. Isto tem algo a ver com
Heráclito (mas não tudo), algo a ver com o Tao da Física (mas
não tudo). Tem tudo a ver com a Poesia (Tudo).

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A alma é o pensamento da alma em cada qual. Mas o


pensamento não é apenas o racional. O pensamento é também o
emocional. E o sexual. Pois em tudo o pensamento nega, afirma,
e une.

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Aceitar a Perfeição do Humano Original conduz


necessariamente à conclusão pessimista de que a vida humana
está fadada à Involução. Mas o humano é um mutante, tanto
física quanto espiritualmente, como todo ser vivo. Em nossa
imperfeição reside toda esperança, toda evolução. Deus talvez
nos aguarda no futuro eônico.
A imperfeição humana conduz a idéias imperfeitas do que
seja Perfeição Divina. Mas a imperfeição humana é
necessariamente parte dessa imperceptível Perfeição Divina.
Paradoxalmente, pois, a imperfeição humana é qualidade de
perfeição. Buscar realizar uma perfeição original é, por
conseqüência, anti-humano, anti-natural, mesmo anti-divino. Daí
que, em Arte, uma tal obra perfeita será apenas clonagem da
autêntica obra de arte que, por humana, revelar-se-á imperfeita.
Uma obra qualquer jamais será obra de arte se não reveladora da
imperfeita condição humana. Obras de formas perfeitas são

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medonhos flagrantes de Thanatos e, graças a Deus e Humanos, a
viva imperfeição de formas da autêntica obra de arte as supera, e
nos alivia.
A constatação de que o universo está em expansão,
portanto, em mutação, significa que até mesmo o cosmos é
imperfeito (Hosana nas alturas!)
Em suma, imperfeição é perfeição em movimento.

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Todo aprendizado parte do interesse específico de cada um.


É a partir do interesse lúdico numa certa atividade que se
pode desenvolver todo aprendizado, toda educação. O atual
sistema educacional parte do aprendizado do rebanho, como um
todo, sem se importar com a evolução dos interesses dos
educandos.
De uma prancha de surf, dos interesses de um surfista, de
sua atividade lúdica em surfar, se pode desenvolver um
aprendizado tão largo que se pode alcançar o conhecimento de
anatomia e medicina, por exemplo, a partir de um interesse
progressivo no funcionamento do corpo que surfa.
Isto é o que Paulo Freire, filósofo brasileiro, estava a dizer.
No melhor estilo da paideia grega. E (sem que o declarasse) na
melhor tradição primitivo-cristã. Ou seja, sem amor não há
prazer, e sem prazer não há interesse. Interesse é o material
básico com que se faz a ponte para o conhecimento. É no
genuíno interesse que se manifesta o dom em cada um de nós. O
estágio atual de organização social promove constantemente
falsos interesses, assassinando os dons individuais. Parceria
sexual, poder político, dinheiro, sucesso, não resultam do fiel
exercício dos dons individuais.

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Ou, como grita Roberto Freire, outro filósofo brasileiro:
Sem Tesão, Não Há Solução! Esta pérola da antropofagia erótica.
Ou, seguindo adiante: quando a sociedade humana puder
organizar-se a partir dos sons (dons) de cada um dos seus
indivíduos, seus respectivos ritmos e melodias, promovendo
apenas que fluam em harmonia, aí sim, a Terra será Música das
Esferas.

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Os antropófagos eróticos sabem que na kama as fantasias


pertencem à parte fêmina da alma, não importa qual as imagine.
Na dança da kama, homem não imagina. E isto é a imaginação
do homem. Portanto, se entendam, nunca se culpem...
Na kama, mais que sempre, os casamentos místicos...

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O antropófago erótico sabe que todo o bem, o bem moral


das idades médias, mora entre as coxas de uma atriz sonsa e
provocante chamada Beatriz.

55

O eterno retorno é um fenômeno do pensamento, nada


mais. Nietzsche nem devia ter-se preocupado tanto, chegar à
loucura. Estamos sempre voltando a mente para o que fomos,
somos, dos muitos modos que nela se ocultam; ou que sonhamos
seremos um dia, e já lhe adivinhamos os contornos. O déjà vu

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apenas nos demonstra, fugidiamente, que o momento era
perfeitamente plausível e previsível pela nossa mente.

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Os antropófagos eróticos são sempre seus dentes, suas


garras; os dentes e garras de toda a extensão do seu corpo erótico,
para além do seu corpo físico. Dentes e garras, espadas e bainhas,
bem afiados à pedra da alma.

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O amanhecer é o beijo prazeroso de energias antípodas. A


língua é dO Homem. O entardecer é o beijo prazeroso de
energias antípodas. A língua é dA Mulher.

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Não vamos nos pedir desculpas, amigos. Mas, somos tão


diferentes uns dos outros... não somos?

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Então, por que nos tratarmos como iguais? Para que nos
impor o sermos iguais? Para ficarmos a monologar?

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Religião e Política são incompatíveis. Todo exercício de


poder político-religioso sobre o indivíduo é abusivo e covarde:
conspiração contra a liberdade individual; escárnio da Vontade de
Deus.

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Todas as tradições religiosas, ocultistas, místicas, partem


do sexo. Negam o sexo como algo da matéria densa a ser
superado para o amor casto, como em Dante Alighieri, por
exemplo. Uma Beatriz, pela qual se fará casto o mestre perfeito.
Perfeição no vácuo, perfeição na negação do humano.
O antropófago erótico evoluirá a sexualidade como o
homem do século XXI evolui, do seu tataravô de um milhão de
anos atrás, a sua carne.
Mercê do Espírito, mercê das agruras da alma, evoluímos
nossa matéria do osso seco, ao rés do chão, para o caviar e o
champanhe, em mesas ornamentadas. Assim também com a
sexualidade. De algo sem mente, inteligência, espírito, alma,
finesse, enfim, para algo que corresponda aos traços finos do
homem moderno. Jamais negá-la, superá-la, sublimá-la, suprimi-
la. Isto é desumano demais. Contra nós, os humanos. E tem
servido ao poder do humano sobre o humano.
Qualquer que seja a direção do seu prazer sexual, se
nenhum mal faz ao próximo, se nenhuma outra conseqüência
traz, que não o puro exercício da sexualidade, exerça-a
antropófago erótico!

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O mundo oscila entre um “I can get no satisfaction” e um


“As good as it gets”. Mas os antropófagos eróticos nunca se
enganam com os discotecários.

63

Embora todo o new criticism soe como o assassinato da


poesia para a dissecação do poema-cadáver, não há como
discordar que o poema prescinde de história, literária ou não,
para a sua compreensão. Se assim não fosse, isto reduziria a Arte
à circunstância das obras.
Talvez com boa técnica, jamais com boa arte, o poema que
serve ao fato histórico. O Poema é sempre o eterno agora.

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Marx viu a exploração econômica. Nietzche, a vontade de


poder. Freud arremata com a impulsão sexual. Afinal, tudo é
ainda, alternando os modos, a bruta Vontade de Comer. Da sua
quintessência parte a antropofagia erótica, ainda a construir
pontes para o além-do-humano...

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Por isso, só há um método de compreensão da obra de arte:


o método erótico-crítico. O que não quer absolutamente dizer
dissecação da sexualidade do artista, até porque o eros da obra de
arte é o eros universal, jamais mera expressão apequenada do

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eros individual, que normalmente reduz o fazer artístico, e sua
interpretação, a arremedos das próprias particularidades sexuais.
Nisto reside toda a inteligência da obra de uma Camile
Paglia, por exemplo, a quem só escapou o fato antropofágico,
mais visível para quem vive nos trópicos.

66

O que vemos no atual incremento dos cultos à mãe


natureza é de fato o delirium tremens de uma agonia que ainda
levará séculos para se resolver, pois a dicotomia céu/terra mora
ainda bem sedimentada nos corações humanos. Gabeira fala
de um ocaso do macho. Mas, igualmente entra em ocaso a
mulher. O feminismo é tanto quanto um machismo. Homens e
Mulheres têm sido, ao longo da Criação, quase como duas
espécies distintas, que se emprestam à continuidade de ambas.
Atualmente, com o surgimento da Fêmea Erecta, uma
nova mulher desponta na direção apolínea. Ao se tornar tão
racional quanto o homem, deixa para trás a herança da natureza
dionisíaca: Mulheres de Creta, Mulheres de Lesbos, Mulheres de
Atenas, em Nova Alexandria.
Por outro lado, isto quer dizer que, em última análise, o
homem é o grande modelo, e, portanto, demiurgo da criação
dessa sua nova fêmea. Aliás, todas as invenções que liberaram a
mulher no sentido igualitário foram realizadas pelos machos da
espécie, da máquina de lavar ao ob. O que já é um forte indício
de que o mercado é ideologicamente dessexualizado.
Ora, o erro do feminismo teórico consiste em ter como
pressuposto uma sociedade machista, o que não é verdade. A
dessexualização progressiva dos indivíduos é atributo da
clonagem espiritual por que passa a humanidade.
Nem machos, nem fêmeas: clones de homens, esteriótipos
inodoros de fêmeas.
Uma nova mulher pressupõe uma nova humanidade,
fundada em Eros. Uma nova humanidade não se construirá com
fórmulas de igualdade de

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qualquer natureza; uma nova humanidade se construirá a partir
da aceitação do prazer, conseqüentemente do interesse,
conseqüentemente da realização, e principalmente entre
desiguais, pois toda igualização é como uma roupa fora de
medida: ou veste apertado neste, ou resulta larga naquele.
Prazer esse que só terá foros de legitimidade se fruto da
descoberta e ampliação do eros que pertine a cada um dos
indivíduos, machos ou fêmeas.
Quanto aos direitos, eles nascem dos fatos, jamais das
idéias à revelia dos fatos. Todo direito ideologizado, por melhor
intencionado, acaba por acirrar a violência dos contrários; e
atravanca o caminhar da humanidade na evolução do fato real.
Mas, e para não dizer que não falei de flores, como tudo
tende ao equilíbrio, é provável que ocorra um surto dionisíaco
entre os homens. Daí ao acasalamento entre clones-fêmeas e
machos-bacantes vai um passo.
Antropófagos Eróticos de todo o mundo: uni-vos!

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Por falar nisso, é muito comum hoje em dia defender-se a


tese de que se deve, primeiro, amar a si mesmo, para só depois
passar a amar alguém. Mal disfarçando aí o egoísmo, o
egocentrismo e o cinismo. Em verdade todo poeta sabe que
quem não ama alguém jamais amará a si mesmo.

68

Quando um homem olha uma mulher na praia (e vice-


versa), especialmente quando vai ou volta das águas do mar, o
olhar fálico (ou onfálico). Quando olhamos com poesia, em
última análise, o eros, em nada diminui nosso olhar fálico.
Apenas buscamos além do êxtase da carne o êxtase da alma.
Quando superarmos essas contradições, pela

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harmonização, jamais por eliminação, teremos a energia que nos
fará galgar os mais altos degraus do universo.

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Nostradamus é um dos maiores poetas que a humanidade


já produziu. Reduzi-lo à pajelança divinatória é não merecer
conhecer sua poesia.
Pobre poeta! Além de correr sérios riscos de morrer na
fogueira, com seus incensos, sua parafernália, seus narcóticos,
que lhe propiciavam viver em permanente estado de poesia,
jamais o compreenderam em extensão. Tomando a causa como o
efeito, confundindo o modo com o ser, deixam de perceber sua
grandeza poética, inclusive o galileísmo desse herege formidável.

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Safo, de Lesbos. A décima Musa. Sua lírica mostra como o


erotismo desloca o desejo para a totalidade do corpo e da alma.
Sim, o erotismo é sempre um deslocamento do desejo.
Voyeurismo, fetichismo, exibicionismo, sado-masoquismo,
homoerotismo, travestismo são algumas das possibilidades desse
deslocamento do desejo. A exacerbação restrita a um desses
deslocamentos, com os riscos da obsessão, embora não constitua
um mal em si, limita a plena manifestação e realização do eros
individual.
É próprio do Humano ampliar progressivamente as
possibilidades desse deslocamento. O erotismo é, sobretudo, um
processo de união da mente com o corpo. Mas, afinal, porque é
mesmo que corpo e mente ainda andarão tão separados?

26
71

Não. Lesbos não era uma espécie de cidadela do


homoerotismo feminino. Apenas que lá o viabilizava a maior
liberdade de manifestação da sexualidade. Lesbos é antes a
sementeira de criação da nova humanidade, em que se
compreenderá a unidade apenas como uma solidariedade erótica.
Afinal, Lesbos acolheu a cabeça de Orfeu.

72

Enfim, o sexo é a fagulha da mente; e o incêndio que se


segue concede ao Espírito amplas proporções.

73

A principal diferença entre os canibais antropófagos e os


antropófagos eróticos é que estes se sabem. E sabem que o
primeiro mandamento da natureza, não superado pela polis, tem
sido “comei-vos uns aos outros”. E sabem mais: que o caminho
da superação antropofágica está na mais ampla, geral e irrestrita
anistia para Eros.

74

Dizer que a poesia de Kaváfis, de Safo, de Verlaine, ou que


os romances de Lawrence e de Henry Miller, sejam sexo
confessional, é reduzir a literatura erótica à condição de biografia
íntima de revista de mexericos. Ao fundo o que se pretende é
reduzir a atividade erótica à pura realização fisiológica ou, pior, a

27
disfunções da psique. Tudo cortina de fumaça para esconder uma
guerra sexual movida a preconceito e atraso.
Canibalismozinhos, antropofagiazinhas...

75

No entanto, como disse Voltaire, é preciso sempre


acautelar-se da demência da canalha (ou canibália), talvez
cultivando a paciência com a mediocridade, como preferiu
Nietszche; talvez mesmo dando a outra face (a canibalesca),
como ensinou Jesus. Mas assim que puder, resolva tudo com sua
parceria em Eros...

76

Os antropófagos eróticos exploram suas possibilidades em


eros, como direito individual inalienável, conscientes de sua
natureza antropofágica, buscando superá-la pelo seu progresso
erótico, físico e espiritual.

77

Os homens dizem que mulher é tudo igual. As mulheres


dizem que homem é tudo igual. Afinal, se é tudo tão igual, de que
é mesmo que estamos reclamando?

28
78

Saber que somos sempre, em nossa relação com os outros,


um estado alterado da consciência face a face um outro estado
alterado da consciência.
Isso é o que é ser diferente. É por aí a salvação do humano
em nós. Por isso que cada qual deve tentar viver (ao menos
mentalmente) cada um dos múltiplos possíveis estados de
consciência alterados para se chegar ao Amar O Próximo Como
A Si mesmo. E é este o grande serviço que a Literatura presta ao
Humano.
Quanto a Poesia, bem a poesia é a totalidade dos possíveis
e variados estados alterados da consciência... Pois A Casa do
Poema tem muitas moradas

79

Deus imprimiu em cada um de nós o plano da criação;


portanto, cada qual de nós possui o dna do Universo. Isto
emociona ainda mais quando sei de mim um ser único, singular,
inimitável, tão imperfeito, e ainda assim merecedor da confiança
de Deus.

80

Sim, o passado, o presente e o futuro, ou seja, todo o


tempo está contido no Agora Eterno de Deus. Assim também
todo o espaço está contido no Aqui Eterno de Deus.

29
81

O homem é uma fatalidade, assim falou Zaratrusta. Acaso


haverá necessidade?, questiona um filósofo. E haverá acaso?,
indaga um outro. Um canibal apenas diz ao outro: bolas! passe-
me essas duas orelhas...

82

Quanto a esses fariseus, maldizendo secula seculorum que


da dor se chega ao céu e do prazer ao inferno, os antropófagos
eróticos sabem o que são: vontade de comer.
Urge que a Humanidade se reúna para uma filosofia do
prazer. Para que retomemos a caminhada para o verdadeiro céu
espiritual.
Ora, quando um antropófago erótico olha para o céu vê
estrelas brilhando de prazer. Quando olha para a terra vê flores se
abrindo de prazer.
A dor é exceção. A luz triste de uma estrela que já morreu,
a flor despedaçada pelas patas ao acaso, nem apaga nossa alegria
solar, nem impede o alegre vôo das borboletas. A natureza é
orgástica.
Assim na terra como nos céus...

83

Mas jamais esquecer que o verbo (a palavra) no poema não


é mero significante do objeto. É o próprio objeto.
E de passagem se diga, nunca o sujeito-poeta, sempre um
outro self, sempre um (uns) dos muitos possíveis estados
alterados da consciência do poeta.

30
84

E, como lembrou Paulo Coelho, o primeiro milagre de


Jesus foi transformar água em vinho, para alegria dos
antropófagos eróticos. Jesus era um bom copo, para gáudio dos
Apóstolos e de todos que lhe seguem no coração

85

Joaquim Souzândrade, um ghesa, poeta inventor da


moderna poesia brasileira, de quem se busca um livro e não se
encontra em nenhuma livraria brasileira por ignorância,
subserviência, e mercantilismo cultural do sistema educacional
brasileiro. Cunhou o termo antropofagia, em seu sentido
moderno, ainda no século passado. Antecipou a globalização do
texto literário, integrando expressões de outras línguas ao seu
texto poético, não apenas as cultas, mas as de uso corrente; sem
falar na epopéia inca de O Gesa, um sinal de respeito e amizade
entre latino-americanos, como mais tarde o fez Paulo Carvalho
Neto.
Perseguido no Brasil por suas idéias políticas, exilou-se em
Paris e, depois, NovaYork. Voltou para São Luís do Maranhão,
retomou sua cátedra de grego, e morreu em dois anos. Poeta da
linhagem de Gonçalves Dias e Castro Alves, ainda abriu todos os
caminhos estéticos por que seguiu a moderna poesia brasileira.
Renegado, copiado e explorado como um Rimbaud;
desenturmado, “despatotado”, como um Cruz e Souza. Por vezes
complexo como um Baudelaire e Poe, por vezes urbano como um
Mário de Andrade. Às vezes sarcástico como um Bocage, às
vezes irônico como um Gregório de Matos. Místico como Dante
e Milton, nosso João Batista da Poesia, como mencionou
Humberto de Campos.
Enfim, nosso ghesa da antropofagia erótica.

31
86

Mesmo que o humano esteja num deserto, sem qualquer


construção apolínea, terá suas roupas; mesmo que inteiramente
nu, terá sua mente sempre (antropofagicamente) apolínea:
construída e com sede de construir.
Ou, de William Blake, outro antropófago erótico: onde o
homem não está a natureza é estéril.

87

A carne é limitada. Mas dela deriva toda a criação humana,


que não cessa de crescer. Inclusive a própria mente, carregando
em si o aço da mola para frente.
A razão também é limitada, dado que não sabemos as
respostas às perguntas concebidas.
Portanto, que importa se da carne nasce a idéia ou se da
idéia nasce a carne? Tratemos antes de vencer nossas limitações
em direção ao Êxtase Coletivo sem nos impormos uma à outra.
Se o desejo é da carne, aproveitemos da carne; se é da
razão, avancemos a razão; se é misto, ora, garfo e faca ao
mesticismo.

88

Ler e Reler Wilhelm Reich, esse filósofo de Eros, esse


outro ghesa da antropofagia erótica.

32
89

Henry Miller é um antropófago erótico de primeira fileira.


Lawrence, também; mas em menor escala. Mas, o que estou
mesmo a dizer? Não há escalas na antropofagia erótica, só as
musicais.
Escalas hierárquicas humanas são sempre uma limitação
ao totum individual, comparando e graduando apenas partes
arbitrárias de cada um, como se compara partes de carne nos
açougues. Mas o artista não se divide em partes boas ou más, a
parte artística e a parte mundana, e assim por diante. O poeta é o
todo, pois é o todo que lhe dá o acesso à linguagem poética. Há
apenas uma hierarquia na ágora da Arte, a verdade poética. E
todas são uma só e mesma verdade.
Mas o que estava mesmo a dizer é que a antropofagia
erótica é muito mais nítida em Henry que em Lawrence. Por
falar nisso, ia esquecendo de Charles Bukóvsky, esse antropófago
erótico bêbado e sacana.

90

O feminino em Cicciolina, Roberta Close, Silvia Kristel,


Madona, por exemplo. Joanad’arcs queimando nas fogueiras de
erosjesus.

91

A transexualidade é um colírio para os olhos dos


antropofágicos eróticos. Transexuais, travestis, drag queens,

33
todos que afirmam “o outro ser daimônico” em si são a brigada
de choque do antropofagismo erótico.

92

Só a poesia contém a chave libertadora das retrancas tanto


da razão quanto da alma enquanto emanação da carne. E dos
grilhões da matéria, principalmente. Na linguagem poética, todo
o código erótico.

93

Também existem antropófagos eros-políticos: O poeta


Boris Vian, o dos Escritos Pornográficos. Como William Reich,
além de eros-filósofo. E Georges Bataille, em As Lágrimas de
Eros.

94

Dirão de mim, talvez, os thanatos, que faço a apologia de


uma vida hedonista em eros; mas não dirão jamais que tenhamos
deixado passar uma só oportunidade de vivê-la assim.
E entre essas tantas foram tão poucas, respondo eu daqui

34
95

Eros multimídia, sol e lua, somos mercúrio, vênus, terra,


marte, júpiter, saturno, urano, netuno e plutão, e para além das
galáxias do om. Como então nos conformarmos à obrigação do
anel em apenas um dos dedos, do bracelete em qualquer das
mãos?

96

Se a natureza é plúrima também o céu o é. Ou seja, somos


pluralidades para cima quanto para baixo. Afinal, somos, por
enquanto, solitários antropófagos universais.

97

Todo artista é um estado alterado de consciência. Todo


crítico é um estado alterado de consciência. Só O Poema é soma
e síntese.

98

A poesia: essa medusa, essa hidra de lerna, essa vênus


implacável. E essas harpias e fariseus a perseguir orfeus.

35
99

A poesia é a primeira entre as artes todas: no princípio era


o verbo, não era o som, a imagem, ou o paladar. Quanto à
música, ora, e embora todo o desfrute, o poema contem a música;
mas a música não contem a palavra.

100

Poetas, toda a luz que está à frente é apenas a manifestação


do nosso próprio brilho aceso alhures.

101

Como tudo, tanto na natureza quanto em nós mesmos, é


pulsão (nietzche), e toda pulsão é de essência sexual (freud), toda
ação humana é erótica, na medida em que transformamos o
impulso natural em impulso humano. Para Hesíodo Eros é o
grande demiurgo, o princípio de toda a criação cosmogônica.
Depois, os romanos viram em eros um deus-menino. Enfim,
Jesus nos vem de Maria e Deus. Aguardemos, portanto, a
segunda vinda do Messias: ErosJesus.

36
102

Sem dúvida o antropofagismo erótico-crítico é um pós-


romantismo; ou um romantismo progressivo, ao melhor estilo de
Schlegel.

103

O único que sobrou do positivismo foi a busca e captura da


qualidade do conceito no exercício da honestidade intelectual. O
que não é pouca coisa, convenhamos, mas também tanta coisa
não é.

104

Chorar pelos mortos é triste. Chorar pelos vivos-mortos,


mais triste quanto mais alegres.

105

O antropofagismo erótico é a maior válvula de segurança


contra todas as guerras e a guerra total. Quem goza na alma não
mata, quem goza no corpo não quer morrer.

37
106

Ouço falar de uma tal “fraternidade branca” esotérica a


justificar cristianizações, patrulhamentos e preconceitos: são tão
donos do branco quanto outrora se julgavam, outros (e talvez os
mesmos) donos do azul claro-escuro dos céus. Fariseus, até
quando tereis o coração duro e impermeável aO Poema?

107

No particularismo exclusivista da reunião em pós-


manadas, aí reside todo o mal. No egoísmo do individualismo
pós-cinismo, toda a ignorância. Enfim, todo o coletivismo tem
sido um rol de antropófagos mochos, sob as garras e presas de
antropófagos de goela mais larga. Mas assim também tem sido
utilizado todo o individualismo messiânico. Acautelai-vos, pois,
antropófagos eróticos, das cartilhas que a tudo explicam e por
isso corrompem o espírito.

108

Lanço aqui o Movimento Eróticos Livres - Mel, para nos


antropofagiarmo-nos deliciosamente. Isso se eu fosse um
político, um filósofo, um crítico. Mas sou apenas um poeta, de
quem o dia-a-dia sonega o mel do eterno.

38
109

Não basta riscar apenas a fagulha primeira. É preciso


acender o fogo. Manter sempre acesa a chama piloto. Incendiar
em eros. Por que fazer da precária e ligeira vida humana um
eterno coitus interruptus?

110

A poesia multimídia, ou poesia global, a partir da poética


antropofágico-erótica, considera e usa toda a estilística obtida até
hoje, como um pós-modernismo; mas a diferença está em que
tanto o eu ficcional do poeta, como os lobos uivando, as hienas
espreitando, e os pássaros cantando, enfim, toda a natureza em
nós ou fora de nós, mais o movimento dos nossos corpos,
pensamentos e ações, mais tudo o que construímos e utilizamos,
desde a linguagem até os objetos, aparecem no poema de modo a
demonstrar que qualquer parte (interna, externa, até alienígena)
conduz ao todo, e que todo o todo se expressa em partes. Ou,
como diz uma amiga com muita graça, do natural ao sobrenatural
com a mesma naturalidade. O essencial, porém, é que tudo tanto
faz. Desde que o prato seja saboroso.

111

O Agora Eterno é a noite e o dia a um só tempo, o aqui e o


lá num mesmo lugar. Multimaravilha orgiástica. Eros tirando a
sesta, poetas fazendo amor.

39
112

Os antropófagos eróticos sabem que é fácil ser solidário na


dor, solidários consigo mesmo, o medo da dor em cada um. O
difícil é ser solidário no prazer erótico, ainda solidário consigo
mesmo, a falta de prazer erótico na vida de cada qual.

113

Um coração antropófago-carcará nunca se engana: é pegar,


matar, comer. O antropófago erótico também não: sempre tenta
negociar um modo de se obter mais e melhor prazer.

114

O individualismo exacerbado, mas sob férreo controle, que


leva à rígida rotulação dos papéis sexuais, faz com que o
erotismo seja um campo de força elétrico entre máscaras
(Paglia).
Só a antropofagia erótica, com seu método erótico-crítico,
pode desvendar e dar vida a essas personas literárias, a superar os
conflitos e equívocos que daí resultam. E deixá-las
prazerosamente brincar seus próprios bailes de máscaras.

40
115

Em toda a Literatura, sim, mas com toda a certeza em toda


a Poesia, a crítica confessional é uma balela. Sem insistir no
conteúdo divinatório do poema, ao melhor estilo grego, o poeta
nunca fala por si mesmo, sempre voz de personagens e verdades.
Ademais, não é o que acontece em todas as relações sociais,
econômicas, políticas e até nas pessoais e familiares? Se
ninguém realmente “é”, por que haveria o escritor de sê-lo? O
poeta nunca “é”, o poeta está sempre em permanente devir.

116

A melodia é a musa dançarina da música em nossos


corações de poetas. O Poema não é a melodia. O Poema não é a
música. O Poema é o Verbo. No entanto, não haverá O Poema se
a melodia, a música, não nascerem do Verbo-Poema. Daí porque
o poeta, profeta do Verbo, só chega aO Poema se a sua música: a
música contida no Verbo, a música filha do Verbo, a música que
O Verbo lhe confidencia. Quantas melodias, coitadas, estão por
aí, mulheres da vida, abrindo-se a preço vil

117

Para o poeta antropófago erótico Arte Sexo Religião


Política Justiça, e tudo o mais, são o mesmo Poema.

41
118

Mas os toques macho/fêmea de Camile Paglia apenas


inicia a discussão. É claro que, se existe um masculino da
Femealidade, também haverá um feminino da Masculinidade, a
saber, da nova masculinidade, essa, a que Gabeira se refere. Mas,
é bom que se suponha, essa nova feminina está sendo construída
pelo próprio masculino, num primeiro estágio para vencer o
ctônio da femealidade, num segundo, para “elevar” o masculino
para além dela. Afinal, para unir o útil do aumento da
produtividade, com o agradável da ampliação do mercado
consumidor. Nem necessariamente nessa ordem, nem havemos
de deixar de dar a Marx o que é de Marx. Neste processo todo a
noção de família perde valores e adquire capacidades. Também
todo o processo artístico se volta para a coisificação do ctônio em
quantidades, mais útil que as qualidades. A arte, portanto, no
sentido dO Poema, só se afirma em sua qualidade nessa nova
fase humana quando considera a mente andrógina a Jung. Ou
seja, a sua completa inutilidade nesta “guerra”, e apenas prazer,
emoção e pensamento. Pois a Arte transcende toda e qualquer
contradição, já que se aceita, se compreende, e se ama paradoxal.
Atentai, poetas, para as palavras simples que enfeitam seus
poemas. Mais que as palavras ornadas, é nelas que se abrigam os
paradoxos que fazem a poesia.

119

Sim, a gordura é corpo que imita a natureza fêmea,


pantanosa e aquosa. As modelos da alta costura são magras
porque buscam o isolamento da natureza dionisíaca da
femealidade, como objetização do corpo vestido. As mulheres

42
que buscam galgar postos de comando e ação no mundo
masculino passam por um rápido processo de emagrecimento
como fuga da natureza ctônia e identificação com o homem. Este
processo de androginização da mulher segue o princípio do ocaso
da fêmea. Assim, o poema considerado viril é sempre seco,
enxuto de gorduras, livre do ctônio que lhe dá origem. Mas
desde Baudelaire, a Goethe e Dante, poetas apolíneos usam e
abusam do dionisíaco em suas grandes obras. Enfim, as grandes
obras de arte são, em verdade, e sob este aspecto, sempre de
dupla face.

120

Ah, Amorosa Musa Verdade! A tanto que me obrigas -


suspira o poeta.

121

Mais que nunca é preciso retomar a energia cristã primitiva


na construção da poesia, sem que os grilhões do populismo
político-religioso tão comum em terras brasileiras ontem como
hoje. O Jesus que impede a lapidação da adúltera é o Jesus que
compreende a natureza dionisíaca imposta à nossa carne, herança
comum de toda a humanidade. Jamais condenou eros, o prazer do
sexo, mas thanatos, o sexo como mero antropofagismo violador
do próprio eros, ou violentador do eros de outrem.

43
122

Há talvez diversos modos de se transcender a antropofagia


selvagem em nós. Mas a erotização da antropofagia, a
antropofagia erótica é certamente um bom começo. Com certeza,
o mais prazerosamente humano

123

Tanto o pós-modernismo quanto o políticamente correto


têm sido um avanço na direção do pleno exercício da
humanidade. Nesse sentido, são uma retomada do humanismo.
Mas, senhoras e senhores, não sejam tão rígidos! Cantem e
dancem ao som dos próprios discos

124

A aids, essa terrível serva de thanatos, é o inimigo n.1 de


toda a humanidade. O mal que faz ao Espírito Humano é
incalculável. Única doença capaz de aniquilar com toda a
Espécie Humana, tendo como alvo a sexualidade e, portanto, o
princípio da procriação, demonstra a precariedade da inteligência
do animal que governa a terra. Todo o esforço humano devia
estar comprometido com o enfrentamento deste ser microscópio
capaz de nos aniquilar. De que vale usarmos o dom da
inteligência para a ampliação desmesurada de bens de consumo
imediato, e de redução de custos e ampliação de lucros, inclusive

44
em medicamentos, para males que por vezes a própria natureza
se encarrega de eliminar progressivamente? De que nos adianta
criarmos meios de alcançar as estrelas se não houver
descendentes humanos que possam lá chegar? Ao longo de toda a
história observamos populações inteiras voltadas unicamente
para o que chamavam de esforço de guerra, produzindo ao
máximo armamentos em prejuízo de outros bens, pelo simples
risco de verem-se escravizadas a outros povos. E, no entanto, o
homem moderno está cego para a evolução desse risco medonho
para toda a espécie. A contenção sexual pode eventualmente
preservar as gerações atuais até certo ponto. Mas, o que nos
garante que thanatos não multiplique as variações a seu dispor?

125

Enquanto isso, falemos de Tropicalismo, e dos


antropófagos eróticos que, ainda meninos, viram o que o Brasil
ainda se recusa a ver. Que temos as nossas próprias verdades. E
que as verdades de cá interessam tanto aos de lá, quanto as
verdades de lá interessam aos de cá. E que as verdades de cá
conduzem a novas verdades de cá, tanto quanto as verdades de lá
conduzem a novas verdades de lá. E que se as verdades de cá
podem não ser verdades lá, também as verdades de lá podem não
ser verdades cá. E que, enfim, algumas verdades de cá serão
verdades lá, tanto quanto algumas verdades de lá serão verdades
cá. Todo o resto é mero folclore para inglês ver.

126

45
Dizer que o poema musicado não pode ser poesia é o
mesmo que negar toda a poesia lírica da grécia antiga, bem como
toda a produção poética dos antigos provençais, de que a poesia
lírica moderna é inteira continuação. Se toda poesia contém
necessariamente melodia, o poema musicado apenas a torna mais
exuberante. Mas, é claro, estamos falando de poesia

127

O ócio conduz à criação poética.

128

O vinho convida à criação poética.

129

A cerveja esparrama a criação poética.

130

O trabalho completa a criação poética.

46
131

O Brasil ainda não é um país, é um sonho; o Brasil ainda é


mero ajuntamento antropofágico. E me vêm lágrimas aos olhos
por Stefen Zweig, que tantas esperanças depositou em nós, que
tanto quis ser um judeu brasileiro.

132

Todos os que tombam pelo vírus de thanatos são guerreiros


de eros que tombam pela vida. E os antropófagos eróticos os
cultuam como heróis do nosso tempo.

133

O poema deve ter a grandiosidade do vôo de uma águia, a


ferocidade do vôo de um falcão, a maestria do vôo das gaivotas,
a sofreguidão do último biguá, a alegria das andorinhas, o labor
das cambaxirras, o grito dos bem-te-vis, a humildade dos pardais,
a placidez das garças, a cegueira dos morcegos, o olhar das
corujas, e a determinação do vôo de ícaro. O poema assim ganha
asas largas, mesmo nascido da pedra mais matéria, ganha os céus
como um condor. Mas não será nada se não houver amor. Se não
houver prazer.

47
134

Em poesia, quanto mais se busca um sagrado coração mais


ecoam os risos de salomé.

135

Quando já vamos desanimando de um fazer poético do


Brasil, surge uma edição da poesia completa de Raul Bopp, o
antropófago místico, como Oswald foi político e Mário foi
satírico. Tudo no estrito sentido literário, bem entendido.

136

Por falar nisso, o que é ser um poeta brasileiro? Neruda é


um poeta chileno? Allan Poe é um poeta americano? Rimbaud é
um poeta francês? Bocage é um poeta português? Sim, mas só
porque língua e verve, jamais por temática. Ser poeta brasileiro
não é vender cocares e colares a gringo, como não se é
simplesmente poeta copiando técnicas e ritmos da poesia
européia, frutos da criação em outra língua, outra cultura. O
poeta no Brasil tem o direito, e o dever, de abordar os temas
universais tanto quanto um Goethe, ou um S. João da Cruz, a
partir da sua vivência, no caso, na sociedade brasileira, e
expressá-los na língua que lhe propicia o fazer artístico. É preciso
tanto acabar, sem negar a inteligência, com essa subserviência às

48
criações externas, como se não pudéssemos também criar, mas só
copiar, meros arremedos, cópias jamais perfeitas da Criação,
porque em linguagem diversa; como também não nos
restringirmos ao bumba-meu-boi, enquanto temática necessária a
um povo também bumba-meu-boi. É verdade que o movimento
antropofágico estava à mercê de um messianismo “tenentista”,
industrial-burguês, tanto quanto a uma tentativa de busca de
valores brasileiros de fora para dentro, meramente “nacionalista”,
supervalorizando o motivo caboclo, o que redundou num
“caboclismo metido a intelectual”. Mas, eram as condições
históricas e, por isso, todo equívoco é perdoado. O importante, e
todo o mérito, consiste, primeiro, em tentar romper com os
ditames colonialistas, buscando a próprio voz brasileira.
Segundo, ampliar as possibilidades da linguagem pátria a partir
das suas origens mais primitivas, mesmo que já arcaicas.
Terceiro, e mais importante, ousar ser realmente partícipe da
criação universal e não mero arremedo. Não é pouco.
Principalmente se levarmos em conta que Macunaíma, essa
fábula satírica, é a pedra angular, verdadeiro ponto de partida
para a compreensão da alma brasileira e, portanto, das
possibilidades da nossa linguagem então luso-brasileira e, agora,
me permitam, english-luso-brasileira (nunca foi franco-luso-
brasileira), além de nos denunciar a nós mesmos nossa absoluta e
até agora invencível (salvo na boa música popular e na
agonizante farmacopéica, especialmente), mesquinhez
canibalesca subserviente, medíocre e falsa, e tolamente esperta.
Com toda certeza não foi pouco o que nos legou o movimento
antropofágico. Três Vivas para os antropófagos históricos!

137

Mais ainda que as peripécias do próprio modernismo,


inexoravelmente (e em boa hora) importadas.

49
138

Por falar nisso, I Juca Pirama é, no contexto universal, um


dos maiores poemas sobre a coragem humana já realizado.
Mesmo que Gonçalves Dias não tenha sido índio, mesmo um
brasileiro apenas romântico-naturalista. Com toda certeza, poeta
universal. Tão brasileiro( no sentido literário) quanto Ezra Pound
era americano. O que define a nacionalidade do poeta (sem,
afinal, relevância maior para A Poesia que nos estritos limites da
história literária) é o Verbo, nunca o tema. E nunca esquecer que
a linguagem poética é o instrumento do Verbo, que reúne
significante e significado num só e alheio objeto. Por outro lado,
sendo o poema necessariamente arte escrita, há que se globalizar
a linguagem poética, romper o isolamento do idioma pátrio,
mantendo a estrutura idiomática e a linguagem próprias, mas,
progressivamente, mestiçar os versos na universalidade.
A arte caminha com a humanidade.

139

A mente do poeta, a minha mente imperfeita. Sempre


chega o momento em que a minha poesia reclama sua autonomia
e bate suas asas para longe dela, a minha amada, a minha musa,
seu corpo, sua alma banhada em eros.
Não sei se choro ou se me alegro. Choro. Me alegro.

50
140

Mas nada, nada mesmo, serve mais à criação poética que


os mistérios de eros.

141

Drummond botou suas manguinhas antropofágico-eróticas


de fora em obra póstuma. Obra póstuma não vale, dizem uns.
Vale, sim, dizemos nós. O homem não é o poeta. Póstumo por
póstumo, Drummond foi mais drummoniano que Hemingway foi
hemingway em seu Jardim do Éden. Se bem que O sol Também
Se Levanta seja obra de um gato-mestre da antropofagia erótica.
O Jardim do Éden também. De repente me ocorre que, talvez, o
medo de vir a tornar-se um antropófago erótico explícito foi
demais para Hemingway, que já era um Nobel.

142

Como ser poeta sem desejar, no Absoluto, todas as


mulheres? Como ser poeta sem se acorrentar ao desejo por uma
só? Isto prova que sem eros-antropófago não há poesia.

51
143

Anaís Ninn era uma poetisa que fazia narrativa. Tivesse


sido uma prosadora que fizesse poesia, teria sido a safo moderna.
De qualquer modo, uma das primeiras-damas da antropofagia
erótica.

144

Charles Bukowisky, um antropófago erótico adolescente.


Jean Genet, um antropófago erótico ainda menino.

145

Jerzy Kosisnski, em O Pássaro Pintado: um antropófago


erótico assustador; Pier Paolo Pasolini, em Teorema, um
antropófago erótico libertário.

146

Manuel Bandeira, um antropófago erótico discreto. Evoé,


Vênus!

52
147

Um Cristopher Palmer, em A Hora do Amor, misturando


Françoise Sagan com Sach-Masoch, um americano recebido
como subliteratura, um antropófago erótico que sabe mais do que
diz. Ainda estou falando de literatura, claro.

148

Por falar em literatura, Sade e Sach-Masoch, tanto quanto


Rousseau e Voltaire, e desde Platão, tudo está a provar que a
poesia é a mãe de todas as filosofias. Pois a poesia antecede todo
texto artístico. Ou a filosofia não é pura arte?

149

Por falar em subliteratura, os antropófagos eróticos


prestam grandes homenagens a Carlos Zéfiro, o único. Nenhum
avanço da subliteratura (como literatura de submundo)
pornográfica (mesmo desenhada ou fotografada) superou em
força o erotismo dos seus quadrinhos eróticos (o cinema é outra
questão). Que Vênus Morena o tenha em seu colo generoso.
Carlos Zéfiro, a prova de que eros é brasileiro.

53
150

Proponho que se instale urgentemente o Centro Erótico-


Cultural Brasileiro. Como preservar na memória nacional os
quadrinhos eróticos de Carlos Zéfiro? Aliás, temos esta dívida
com a memória da humanidade. Que povo do mundo, desde
Grécia e Roma antigas até hoje, produziu um gênio como Carlos
Zéfiro? Você mesmo, leitor (a), conhece a obra erótica de Carlos
Zéfiro?

151

Nem o amor livre dos anos 60, nem o amor preso de todo o
antes. Se um só homem não basta a uma mulher, é lícito que
tenha outros; ao mesmo, se uma só mulher não basta a um
homem, é lícito que tenha outras. O importante é que essa seja a
base verídica do amor entre ambos. Nada impede também que se
estabeleça a fidelidade como requisito autônomo da união; e isso
nada tem a ver com o haver ou não amor, mas com a lealdade e
cumplicidade como requisito básico da união assim estabelecida.
Também pode ser tentada a mera objetivação da necessidade de
várias uniões puramente sexuais, no interior do casal. Casal de
dois, três, quatro, cinco, etc. O importante é que o sexo, muito
menos eros, seja instrumento de ferir. Mas sempre deve ser
levado em conta que enganar e ser enganada pode ser um jogo
lúdico que interessa sexualmente a ambos. Enfim, o que importa
mesmo é o puro prazer erótico, mesmo com suas dores gozosas,
sem que a fronteira com o thanatos da violência espiritual faça da
parceria o avesso de eros. Ou seja, que nos juntemos para o gozo
e o prazer, nunca para a frustração e o ódio.

54
152

Sem pretender fazer disso um traço da espécie humana,


quando o antropófago busca “outras” mulheres o faz por puro
prazer; a antropófaga ainda o faz, embora o prazer, com o
componente de agressão e vingança a seu parceiro. Claro, há
exceções, ainda antropofágicas, de ambos os lados. O adultério
é um mal em si, servo de thanatos, fruto da parceria sem eros,
com insuficiência de eros, ou mesmo contra eros. Preste-se o
casal ao culto diário de eros, dando-lhe tanta atenção (melhor se
mais) quanto se dá às mais rotineiras obrigações do dia a dia, e o
thanatos do adultério não vingará.

153

Uso o termo antropofagia não no sentido puramente


irônico e confessional-nacionalista (enquanto brasileiro) que lhe
deu o Movimento Antropofágico. Mas também para afirmar o
óbvio antropofagismo de toda a espécie humana. Ou seja, a
confissão antropofágica brasileira cabe a toda a humanidade. E
esta talvez seja a maior contribuição em expressão formal (ao
melhor estilo da liturgia católica e sem a pior autocrítica
stalinista) que apresentamos aos nossos colonizadores. Ou,
brasileiramente, somos - mas quem não és?

55
154

Sim, sim, falarei da poesia de Florbela Espanca. Mas, com


esse nome-língua no ouvido da alma de um antropófago erótico
conseguirei falar o quê?

155

De um modo geral, os tratados portugueses de Crítica


Literária dão largos espaços ao formalismo russo, ao new
criticism americano, à escola lingüística tchecoslovákia, e ao
neo-marxismo de gramsci e lukács. Não é estranho que não
tenham um capítulo sequer para o movimento antropofágico
brasileiro? Será que não fazemos parte do mundo literário?

156

Pois em verdade vos digo, nada há de mais original e


enriquecedor no mundo puramente literário ocidental, nem plena
de tantas possibilidades, que a idéia da antropofagia. Por
exemplo, assim como - e ainda mais - o romantismo progressivo
de Schlegel.

157

As mulheres costumam citar as abelhas como uma organização


feminista maravilhosa. Extasiadas perante uma colméia. Gostam

56
do fato de o macho só servir para a procriação, sendo mortos em
seguida. Esquecem que só há uma rainha. Mas, é próprio da
mulher cada qual se acreditar a própria. Mas isto é o homem que
lhe faz, mercê do amor. Enfim, o papel do macho é muito mais
interessante. Criança, cresce feliz e protegido. Quando chega à
idade adulta, tem uma noite de glória com a melhor abelha da
tribo e em seguida morre. Nem há por que mais viver. Voltar e ter
que conviver com as outras, escravas sem sexo, medíocres e
feias. Deus, nos livre, nós homens de tal destino. Moral da
história, toda fascista é burra.

158

A guerra sem trégua que se trava na sociedade humana desde


sempre contra a relação amorosa autêntica é etapa a ser vencida
pelos espíritos livres do futuro. Qualquer tentativa de união
verdadeira dos contrários é repelida por todos os meios, desde a
violência moral mais sutil até à violência física mais abjeta. A
união sexual, sacralizada pelos primitivos, sacralizada pelos
pagãos, sacralizada pelos judeus-cristãos, resulta do medo que
inspira os que se amam de carne e espírito. Sendo tão felizes
juntos, se bastando em grande parte, infensos ao poder alheio,
que escraviza e mata em guerras do seu exclusivo
interesse, quem assim ama, e enquanto assim ama, é um espírito
livre. Em última análise, portanto, o amor carnal e espiritual é
cercado e massacrado porque liberta. Por isso, D. Quixote só
podia amar uma Dulcinéia ilusória (e sempre à distância) e
Romeu e Julieta tiveram que tomar cicuta, digo, veneno.

159

Júlio Ribeiro, em A Carne, um antropófago erótico em toda


extensão e profundidade. Aloisio Azevedo, no episódio

57
Pombinha, de O Cortiço, também. Carlos Heitor Cony, em O
Ventre, também. Nélida Piñon, em Casa da Paixão, também.

160

Embora as razões que animaram a fundação do movimento


antropofágico de Oswald, Mário e Raul Bopp fossem de ordem
“tenentista”, como bem acentuou José Paulo Paes em seu ensaio
sobre Bopp (Mistério Em Casa), ou seja, partícipe de um amplo
movimento reformista que incluía a passagem de um Brasil rural
para um Brasil Industrial, buscando raízes absolutamente
brasileiras na magia da selva amazônica, e instaurando o método
psicanalítico no seu fazer literário, a influência de Freud parece
ter sido bem maior do que se deram conta os seus artífices.
Primeiro, porque ao buscar a brasilidade cabloca e crioula,
traziam à tona uma das marcas registradas desses trópicos: a
sensualidade, o erotismo sempre presente no cotidiano do povo,
mercê da maior proximidade com o elemento ctônico. E esse
erotismo, quando não sexualismo, está presente tanto do ponto de
vista material, quanto aos elementos da trama, em Macunaíma
quanto em Cobra Norato (óbvio símbolo fálico), mas,
especialmente, e a poesia boppiana o deixa bem claro, nos
elementos formais de expressão poética. Compare-se as
metáforas onomatopéicas de Cobra Norato, por exemplo, com a
de outros autores que a utilizam com fartura, e se não se dá conta
da pura sensualidade dos ruídos da mata, dos bichos, e das
gentes. Da mesma forma, a luxuriante utilização de detalhes dos
temas mais selvagens; o desfrute coquete com os diversos
gêneros poéticos e narrativos, óbvios namoricos literários; o
prazer quase carnal da evolução rítimica dos temas, ora moleque
e dúbia como olhos capitús, ora malemolente e tentador como as
tardes de sesta na indolência e no ócio. Não é por acaso que o
graal de Cobra Norato mora numa choupana cercada de natureza
e tem cheiro de flor no corpo de vaivém da mulher. Sim, mais
que o puro naturismo, o movimento antropofágico foi feito por
antropófagos eróticos, e o eros-criticismo se encontra em suas
raízes mais profundas e, por isso, à época inconscientes.

58
161

Quanto ao ensaio de José Paulo Paes, Mistério Em Casa, por


sinal à altura do magistral poeta e poeta-tradutor que é, não se
deve levar ao exagero a tese de que os atuais poetas devem parar
de brincar de poetas franceses, ingleses, alemães, e passem a
brincar de poetas brasileiros, pois que ainda sobrou muito
mistério em casa para ser decifrado. Sim, é preciso abandonar o
mau hábito ainda muito em voga por aí de se copiar, copiar e
copiar modelos e idéias da moda estrangeira, como um mercador
de versos a granjear prestígio via erudição. Claro, prestígio com a
só poesia é mais difícil. Com a sua própria poesia, então, num
país de grupelhos hierarquizados, muito mais ainda. Mas, quando
se é poeta... . Por outro lado, qualquer mistério em casa que
aguarda decifração é o mesmo mistério que sobra à decifração
em toda parte do mundo. O recado de José Paulo Paes deve ser
entendido como um convite à decifração, ou seja, à criação
autêntica, e não ao copismo e pirataria poética, algo assim como
as donas de boutiques fazem em suas viagens a Paris e Nova
York para roubar modelos de vitrines. É mais ou menos um poeta
conversando com seu colega: “veja o lindo modelito de poema
que fiz, está usando muito na Europa, viu?” Por outro lado, o
recado de Paulo Paes leva em consideração o antigo adágio cante
a sua aldeia, na medida que é muito mais natural, original e
autêntico, propício a decifrações, quando se busca os mistérios da
própria experiência. De resto, apenas o que distingue a
nacionalidade de um poeta é o instrumento básico do seu ofício
e, afinal, seu objeto de arte: a palavra. Mesmo assim...

162

59
Com toda a certeza, o que salvou o movimento antropofágico da
plena identificação com o integralismo-totalitarista (que, afinal,
era tão “europeu”...) foi seu latente eros-antropofagismo.

163

A estrada do sofrimento leva à escravidão. A estrada do prazer


leva à libertação. Fazer Belo todo o prazer, eis nossa mais nobre
missão.

164

Edmund Spenser, em The Faerie Queene, inaugura, com o


Renascimento inglês, o antropofagismo erótico na literatura
ocidental. Foi fundo na utilização do método erótico-crítico
como apreensão da natureza humana na elaboração da obra de
arte literária. É o precursor do eros-criticismo, ainda incipiente
pelo moralismo inglês e pelo tom iniciático típico de um Dante,
por exemplo.

165

Em seu Personas Sexuais, quando Camile Paglia contrapõe


Spenser a Shakespeare, aquele como estritamente apolíneo, este
como metamorfosista, ou seja, dionisíaco, refere-se a
D.H.Lawrence como apolíneo-dionisíaco em Woman in Love. É
a primeira vez, em 188 bojudas páginas, que ela adota tais
conceitos, normalmente referidos como oposição excludente
(mesmo quando se refere a Da Vinci, que se debate em sua
natureza íntima), como possíveis de coexistirem tão intimamente
que se tornam como que um só. Muito bem. Aí está o cerne do
eros-criticismo.

60
166

Ainda segundo Paglia, Shakespeare se livrou de Spenser após ter


realizado os poemas Vênus e Adonis e O Rapto de Lucrécia,
dando-lhe o golpe de misericórdia na peça Tito Andronico. Na
verdade, embora sexo e amor sejam temas recorrentes em
Shakespeare, tudo nele é vontade de poder nietzcheana. Tome-se
Romeu e Julieta, por exemplo: a questão maior que se impõe não
é o amor que une o casal e que afinal o mata. Isto é apenas uma
primeira leitura de fatos conseqüenciais. Tudo, enfim, para
mostrar os males da exacerbação do poder entre Cappuletos e
Montechios. Poder, e não amor e sexo, é o grande e profundo
tema em Shakespeare, que nos faz apreciá-lo sempre como quem
aprecia a eternidade. Mas não é no tema que encontramos o
eros-criticismo, mas no método de abordagem e feitura da obra
de arte. Ou seja, no entendimento de que todo o drama da
humanidade está umbilicalmente relacionado a essa caixa de
pandora que é a sexualidade.

167

Cada palavra que o poeta inscreve é humanae vitae que o poeta


mantém na trilha do além-do-humano.

168

Tanto o desejo pode nascer do amor, quanto o amor pode nascer


do desejo. O relevante é que nasça. O Amor, ah!, O Desejo

61
169

Amar é amar a diferença porque amar a outrem é o mesmo que


amar a si, pois que apenas vivemos em diversos estados alterados
de consciência em relação aos outros. Somos todos fragmentos
da humanidade.

170

Não há literatura se não se contempla o erro, a imperfeição.

171

A fantasia mais inocente pode se tornar sexo hediondo se não


saciada a tempo.

172

O verdadeiro problema com o amor nessa virada de século é que


nem
Ela se aceita ser inteira de alguém, nem Ele tampouco. Deve
haver algo de errado nessa equação meramente possessória.

173

62
Amar é trocar de lado na luta dos contrários antropofágicos. No
âmbito específico desses contrários antropofágicos, é deixar de
unir-se a todos contra cada um, para unir-se a um contra cada
todos.
174

Nós, homens e mulheres desta virada de milênio cristão somos


ainda incompetentes em Amar. Por isso que nossos arquétipos em
eros ainda são tão negativos. Nossos heróis morrem nos finais de
história. Ou deixam de ser nossos heróis.

175

A um avanço na liberdade sexual deve corresponder um avanço


na sofisticação da libido animalesca. Caso contrário a
sexualidade será vivida ou com indiferença cotidiana, ou como
retrocesso mecanicista. Sexo é permanente mistério. Livre ou
não, só como mistério pode ser humanamente divino.

176

Não há poesia sem pecar contra a palavra já posta, a saber,


imposta. A palavra expressa o mundo tal qual está. Não se muda
o mundo sem que se mude simultaneamente suas palavras. Por
isso as religiões conservadoras prezam tanto “A Palavra”, umas;
quanto a sua interpretação oficial, outras. Definitivamente, o
poeta é um herege. Um herege a serviço de Deus.

177

63
Só o poeta detém a liberdade de ir e vir pelas portas da
percepção. Portanto, só o poeta carrega consigo as chaves para o
portal do infinito.

178

O mistério do fazer poético se esconde nas curvas da livre rima


rítmica.

179

Em arte poética, pouco importa que se pesque em águas claras ou


turvas. O que importa é fazer rebolar a isca.

180

A língua inglesa é hoje no mundo algo assim como a língua


romana o foi para as nações do ocidente, e o grego koiné até o
meio oriente. Talvez venha a ser uma espécie de esperanto, uma
segunda língua em cada país, uma língua compreendida por
todos. Para que a língua inglesa não venha a ser uma simples
expressão de imperialismo cultural, e sim um forte componente
de uma futura língua planetária, é necessário que todos os que a
utilizem como segunda língua a transformem em língua universal
pela adaptação, combinação, mestiçagem e, especialmente, pela
manutenção das estruturas gramaticais nacionais, que, afinal,
também se mesclarão um dia. Dessa forma, em evolução
dialética, também para os povos de língua inglesa o idioma daí
decorrente será uma segunda língua. Ou seja, nada impede que,
temporariamente, o inglês seja a base do esperanto. O esperanto é
a idéia de superação da torre de babel. E também o esperanto
metamorfosear-se-á, lá longe, para incorporar as bases

64
lingüísticas orientais. Como está na base do pensamento de
Marx, a uma globalização da economia (e independentemente
dos peixes grandes), se seguirá uma globalização da lingüística,
em infinito processo dialético-alquímico de fusão dos metais
nobres. Ou seja, os antropófagos-lingüisticos estão chegando
181

Cabe exclusivamente a nós, homo sapiens, faber, eroticus, o


sermos uma estrela que morre ou uma estrela que nasce, dentre a
imensidão de estrelas que povoa o universo

182

Enquanto a poesia for o instante e a eternidade ao infinito modo


de assim nos amarmos

183

Sim, é certo que somos tanto vontade de poder como vontade de


comer quanto vontade de foder. Saber qual significa o essencial,
o vero ponto de partida, tem sido nossa mais importante
descoberta. Ora, sem poder não nos movimentamos sobre a
Terra; sem comer não subsistimos; mas, sem foder, sequer nos
imaginaríamos possíveis. Isso é o eros-criticismo.

184

A Humanidade é feita de fragmentos que buscam completudes;


as vidas humanas, nossos corpos e almas, que nós tentamos,
quase sempre em vão, salvo por uns poucos momentos do eterno,

65
juntar como um modelo de armar. O amor é a única inteligência
desse quebra-cabeças. E isso ainda é eros-criticismo.

185

A inteligência brasileira se debate entre a cultura folclórica dos


bumbas-meu-boi e quejandos, feita do suor, nervos, músculos, do
sangue do zé-povo, de um lado, e, de outro, da erudição vazia
dos arremedos latinos ou anglo-saxões, que fazem o mercado de
idéias, ou seja “do mundo culto-civilizado” (sem desprezar nem
mesmo as aparas orientais), tudo regado ao modo de pensar
colonizado, em ambas as panelas. Os antropófagos eróticos
sabem que ambos estão num arreglo secular bem conveniente, ou
seja, na hora de tirar retrato e faturar uns dólares, aqueles
mostram a beiçola dos machos e a bunda das fêmeas, em meio ao
carnaval e ao futebol; já esses botam gravata e paletó, chamam a
tv e recitam hinos e tabuadas. In english, please; french it’s ok!
OK!? Ou, seja, como dizia o bom e velho Pasquim: vamo pará
com essa sacanage aí!

186

O só discernimento de uma obra como um trabalho que exprime


o eros não é suficiente à consciência de tratar-se de uma obra de
arte (embora já seja um bom caminho andado). Afinal, não
esqueçamos jamais: eros é belo; e certeiro. Este é um aspecto
fundamental do eros-criticismo.

187

66
Caminhamos para a harmonização da multiplicidade da mãe
natureza com a aceitação da multiplicidade no olhar e no fazer
próprios do ego racional. Multivisão, multimídia, multishow,
termos cada vez mais freqüentes, são apolíneos, ou seja, ação da
razão sobre a emoção. O Um aceita a fragmentação como
expressão e objetivização da natureza numa espécie de confronto
entre forças convencionais e as de guerrilha. Ou, como anteviu o
poeta Caetano Veloso em seu Tropicalismo: o sol se reparte em
crimes, espaçonaves, guerrilhas

188

Os músicos são, sempre foram, sempre serão mestres da


formação dos poetas. Com eles aprendemos a caminhar na
escuridão dos sons. Toda a nossa tarefa consiste em humanizar e
harmonizar os sons originais contidos nas palavras; a
conhecermos o alfa e o ômega do Verbo

189

Camile Paglia desenvolve seu pensamento eros-crítico a partir de


Freud e Frazier; ou seja, une psicanálise à antropologia. Desses,
prefiro Dostóievsky e Nietzsche, artigos de primeira necessidade
ao eros-criticismo. Mas nada acrescentarão se não se ouvir O
Poema.

Quando já vamos abandonando Camile Paglia ela nos diz, em


meio a um carnaval de racionália: “sexo é poesia; poesia é sexo”

190

Mas Paglia vê a linhagem literária não exatamente como uma


eros-criticista. Ela entrega tudo ao domínio onírico da psicanálise

67
conforme A Interpretação freudiana. A limitação desse
instrumental, conquanto não empane o brilho das suas
descobertas, deixa a dever ao contraditório fundamental que não
se esgota absolutamente no apolíneo versus dionisíaco. Tanto
apolo como dionísio estão ora aqui, ora ali, conforme sejam
exercidos pelos poetas. E, no político, sempre a serviço de um
dos lados da contradição fundamental: eros x thanatos.
191

Sade é o primeiro autêntico e absoluto intelectual antropófago


erótico. Sua violência sexual fotografa a mente política do
Homem segundo a Natureza (ou seja, sexo é poder e vice-versa).
Sade apresenta , por simbolismo sexual, as relações de poder na
sociedade, desde a “trieb” nietzschiana que ainda estava por vir.
Decifra-a com base no eixo ativo x passivo. Todas a sua violência
sexual consiste em idéias, não fatos. Tanto isto é óbvio que as
cenas mais chocantes não encontram fácil exemplificação
histórica, e, mais, muitas delas são fisicamente impossíveis.

192

Sade é também um sumo sacerdote apolíneo do sexo: aponta para


os espaços vazios da sexualidade corporal transpondo-a pela
imaginação racional. Com isso, retira o sexo da genitália e o
reimplanta na razão, que se volta, soberana, para a transmutação
da matéria carnal. Ao exaltar a fria razão como demiurga sexual,
pelo exercício absoluto do seu poder, antecipa, no particular,
Nietzsche. Se o sexo é a força máxima da Natureza, sua
subordinação absoluta à Razão faz do “leit motiv”original do
Homem a Vontade de Poder. Mais ainda, ao considerar o
exercício do poder sexual como o mais sublime dos exercícios de
poder, Sade passa de Nietzsche a Maquiavel e torna os édipos e
electras de Freud mero brinquedo de crianças.

68
193

E assim como os ascetas religiosos sabem pela negação, para


Sade o domínio da sexualidade em si redunda em Poder pela sua
afirmação absoluta. Só que, literariamente, isto é demonstrado a
partir do seu contrário, ou seja, o exercício amplo e irrestrito da
sexualidade segundo esse poder, ainda racional, justifica e se
auto-concede tal poder. Poder do ativo (o forte), bem entendido,
sobre o passivo (o fraco). Enfim, a Razão é identificada como
dominadora, ativa, forte, masculina e, a Emoção é dominada,
passiva, fraca, feminina e, especialmente, como corolário: A
Razão Sexual, autêntica representação do poder do forte, se auto-
justifica. Mas isso é o que é a literatura de sade. Mas tanto a
filosofia quanto a política que lhe são subjacentes relacionam-se
diretamente com Maquiavel. Só que em Sade, o filósofo reclama
para si mesmo o papel de príncipe. Estratégia lítero-poética, que
o conduz à descoberta desses subterrâneos perigosos da
sexualidade humana.

194

E essa Razão Sexual, inventada ou descoberta por Sade, ainda


não esgotou seus tentáculos: um hitler sexual será muito mais
oneroso para A Humanidade do que o foi o hitler racista.

195

Então ficamos combinadíssimos assim: afundando na Emoção


Sexual retornamos ao estado animalesco, caótico, e feminilizante
da Natureza. Ascendendo à Razão Sexual, conquistamos a
pornografia apolínea: carne e gosma na imaginação, apenas:
inodora, inaudível e improvável. Masturbação, enquanto ausência

69
da parceria completa, a um ou a dois, é o nome da ponte para a
miséria da sexualidade.
Os antropófagos eróticos sabem que são carne que pensa, que
nem o animal é em si horrendo, nem a razão é em si beata, e nem
vice-versa; por isso, os antropófagos eróticos têm em Eros a sua
carne quanto seu pensamento. E o
sexo é então a ponte dourada para o ser amado.

196

Ora, dentre os grandes avanços que a compreensão da nossa,


tanto geral quanto individualizada, sexualidade pode trazer à
humanidade é o reconhecimento de que somos todos partícipes
de uma razão erótica que nos leva a explorar incansavelmente as
possibilidades sexuais contidas no imaginário tanto arquetípico
como recriado por cada um de nós segundo as nossas
necessidades eróticas. Num mundo em que ser é ser racional,
imaginar é o mesmo que dar existência, algo como as formas-
pensamento das ciências esotéricas. Satisfazer nossos próprios
prazeres individuais, segundo uma real consciência erótica de si,
e do Humano em si, é gozo dos mais sublimes, que sempre
redunda em fraternidade. Porque o exercício do poder sexual é
compartilhado que se eleva às asas de eros, que caminha assim
na terra como nos céus. Atividade e passividade não
correspondem, quando a relação erótica, a força e fraqueza. Na
outra ponta de Sade encontra-se Masoch e, embora a
interpretação literária comum, aliás de acordo com a própria
visão do autor, que não podia fugir do essencial na personagem, o
masoquismo exacerbado ainda acaba por conduzir a um processo
de dominação do “fraco”.

197

70
Encontrar Deus no sexo. Eros é tão deus quanto os deuses das
demais moradas do Deus. Os antropófagos eróticos não temem,
mas amam, o que quer que chamemos com esse santo nome.

198

Nelson Rodrigues, mais que anjo pornográfico, um antropófago


erótico. O filósofo, tanto quanto sade, dos labirintos da
sexualidade reprimida. E dizem que brasileiro não filosofa nem
cria cultura; dêem uma espiada nas tolas pornografices
estrangeiras, meras superficialidades no trato escandaloso dos
escaninhos da mente sexual puritana e moralista, e comparem-
nas com a profundidade fecunda das revelações do Nelson.
Quanto ao fazer literário,
então, éons. Qual autor do mundo ocidental se compara a Nelson
Rodrigues no tema, em forma ou conteúdo?

199

Reparemos à nossa volta. Cada objeto criado por mãos humanas


são fruto da atividade de eros em nós. O uso que deles fazemos
tanto pode servir a eros quanto a thanatos. Este, já por derrotado
pela criação, busca incansavelmente que os usemos a favor do
seu reino pregresso.

200

O sexo tem sido propriedade usurpada de thanatos desde os


primórdios da civilização. Arrancá-lo às garras opressoras e
assassinas, devolvê-lo ao domínio integral de eros, é o desafio da
Espécie Humana para o próximo milênio. Mãos à obra,
antropófagos eróticos de hoje, gérmen dos futuros homens livres.

71
201

Desinstrumentalizar o sexo do serviço iniciatório, religioso,


político, familiar, e até mesmo da mera reprodução, é
fundamental para a humanidade. Deixá-lo integrar livremente o
processo civilizatório geral, conforme as suas próprias regras
intrínsecas, é deixar crescer o humano em nós em direção ao
infinito e divino destino.

202

A grande questão que Camile Paglia apresenta fora dos limites da


filosofia da arte é, em termos de estrita sexualidade, um “e nós,
para onde vamos?”. Em direção à androginia, a partir de uma
unidade mental apolínea, é o que parece nos dizer “suas”
personas sexuais, embora o permanente sorriso giocondo em
nossos ouvidos.

203

William Blake tentou superar o estado antropofágico da natureza


a partir da superação da guerra dos sexos (o verdadeiro pomo da
discórdia), sem cair no hermafroditismo angelical (solução para
frente) ou na androginia mitológica (solução para trás), soluções
para ele impensáveis. Ao renegar as possibilidades tradicionais
postas à disposição da sua poesia, enfrentou o problema com
coragem e determinação sobre-humanas. Se não obteve a
resposta, ao menos dissecou o problema para além da mera
psiqué. O mais relevante é ter navegado nessas águas tão turvas
em, como disse Camile, “...desesperada mas heróica tarefa:
redimir o sexo da natureza, uma saga épica ocidental”.

72
204

Em William Blake se confirma que a poesia também é um modo


de conhecimento. O mais completo e afiado bisturi tanto da
realidade material quanto da imaterial. Fundamento do eros-
criticismo e afiado fio da Navalha de Eros.
205

Uma das questões essenciais na poesia de Blake é a dialética do


poder como manifestação da sexualidade pervertida. Eis o que é
ter olhos antropófago-eróticos. Eis o que é eros-criticismo.

206

Há uma nova pergunta no ar, neste início de século XXI:


somos(sou) tantas personas que, afinal, quem mesmo somos
(sou) nós (eu)? Minha teoria dos estados alterados da
consciência. Que não se restringe às personas, papéis ou
máscaras, e delas se distingue pela objetividade destas, de
contornos pré-estabelecidos, ao contrário daqueles, de natureza
tão subjetiva quanto indemarcável.

207

Definitivamente, Personas Sexuais, de Camile Paglia é o


primeiro dos grandes estudos teóricos do eros-criticismo que
ainda estão por vir. Mais do que os resultados alcançados com
base no instrumental herdado de Frazier e de Freud, que já não
são de só pouca relevância, sua leitura nos perturba com a severa

73
impressão de que há ainda muito mais caroço debaixo de todo
aquele angú.

208

No mundo da natureza material (ao qual se agrega o corpo


humano), impera a multiplicidade orgiástica e desigual de/entre
seres, todos submetidos à intrínseca lei darwiniana. A
desigualdade entre os homens, e, portanto, o estado social
antropofágico decorre daí. O mundo da razão, ou o mundo de
um deus imaterial, ao qual pertencem alma/mente/espírito, tem
sido o caminho para a superação daquele estado natural de
barbárie, com vistas a igualdade humana e superação de estado
antropofágico. Marx desceu a razão à natureza, “materializando”
a idéia, a fim de submeter a esta as contradições materiais do
estado da natureza, geradora de antropofagia. Desafiou tanto as
superestruturas ideológicas, mero instrumento de poder social,
como a rousseauniana visão de uma natureza harmônica e boa
em si. Mas, ao submeter o corpo humano aos desígnios da utopia
social construtivista (o ideal proletário), esmagou eros e, com
este, amoleceu o arame da mola propulsora à superação dialética
da praxis histórica. Jamais se chegará à solução econômica
conquanto não se supere, antes, as contradições que decorrem de
uma esmagadora tanto infra quanto superestrutura ideológica
sobre o livre exercício da sexualidade. Não importa o que os
seres humanos possam conquistar, se não forem livres
possuidores dos seus próprios corpos, nada possuirão

209

O ato de contemplar uma obra de arte é, sobretudo, um ajuste do


próprio estado de consciência ao estado de consciência
“alterado” do artista. Em seguida, fotografar com as próprias

74
marcas d’água da universalidade impressas no espírito de quem
as contempla

210

Licenciosidade e Pornografia são filhos da Repressão Sexual


como expressão ideológica. Repressão tanto de direita quanto de
esquerda, tanto dos
dominadores quanto dos dominados. O só fato de existirem
enquanto conceito e categorias autônomas da sexualidade prova
isso. Ou seja, que as relações sexuais não se inserem no quadro
geral das demais relações, públicas ou particulares, no interior da
sociedade humana. Separadas, mantêm-se como categoria
anômala ao simples fato do viver em sociedade.

211

A única coisa que um antropófago erótico pode, e talvez deva,


deixar como mensagem aos que ainda estão por vir, aos poetas
em particular, enfim aos humanos da posteridade, é a humilde
passagem de bastão, o manter acesa a chama da liberdade em
eros; viver a sua paixão, e passá-la adiante, é, apesar de toda
sorte de adversidades, vitória de eros sobre thanatos. Não
importa quanto nos custe, sempre será preço menor que abrir
mão da sua paixão. Afinal, eros sempre vencerá. Não importa o
caminho ou a trilha, a solidão ou a companhia, a direção dos
ventos ou a obscuridade das estrelas mais distantes, as fases da
lua ou os relógios do sol: Eros sempre vence. Então,
antropófagos eróticos do futuro, daqui vos saúdo; e ergo um
brinde às vossas vitórias.

212

75
Mas, por favor, não andem de cabeça para baixo: pau duro e xota
molhada, literal ou metaforicamente, é, primeiro que tudo, o que
interessa a um antropófago erótico

213

As técnicas e padrões presentes na obra de arte, mais do que


forma necessária ao conteúdo, são a linguagem dialética com que
o artista conversa com os demais

214

A linguagem mais cotidiana, mais comezinha, carrega em seus


símbolos gráficos e fonéticos o espírito, a alma e a carne da
espécie humana, tanto quanto da raça, da nação, da sociedade que
a utiliza. Por isso, revela o individual enquanto vida vivida em
tempo e espaço demarcados. Por isso que o falar e, sobretudo, o
ato de escrever, revelam, para os que sabem ler e ouvir, muito
mais do que sonha a vã filosofia de tagarelas e prolixos.

215

Entre machos e fêmeas civilizados, o ato sexual oscila entre a


“suruba” e a fidelidade absoluta. Entre o sexo grupal e a
masturbação mais solitária. Isto não é culpa individual. Isto

76
decorre simplesmente do fato de que não há civilização sem
sonho que lhe seja anterior e que prossiga lhe alimentando. A
fantasia sexual, pois, é fruto da consciência de si como partícipe,
positivo ou negativo, de um todo. Portanto, como evitá-la? Mais,
como proibir-se? Só mesmo pela abstenção consciente
(castidade), ou inconsciente (frigidez e impotência). Além de
mera questão psicanalítica, esta é uma questão política inerente a
um processo civilizatório que fez de eros inimigo da polis.

216

Devemos à PAIDEIA (A Formação do Humano) os gregos terem


sido o povo formidável que nos legou o princípio de
praticamente tudo o que hoje somos, sabemos e temos. Neles,
por exemplo, o ócio não era anti-social, muito pelo contrário.
Meditar era pensar por toda a espécie humana. Manter vivo o
humanismo grego em cada avanço tecnológico é o único
verdadeiro progresso humano possível. O contrário é alimentar as
bestas apocalípticas de thanatos.

217

Bilhete ao neófito: não há poética sem técnica e teorética exatas


ao poeta.

218

A diferença fundamental entre a literatura “strictu sensu” e a


poesia é que aquela revela a finitude na humanidade e no mundo;

77
esta, a poesia, revela o que há de infinito. A igualdade essencial é
que ambas se fazem com palavras

219

Charlie Chaplin e Wood Allen, dois fantásticos gênios da raça.


Infelizmente, sem a verve erótico-antropofágica. Mas, o que
estou mesmo a
dizer? Tempos Modernos e O Grande Ditador negam e
denunciam a antropofagia thanática. Toda a obra de Allen é
tentativa de superação dos limites antropofágicos, culminando
n’A Poderosa Afrodite, mãe mitológica de eros. Mas, não!
Ambos mantêm a tradicional dicotomia apolo/dionísio. Chaplin
nega o excesso apolíneo com gargalhadas de festa dionisíaca;
Allen redime o dionisíaco com sorrisos de festa apolínea.
Enquanto isso, eros fica trancado no quarto, decerto fazendo seu
dever de casa. Fora da obra, entretanto, que dois antropófagos-
eróticos sapecas, hein?

220

Já Almodóvar: o primeiro cineasta inteiramente antropófago-


erótico. Seus filmes geniais convidam ao exercício eros-criticista
para além da tradicional abordagem (sem tirar de Freud o que é
de Freud, ou de Marx o que é de Marx) meramente psicanalítica
ou sociopatológica

221

Libertar a humanidade dos seus grilhões artificiais é uma das


conseqüências do fazer poético, como, de resto, de toda a Arte.

78
Entretanto, cabe ao poeta revelar, para libertar, e, não, libertar,
para revelar. E é isso que faz um bom poema.

222

Dali, Buñuel, Prévert. O surrealismo é o riso aberto de Eros. É o


início da estrada para a integração de Eros ao mundo, de onde foi
exilado há séculos. Mais do que mostrar um eros aprisionado em
guetos ou mesmo em celas de todo gênero, em que foi encerrado
desde os primórdios da civilização, apenas
intervalado pelos gregos, que lhe reconheceram as asas,
plantaram as sementes para um misticismo erótico-material. Ou
seja, forneceram as bases para uma especulação metafísica dos
desejos da carne, avançando o que outros haviam feito ainda
linearmente, horizontalmente

223

O avanço erótico proporcionado pelos surrealistas reside


justamente em tirar eros do mesmo gueto que levou Sade à
prisão, incorporando-o como prática e revelação artísticas às
demais fontes naturais da Arte. E é justamente isto que possibilita
a releitura de Sade, e sua melhor compreensão.

224

A consciência de uma nação é antes fruto da poesia que revela


seu povo, como síntese espiritual, do que da mera descrição de
suas diferenças folclóricas com relação aos outros povos. Por
isso que de Walt Whitman e de Allen Ginsberg, tanto “uivando”
quanto “ouvindo a américa cantar”, é que revelam o “Sein”, o
“pathos” e a “praxis” dos Estados Unidos da América, o que não

79
é obtido nem com o rico e belo folclore das suas tribos indígenas,
nem com o extasiante “blues” de Saint Louis, tomados
isoladamente, por exemplo.

225

Na poesia brasileira, ainda aguardamos tanto nossos walt


whitmen quanto nossos ginsbergs. E enquanto não os tivermos,
seremos meros arremedos periféricos, salvando-nos apenas
graças às vozes isoladas dos nossos grandes poetas líricos.
226

Em Macunaíma, se Mário de Andrade nos proporciona, com sua


epopéia-crítica, uma sarcástica revelação da alma brasileira, isto
se deve antes à apreensão das pequenas misérias que
atravancavam o progresso (industrial) do país, e que, de certa
maneira, e sob dadas condições, constituem um modo
brasileiro de ser no mundo, do que às suas referências folclóricas.
Por isso que, sem deixar de louvar em seus aspectos estéticos o
belo Cobra Norato, de Raul Bopp, mesclando componentes da
ópera maçônica de Mozart, em barco bêbado de Rimbaud, com
folclore amazônico, é um poema que transcende o inconsciente
da vida brasileira, percorrendo a selva brasileira mais como
alegoria do que como revelação específica à brasilidade.

227

Em poesia, tanto a técnica quanto a teoria não têm qualquer


relevância enquanto não se deixa fluir livre, e antes
instintivamente, o próprio drama interior, a própria musicalidade
e as próprias palavras

80
228

Há uma técnica para cada poeta, uma teoria para cada poema.
Tão vastas quanto pequenas. É nesse paradoxo que repousa a arte
poética

229

A ti, leitor menino(quem se importa com tua idade?), que se


diferencia ainda, e apenas, pela estrela flamejante, que anseias,
ou titubeias, perante a árdua tarefa, mesmo inda pequena, ou
tanto quanto tanto queres seja grande, tão grande quanto um
Goethe ou um Dante, um Sade ou um Lawrence, um Drummond
ou um Bandeira, um Gonçalves dos teus Dias, ou mesmo um
Castro Alves, dedico a minha leitura atenta de um poema: O
Primeiro Degrau, de Konstantinos Kaváfis, grego feito poeta,
longe, longe de Atenas, e afinal poeta helênico, de cidadela mais
ampla, em espaço e em tempo

230

Mas uma coisa deve ficar desde já clara, neste sonho


antropofágico. Sendo a Poesia o próprio Deus, e cada poeta seu
verbo, qual poderá afirmar que tal poeta ou qual poeta será maior
ou melhor? Qual ousará afirmar que Deus fala melhor assim
neste ou naquele? Pobres críticos, esses sais da arte.
Enfim, salvamo-nos todos ao barroco dos classicismos. Para isso
Shakespeare escreveu a Noite de Reis, ou O Que Quiserdes

81
231

Sem considerar a poética lírica da Grécia, aí incluídos todos os


poetas de Homero a Platão (sim, reafirmo que ambos são poetas
líricos), dois poemas reconstruiriam toda a poesia se nosso
mundo naufragasse sem deixar maiores vestígios: O Cântico dos
Cânticos, judaico; e Rubáiyát, árabe. Ou seja, toda a poesia
nasce da mesma rima: lírica, naturalmente O que nos leva a
concluir que toda poesia é, antes, lírica, mesmo nos diálogos de
Platão, pois é justo o que primeiro nos encanta ao navegarmos
nos raciocínios da sua dialética.
Já na Odisséia o lirismo das entrelinhas é Penélope, a Musa,
tecendo e destecendo. E por ela posta em versos para o cântico.
Isto posto, navegar é preciso

232

Também não esquecer Coleridge e Poe: a poesia difere do


romance porque, ao contrário deste, trabalha com imagens
indefinidas. A música lhe é essencial, dado que a compreensão
musical é nossa concepção mais indefinida. A música, combinada
a uma idéia, é poesia; música sem idéia é só música; idéia sem
música é prosa.

233

E, sendo a poesia o instrumento mais sublime de libertação do


ego, é ela a principal fonte inspiradora à libertação de todo um
povo agrilhoado a usos e costumes, instituições, concepções
políticas e econômicas que favorecem e perpetuam a submissão e
a exploração do homem pelo homem.

82
E, quando Apolo se une a Eros, o ego conhece sua própria
divindade, a que existe em si e para si, que se relaciona a outras
que igualmente divinas. Que os deuses são os fragmentos de
Deus.
Somos, antes de mais nada, nossos próprios deuses. Só
conscientes disso podemos ter uma relação de filiação ao Deus
original e originário. Qual pai, por mais mesquinho, renegaria o
filho a uma condição de inferior?
Somos, nós brasileiros, um povo à mercê de forças titânicas
como nunca se viu antes em toda história da Humanidade.
Perdemos a oportunidade tão generosa de um Joaquim José da
Silva Xavier de libertarmo-nos do jugo tirânico. E teria sido tão
mais possível. Hoje, nesta era de guerra nas estrelas, qual povo
de terceiro mundo se autodeterminará? Qual indivíduo de terceira
categoria se libertará?
Afirmo e reafirmo: só os que se banharem nas lágrimas das Nove
Musas, só os que libertarem o Eros em si

234

O antropofagismo cultural, no sentido de recepção, consumo e


transformação às necessidades nacionais, de elementos culturais
importados do estrangeiro, afora o seu caráter primitivista, é
característica mais marcante dos norte-americanos do que em nós
brasileiros. Veja-se, por exemplo, a integração das descobertas
de Marx às teorias jus-econômicas capitalistas que explicam a
apropriação dos Aparelhos de Estado pelas lideranças do
Mercado. As teorias da captura, do monopólio, etc., expostas por
Nelson Eizirick em seu livro O Poder do Estado na Regulação do
Mercado de Capitais, nada mais são que a pragmatização do
pensamento marxista, reelaborado e adequado aos interesses
ideológicos do capitalismo. Antropofagismo sofisticado, é
verdade, não menos antropofágico. Desde as ciências, as modas,
as manifestações artísticas, etc., até a importação explícita de
cérebros, antropofagismo cultural de fazer inveja a qualquer tribo
canibal. E é justamente nisso que reside toda a força da sua

83
genuína democracia racial, da sua pujança econômica e poderio
militar, da sua indústria exportadora de cultura e ideologia, de
seus telescópios apontados para as estrelas

235

O movimento antropofágico, no bojo da modernização do Estado


Brasileiro à sua época, a saber: industrialização, militarização e,
in casu, nacionalização da cultura, buscou estabelecer suas fontes
primárias, melhor, primitivas, antropofágicas. Daí porque seus
exponenciais Macunaíma, Cobra Norato, Martim Cererê. Mas a
idéia antropofágica iria ainda muito mais longe não fosse o
desastre nazi-fascista (integralista), cuja geo-política que se
sucedeu após sua derrocada, o levou de roldão, por sua íntima
vinculação ao ideologismo político de um nacionalismo
derrotado e decaído.

236

A verve sacana do povo brasileiro, herança lusitana à la Bocage,


passando por Gregório de Matos e Bernardo Guimarães,
atingindo seu clímax em alguns hilários momentos dos
quadrinhos eróticos de Carlos Zéfiro, com seu elemento
nitidamente caricatural, tem mais a ver com o erotismo (o chulo
como erotismo envergonhado) do que com a moderna
pornografia. A pornografia é a filha rebelde do puritanismo. A
excessiva preocupação com os detalhes anatômicos e o
funcionamento mecânico da relação sexual que se observam, por
exemplo, na filmografia pornográfica, carregam em si uma
excessiva preocupação cientificista, apreensão purista da
sexualidade enquanto manifestação do animal, enquanto vontade
primária de poder. Por isso, a pornografia atinge os centros
primários da psiqué sexual, e o erotismo os seu centros
sublimados, ou seja, vontade sofisticada de partilha do poder. O

84
filme pornográfico produz um choque de seriedade na
recondução do indivíduo ao gozo dos seus centros primários
animalescos; A sacanagem luso-brasileira sempre beira o riso. A
um só tempo gozo e riso da condição animal. Carlos Zéfiro é
bem o exemplo dessa verve brasileira: muito siso quanto riso.
Não mais um riso envergonhado, mas o riso sem-vergonha pelo
que causa aos envergonhados, e seriedade na suficiência que
sejam mantidas as raízes naturais do exercício da sexualidade. Ao
contrário do que ocorre no erotismo lusitano, em que o chulo é
violência ética, em Carlos Zéfiro o chulo é regra estética de
aproximação com o real

237

Interessa perceber que um dos pilares do movimento


antropofágico, o pensamento de Freud, restou inteiramente
submerso, permaneceu esotérico, inteiramente fora das suas
vitrines, salvo, aqui e ali, na liberação da manifestação da
sexualidade (incipiente), mais marcante na sensualidade sacana
de Macunaíma.

238

Não esquecer também que o poeta é sempre impostor, em toda a


acepção da palavra, sempre presunçoso; nunca um impostado,
por quem quer que seja, e jamais presumível. Sem impostura, e
da pior espécie, o poeta se explica e se justifica, vira figura fácil
em sovaco adolescente. Sem saber-se, presunçosamente, um
confidente de Deus, jamais o será. Afinal, como já disse alhures e
repito aos goles: o poeta finge que finge, não só dor, mas tudo.
Tudo isto faz parte do negócio, mas que não transborde às
relações puramente pessoais, ou seja, quando não está em jogo o
fazer poético. Por isso, daqui humildemente suplico aos amigos
que sejam condescendentes (ou o que bem quiseres) com as
poetadas e poetices deste poeta radical

85
239

O “gauche” entre os norte-americanos é algo tão bizarro como


um extra-terreno: a linhagem “gauche” na literatura se inicia no
século XVII com Thomas Morton, autor de The New English
Canaan, que, para os puritanos da época, não passava de um
traficante de bebidas alcoólicas para os pele-vermelhas, que
patrocinava o jogo, que se deitava com as índias (quase um
zoófilo, talvez), e que os difamava e caluniava em seu jornaleco
marginal. Uma maior aceitação da obra “de esquerda” vem
ocorrendo mercê dos mecanismos de ampliação do mercado
consumidor. Ou seja, o capitalismo, com seu culto ao lucro,
acaba por abrir novas fronteiras de expressão humana. Mesmo
assim, de Allan Poe à geração beat, de Henry Miller a Bukóvsky,
por pouco, muito pouco, não são aceitos como literatura.
Portanto, é preciso que se desenvolva um novo ramo do estudo
da literatura, uma disciplina que estude os diversos modos de
obstaculização da obra por motivos alheios a Arte Literária.

240

O fato de uma obra ser “de esquerda” está intimamente


relacionado às demais obras da época. Por exemplo, Carlos
Drummond de Andrade se diz “gauche” num poema. E o era, se
considerarmos, por exemplo, um Olavo Bilac. Mas, enterrado o
parnasianismo, em quê mesmo, um Drummond seria assim tão
“gauche”? Baudelaire era “gauche”, e, hoje, é tão “droit” quanto
um Boileau, par example

241

86
Outros “gauches” históricos: Ovídio, Safo, Propércio, Blake,
Byron, Sade, Wilde, Poe, Breton, Apollinaire, Bataille, Prévert,
Lawrence, Miller, enfim, todos hoje muito bem comportados em
nossas estantes. Isto quer dizer alguma coisa?

242

Há algo de muito grave oculto na histórica sugestão de que o


sexo exacerbado conduz ao crime, como se as duas faces do mal.
Lua de Fel, o filme de Roman Polansky, é uma demonstração
interessante disso. Eros versus Thanatos é uma contradição
fundamental do reinado da natureza em nós, já vimos. Entretanto,
o retorno consciente, a saber, humanizado, à nossa natureza
primitiva, para o reencontro de nossas forças primevas, é um
desafio tão fundamental quanto os riscos inerentes à exploração
dos oceanos ou dos céus. Por outro lado, a sexualidade ainda é
vista como fonte irradiadora unicamente de instintos primitivos.
Eros é muito mais que isso: é também fonte inesgotável de toda
nossa inteligência e espiritualidade

243

É interessante observar que as fêmeas das espécies irracionais


são extremamente passivas durante o coito em si, apenas
servindo o macho durante o intercurso. Só a fêmea humana
movimenta ativamente as ancas ao encontro do parceiro durante
o ato sexual. Ou seja, rebolar não é um ato primário; é um ato
consciente de fêmea racional

244

87
Ainda aguardamos uma verdadeira revolução artística brasileira,
o que não acontecerá enquanto os setores conservadores - aí
incluída uma esquerda que, enfim, busca os mesmos fins - não
forem vencidos em sua febril atividade de hierarquização dos
artistas vis a vis a hierarquização social. Não importa qual poder,
a nenhum poder importa nova revelação, qualquer nova
revelação
que não lhe seja submissa aos próprios fins. Arte servil não é
Arte.

245

O Movimento Modernista, por exemplo, o que tivemos de mais


auspicioso até aqui, principalmente porque impedindo que a
defasagem social brasileira, em relação ao mundo culto europeu,
nos deixasse à margem das grandes conquistas estéticas que se
seguiram, e, especialmente, por nos terem legado uma safra
admirável de grandes poetas e narradores, e artistas plásticos,
apesar de tudo isso era ainda um movimento reformista; pelo só
fato de que nasceu no bojo de um processo político a serviço da
industrialização econômica, aliás a reboque da geo-política
internacional. Um autêntico processo artístico revolucionário
lidera, não apenas acompanha, a movimentação das forças
políticas de uma nação. Para não citar o próprio Renascimento, e
todos os movimentos que se lhe seguiram até os dias de hoje,
contentemo-nos em observar, por exemplo, o que fez a geração
beat norte-americana

246

Não há poesia sem musicalidade. Seja a música das esferas, seja


a dos subterrâneos da alma humana, a popular ou a erudita,

88
folclórica ou alienígena, poema sem musicalidade é como uma
oração rezada sem fé. Nem esta é oração, nem aquele é poema
algum.

247

Não estamos na Terra para o sofrimento. O provérbio “no pain,


no gain” só é acertado pelas condições atuais da sociedade
organizada. Somos, em Eros, a crescente tentativa de ultrapassar
os sofrimentos e tornarmo-nos seres prazerosos. É preciso
organizarmo-nos para isso. Vida e Prazer devem ser ítens
obrigatórios na futura Constituição do Planeta Terra. Cada qual
de nós deve fazer escolhas pessoais que nos conduzam à
ampliação da Vida e do Prazer. E conquistar um Estado que tenha
como objetivo a progressiva conquista disso para todos os seus
cidadãos. Democracia em Eros.

248

Sem uma redefinição da Estética nunca haverá democracia em


Eros. É preciso acabar com a ditadura da forma perfeita greco-
apolínea. É preciso
romper com a idéia de uniformidade estética, que elege apenas
uns poucos exemplares humanos dignos de serem belos. É
preciso que enxerguemos a Beleza que há desde cada um dos
múltiplos prismas que podemos considerar. O Único Belo
acompanhado do Único Tudo é e sempre será impalpável. O Uno
nada mais é que a ditadura de uma só parte ou prisma do múltiplo
sobre as demais. Proponho a seguinte equação: a partir do
reconhecimento de nosso estado antropofágico, limitação
primordial, desmontar o Belo que não reflita o que cada qual
somos. Depois, encontrada a Beleza em cada qual de nós, exercê-
la à plenitude, somando-se uma a uma as partes obtidas, até que
enxerguemos O Belo Humano, A Bela Humanidade

89
249

Exemplo de Organização Política em Eros: poder ausentar-se do


trabalho, a qualquer momento, para fazer Amor, deve ser o artigo
primeiro de uma legislação trabalhista. Aliás, o segundo; o
primeiro dirá que todo trabalho serve exclusivamente à
preservação e desenvolvimento da Vida Erótica

250

Nós somos as peças do puzzle de Deus

251

Nossa geração conquistou que pudéssemos, homens e mulheres,


cambiar e explorar as diversas personas sexuais entre nós, sem
culpas nem traumas. Com isso, lançamos as bases para
vencermos desde a noção de pecado pelo puro exercício da
sexualidade até a dúbia distinção entre erotismo e pornografia
que ainda nos aflige. Podemos realizar nossas mais comezinhas,
insignificantes e até as mais estranhas opções sexuais, sem que
nos olhemos mais como tarados ou lunáticos, desviados da
cópula procriativa até então a única originada do “bom deus”.
Manter Deus em nós em cada prática erótica que nos apraz, para
chegarmos a ser o casal de humanos que aspiramos. Um casal de
humanos verdadeiramente companheiros, felizes pelo dom de
eros.

252

90
Nossos filhos, os filhos dos filhos dos anos 60/70, pós-nós, pós
nossa luta libertária, têm-nos assistido sofrer a solidão das
gerações que fazem avançar os séculos, a solidão de ter visto e
sido a síntese dos seus pais e avós, a solidão de ter visto e sido o
salto qualitativo do que se afirmará após. Sob o olhar severo e o
riso irônico dos filhos do detrás, os que ficaram olhando do cais,
e o sorriso tristonho, penalizado dos que se vão ainda adiante,
nossos filhos espirituais, que ainda não sabem do tanto que foi
feito, embora gozem disso a ponto de, perigosamente, abrirem
mão disso. A esses nossos filhos muito queridos ficamos
devendo apenas do tudo o maior sentido: A nossa própria
felicidade no Amor

253

Deus está encerrado nas grades do nosso cérebro preso ao


passado. É preciso libertá-lo. É preciso buscar o Deus à nossa
frente. Buscar não mais apenas a Terra Prometida, mas o Deus
Prometido.

254

Não sou tolo o suficiente para crer na possibilidade de obter unir,


com a minha pouca arte, e menor engenho, carne e espírito. Mas
a teria como inútil se, ao menos, não o tentasse, e tentasse, e
novamente o tentasse

255

Quanto mais vou avançando em direção a Thanatos, mais amo


meus semelhantes em Eros. Saber que a humanidade prosseguirá

91
amando é saber que a vida continua. A vida que eu amo, minha
amada vida humana prosseguindo secula seculorum. Pelo brilho
de cada uma das fagulhas que somos nós, o fogo humano nunca
se extinguirá, avançará até alcançarmos a imortalidade dos gens
herdados dos nossos antepassados, para além do próprio humano.
Por enquanto, a imortalidade é apenas do espírito, e eis tudo o
que é, para nós, e até aqui, vida após a morte. Dia virá, talvez,
que das nossas fagulhas se fará um sol

256

Pós-Modernismo e Correção-Política são duas faces da mesma


moeda democrática que só uma honesta convivência na humana
multiplicidade logrará o mundo obter, e dela usufruir

257

Porquanto, ainda o grau de hegemonia da classe (ou qualquer


outra coisa) dominante de uma organização política (ou
qualquer outra coisa) está intimamente relacionado ao seu grau
de dominação e, portanto, ao grau de liberdade que ali se respira.

258

No âmbito da individualidade, o conflito básico se dá a partir da


contradição masculino/feminino. Nossos instintos, ou seja, a
origem de tudo o que fazemos, desde as comezinhas satisfações
de necessidades de sobrevivência e conforto, até as mais altas
realizações do Espírito, comandam, na masculinidade, a ação
total, e, na feminilidade, a absorção máxima. Mas, como

92
sabemos, estes fatores interagem e formam o paradoxo básico da
existência. Machos e fêmeas conduzimos nosso aparato material
masculina ou femininamente, independente da identificação
sexual. Em outras palavras, machos absorvem o mundo tanto
quanto fêmeas agem no mundo. Durante séculos a Humanidade
procurou delimitar, o mais próximo possível da dicotomia básica,
as fronteiras caracterizadoras dos papéis sexo-sociais. Isto
redundou em opressão dos traços masculinos (de ação) na
mulher, tanto quanto os femininos (de absorção) no homem.
Disso resultam também tanto a fêmea fatal quanto o macho huno,
em seus termos críticos, bem como os homoerotismos em seus
termos redentores do paradoxo original. A aceitação e o
exercício de eros em nós é o caminho para viver este paradoxo,
mantendo os conflitos daí resultantes sem opressão ou
exacerbação, sobretudo sem culpa. Enfim, a eros o que é de eros,
a Deus o que é de Deus.

259

Mas o paradoxo mais geral permanece sendo eros versus


thanatos. Viver é matar, viver é morrer. Para viver, somos
obrigados a matar, sugar o combustível obtido de outros seres
vivos, como o automóvel necessita da gasolina obtida a partir de
fósseis. Talvez um dia sejamos seres movidos a energia solar.
Entretanto, há como uma voz de thanatos ao fundo sussurrando
que a morte é uma necessidade quanto a vida. Talvez isto se
chame culpa; talvez isto se chame alma antropofágica

260

De qualquer modo, sendo a morte ausência de ação/absorção, a


vida é ação/absorção. Eros é ação prazerosa, absorção prazerosa,
vida prazerosa, enfim. E, como o prazer é sempre individual, ou
seja, varia em modo e grau de indivíduo a indivíduo, resulta daí

93
que qualquer modelo social de prazer será, quando muito,
referência, jamais satisfação social do prazer humano, na medida
em que a insatisfação individual latente daí decorrente acaba
ocasionando, pela interdependência natural dos seres humanos, o
só funcionamento mecânico do próprio modelo, esvaziado da
proposta que lhe deu origem. Assim tem ocorrido com o
casamento, mesmo modernamente, quando se estabelece
ideologicamente, pelos meios de comunicação de massa, os
prazeres sexuais “que todos estão usando”.

261

Por conseguinte, se o Estado e a Lei devem ser extremamente


rígidos quanto ao estabelecimento de normas que previnam e
solucionem os conflitos que resultem da tentativa canibalesca de
obtenção de prazer sexual, também o será, na mesma proporção,
quanto à proteção do pleno exercício do prazer erótico conforme
as vontades individuais interessadas.

262

A consciência original da humanidade foi definitivamente


alterada.
Jamais retornaremos a ela. É preciso que nos convençamos disso.
Saímos da casa paterna de Deus para ganharmos nossa própria
existência, deleitarmo-nos com nosso próprio paraíso, plantarmos
nossas árvores do bem e do mal, nossas árvores da vida eterna.
Ou seremos como os filhos que não acresceram ao tesouro
paterno, na parábola de Jesus.

263

94
Sim, tenho um temor incomensurável de usar do Santo Nome em
vão. Mas um temor muito maior de não fazer d’Ele uso nenhum.

264

O imagismo foi algo importante, sem dúvida, mas, e como nada é


mesmo O Modelo definitivo, também foi um fenômeno de época,
exacerbando um radicalismo (de raiz) e uma disciplina
fomentadores de uma violência como nunca antes vista, e de um
abatimento moral do homem pelo excesso de rigidez disciplinar.
Em verdade, não perceberam que toda a tristeza e abatimento que
percebiam resultava da exacerbação dos mesmos elementos
formais de que se utilizavam. Enfim, forma é expressão de
conteúdo, Aquela forma histórica, para aquele conteúdo
histórico. Sim, pois embora tentassem O Poema que também
Rimbaud, era apenas o poema de si, para muito aquém de
Rimbaud. The Waste Land, de Eliot, ao contrário da Desolação
do Reino, em Walter Scott, não decorreu de uma simples
transgressão erótica. Mas, ambos buscavam um graal desprovido
de eros.

265

O imagismo é, em relação ao pós-modernismo, hoje, uma


bobagem tão grande como seria o maneirismo quando do advento
do modernismo, ontem. Pensando bem, o imagismo não é um
maneirismo de forma associado a um simbolismo de conteúdo?
The Love Song of J. Alfred Prufrock, The Waste
Land, e o Four Quartets são poemas interessantes, sem dúvida.
Hoje, porém, Prufrock seria pouca poesia para tão bom poeta.
The Waste Land é tão significativo quanto continua sendo a lenda
do Rei Arthur, que já incluía o tema; e funciona mais pela idéia
da desolação, algo meio piegas em proporção à estatura de Elliot.

95
Já o Four Quartets, bem, o Four Quartets é o imagismo que ficou,
tanto quanto a Via Láctea, do nosso Bilac, é o parnasianismo que
ficou.
Mas porque diabos Mr. Prufrock me soa como uma autofagia
erótica das mais formidáveis? Que me faz, vez ou outra, procurar
a emoção que lhe fugiu?

266

Em Eliot a poesia, uma fuga da emoção, acaba por emocionar o


intelecto, que recaptura a fujona.

267

Eliot, em The Waste Land e Four Quartets, ao manejar diferentes


literaturas, aponta , de certa forma, na direção do pós-
modernismo. Ezra, também. Por isso que o pós-modernismo não
é nenhuma ruptura, ou simples vale-tudo do que se fez até então,
mas uma conseqüência natural do trabalho poético acumulado,
com seus múltiplos materiais úteis.

268

Ao final do The Waste Land, com a palavra “Shantih, Shantih,


Shantih”, recebida dos Upanishads, ansiando pela paz que
ultrapassa o entendimento, Eliot retorna, mercê de todo o seu
apuro formal e erudito, ao âmago do fenômeno poético, presente

96
em todo poema digno desse título: o milagre poético, concedido à
fé poética.

269

A poesia é sempre expressão de uma individualidade. Não há


modelos poéticos para além do que é próprio à expressão de cada
poeta. Se alguma coisa realmente importa é se a obra é obra
poética, se é obra literária. Em assim sendo, só o que mais
importa é se o poema logra ser uma expressão verdadeira, de
uma relação genuína, entre o poeta e o absoluto (Deus, Cosmos,
Mundo, Eu Profundo, ou o que quiserdes).

270

Assim sendo, não existe poesia social: poesia social é sociologia.


Não existe poesia política: poesia política é ideologia. Não existe
poesia filosófica: poesia filosófica é filosofia. Não existe poesia
religiosa: poesia religiosa é oração.

271

Todo avanço surge da necessidade. Toda mudança na forma


poética surge da necessidade de o poeta expressar-se
poeticamente aos demais humanos. É quando os modos
conhecidos não produzem mais nenhum efeito poético, ou são
insatisfatórios para a sua expressão poética, que o poeta
simplesmente faz o seu trabalho, com os modos e os materiais
que façam a sua poesia funcionar

272

97
E, no entanto, sem fé n’O Poema, não se obtém poesia

273

Ver com o coração, conhecer com o espírito, escrever com os


cinco sentidos. Eis o poeta que busco ser

274

À independência política dos Estados Unidos seguiu-se sua


independência ideológica, cultural, da Europa, tornando-se,
assim, o cadinho de raças e de renovação espiritual do homem
ocidental moderno, o laboratório cultural do mundo ocidental
pós-moderno. Nós, brasileiros, ficamos séculos aguardando um
tal de dom sebastião ressuscitar em Portugal, a fim de nos
insurgirmos contra um neo-expansionismo luso, que jamais nos
chegou, e criarmos uma cultura anti-européia, genuinamente
novo mundo. Agora, avançam sobre nós as propostas ideológicas
e culturais norte-americanas, com as ações e reações próprias dos
filhos de pais diferentes. Ainda nem podemos mais ser
primitivos, tarde demais para isso, nem temos por que criarmos
uma sociedade própria; afinal, temos vários modelos a escolher,
todos com bons índices de aproveitamento das forças materiais,
sem contar que nos oferecem de graça. Também para isso, tarde
demais. Globalizam-se as idéias locais, localizam-se as idéias
globais. No entanto, mesmo sabendo que lá fora nos vêem
cidadãos marginais do mundo que conta, tenho para mim que
ainda surpreenderemos, com nossa cultura, esse mesmo mundo.
Isso, se não deixarmos perder nossas maiores qualidades:
criatividade, improvisação e miscigenação. E abandonarmos a
subserviência cultural que rendemos aos povos do chamado
primeiro mundo, negando-nos a fazer do nosso rico folclore o

98
teto das nossas possibilidades culturais. Não somos um país
exótico, ou bizarro, assim nos vestem os que desejam que
sejamos meros receptadores de cultura, aqui e lá fora. Os daqui,
para valorizarem conhecimentos de línguas, idéias e escolas
estrangeiras que freqüentaram, normalmente despiciendas, e que
os faz meros reprodutores de cultura alheia, importadores da
ideologia da colonização. Os de fora, por razões geopolíticas do
seu exclusivo interesse.
Infelizmente, ainda não somos um povo irmão de qualquer outro
sobre a Terra. Isto demandará relações internacionais entre
iguais. Sequer ainda somos um povo com desenvolta consciência
de fraternidade na cidadania.
Certamente o mundo ainda muito necessitará das qualidades
brasileiras após resolver-se a primeira fase dessa tal globalização
(ainda um esperto globalizamento) da economia. Portanto, não
percamos de vista isso, não importemos idéias segregacionistas
ou colonizadoras em hipótese nenhuma, da mais prosaica à
menos óbvia. Sobretudo, não nos esquivemos de tratar de temas
universais em modos e formas universais - pós-modernistas -
nem de tratar de temas particulares em modos e formas
particulares - ainda, pós-modernistas - nem de miscigenarmos
tudo isso como melhor nos aprouver - pós-pós-modernistas.
Mas pós-modernismo nada tem a ver com o vale-tudo oportunista
e demolidor da Cultura, como se observa, por exemplo, no ôba-
ôba que se seguiu à democratização do livro didático.

275

O Poema envolto em brumas de lógicas, escolas, aforismos, ra-


cio-cí-nios. O Poema preso na garganta dos poetas brasileiros,
trás as grades de moldes e modelos...de armar paisagens alheias!
Nós, antropófagos livres desprezamos as cascas e carcaças,
métodos e meios que não sejam frutas dos nossos próprios
pomares. Vontade de comer é nosso único começo; depois,
é cada qual colhendo o que plantou.

99
276

Poesia é poesia; crítica é crítica. Podem flertar e namorar; jamais


casar.

277

A Poesia sobreviverá à era do computador, essa televisão


dialogal: e não apenas porque para ela bastam poucos bytes, nem
porque seu poder na síntese. Mas porque se fará ainda mais
necessária a impedir que a humanidade sucumba ao que Arthur
Koestler chamou de O Fantasma da Máquina, e George Wells de
Big Brother.

278

O poeta há de sempre ter o sol da sua poesia refletindo na poesia


da própria lua cheia, após trespassada a escuridão das noites

279

Somente o poeta que sofre o mistério do sagrado coração, pode


ambicionar saber dO Poema

280

100
Relembrando: saber-se antropófago erótico é, em essência,
consciência de si. Consciência de saber-se ainda antropófago,
somada à consciência de saber-se e desejar-se um ser erótico,
como transcendência do canibalismo que marca as relações no
interior da sociedade humana.

281

Ah! Quem me dera agora obter do meu poema ciganos dançando


ao redor das fogueiras!

282

Recorro ao Professor Aurélio, a conferir uma palavra, e ele me


presenteia com essa pérola de Álvaro Lins: “Toda obra de arte há
de ser essencialmente socrática, isto é, conter mais questões do
que respostas”.

283

Trouxe mãos tão pequenas, para tão vasto Poema! (o poeta, num
momento de lucidez)

284

101
Nenhum poeta saberá da sua poesia se não souber dos quatro
humanos ventos da Terra, e das palavras que sopram ( o poeta, ao
fechar as janelas)

285

O poeta que busca transcender as coisas simples, não obterá mais


que uma pálida idéia da transcendência; mas o poeta que busca a
transcendência das coisas simples, esse, obterá a transcendência.
286

O poeta ignorará, mesmo sob as mais duras provas, a divisão de


cores e lados que a sociedade assim organizada lhe impõe. Ou
não será poeta, e de nada valerão os louros com que lhe cobrem,
e que só lhe dão por servir-lhe a eles. Os séculos enterrarão a
todos nós, é verdade, mas enterrarão antes os filisteus da poesia,
e seus chefes. Jamais soterrarão a liberdade poética, a mais
ampla, pois que dela depende o próprio firmamento

287

Caro poeta: só obterás ser o poeta que sonhas ser quando


esqueceres o relógio em teu pulso. E o número da tua última
página

288

Apenas o que o poeta faz é iluminar o palco em que os ainda não


poetas fazem seu número

102
289

Os gritos de guerra dos inimigos de eros é delícia aos ouvidos


dos antropófagos eróticos

290

Poeta, não importa quão poderosas sejam as trevas em volta, hás


que seguir a própria luz, sempre tênue e frágil ao menor sopro
escuro. Boa viagem, poeta!

291

Michel Foucault, meu exemplo de perseguição literária. Explico.


Chegou, com sua Microfísica do Poder, ao âmago da questão.
Acusado de pequeno-burguês, de anti-marxista, pelo Partido
Comunista Francês Stalinista, abandonou a liça e cometeu esta
coisa abominável que chamavam de auto-crítica (Argh!). De
pouco adiantou, como soe acontecer. Não lhe queimaram vivo, é
verdade. Mas foi expulso do Partido Comunista Francês
Stalinista. Aí, parou sua investigação galiléica. Prosseguisse, ou
fosse um poeta, chegaria a ser um filósofo antropófago erótico de
primeira ordem, pois ia paulatinamente na direção da essência do
poder, ultrapassando os simplismos economicistas da época, a
poucos passos do seu núcleo sexual. Ainda ouço, quando me
vêem as agulhas e as coleiras, seu murmúrio soprado na alma: há
algo mais vivo em nosso dia a dia do que sonham nossas vãs
economias

103
292

Há sempre desses momentos de vida em que só se deve confiar


na poesia, nos poemas e nos poetas.

293

Ora, direis, ouvir zebus/e, no entanto/eu vos garanto/que muita


vez desperto/ pálido de espanto/ a beliscar-me que foi só um
susto

294

Todos nós precisamos de carinho, agrados, beijos na testa, na


face, de leve nos lábios, e daí a todo o resto. Por isso que eros

295

Ênio da Silveira morreu, a Civilização Brasileira morreu. E um


idiota me diz que ninguém é insubstituível.

296

104
Mais que o simples “make it new” do Ezra Pound, em poesia,
especialmente nós, brasileiros, a ”revolução permanente” de
Léon Trotsky.

297

Jamais falarei ou escreverei um idioma estrangeiro com a


“correção” que desejam os seus cultores. Ao contrário; de um
lado porque, a par da minha
particular incompetência para tanto, sou sempre, no mínimo, um
turista em visita aos idiomas alheios. De outro, e principalmente,
porque devemos buscar unir globalmente as diversas línguas
dessa torre de babel, a partir de uma atividade de desmontagem e
remontagem dos idiomas particulares, exercitando-os com as
próprias estruturas lingüisticas de cada povo, até que,
progressivamente, se vá reunindo-os em uma futura língua da
Terra. Isto é o que é um Esperanto formado de baixo para cima.

298

Urge que acabemos com as igrejinhas literárias, que, afinal, no


Brasil, existem menos por questões estéticas e, muito mais, por
questões “socialites”. Ao menos, que se as democratizem seus
crentes. Que as arejem com as idas e vindas de “fiéis até certo
ponto”. Só assim o sistema editorial, aí compreendida a crítica e
a imprensa especializada, terá algo realmente novo a publicar,
algo realmente novo a analisar, algo realmente novo a noticiar. Já
que são mesmo donas do “pedaço” literário do país, tudo bem, ao
menos contribuam para o crescimento do pensamento brasileiro,
aceitando, e mesmo promovendo, o elemento mercurial da nossa
cultura. Purismo intelectual (ou qualquer outro) é frontalmente
contrário à nossa índole miscigenatória, nossa única saída para
romper o atraso, nossa força para lidarmos com os povos do
primeiro mundo, a falar-lhes, em futuro mais próximo, de igual

105
para igual. Urge que iniciemos um processo verdadeiro e honesto
de abertura cultural, rompendo o isolamento dessas onze varas da
cultura brasileira.

299

Não é verdade, amigo neófito da música popular, que os grandes


poetas sejam assim considerados por uma questão puramente
ideológica. Os que assim consideram apenas têm sido leitores
desatentos. Releia, pois, Camões, Drummond, Pessoa, Bandeira,
Vinicius. Releia Shakespeare, Dante e Goethe. Blake e Byron.
Castro Alves e Gonçalves Dias.
Releia Jorge de Lima e Murilo Mendes. Releia Bilac. Sobretudo,
releia Rimbaud e Baudelaire. Prevért e Apollinaire. Poe e
Withman. Safo e Ovídio. Ezra e Elliot. Releia. Talvez, em não te
contaminando em tornar-te poeta, venhas a ser um grande leitor.

300

Bom dia, poeta/Sabes agora/que somos para A Ágora/Tecelões do


eterno./ Somos para a ágora, apenas/colina escarpada e a
alma/dorida./ Para A Ágora/ e nada mais somos senão ágora/ A
eternidade agora também de ti se alimentará./
Bom dia, poeta, a ágora te cicatrizará/ as feridas, /e essas
prometéicas penas ícaras/Todos fomos nosso primeiro andar.
/Alguns vieram ligeiro, essas paredes ígneas, sem colecionar
degraus/ A dor do Espírito/a doer de uma só vez./
Agora a ágora explode em gargalhadas/ Junte-se a nós./
Benvindo ao parlatório/Há pão e vinho/E Vita Nuova

301

106
Dois jograis da mais genuína música popular brasileira, Aldir
Blanc e Cazuza: “O Brasil não merece o Brasil..., O Brasil ‘tá
matando o Brasil..., Do Brasil S.O.S. ao Brasil...” e “Brasil!
Mostra a Tua Cara!!!”. Quando começaremos a Abrasileirar o
Brasil? Não falo, aqui, de um xenofobismo sempre perigoso (e,
em arte, desastroso), até inviabilizado pela globalização.
Também não falo de um Brasil popularesco, que vai até de vento
em popa. Falo de um Brasil Inteligente, Falo de um Brasil Culto.
Falo de um Brasil Amordaçado, um Brasil que pensa os mais
altos padrões artísticos, filosóficos, científicos, etc., etc. e etc.,
impedido de inter-relacionar-se, integrar-se e interagir-se por
conta de uma monstruosa pirâmide guardada por múmias e
escravos, que domina, silenciosamente, as riquezas brasileiras, e
vai tornando o Brasil uma “waste land” oca de brasilidade
genuína, facilitando O Império dos Arremedos culturais e
ideológicos. Tudo se encontra como se não existisse o Brasil que
somos, mas um mero arremedo do brasil que temos, à mercê de
forças civilizatórias que nos erga ao patamar de nação. As
palavras de Van Wick Brooks, para a América de 1913, valem
bem para o Brasil atual: “ Tal, de fato, é a deficiência do impulso
pessoal, da vontade criadora, (no Brasil), tão esmagadora a
exigência imposta aos (brasileiros) para servir a finalidades
ulteriores e impessoais, que é como se as fontes da ação
espiritual já se houvessem evaporado. Lançados numa sociedade
onde os indivíduos e suas faculdades surgem apenas para
desaparecer, quase inteiramente separados e sem influência
recíproca, acham-se nossos escritores envolvidos numa atmosfera
impalpável que atua como um perpétuo dissolvente em todo o
campo da realidade, tanto dentro como fora de si mesmos,
atmosfera que invade cada âmbito da vida e reduz tudo quanto
possam fazer, atmosfera que impede a formação do oásis da
realidade no caos universal.”.

302

107
Erram quando afirmam que o pós-modernismo, com sua máxima
de que a cultura está aos pedaços, é uma bobagem. Não
compreendem que o pós-modernismo está vinculado ao ajuste
globalizante do mundo, com a horizontalização dos povos, com a
correção política, com a democratização terra a terra das diversas
expressões regionais. O pós-modernismo tem, como toda
vanguarda artística, se adequado às propostas mais gerais da
sociedade balizada pelo mercado e, por isso, foge às propostas
originais. Tal para o que tem servido é uma bobagem no plano
artístico-cultural; uma arma eficaz no plano da política e da
economia. Mas, para nós, brasileiros, uma boa marretada na
cultura brasileira, ou estrangeira, ou talvez melhor dizendo, na
falta de cultura brasileira e estrangeira, todas bem postas,
fazendo-a “aos pedaços”, aos pedaços pós-modernistas até que é
muito bom. De qualquer modo, para nós, antropófagos, o pós-
modernismo nos vem bem a calhar. Enfim, pós-modernos ou
não, é bom poder criar e livremente usar os retalhos guardados ao
fundo dos baús do sótão. Por outro lado, este negócio de que está
tudo aos pedaços na arte do primeiro mundo, nos põe todos de
volta ao mesmo barco, não é? Enfim, a nós, brasileiros, uma
perspectiva pós-modernista é bem atraente. Supimpa! Pós-
modernismo neles, antropófagos eróticos

303

Paglia se define como uma pornográfica. Demônio pornográfico,


assim ela se apresenta pelos óbvios motivos publicitários para
suas idéias. Também não se perca de vista que toda
transformação da cultura americana passa, necessariamente, pelo
ataque ao seu puritanismo de raiz. Sem esta alavanca nada se
transforma por lá. Mas, é claro, ela não é nem chega a ser um
Nelson Rodrigues de saias, nenhum Carlos Zéfiro. Em termos de
pornografia ela é profundamente infantil. O mais importante é
que seu trabalho identifica personas sexuais nas grandes obras de
arte do ocidente, promovendo uma abordagem erótica da arte. É
uma antropófaga-erótica, embora se preocupe demasiado em

108
manter-se nos estritos limites de um racionalismo cientificista, e
num exagerado feminismo apolíneo, até pouco erótico. A sorte é
que nem sempre o consegue. Ainda fosse irrelevante seu belo
trabalho, convenhamos, foi a única coisa realmente nova e
interessante que nos mandaram de fora na última década.
Entrementes, um diamante que brilha como uma Ursa Maior.

304

E agora, que cairam-se as máscaras e estamos todos nus? Afinal,


seremos todos anjos pornográficos?
305

Morro de rir quando ouço falar em individualismo exacerbado no


Brasil. O Brasil ainda é terreno inóspito para deixar nascer e
crescer qualquer individualismo real. Confunde-se egoísmo
materialista com indivualismo espiritual. Somos um país de
papagaios, a repetirmos todos a mesma coisa, e ao mesmo tempo,
num alvoroço ensurdecedor. Um Charles Bukóvsky, um Henry
Miller, um John Fante, um Philiphe Djan, um Bret Ellis, não
teriam, por aqui, a menor chance de publicar seus livros e, caso o
fizessem, seriam logo taxados de individualismo egocêntrico a
contemplar o próprio umbigo. Ora, com o umbigo também se faz
arte, e grande arte: não adoram proust? Ora, ora, não há nenhum
individualismo real no Brasil porque todos querem ser
primadonas, artistas da TVGlobo, e devem se encaixar no
coletivo para isso. E, quando um autor é realmente individualista,
é claro, não se encaixa nos parâmetros da estreita coletividade, a
não ser como espécime de circo. Há muita inveja literária
também; e muito medo de perder-se posições já conquistadas.
Onde estão nossos autores “beats”, por exemplo? Não os
teremos?
Onde estão os livros do Paulo Leminsky? E os do Jorge
Mautner?

109
306

Mais que nunca precisamos do aforismo de Remy de Gourmont,


que tanto influenciou Ezra Pound e, por conseguinte, Elliot,
transcrito de Morton D. Zabel: “Ériger en loi ses impressions
personnelles, c’est le grand effort de tout homme s’il est sincère”.
Aliás, interessante este Zabel; lecionou literatura americana em
terras brasileiras financiado pelo Departamento de Estado de lá
na época da segunda guerra; publicou excelente trabalho
destrinchando competentemente a formação da literatura
americana e foi-se embora; nunca mais nos mandaram outro; um
tempo em que os EUA acreditavam que podíamos partilhar suas
idéias da construção de um novo mundo.
(E, por favor, não me venham culpar os comunistas!)

307

José Saramago, um autor que li com imenso prazer, seu


“Evangelho Segundo José Saramago”, sem, inclusive, ter dado
qualquer atenção ao seu ateísmo de fachada, acaba de ganhar o
Nobel, primeiro a um autor em língua portuguesa.
O que prova a existência da língua brasileira. Pois, entre os
vivos, se escrevesse em língua portuguesa mereceria o prêmio
nosso Jorge Amado. Enganam-se os que pensam que Jorge
Amado é um narrador fácil, que é apenas um apresentador de
relações exóticas. Jorge Amado é um dos maiores reveladores de
mitos e relações, tanto sociais quanto pessoais, do Humano, a
partir da vida em terras brasileiras. Nada em Saramago, ou em
toda a literatura portuguesa, se compara à profundidade literária
de Jorge Amado, nem à riqueza verbal do estilo de nosso escritor
baiano. Basta lembrar que a obra de Jorge Amado chega a
Portugal inclusive em novelas de televisão, acompanhadas com
avidez pelo público português.

110
Já a obra de Saramago apenas interessa ao restrito público de
acadêmicos e literatos portugueses e seus parentes europeus. Não
ouvi qualquer comentário nesse sentido em nossa imprensa
literária. Ah! Deus! Quando é que vamos passar a existir para nós
mesmos?
Brasil! Mostra A Tua Cara!

308

Guardamos em nós o germe da nossa própria subordinação


colonial. Somos os colonizadores em nós mesmos,
comprometidos até os ossos com o “modus vivendi” de
colonizado, sempre na boquinha da garrafa do colonizador que
nos dê mais. Somos um país fêmino, aguardando o macho
colonizador que nos dará mais conforto e boniteza. Somos um
país de frouxos, um país de brochas resmungões porque nos
comem a terra, e o máximo que fazemos é choramingar pelos
cantos, agradando ao macho colonizador quando fala alto nosso
nome. Um país de capatazes, quando muito, a comer das
migalhas. Somos um país que precisa de afrodisíaco, um país que
precisa hastear o pau da brasilidade. Brasil! Mostra A Tua Cara!

309

Súbito, me ilumina a poesia de S. Joaquim Sousândrade, semente


primeira do antropofagismo. Formado em meio ao Simbolismo
francês, catalogado entre nós como poeta romântico de terceira
geração (?), um óbvio precursor do pós-modernismo cem anos
antes. Prova de que o brasileiro já nasce pós-modernista,
enquanto não juntarmos esses nossos tais pedaços. E, ao que
parece, Sousândrade ainda irá adiante, com sua semeadura
precursora. Ainda acabo me convencendo, definitivamente, de
que Schlegel tinha razão: o único que existe em poesia é o
romantismo, em tudo um romantismo progressivo.

111
310

Em vão vêm gritando, desde Os Mutantes e Caetano e Chico


Buarque e Gonzaguinha e João Bosco/Aldir Blanc, tantos bardos
nossos que não os posso contar: e a poesia culta rezando a um
deus que não dá nem dará. Aliás, poesia culta não é poesia, é
cultura (?).

311

Se Elliot nos vem de fraque e Bilac, de paletó e elegante, gravata;


se Vinícius nos vem de escuros óculos, por trás os blues, eyes; se
Quintana chega passarinho, de mansinho; se Manoel de Barros
coça as costas das pedras, com sopros de menininho; se Rimbaud
bêbado antes, de abrir a garrafa, e Goethe posa de papa; se
Shakespeare nos vem de braços dados com drags queens; ora,
ora, bem o sabeis, são todos poetas.

312

Voltando à colonização cultural, esta maciça invasão e ocupação


colonialista às livrarias brasileiras: esses romances históricos
bonitinhos sobre uma história que não é a nossa. Lembro de um
Sábato Dinotos, tão reacionário aqui quanto um Ezra Pound nos
E.U.A.. Aliás, menos. Lá, mandam Ezra para um manicômio
judiciário, mantendo-o intocável como gênio crítico e poético,
faturando dólares e divisas culturais com seus livros e idéias. E
Sábato Dinotos até que bem mais humilde, um simples
romancista histórico como qualquer destes que estão

112
estrangeiramente nas melhores livrarias do ramo. Escreveu um
belo livro que, quando adolescente, li, nem lembro quantas vezes,
nem quantas tantas páginas (lembro que muitas). “O Hebreu,
libertador de Israel”, que nos conta a história de Otniel, o
primeiro juiz do povo judaico, um capítulo do Antigo
Testamento. Fosse um autor estrangeiro, quantos milhares de
exemplares não seriam reimpressos? O livro é ótimo, com a
leveza e a agilidade de toda boa história. Esquecido. A história
editorial brasileira é pródiga em tais exemplos.

313

Portugal tem um visgo que nos escraviza a alma: como


insugirmo-nos contra uma cultura que nos presenteou com
Camões, Bocage e Pessoa? Respondo com Euclides da Cunha: o
brasileiro é antes de tudo um forte! De volta, cá me pergunto: o
brasileiro é antes de tudo um forte?
Brasil, Mostra A Tua Cara!

314

Poeta, podes vir a ser tudo. Mas, se perderes a criança divina que
há em ti, não serás poeta nenhum.

315

Lesbos é A Mãe de toda A Poesia: pois não foi lá que a cabeça de


Orfeu escolheu aportar? Ou seja, a poesia é poesia lírica ou não é

113
poesia nenhuma. Todo o resto é maquiagem para as festas
galantes.

316

Num átimo o átomo se faz/ Fogo fátuo de Deus./ No íntimo o


átomo é fogo/ Feito fato de Deus./ O átomo, os átomos são risos/
gargalhadas de Deus./ O átomo mil átomos arautos/ Das palavras
de Deus./Os átomos atômicos se espalham/ Na superfície de
Deus./ Os átomos, atômicos, atônitos, sem asas/ Se perdem
de Deus./ Os átomos, atômicos, não morrem/ Suspirados por
Deus./ Os átomos, mil átomos se alegram/ Verso sábio de Deus./
O átomo, os átomos saudades/ Do sorriso de Deus./ O átomo, os
átomos, oráculos/ São olhos de Deus./ Num átimo os átomos são
lâmpadas/ São as luzes de Deus./ Os átomos no Éter são crianças,
são anjos/ Santa Face de Deus./ Atômicos, atônitos, os átomos, se
sagram (lá longe...)/ Fogo Eterno de Deus

317

E a Minha Amada Imortal será assim tão masculinamente amiga


dos meus nervos fêminos, quanto o serei dos seus másculos
músculos. Assim, quando os meus másculos músculos com seus
nervos fêminos, nos deliciarmos, saberemos, do gozo pleno, que
será amor.

318

Mas, como ia eu dizendo, em Cobra Norato temos uma


Amazônia impressionista, incomensuravelmente maior que os só
regionalismos. É a Amazônia do Espírito como reflexo do
Espírito da Amazônia, uma relação dialética, paradoxal, a

114
desafiar o Homem. O que fez Raul Bopp fazer sua maior volta ao
mundo, num sentido que talvez tentasse Rimbaud, a posteriori da
sua obra já definitiva, e que talvez colhesse num futuro período
reflexivo que, infelizmente, não alcançou. Enfim, a Amazônia,
para Raul Bopp, não era um mero colar de brasileirismos
bizarros. Conforme ele mesmo afirmava, “Cobra Norato vale
como a tragédia da maleita, cocaína amazônica. Eu quero é a
filha da rainha luzia. Obsessão sexual. Druídica. Esotérica. Tem o
ar de um livro de criança. Quente e colorido. Mas no fundo
representa a minha tragédia das febres”. Raul Bopp, nosso
antropófago erótico de um conto de fadas.

319

Em absoluto, em nada importa o que os humanos pensam a


respeito do poeta e da poesia por eles apaixonadamente realizada.
Muito ao contrário. Portanto, se queres ser um poeta aos olhos
das Nove Musas, sejas um tolo perante os humanos; pois,
tentares ser um poeta aos olhos dos homens, serás um tolo
perante as Nove Musas.

320

De Murilo Mendes, colho esta pérola de eros: “A amada é o laço


misterioso que me prende à idéia essencial de Deus.”

321

O poeta que não abole a noção de Tempo, não concebe, menos


ainda pode revelar, seu próprio Templo.

322

O Brasil dos Bacharéis, tão criticado e vilipendiado, era um


Brasil Humanista, generoso e democratizante. Muito mais

115
importante, era um Brasil Brasileiro, despregando-se lentamente
do modelo colonial. Mas a velocidade que a modernidade está a
exigir de nós é incompatível com o bacharelismo. A atual
horizontalização do Brasil (leia-se, americanização), cada vez
mais irreversível, até por necessária aos novos tempos de
globalização (ainda um globalizamento), embora seja grato às
camadas mais populares, as mantêm na ignorância cultural, digo
cultura mesmo, universal, mesmo que brasileira, que só se
constrói pela verticalização do pensamento.

323

Viramos o milênio sabendo que as estrelas são tão mortais como


nós. Mas, no caso delas, não morrem sós. Sua morte é a morte de
toda a vida no planeta do seu sistema. Portanto, louvados sejam
os poetas que olham para as estrelas.

324

Como partícipes do Universo, cada um de nós herdamos os


cromossomos das estrelas, carregamos em nós as mesmas
partículas minerais que os vegetais e os animais, em múltiplas
combinações. Mas é o dna do Universo que nos aponta o
caminho da unidade e da humanidade. Isto é o que é o monolito
do belo filme de Stanley Kulbrick, 2001-Uma Odisséia No
Espaço. Isto é o que é O Poema.

325

Coleciono fragmentos por saber que a minha mente é


fragmentária, que só apreendo uma realidade fragmentada. O
pós-modernismo é um fragmentarismo. É a modesta aceitação da
nossa verdadeira vocação artística e cultural, a plena aceitação da
impossibilidade de se construir um modelo único, integral, que
apreenda, enfim, toda a gama de experiências e percepções,

116
fazendo justiça a todas. Por isso mesmo ando a colecionar meus
fragmentos sem nenhuma organicidade, depositando-os, um a
um, só conforme vão sendo colhidos. Portanto, o primeiro não é
o primeiro, o segundo não é o segundo, nem o terceiro será o
terceiro. Nada sei dos inícios, nada sei dos meios, nada sei dos
finais. Isto é da essência do fragmentarismo, cuja origem remonta
à visão de Demócrito quanto aos átomos. Nenhuma prioridade há
em cada grão de poeira cósmica ou das areias de uma praia,
assim como nem cada gota d’água das chuvas, dos rios ou dos
mares.

326

Não há porque assustar-se, como o faz Paglia, com o mote pós-


modernista de que tudo está aos pedaços. Tanto o pós-
modernismo, quanto o politicamente correto, são geratrizes do
processo de globalização também econômica. Reconhecer a falta
de unidade absolutista nas artes, como em tudo, aceitarmos as
partes separadas do Todo, reconhecendo sua independência,
primeiro, seus laços de interdependência em graus variados,
depois, é apenas uma estratégia humana (apolínea) para a
retomada de uma Totalidade mais justa e fecunda, até porque
mais participativa, sobretudo mais libertária, livrando-nos das
cargas de violência, física ou moral, tanto da natureza como da
sociedade. Afinal, drama ou comédia, a vida humana sempre foi,
sempre será, um gigantesco puzzle de peças invisíveis.

327

Portanto, reconhecer em cada fragmento uma existência própria


em si e para si, objetivar cada fragmento, fazer de cada qual um
objet d’art, com forma e essência próprias, é identificar em cada
qual uma peça do quebra-cabeças.

328

Ou, no pós-modernismo, o todo, subdividindo-se em partes


rebeldes, faz amor consigo mesmo. Por ironia dionisíaca, dessa

117
festa orgiástica o Todo gerará em si mesmo o Todo
rejuvenescido. Apolo, como um Sigfried, se banha em águas de
eterna juventude invulnerável. Mas, com uma folha ctônica presa
às costas.

329

Enfim, após a exaltação da individualidade transcendente,


seguida por sua redução ritualística às necessidades sociais, do
renascimento; após a exaltação da individualidade transcendente
sucumbindo à incompreensão e violência sociais, dos
romantismos; após a submissão da individualidade ao caráter
social, dos socialismos; passamos à coexistência mais ou menos
pacífica entre a individualidade exaltada e o todo social, pela
recíproca, tanto quanto possível, morte civil da parte contrária.

330

O perigo no bojo do pós-modernismo politicamente correto está


em que Indivíduo e Estado passam a ser meras ficções, como
modus vivendi próprio à sua coexistência pacífica. Ergue-se um
nihilismo clônico, vulgar e utilitarista, como resposta reacionária
às possibilidades abertas pela liberação das minorias sociais. O
maior inimigo, porém, para a Individualidade está na sua
sujeição, agora não mais a um Estado tantas vezes até mais
distante, mas por grupos mini-socializados, excludentes da ampla
gama de possibilidades individuais, e que, até por estarem mais
próximos, mais presentes no cotidiano dos indivíduos, exercem
vigilância e permanente pressão sobre o exercício das variações
individuais que não se coadunem com a demarcação do grupo a
que, por ontogênese especial, pertencem. Ou seja, o preço do
livre exercício de um traço individual é a sua petrificação em
clone, classificado pela numeração da série a que pertence,
liberado por senha. Em outras palavras, um Estado ficcional
aceita coexistir com Indivíduos fictícios, desde que os indivíduos

118
reais sejam submetidos e controlados pelas minorias a que
pertençam, submetidas e controladas todas estas à minoria, auto-
nominada maioria, que detém o poder estatal real.

331

Por falar em correção política, a alma-gêmea de que fala Paulo


Coelho, como elemento de busca existencial para o amor pleno,
não é, ao contrário do que simploriamente deduzem menininhas e
donas-de-casa travessas, uma outra individualidade de idêntica
alma. A busca da alma-gêmea é uma busca interior; é a busca, na
própria alma, do sexo contrário ao corpo fornecido pela natureza,
projetando-se este em outra pessoa apenas como referência
catalisadora. Em Espírito, somos todos andróginos, hermafroditas
espirituais, adequando-nos às limitações próprias da natureza, e
exacerbando as possibilidades materiais de um corpo incapaz de
prover a amplitude das nossas necessidades espirituais. E o sexo
é apenas uma delas, a principal, sem dúvida. Esta questão se
relaciona com a resignação cristã da alma perante as agruras da
carne, por exemplo. Constatada na inveja agressiva dos
caçadores de pássaros por não poderem voar, e assim por diante.

332

Mas a insuflação da idéia rasteira de encontro de sua alma-gêmea


é uma armadilha cristã contra o prazer corporal, estratégia
espiritual contra a matéria. Ao insistir no encontro de uma alma-
gêmea na outra pessoa, missão verdadeiramente impossível,
passa-se rapidamente da exaltação emocional à decepção e, por
conseguinte, à culpa. Daí ao nojo físico e à abstinência é só um
pequeno salto, até a uma religiosidade em que o sexo cumpre
funções outras que não o simples prazer, físico e mental.

333

As gerações brasileiras desta passagem do século XX ao XXI


escolheram para orientar suas vidas intelectuais e artísticas o que
de pior havia na herança colonial portuguesa, numa aliança

119
espúria com o que de pior há na cultura populista afro-indígena,
barrando insistentemente a asserção cultural e artística dos
imigrantes alemães, italianos, árabes e orientais, que são sempre
mediados, em suas manifestações, por aquelas duas vertentes de
colonizados hegemônicos. A subserviência macunaímica à
cultura americana resulta principalmente daí. A exaltação da
mediocridade intelectual, do conformismo social e político, do
bom-mocismo academicista, da bajulação, da indiferença aos
verdadeiros criadores de cultura, os filósofos Paulo Freire e
Roberto Freire, por exemplo, o artista multimídia Sérgio Ricardo,
inexplicavelmente banido do cenário cultural, e muitos outros
expoentes máximos da autêntica Cultura Brasileira, exilados ou
simplesmente ignorados, em prol da copiagem estrangeira, da
bajulação ao artificial no poder, do primarismo bajulador das
massas incultas, são responsáveis pelo colapso geral do
panorama artístico e intelectual da Nação Brasileira. E, no
entanto, silenciosos porque silenciados, propositadamente
ignorados, há um sem número de exemplares dessas mesmas
gerações que, mesmo desarticulados, combatidos, amordaçados e
empobrecidos, recolhidos ao sacerdócio a um deus que não se vê,
os pés plantados na terra verde-amarela, com inteligência e
sacrifício invulgares, seguem, corações jovens de esperança,
mirando suas próprias estrelas anunciadas nos céus da Criação;
verdes, brancas, amarelas, vermelhas, azuis e tantas múltiplas
combinações só possíveis num país que transita do branco ao
negro, e vice-versa, em honesta e fraternal miscigenação.

334

Enfim, uma aliança espúria entre as elites intelectuais e


econômicas, herdeiras da tradição colonial portuguesa, com as
massas só ficto-politicamente escravo-alforriadas, faz do Brasil
um país impedido de exercer a nacionalidade em sua plenitude
cultural, um Estado sem Nação.
Até quando a prepotência aliada à submissão preguiçosa
impedirão o Brasil de mostrar sua face multi-sorridente?

335

120
Para encararmos de frente a verdade é mister que observemos a
formidável ascensão dos povos de tradição bárbara anglo-saxã
nesta virada de milênio, com inegável proveito para toda a
Espécie, e grande ampliação do Espírito Humano, embora nós,
povos herdeiros da sublime tradição greco-latina, uma cultura
construída pacientemente em direção aos céus, fôssemos os
favoritos como formadores da concepção cultural do planeta.
Razão disto está em que não temos conseguido, com a mesma fé
e habilidade que eles, mobilizar nossas próprias forças primevas,
tanto quanto esses povos vêm mobilizando as forças intelectuais
da nossa tradição clássica, proveitosamente, integrando-as
sabiamente à sua própria cultura. Ou seja, até quando
esperaremos para acender a lenha dos nossos vulcões? Quanto
tempo ainda para processarmos oxigênio em nossos corações e
mentes?

336

Defendo a tese de que o Brasil é potencialmente o país mais


universal do planeta em termos lingüísticos. Os sons da nossa
língua já formam, em si, a mais bela sinfonia fonética que o
verbo humano têm conhecido. Mais do que a nossa
extraordinária coleção de vocábulos, língua aberta e em
permanente expansão, são as nossas possibilidades fonético-
musicais que recomendam o (luso)brasileiro como rotor de uma
possível síntese de todos os idiomas da Terra. Resta-nos, para
tanto, e sem xenofobismos, de um lado, ou modismos de
colonizado, de outro, a par da inevitável absorção dos sons e
vocábulos do globo, elevarmo-nos em Cântico dos Cânticos. O
canto esperanto das terras brasileiras às estrelas mais distantes do
Universo.

337

Sim! Eu vi a estrela flamejante no céu até mim/ quase ao alcance


de qualquer mão./ Feito um símio em extinção/ abracei seu

121
brilho, tamanho e cor./ Feito um símio em extinção, eu vi/ a
estrela flamejante/ oásis/ em meio à dor

338

Tire-se Eros da Humanidade e, seja lá o que, ou quanto, formos,


dê-se novo nome à espécie de clones. Tire-se Eros da própria
vida e, não importa o que, ou quanto, seja, que seja suficiente
para a manutenção das muletas

339

Entre lágrimas e gozo, os antropófagos eróticos vão erguendo o


Templo Erótico de Deus. Inscrevendo em seu frontispício o
adágio robertofreiriano: Sem Tesão Não Há Solução.

340

Essa tão antiga quanto gasta contradição entre céu e terra, essa
proposição de que o assim na terra como nos céus é nada mais
que uma receita ético-religiosa, inalcançável senão por um estado
de graça celestial, tem sido a ilusão de ótica que faz ver duas
pirâmides hierárquicas ao invés de uma só e mesma relação
sistêmica. Ora, a Terra é só um grão da areia celestial e, vasto
nisto, vasto muito mais naquilo que ainda sequer imaginamos. À
parte de que a expressão na oração ensinada por Jesus diga
respeito à unidade de pensamento e ação, que em Ghandi se
acrescenta a palavra, bem como à submissão ao império divino, a
falsa concepção de contradição essencial entre os “de baixo” com
os “de cima” é apenas a serviço de uma dualização político-
ideológica que, estabelecendo a cada qual poderes e deveres
diferenciados, justifica e mantêm as idênticas repressões em
ambas as estruturas, hierarquizando os indivíduos em seus
interiores, verticalmente, numa, horizontalmente, noutra. Ou,
como diz um mote publicitário de churrascaria: ”-Qual foi o
chato que inventou isto?”. Resposta: “-Não sei, mas não gostava
de carne”. Ora, Marx já demonstrou, e muito bem demonstrado,

122
que só há uma ideologia na sociedade: a ideologia da classe
(casta) dominante.

341

O Todo é uma ficção. Não existe para a nossa Razão Limitada.


Sua existência se deve à nossa crença religare. O Todo também é
uma convenção intelectual, apenas útil por unir cada percepção
fragmentária à dos demais, objetivando conjuntos de fragmentos,
construtivamente.

342

A vida mental do poeta é vida corsária. Ou, como diz Aldir Blanc
na música, violão e voz fantásticos de João Bosco, vida de
náufrago, a mandar em garrafas mensagens por todo o mar.
Antevendo as rosas partindo o ar

343

Razão e Intuição, somos mesmo seres duais. Por mais que


ativemos uma, reprimindo a outra, mais cedo ou mais tarde,
quando não durante, cobra seu preço a parte renegada ou
desprestigiada. Sabermos conduzi-las aos paralelos, arredando
suas influências recíprocas; ou, uni-las em outra que seja uma
terceira via, qual dos caminhos a seguir? Sequer disto temos
ainda qualquer conclusão inquestionável, a par de que isto já é
em si uma outra contradição. Parece-me que viver (pensar, dizer,
agir) é sempre ser em dialética paradoxal. Dominar esse
paradoxismo, levando-o ao paroxismo, talvez isto seja o ser
plenamente (pensar, dizer, agir). Aceitação e Vivenciação dos
paradoxos dialéticos.

344

Walter Hugo Khouri, um cineasta antropofágico. Em suas


próprias palavras (As Amorosas), a esperança (e, portanto, busca)
de que deve haver algo em nós equivalente ao equilíbrio das

123
estrelas apontam-no como servo de Eros. O sexo, em seu olhar
cinematográfico, seria, então, superação da contradição
apolíneo/dionisíaco, ou seja, vencer a dualidade em angustiada
busca por um equilíbrio que não redunde nem em unidade, nem
em transcendência. Mas seu instrumental é inteiramente
apolíneo. O puro olho apolíneo em ação sexual para domínio do
ctônico feminino, do qual fazem parte todas as coisas do mundo.
Como se a vitória sexual implicasse em poder material unívoco.
Nega o mundo, num existencialismo solipsista, porque o mundo
é objeto feminino. O sexo, cujo prazer é irrelevância, é agressão
apolínea de dominação. Não havendo outro meio possível, toda a
angústia surge do fato de que quanto mais falicamente invade e
afunda, menos consegue, sem que, no entanto, o antagonismo se
resolva em vencido ou vencedora, afastando-se a arena, a cada
embate dos corpos, para um pouco mais allá. No entanto, a
femealidade, sendo opressora e imperativa, alterna-se em foros
de masculinidade, e, esta, por eterno retorno à submissão pós-
coito, se feminiliza. A posse sexual, portanto, é o único momento
de verdadeira virilidade. Todo o resto é negação meramente
passiva e implica em absorção do ego pela feminilidade. Sexo é
estrita luta pelo poder no mundo e, portanto, não há qualquer
harmonia possível. Há moralismo, no sentido de que é um dever
moral do homem conquistar o mundo às garras femininas. Ao
final, consegue a afirmação da divisão dos sexos em tintas
progressivamente mais fortes. Em outras palavras, macho contra
fêmea deus nos criou. E apesar de toda a angústia gerada pela
constatação e constante realização disto, mercê do ceticismo
quanto à relação sexual ser simples busca erótica, Khouri não dá,
por outro lado, ao apossamento da fêmea, pelo macho dionisíaco,
qualquer valor. Sexo racional, apolíneo, agressivo e petrificador,
portanto sexo como vontade única de poder, o máximo que se
consegue é um armistício (equilíbrio de forças) temporário
durante o ato sexual. Ao final de tudo, mantêm-se o reinado da
feminilidade, sendo a eterna vigilância o preço do olho
masculino. Curva-se, então, a thanatos, destruição da outra parte,
separação, o eterno ceifar das forças divinas de Eros sem que, por
isso, perca as esperanças neste, na medida em que, a cada novo
filme, volta a tentar o equivalente humano ao poético, por

124
conseqüência erótico, equilíbrio das estrelas

345

Mas a androginia feminista não é, como dão a entender algumas


delas, a solução, pois que ao buscar em si a realização pessoal e,
em conseqüência, em si se bastando, perde-se a energia de
oposição e conflito. Já um casal de andróginos...

346

Mas algo exagerado, para dizer o mínimo, em Paglia é sua


absoluta identificação do dionisíaco com a feminilidade, uma das
idéias centrais das suas teses. Embora reste claro que toda
manifestação ctônica se subordine ao reinado da Mãe-Terra, a
virilidade dionisíaca, uma vez criada, prossegue existindo e
contrapondo-se, no interior mesmo desse reinado, ao feminino,
como filhos-rebeldes, a tentar conquistar a coroa. Sua análise de
Walt Whitman é por demais ideologizada para oferecer uma
conclusão satisfatória a respeito da masculinidade presente em
Leaves of Grass. Ora, é o próprio poeta quem se declara
poeticamente bissexual e, portanto, persona a um só tempo, e em
tempo diferentes, masculina e feminina. Sua identificação com a
Mãe-Terra progênita, nem por isso exclui os momentos de
extrema virilidade como, aliás, nem poderia deixar de ser, dado
que, para o poeta, a própria Mãe-Terra é bissexual, antecipando,
analogicamente, o que há pouco tempo o Sumo Pontífice da
Igreja Católica revelou como a face feminina de Deus.

347

Ensaio e Humor raramente é boa parceria, sempre perigosa. O


humor de Paglia, por exemplo, que nos anima e propicia
atravessar com extrema leveza sua extensa massa de informação
crítica erudita, às vezes derrapa em análise apressada. Por
exemplo, quando em A Madame Sade de Amherst - Emily
Dickinson vê banquete sadiano no verso “Rachem a cotovia - e
encontrarão a Música”, quando o mais provável seria ver simples

125
tradução metafórica para: Faça a poeta sofrer - e encontrarão a
Poesia. Ou seja, há uma tênue fronteira entre a graça bem
humorada e o humor direto. Ultrapassá-la é sempre interessante
no romance e no teatro; no ensaio, quanto na poesia, sempre
perigoso

348

Algumas canções de Caetano Veloso mostram como não só é


possível, mas profícua, uma estreita amizade entre a nossa língua
e a língua inglesa. Ele usa, como poucos, os sons da voz
brasileira a favor da bela rítmica língua portuguesa, sustenindo-a,
ampliando nosso idioma em construções verbais que o torna
ainda mais lírico, podando arestas, captando sons ingleses para
além da invasão idiomática tecnicista. Os dois discos da sua fase
londrina são duas obras-primas de sonoridade brasileira, em que
dois idiomas tidos como antagônicos se abraçam em fraterna
correspondência

349

O poeta, quando triste, chora, sempre na alma,às vezes por fora;


quando alegre, ri, gargalha, brinca; quando no cio, cumpre o
destino; e, quando ama, seu permanente estado de poesia, faz
amor e safadezas, que é um modo de amar amando. A sociedade
exige, também dos poetas, a corriqueira persona de seriedade.
Mas o poeta está sempre a trocar de máscaras; porque está
sempre a trocar de almas. O poeta é o poema. Busquem-no ali, e
encontrarão ao menos seus olhos. Busquem-no em sua obra
poética, e verão tudo o que tem para ser visto, carne e espírito.
Pois nisto reside toda sua fé poética. E isto é o que é o poeta: sua
fé em sua matéria e em seu espírito, indistintos, cônscio de que
todo o resto são personas, são máscaras, que o poeta usa ao seu
bel prazer, enquanto os demais se afivelam a apenas uma delas,
por pressão social, para não dizer demais.

126
Também assim os caminhos: até os ventos invejam a mobilidade
dos poetas.

350

O Brasil tem tudo para vir a ser a futura Matriz do Mundo Pós-
Moderno.

351

Ou, lembrando a carmem bizet, o poema é um pássaro rebelde/


que ninguém pode aprisionar

352

Prova de que toda verdade é paradoxismo: sem tesão não há a


solução; com tesão não há o problema.

353

Eu, estado alterado de consciência, abraço-te e beijo-te, estado


alterado de consciência. Amo-te, ser imperfeito, parceiro e
cúmplice, fraters em perfeição.

354

Ah! Quem dera poder concordar com Poe e Baudelaire, que a


poesia apenas visa o prazer, a beleza. A poesia não é a verdade?
Mas, então, beleza, prazer, verdade, são uma única e mesma
coisa?

355

O pós-modernismo é apenas uma retomada aos tempos gregos


anteriores a Platão e o Império Romano. Pois a profusão e

127
difusão de escolas não propiciou justo o cadinho de idéias sobre
o qual repousa - e usufrui - toda a nossa civilização? De lá
também poder-se-ia dizer: está tudo aos pedaços!
Com o que concordariam Demócrito e Heráclito, sorrindo e
cofiando as vastas barbas

356

Exasperem-se, vós, antropófagos filósofos, que vos direi que


Marx foi um racionalista iluminista, por isso que racional
iluminado quando aplica o materialismo dialético às formas
sociais, criando a sociologia, e uma epistemologia da sociedade
humana até os nossos dias. Mas, Karl era também um filósofo
romântico, utopista, quando estabelece um rumo político para a
Humanidade, nos estreitos limites do seu materialismo histórico.
Sim, um romântico, tal qual Nietzsche, com sua vontade de
poder, seus super-homens, seu zaratrusta, seu desespero quando
se viu cercado pelas muralhas intransponíveis do eterno retorno.
Pois não é outra coisa o romantismo que a vontade individual
frente a todas as limitações da Sociedade, da Natureza, de Deus?
Acalmem-se, vós, antropófagos filósofos, acabamos de descobrir
o racionalismo romântico.

357

Sim, prezado leitor: com o fragmentarismo, poderás objetivar em


palavras cada pedaço da sua razão fragmentada. Pois faça mais,
faça de cada gota o sumo da sua humanidade, seu coração,
cérebro, sexo, alma, espírito, enfim, cada fragmento te mostrará
quem tu és

358

É preciso acabar com a ditadura da Forma Perfeita. A beleza da


vênus de milo não está justamente no sentimento que nos aflige
quando contemplamos aquela bela figura de mulher mutilada?
Ora, e portanto, a Beleza está em nós. O artista apenas provoca

128
revelar-se (em nós outros). Amor Revelado, e não Forma
Perfeita, é o que faz uma obra de arte ser bela e prazerosa.

359

A idéia de Kaváfis de que a mentira integra a arte, e a torna mais


criativa; assim como o conceito de que a poesia é uma fuga da
emoção, com Eliot. Penso que verdade ou mentira na perspectiva
do autor são apenas apetrechos de que o poeta se serve, tanto
quanto todas as coisas, sentimentos, pensamentos, experiências,
enfim, apetrechos como a pena de que se serve. O poema existe
em si, por si, para contemplação. A verdade no poema se realiza,
se revela, com a verdade possível, e possibilitada, do autor, por
mais que minta. Mas, o que Kaváfis está a dizer é que a distorção
dos atos e fatos, seres e coisas, é não só um instrumento eficiente
da criatividade, como ainda se instala no objeto de arte. Quanto
a Eliot, a emoção foge, do poeta para o poema. Ou seja, a
revelação que o poeta obteve, quando objetivizada em poema,
perde, para ele, seu caráter de revelação, em seu mágico sentido;
e esta revelação, agora transformada e multifacetada, habitará a
mente do leitor.

360

O que há de mais instigante, interessante e belo no discurso de


Camile Paglia é que sempre me soa como uma delirante apologia
apolínea em lábios dionisíacos

361

Os Estados Unidos são uma terra de transitórios e


transitoriedade, de movimento para e através, rejeitando o
arcaico, cujo vácuo simbólico é em parte preenchido pelo índio e
o negro. E latinos e asiáticos eu acrescentaria à afirmação de
Paglia. E esta equação de raças tem lhes sido bastante útil,
especialmente pela movimentação dos contrários. Defendo para
o Brasil, país (estranhamente) de mobilidade precária, de pesada
e arcaica imobilidade, que acredito se deva menos à nossa

129
equação de raças, pois que é, em verdade, uma equação cultural,
em que portugueses, índios e africanos oferecem pouca
mobilidade dos contrários, mercê da esmagadora hegemonia
cultural lusa, de inspiração monoliticamente europeizante, apesar
de todo o esforço das tropas americanas de invasão cultural, que
atuam muito, mas sem profundidade, fornecendo apenas ítens de
consumo tão superficial quanto apenas imediato. Enfim, tal
equação cultural tem sido bastante cômoda para seus partícipes,
embora o preço deste comodismo seja bastante alto: estagnação,
atraso, dependência econômica, tecnológica e artística. Defendo
que integrem a equação, não como expressão de guetos
folclóricos, as demais veias raciais da terra brasileira, e que os
hegemônicos aceitem os contraditórios não apenas entre si e seus
aliados, mas também quanto àquelas. Sem contradição cultural
não há mobilidade cultural, sem mobilidade cultural não há
desenvolvimento da inteligência de um povo nem de seus
indivíduos
Nem de todo o mais.

362

Em outras palavras, é preciso que os hegemônicos percam o


medo e interrompam a brutal agressão civil contra os que pensam
para além dos cânones hegemônicos da cultura brasileira.
Ou, como disse Ignácio de Loyola Brandão, Não Haverá País
Nenhum

363

O Brasil é o filho ainda bastardo de Portugal. Por isso, em nosso


inconsciente coletivo talvez ainda estejamos sempre buscando
agradá-lo, seguir suas milquinhentistas ordens e idéias, mais
ainda quando as contrariamos, provar que somos seus filhos
legítimos, como um filho busca, na infância, a aprovação paterna.
Pois bem! É hora de crescermos, largar o conforto emasculador
desse pai interior que há muito já se fez antigo.
Ele que nos visite, quando bem o quiser, mas que nos deixe
governar o próprio destino. Não necessitamos dele para nada,

130
filhos que se auto-sustentam, e que desejam se autogovernar. Os
receberemos de braços abertos, talvez uma ou duas mágoas ao
canto dos olhos. Ouviremos suas antigas glórias com certo
orgulho até; nada mais que orgulho antepassado a nos enobrecer
o nome, o sangue e o caráter. E se acaso nos reconhecerem o
Brasil como filho legítimo, ok!, aceitemos esse pai pródigo com
o amor das novas escrituras.
Mas que, definitivamente, o portugal incrustrado em nossa Alma
pare de nos ver a nós, Brasil e Brasileiros, como nós afinal nos
vemos, mais do que eles portugueses nos vêem, com as lentes do
colonizador implantadas em nossos olhos: uma terra folclórica e
mulata que o espera, e às nações amigas, sempre as pernas
abertas

364

Como as pessoas em geral têm pouquíssima compreensão do que


seja ser escritor, ser poeta! Ora, se o mundo fosse mesmo o
paraíso talvez nenhuma linha seria escrita, nenhum verso.
Escrevemos porque ainda longe estamos do portal de entrada do
nosso próprio humano éden. Quanto às serpentes, dois dedos de
prosa e água de coco no canudinho apenas instigaria as manhãs.
Escrevemos porque assim se impõe, não porque o apreciamos.
Só os poetas, por natureza preguiçosos, sabemos o quanto nos
custa arriscar perder o cheiro pela palavra.

365

Humanos, somos seres necessariamente complementares.


Homem/homem, mulher/Mulher, homem/mulher, Homens e
Mulheres, somos sempre seres complementares. A união amorosa
nasce dessa equação tanto quanto morre com seu esgotamento
e/ou estratificação. Amor é complementação em movimento

366

131
Mas cada indivíduo humano necessita diversos graus de
complementariedade. A mera união sexo-genital é ineficaz à
realização da libido humana. Machos e Fêmeas, temos um
organismo mais complexo que os simples pressupostos sexuais
para a reprodução da espécie. O eixo atividade/passividade que
determina a união sexual animal não esgota, em nós humanos, o
universo da sexualidade mental. Em outras palavras, assim como
utilizamos 5% da capacidade cerebral, ainda igualmente só
utilizamos os mesmos 5% de nossa capacidade sexual. O sexo
dança com a inteligência.

367

Para além dos arquétipos herdados socialmente, quiçá


geneticamente, para cada atividade há uma correspondente
passividade, e vice-versa. Homens e Mulheres, mesmo quando
mantêm a relação primária genital, preenchem-se mutuamente
em permanente alternância ativa e passiva plurissexualizada. De
alto a baixo, de baixo a alto, e para todos os lados, só assim se
compreendendo e aceitando se poderá, talvez, ser feliz.

368

Mas não há que subestimar Portugal, concordá-lo, nesta era neo-


tecnológica, menor que nossos irmãos endinheirados, esses novos
doces bárbaros. A nação que venceu oceanos e selvas para fundar
um novo mundo, qual negará sua linhagem de alta humanidade?
Dele herdamos no sangue, como disseram Chico Buarque e Rui
Guerra, uma boa dosagem de lirismo (além da sífilis burocrática,
é claro); Não teremos herdado também a antiga verve
aventuresca?

369

O poeta sofre porque não abdica de sua liberdade de amar; os


outros sofrem justamente pelo contrário. Que geometria é esta
que nos condena ao sofrimento e à solidão? Certamente não
servem, os adeptos da neurose, das mil e uma razões para se

132
preservar do Amor, servos de Thanatos, ao Deus que
ansiosamente nos aguarda à porta do Seu Paraíso

370

Roma é nossa régua. A Grécia nosso compasso. O Brasil é o


nosso desenho de criança ainda no jardim da infância

371

O vício da bondade é o pior de todos os vícios que espreitam o


poeta.

372

Uma Nova Aliança entre matéria escura e matéria clara. Isto é o


que é Fraternidade. O Homem vencerá a Solidão Universal.
Dançando nas Trevas, dançando nas Luzes. Mais que parceiros
seremos Face Múltipla. Vivenciando os escuros e os claros sem
que o aborto dos novos átomos

373

Em cada poeta pulsa um Sagrado Coração

374

Se te segui, querida, ao mundo de Hécate, se palreei com


Cérbero, se nadei nas águas de Hades, foi para te resgatar,
querida; fazer da tua gruta fria supernova matutina

375

133
Sim! Farei das estrelas dos filmes pornôs minhas novas Nove
Musas!

376

Cá na Terra, o meu Deus pesa, mas não julga; que julgar é


atributo humano. Meu Deus mede, mas não condena; pois
condenar é necessidade humana. Meu Deus simplesmente Ama;
que Amar é condição do Eterno

377

É preciso que nos apressemos em revelar-nos as almas e os


corpos e a Natureza e Deus que estão em nós e em nosso além do
humano do futuro. Que não sucumbamos ao arquétipo de
atlântida, que não nos deixemos aumentar o fosso entre o homo
fabers e o homo eroticus, entre humanidade e tecnologia, como
crianças a brincar com fogo. Humanos somos, (ainda)não somos
deuses

378

Todo poeta é um unicórnio sob o cerco daqueles que ele mais


ama; e que também o amam, tanto que o querem aprisionar para
si.

134
379

A grande Primeira Denúncia da estupidez dessas dicotomias anti-


humanidade foi feita por Shakespeare em Romeu e Julieta. O
primeiro grande brado de alerta pelo Amor. Também mostra a
primeira causa impeditiva de superação alquímica da
antropofagia erótica: a estupidez do poder frente a eros

380

A ideologia dominante é a de que Eros apenas nos acompanha até


a porta do Paraíso. De lá, ou voltamos à terra em suas asas para
baixo, ou vivamos felizes sem ele. Quando deixaremos crescer
as asas? Asas de aço, já somos; e as asas da alma?

381

Para manter sua a mulher amada, o poeta se faz sol, o poeta se


faz lua, o poeta se faz trevas. Que toda Musa vale bem uma missa

382

Não queiras, mulher, que eu pague a conta dos nossos


antepassados. Lá como eles viveram, tão doce e bela que éreis,
eu cá não vivo (sem eros)

383

Herdamos o léxico de Portugal, não a fonética. Isto nos deixa


com uma sensação de inferioridade no uso corrente do idioma.
Sempre temos a impressão de que eles falam e escrevem melhor
que nós, brasileiros. Por isso, temos que - embora mantendo
nossas raízes - imprimir em nossa língua (luso)-brasileira a nossa
própria música das palavras, a nossa própria gramática musical.

135
E qualquer acordo internacional que contemple uma unificação
gramatical terá que levar em consideração a proeminência da
nossa musicalidade. Ou seja, não nos obriguem ao vestuário
lusitano um povo que vive aos calores tropicais. Trabalho para
eruditos comprometidos com a brasilidade

384

Cacófonos, por exemplo. Muitas construções verbais soam


perfeitas quando ditas em português-português; já em português-
brasileiro temos que fazer ginástica olímpica para ludibriar
arranhões e cacofonias nestas mesmas frases. Ou seja, somos um
país de alegro música sinfônica, presos a uma letra feita para
guitarra melancolicamente solo, a gemer fados, réquiens e
saudades.

385

Fragmentarismo, porque o Absoluto (Platão, Hegel) não existe


ou, no mínimo, é inapreensível pelo humano. É uma ficção. Nós
que lhe damos existência. A diferença da filosofia fragmentarista
(Demócrito, Heráclito), segundo a qual Razão, Emoção,
Sexualidade apreende-se de um mundo fragmentário e em
constante devir, para a filosofia do Absoluto, da Idéia, é que - no
fundamental - O Absoluto, A Idéia, estão sempre à espera de seus
proprietários, seus donos. Os humanos têm guerreado e destruído
a fim de apoderarem-se da Idéia, do Absoluto, e assim imporem
suas vontades aos demais. Quanto aos fragmentos, bem, os
fragmentos desdenham encoleiramentos. Os fragmentos não têm
donos porque é impossível reuni-los a todos e, especialmente,
aprisioná-los no Conceito Geral. Aliando-se isso, por outro lado,
ao entendimento de cada humano como um estado alterado de
consciência, seus fragmentos são sempre só seus, lhe pertencem,
único dono. Aliás, cada humano é em si um fragmento, seu
próprio fragmento mesmo quando frente ao espelho.

386

136
O Tempo segue o Espaço. Tempo é fragmento. O Ontem, o Hoje,
o Amanhã não são absolutos nem relativos. São fragmentos que
se medem à medida de cada ser humano. Na diversidade do
nosso ser fragmentário, cada qual de nossos fragmentos vive o
tempo segundo sua própria contagem. Portanto, para alguns dos
nosso fragmentos ainda é ontem; para outros, só o hoje tem
existência real; e há aqueles que já vivem o amanhã. Exercer,
cada ser humano, o seu próprio tempo particular fragmentário é
libertar-se das coleiras dos proprietários do Tempo Absoluto, é
viver sem violentar seu tempo particular, sem agredir seu corpo-
espaço fragmentário.

387

Por conta de lhe confundirem um abutre, nenhuma águia deixa de


voar.

388

Agora que toda ideologia romântica em política esgotou seus


truques; agora que todos nos cansamos a mente palimpsesta,
sobre a qual nenhuma tinta mais deixa marcas; agora que toda a
política se reduz à realidade semântica de mera administração da
polis, polis empresarial, filiada à Holding Polis Planetária; agora
tudo se resume à luta pela sobrevivência de traços culturais
regionais na Grande Cultura Global, do bizarro ao erudito, a
mídia econômica como palco iluminado, 24 horas ao dia. Como
palavra de ordem, “as good as it gets”; ou, em bom português,
“não faz marola!”. Isto implica necessariamente em viver com o
que já se tem, pensar com o que já se pensou, acreditar no que já
se acredita, sentir com o que já se sente, sendo terminantemente
proibido tentar qualquer outra coisa que a genialidade
globalmente administrada já não tenha, genialmente,
globalmente, experimentado. Ressalve-se que é permitido chover
no molhado.

389

137
Mas a obra de arte é expressão nuclear do ser humano ligado às
fontes energéticas primevas da criação, cujas nascentes jorram
tanto da terra quanto dos céus, presentes em todo o cosmos, e
verificável apenas pela fé.

390

Negue quanto queira o poeta os conceitos de religião e divindade,


nenhum artista realiza uma obra de arte, como expressão original
da sua individualidade artística, sem fé autenticamente religiosa.

391

Saber ver no que é mínimo, o máximo, eis o olhar do poeta.


Olhos de águia, para aproximar o minúsculo, o longe, às
dimensões da proximidade; para distanciar o maiúsculo, o perto,
às dimensões das alturas.

392

Te negaste em presença do Amor? Em presença do Amor te


negaste? Tu covarde poeta não és! (Assim falou Eros)

393

Os filhos só da Terra nunca se fartam de comer a carne e beber o


sangue dos Céus. Este é um dos mistérios da antropofagia
pornográfica. Os antropófagos eróticos, miscigenando céus e
terra, juntam a fome com o prazer de comer. Este é um dos
portais da antropofagia erótica. Os futuros filhos de Eros serão
saciados em sua fome e sede de prazer.

394

Imprecisão da língua é referenciarmos um grupo de homens e


mulheres por “eles”, quando chamamos um grupo só de mulheres

138
por “elas” e um grupo só de homens também por “eles”. Não
seria mais preciso dizer no primeiro caso “eleielas”, ou algo
assim? Como dizia aquele humorista: perguntar não ofende...

395

Ao poema, mais vale a vaia da cidade dos poetas, ao menos lido,


que todo o aplauso das vãs cidadelas, que não tem ouvidos para
ouvir, olhos para ler, nem mãos a abrir o livro
A esses o poeta só se dirige por parábolas

139
396

Ao final das contas, toda ética pressupõe uma estética, que lhe é
sempre superior.

397

Todo grupamento ou movimento realmente profícuos de poetas,


pensadores, pintores, escultores, músicos e escritores, ao longo
de toda a história da arte, que não é outra senão a história da
humanidade, são sempre resultantes do livre encontro de
humanistas que levam em consideração o só este fato,
independentemente dos círculos, quadrados, lados, cores e
nebulosidades. Tudo o resto é engajado, inútil e estéril. Estética é
sempre a única, profunda e profícua Ética do Artista.

398

Sem fellatio, por exemplo, não há intimidade física; sem


intimidade física não há amor carnal; sem amor carnal todo
compromisso de fidelidade é pura repressão sexual. Ou, no
popular: qual mulher pode ser inteiramente fiel a um homem do
qual nunca lhe sentiu o sabor animal?

399

A derradeira e gloriosa vocação do ser humano é tornar-se um ser


estético; o que já implica numa ética.

400

Enfim, tudo o que precisamos é fazer avançar a idéia grega da


formação do humano: a paidéia.

401

140
Humanismo. Humanismo progressivo, romântico, radical e
dialético.

402

A Terra é a prisão da alma quanto do espírito. Paraísos e terras


prometidas são apenas sua humanização utópica. Cabe a nós,
poetas, serrar as grades dessas celas a abraçarmos todos a
vastidão dos átomos ao hálito de Deus

403

Pois não será a infinitude apenas uma prisão larguérrima? Ou, em


outros termos, a liberdade total não será apenas uma espécie de
prisão albergue, sem grades, mas ainda prisão? Só poetas sabem
que existe um outro modo de existir, um outro mundo de existir

404

Jamais esqueçamos: átomos somos, átomos abraçados pela


própria imaginação.

405

Imaginação é Razão e Emoção fazendo amor. (Assim nascem os


poetas)

406

Só os poetas, além de Deus, têm livre-arbítrio.

407

Independência e Vida! Língua Brasileira, sim; língua


polifônicamente musical. Ou, como canta Caetano Veloso:
“Deixemos os portugais morrerem à míngua, minha pátria é
minha língua”.

141
Mas não há que acreditar que só é possível filosofar em alemão.
No mínimo se chega a uma verdade tropical, com uma filosofia
do homem tropical.

142
408

Não há que temer uma invasão da ágora poética pelos jograis da


música popular. Por lá são raríssimas as naturalizações. Quanto
ao Mercado, ora o mercado!, o Mercado de Poesia só se faz com
a palavra escrita em livro. Percorram as livrarias e vejam como é
ínfima a oferta de poesia; percorram os sebos livreiros e vejam
como é ínfima a oferta de poesia. Percorram os catálogos das
editoras e vejam como é ínfima a oferta de poesia.
Mas a boa poesia nem esquenta as estantes de venda, nem esfria
as estantes dos leitores. Só é preciso avisar os editores, a
imprensa literária, e o público leitor. A recepção, pelos livros
didáticos, de jograis da música popular em nada prejudica os
poetas, muito ao contrário

409

Até porque, para o poeta, nunca é demais repetir, só existe um


mundo, uma única realidade: a realidade estética, também sua
única ética.

410

Todo poeta tem um Deus engraçado em seu coração. Um deus


que o faz grande quanto ele, poeta, se faz pequeno; um Deus que
o faz pequeno quanto se faz de grande. Um Deus que o faz reto
tanto mais curvilíneo, a brincar de caminhos

411

Parodiando Mahatma Ghandi, não há nenhum defeito naqueles


que buscam a realização erótica baseados em suas próprias luzes;
é mesmo um dever de cada um fazê-lo

412

Paraíso é Orgasmo Infinito. Tal qual se vive na Idéia; tal qual se


goza na matéria.

143
413

Dois monólogos-prelúdios, por mais que se acariciem, não fazem


um diálogo-orgasmo.

414

O poeta há que suportar com paciência e carinho as pequenas


lentes sobre os pequeninos olhos dos que os julgam. Pois são
eles, olhos sem luz, as primeiros vítimas da sua poesia

415

Não é lícito ao poeta compor sem algum tipo de ódio; às vezes, é


mesmo seu mister agarrar-se a ele

416

Cá em terras brasileiras nenhum poeta pode ser inteiramente


sério. Afinal, como já deixou célebre um presidente da França, o
Brasil não é mesmo um país sério. E por que não tirarìamos
proveito disso?

417

Jamais, mesmo em nome da Maior Luz, o poeta abdicará de suas


sombras. Na alma de qualquer poeta escuridão e luz estão sempre
se acariciando

418

No Amor, há que ser mínimo no que ela é máxima; máximo, no


que ela é mínima; e vice-versa. O difícil é convencer-se e
convencê-la disso. Afinal, antropofagicamente ainda lutamos
todos pelo leme. Enquanto o barco segue atrelado a reboque das

144
cunhadas de eros, e os árbitros de thanatos observam atentamente
os seus cronômetros

419

É no interior mesmo da sexualidade que são travadas todas as


batalhas, ora antropofágicas, da relação homem/mulher, em todos
os níveis. Não bastasse a vontade de poder, só isso já explicaria
tudo

420

Entregar-se a alma às corredeiras é abdicar de ambas as margens.


Nenhum poeta sai incólume disso. Nem infeliz.

421

Olhar a si e as pessoas todas em sua carne viva, em sua alma


aflita, esta a maldição maior do poeta. Também sua salvação

422

Caminhará o poeta pela Ironia até obter rir de si mesmo. Só


assim se livrará das cotidianas lágrimas

423

O maior atributo da alma é ser nossa fantasia sexual mais gozosa.


Ou não é?

424

Se o poeta pudesse, direcionaria toda sua sensibilidade e


inteligência para a mulher amada. Mas o poeta não pode

425

145
A ideologia da exploração utilitária vai, pouco a pouco,
substituindo a ideologia da colonização, ainda tão presente em
nossos corações e mentes, herança do nosso antigo pai-patrão. Da
Independência ou Morte! passamos à Interdependência ou Morte!
Mas os antropófagos sabem da coxa o músculo

426

Com a Globalização, os territórios nacionais vão sendo


retalhados por Setor de Produção. A Nação deixa de ser a soma
de um povo com seu território, mas a de cada comunidade
produtiva com seus respectivos meios de produção. Pouco
importará, no futuro, a que divisão territorial do mundo ora
pertencemos, mas a que setor produtivo estamos vinculados. Ou
seja, membros de Super Corporações de Ofício, não mais
cidadãos; mestres/companheiros/aprendizes, não mais classes
alta/média/baixa. Então só nos resta fechar os olhos e rezar, rezar
muito, que: ALTA IDADE MÉDIA, aí vamos nós!!!

427

Os poetas já ouvem o empilhar das toras e gravetos para as


fogueiras. A raios laser acionados por computadores, em
transmissão Ao Vivo no Horário Nobre Mundial. Talvez um
canal exclusivo, TV Thanatos, a cabo e a satélite, 24 horas no ar.

428

Clones are coming here, my drugue/ Clones are coming here to


kill, my drugue/ Clones travestidos de falsas colores/ Lamuriando
as suas dolores/ Sibilodos e roucos/ Clones bebem o sangue da
noite/ E mesmo a estrela da manhã escondem./ Desvitche!, my
drugue!/ Abafarão as luzes da tua casa/ Arrepiarão as catchas/
Farão ganir os kães/ E trazem consigo uma longa lista de
horrores./ Didn’t I say, my drugue?/ Can’t you hear o ranger dos
tambores ao longe?

429

146
O Brasil anda a precisar de um ombudsman à altura do Sérgio
Porto, o Stanislaw Ponte Preta. O Brasil só, não; é preciso um
SuperStanislaw

430

O biquinho-de-lacre pousado no ramo à janela do poeta anuncia


que a fé, a que move montanhas, nasce da alegria

431

Pessoas que se entrelaçam amorosamente poderiam viver juntas,


em nobre cortiço físico e espiritual. O casamento ao par é apenas
uma das alternativas de felicidade sexual. Não deve - nem pode -
ser descartado, pois é dele que nasce a poliamorosidade erótica.
O mote popular que diz que o difícil não é escolher uma, mas
abrir mão das outras, tem lá sua sabedoria. Então, quando ocorre
poliamorosidade recíproca, por quê não aceitá-la como um
casamento superior ao duo castrador? A ideologia das
propriedades e dos conseqüentes poderes hierarquicamente
distribuídos têm sido o entrave ao casamento poliamoroso. Mas,
quando o planeta busca globalizar suas necessidades e
satisfações, ainda fará algum sentido negar validade social à
poliamorosidade? Parem de culpar a tradição judaico-cristã-
ocidental pela negação da felicidade sexual. A Religião, em sua
essência, não nega, ao contrário, afirma e reafirma a
poliamorosidade

432

Há três modos de fazer amor: físico, emocional, cerebral. Eros é


o terno

433

Por mais que os demônios lhes aplaudam os poemas, os poetas


sempre terão anjos ao seu lado

147
434

Os assassinos de Mozart estão no Rio!/ Os assassinos de Mozart


estão sorrindo!/ Os assassinos de Mozart, they are here!/ Os
assassinos de Mozart estão agindo!/ Eles são alquímicos, e não
estão sozinhos/ São arquetípicos, e Deus e o Maligno!/ São
vingativos, em nome de Deus!/ Os assassinos de Mozart, os
assassinos!/ Os assassinos de Mozart, os assassinos!/ Retalham
aos pedaços, contabilizam direito, cada pecado seu!/ Olho por
olho, cada dente seu!/ Os assassinos de Mozart, os assassinos!/
Querem um mundo Perfeito para a glória do seu deus!/ E estão
escondidos nas linhas do seu destino/ Entre planetas e signos, nos
duendes e sílfides, da sua Imaginação!/ Os assassinos de Mozart
usam o Santo Nome em vão!

435

Nenhum poema vem para trazer a paz, mas a espada

436

O poeta sabe que o verso que dói em si dói em toda a corrente


humana que em si lhe corresponde. O mesmo para o verso que o
alegra. Mas o poeta sabe mais. Seja qual fôr o verso, o anverso
lhe exigirá seu quinhão.

437

Transferir para o campo, para o homem rural, a responsabilidade


pela produção da cultura brasileira, é o mesmo que transferir para
a urbis a responsabilidade pela produção de repolhos

438

Na política, quanto na economia, mesmo na cultura, todos


sabemos o que ocorre nos currais dos coronéis. Mas o pior de
todos, o mais asqueroso, é o coronelismo artístico

148
439

Poemar sem transgredir é como amar sem possuir

440

Sejamos sinceros: até aqui nossa identidade cultural tem oscilado


entre o Macunaíma, de Mário de Andrade, o Samba do Crioulo
Doido, de Stanislaw Ponte Preta, e A vida como ela é, de Nelson
Rodrigues. Temos sido os mestres mundiais do autoflagelo, da
autopiedade, da autocomplacência, da autodesvalorização, enfim,
da autofagia delirante. O maior complexo de inferioridade do
mundo. É hora de lançarmos ao fogo o chicote ideológico
herdado das capitanias hereditárias

441

Toda relação amorosa ainda antropofágica implica


necessariamente em sado-masoquismo mútuo. O problema do
casamento é alternar adequadamente os papéis. Coisa muito
difícil hoje em dia, em que todos só querem fazer o marquês

442

É verdade. Amai-vos Uns Aos Outros é a sublime resposta ao


comei-vos uns aos outros. Os antropófagos eróticos amam
quando comem. E lavam as mãos após as refeições.
Já é um começo

443

Ou seja, até hoje temos nos preocupado com os átomos. Chega a


hora de conhecermos os espaços vazios entre eles.

444

149
Não há pecado algum em várias pessoas se reunirem para o gozo
mútuo das respectivas sexualidades. Nenhum pecado no adultério
consentido ou complacente. Há pecado, e grave, por exemplo, em
muita hipocrisia amorosa que ocorre por aí; thanatos travestido
em eros de ferir

150
445

O poeta vive em permanente estado de sonho a realizar sua


fantasia estética. E isso é o que é O Poema. Também sua mais
profunda dor; sua mais rara e divina alegria

446

O poeta se entrega à poesia como a virgem ao seu primeiro amor;


e a faz sua como o marido em noite de núpcias.

447

Negar à obra de Paulo Coelho sua condição literária é o mesmo


que trair a iniciação provocada por um Grimm, por exemplo; ou
um Andersen. Paulo Coelho nada tem a ver com a exploração
espetaculosa de muitos best-sellers, estes sim, que expulsam das
livrarias nossa melhor literatura.

448

Um dia classificaram os humanos em duas espécies: os


emocionários e os racionários, e em cada qual segundo seu cada
qual, lançadas às chamas quaisquer resquícios do que não lhe é
próprio respectivamente. Assim, quem se emociona não tem o
direito ao pensamento; quem pensa não pode sentir. E lá vamos
nós, orgulhosos da nossa meia-humanidade, sem atentar para o
fato de que ambas as qualidades são atributos do simplesmente
ser humano.

449

O Poema espanta das coisas o feio; sopra nelas o belo.

450

O poeta não esquece que o alfabeto, as letras, são sons; assim as


palavras são sons antes de serem significantes. Portanto, no

151
poema, a sonoridade vem antes do tema. Por exemplo: por quê
certos nomes nos mobilizam mais que outros, contra ou a favor?
Porque os sons que produzem quando pronunciados, a partir de
cada letra, da união entre elas, dos sentimentos e energias, gerais
e particulares, que os compõem, dizem algo aos nossos corações
e mentes no momento mesmo em que são ouvidos pela primeira
vez. Assim, a pessoa dona do nome (o tema) é a um só tempo
sujeito e objeto dos sons que lhe correspondem.

451

Na música, como no poema, harmonia é imprescindível, mas é a


melodia que toca a alma

452

Somos filhos de um passado caótico. Toda matéria inteligente se


origina da imensidão das trevas. Basta olhar o céu à noite.
Quanto de trevas há, quanto de matéria, energia, luz? Portanto, o
passado é o caos.
Todo o esforço da humanidade reside na luta contra o caos, ou
seja, contra o passado. Aqueles que se fundam no passado só a
eles aproveita, porque mantêm os que lhes seguem na escuridão
caótica dos arquétipos primordiais.
Tais crianças presa em quarto escuro.

453

Sem alguma espécie de perigo não há O Poema. Sem alguma


espécie de coragem não há o poeta.

454

Uma barata sozinha, pequenina, engatinha ao bloco de papéis.


Isolada, asca barata, ainda mais asca. Deixo-a passar, pequenina,
majestosa, mesmo asca, porque vida.

152
Sem alguma espécie de tolice não há poesia.

455

É verdade que, como muitos apontam, nesta passagem de século,


o masculino é um sol poente que perde em brilho para a lua cheia
da feminilidade. Mas o quadro só se completa se considerarmos
as trevas e a origem da luz.

456

Ah!, poeta, quando aprenderás a odiar sem poesia?

457

Live in New York City is like a film/ Adentrar as telas de Scarlets


O’Haras/ Ela é minha Rosa Púrpura do Cairo
Liberty Statue is like a Cristo, of them/ Ôu, kiss my ass!, ôu fuck
you, sheet for all, of them
Cem Anos de Império versos Cem Anos de Solidão/ Walk! Don’t
walk! Forró!/ Beautiful Maria of my soul!
Há um novo shopping, multiplicam-se os canais de TV / Somos
todos magos, magros de fé/ Alguns esperam milagres lotéricos,
outros aguardam Ets/ Satélites traçam estradas, e a voz viaja
pelos quatro confins/ Nada há mais que pensar: somos átomos,
moléculas, DNAs
Pacem in Terra/Guerra nas Estrelas

458

Geralmente ocultam podres poderes essa preocupação com as


“nossas raízes”, com “o resgate da nossa cultura”. De mais a
mais, para falar na mesma língua, quem tem raiz é mandioca; e
para resgates existe a defesa civil.

459

153
Bruno Tolentino diz que lá em Portugal corre uma piada: “Um
intelectual brasileiro...” (risos). Pois então trago eu cá também
notícias de minha viagem a Coimbra:
E adentro eu, palpitante de emoção, a Real Biblioteca da
Universidade de Coimbra. Pois!
Maravilha arquitetônica, um teto michelângelo-sistino. Os livros,
separados dos visitantes por cordão de isolamento. Mas, curioso
para saber ao menos de que tratavam, e percebendo que sobre
cada uma das estantes havia um letreiro, estiquei-me para ler que,
sobre a primeira estava escrito simplesmente “estante”. O mesmo
para a segunda. Também sobre a terceira.
Desconfio que assim se assinalavam, paredes afora, todas as
demais.
Pois!

460

O poeta é capaz de viver uma vida inteira sem escrever O Poema.


Mas lhe será impossível deixar de amá-Lo

461

De uma vez por todas: nem todo letrista é poeta; nem toda letra
musical é poesia. Também assim, nem todo poeta é letrista, e
nem toda poesia é letra de música. Mas nada impede que se
juntem os termos.

462

É o umbigo do inimigo o que revela a convicção dO Poema.

463

Afinal, qual razão de estar a delirar antropofagias, se tudo quanto


basta a qualquer omarkháyyám é uma mulher amada, uma
paisagem amiga, e mais outra garrafa deste excelente vinho?

464

154
Sim, O Poema é Idéia. Mas isto não quer dizer que Idéia Fixa.
Tudo é em permanente devir, tudo é um vir a ser sendo. Aliás, o
poema só permanece vivo no tempo porque evolui junto com a
humanidade. Assim, Shakespeare é hoje mais que ontem, por
exemplo. De onde se conclui que a obra de arte contém em si o
germe da sua própria evolução. Evolução interativa e paradoxal.

465

O que separa Idéia e Matéria é mera incompreensão dos


paradoxos.

466

Do êxtase dos sagrados corações à agonia dos olhos lúciferes, se


fazem a si mesmo os poetas.

467

Ama, poeta, O Poema, acima de todas as coisas. Que A Poesia é


Deus.

468

Se A Poesia é Deus, O Poema é Revelação de Deus.

469

Não nos peçam definições de poesia. A Poesia é conceito.

470

Qualquer um pode julgar e condenar o desespero dos poetas;


raros são os que vêem, trás as nuvens plúmbeas, a sua luz

471

155
Pai! Perdoa essas minhas palavras quedas d’água

472

Pai! Perdoa essas minhas brasas palavras

473

Mas, para a compreensão das possibilidades de uma linguagem


planetária, é preciso partir do fato de que as línguas são fruto da
interação de um povo com a terra, a saber, além das condições e,
portanto, dos condicionamentos físicos, naturais, suas relações
com os povos circunvizinhos, sua peculiar maneira de pensar as
estrelas, e mesmo o modo como os seus indivíduos se relacionam
entre si e com o conjunto social. Ou seja, a língua é o som da
matéria em confronto com a matéria sob as almas, som material,
pois que as almas são as palavras. A língua é o som da matéria
interagindo no mundo material. Por isso, cada povo cada língua.
Cada matéria, no meio material, ao modo material, produz seus
próprios sons (materiais), sob inspiração da alma e por vocação
do que chamamos Espírito. Assim é que não existe sinonímia
absoluta entre palavras de idiomas distintos. Assim é que toda
tradução é simples aproximação do texto original. Assim é que a
Poesia, que mais diz pelo que não diz, invertendo os termos da
equação alma/matéria, sendo o som da alma, é a expressão da
criação humana que mais toca a universalidade. De qualquer
forma, e por conseguinte, uma linguagem planetária será fruto da
interação planetária, com a equalização das experiências entre
todos os povos da Terra, com a percepção comum dos diversos
modus vivendi possíveis dos humanos em todo o planeta.

474

A luz do Poema não fere a escuridão. A luz do Poema delicia a


escuridão

475

156
Expressão da matéria, cada verso será como um diamante.
Manifestação do Espírito, cada poema é um fragmento do
Coração de Deus

476

Mas a palavra é sempre a objetivação possível, por isto que, se


no interior de um mesmo grupo social, a mesma palavra
comporta nuances subjetivas de indivíduo para indivíduo, entre
os diversos povos cada palavra guarda os mistérios próprios das
respectivas experiências. Liberdade, por exemplo, não é
exatamente o mesmo que Freedom.

477

Sem dúvida nenhuma, a internet está a serviço da equalização das


experiências humanas e, portanto, é elemento de formação de
uma futura linguagem planetária. Mas, não pode ser o único. A
excessiva objetivação das experiências, embora útil para a
formação de uma linguagem comum, desprovida de relações
empíricas, materiais, físicas, pode redundar em linguagem
artificial, expressão de apenas um mínimo aspecto da vida
humana sobre a Terra, se não se fizer acompanhar de uma
necessária mobilidade dos indivíduos por entre as diversas
culturas do planeta, tanto no plano das idéias quanto no da
vivenciação física in locu.

478

Enfim, se conseguirmos arredar o real perigo dela vir a ser o


Olho do Big Brother, avoé internet!

479

Mesmo tua sorte que eu deploro/ Amando o pecado que eu te


odeio/ Quando assim te vejo não me agüento/ Te agarro, te

157
estreito, te beijo de língua e as lágrimas/ Te encho de água, ah!,
os meus beijos d’água
(Recitativo em lusitano): Se te abres, te alargas tua alma de
plástico/ Se cada orgasmo é um passo ao cadafalso/ Que morra
o enforcado!/ Cada qual no seu galho!
Até perdi, my babymab!/ Meu corpo, my babymab!/ Meu verso,
my babymab!

158
Apocalípticamente eu te amo!/ Apocalípticamente eu te adoro!/
Apocalípticamente eu te imploro!
Teus lábios de aço para os meus beijos d’água/ Enquanto a turba
lá fora uivando gritando: pecado!!!/ Enquanto apocalípticamente
eu te amo te lambo te sugo te molho/ Com meus beijos d’água!/
Mas se abro o teu mundo e não mudo de lado/ Com teus beijos
d’água teus lábios de aço tua alma de plástico/ Te esqueço e me
safo!
Que apocalipse, não!, my babymab/ Que apocalipse, não!, my
babymab/ Que apocalipse, não!, my babymab/ Que apocalipse,
não!, my babymab

480

Não se faz versos como os que levantam muros, tijolo por tijolo,
a massa forte, paredes a dividir o mundo. É poesia que não se
enxerga, do outro lado, o poema submerso, oculto, ao lado escuro
da lua.

481

Não se faz versos como os que fazem roupas da moda, tecido


com tecido, vestimenta que não veste a todos. É poesia que logo,
logo, não se usa, o tempo passa, o poema é morto.

482

Não se faz versos como os que fazem a guerra, hinos e bandeiras,


baionetas, a força bruta machucando a terra. É poesia que não se
guarda, a paz que sempre chega, o poema enterra.

483

Definitivamente, o mais essencial, obscuro, e mágico problema


da sociedade humana é o amor de expressão sexual. Ecologia e
Economia Sexuais merecem receber atenção máxima dos
filósofos, cientistas e artistas pois que umbilicalmente ligadas à
felicidade humana. Comportamento amoroso-sexual, sua

159
obtenção e deterioração dentro e fora do casamento formal ou
material tem sido a maior causa da angústia humana, sua tristeza
e infelicidade, causador maior das doenças da alma com reflexo
na saúde física. Tem sido também explorado pelos sedentos de
poder, especialmente os ocultos, utilizado para coagir e oprimir
as individualidades. É claro para os de boa vontade que a
sociedade organizada ironiza, combate e elimina o amor a dois,
aceitando-o apenas em sua expressão formal, após secá-lo de
energia vital, embora toda a superestrutura ideológica
hipocritamente finja apoiá-lo. Das duas, uma: ou se eleve a
relação erótica como categoria do sagrado, intocável, imune a
apreciações, considerações e julgamentos de qualquer que seja, a
que título for, e incentivado pela coletividade em detrimento de
quaisquer outros aspectos da organização social, ou então
sodoma e gomorra não é bem o que diz a história da civilização
ocidental.

484

Que o poeta ame é tudo quanto basta. E que deixe a verdade


(isto, sim, é poesia) suavemente deslizar ao próprio ritmo. Qual
sol nascente/poente, luar mutante, escuridão que em si mesma se
ilumina.

485

Respeito à Vida e ao Sexo, tanto quanto à ampla liberdade


individual, devem abrir a Carta Magna de todos os países do
planeta, não apenas enquanto Declaração dos Direitos
Individuais dos Humanos, mas enquanto Direito da Espécie
Humana. Algo assim como Os Dez Mandamentos.

486

As diferentes manifestações do Eros Humano, ao contrário de


serem considerados desvios a serem corrigidos pelos diversos
grupos de poder ao interior das sociedades, devem ser encaradas,

160
a par do livre exercício de cada liberdade individual, como
ampliação das possibilidades da Espécie Humana, até mesmo
genéticas. A expansão das nossas características individuais é de
acordo com o que sabemos sobre a expansão das galáxias.

487

Outro aspecto favorável ao fragmentarismo é a ampliação do


leque de informações socialmente disponíveis, reconhecendo
legitimidade e veracidade em igual força a cada uma delas. A
noção de que somos todos estados alterados de consciência, ou
de que somos parcialidades, é indissociável da idéia de
fragmentarismo.

488

Na cortiçagem sexual, na sodomia, na gomorria, na surubática


promiscuidade, talvez aí esteja a chave erótica do Amor.
Portanto, não temeis suas fantasias, suas pornografias mais
antropofágicas, ó filho amado de Eros: somos todos humanos
buscando a companhia do solidário amor.

489

Mudando de assunto: entre o mar e a montanha, a espinha dorsal


do Brasil é o litoral.

490

Nem tudo no Poema cabe em Letra ou Libreto. Já destes, tudo o


que contêm, o Poema abrange preliminarmente. Por isso, O
Poema lhes é sempre superior.

491

161
Pra não dizer que não falei de música, Rogério Duprat. Tão
genial quanto um George Martin dos Beatles; nosso arranjador
d’Os Mutantes. Música das esferas futuras.

492

Freedom! A Terra eppur si mueve/ Freedom! A Terra eppur si


mueve/ Freedom! A Terra eppur si mueve./ O OM/ Homo
Homini Lupus, ocultos/ E a voz galiléica./ À luz das esferas/ A
Terra brilha, gira, na escuridão/ O om, o om, OM./ Contra a luz
das estrelas a lei das fogueiras/ A marca dos cascos/ Carrascos
adiam/ Galáxias./ Galas, Galízias, Galiléias/ Galas, Galízias,
Galiléias/ Galas, Galízias, Galiléias/ Galas, Galízias, Galiléias
Contra a fúria das bestas o som das estrelas/ Aguça nos crânios/
Palavras ampliam/ Galáxias/ Galas, Galízias, Galiléias(...)/
Freedom!

493

Combater o opressor distante, aceitando a opressão mais


próxima, não é combate nenhum. Pois o tirano inatingível se
alimenta dos opressores cotidianos e os alimenta cotidianamente.
O primeiro opressor a ser combatido é o primeiro; o segundo, é o
segundo; o terceiro, é o terceiro; o quarto, é o quarto; e assim se
combate O Tirano. Mas, O Poema, só este combate toda a
Tirania. Por isso que a poesia os assusta a todos.

494

Responder o poeta como e porque carrega e suporta tanta dor na


alma não é tão difícil. Drummond já vos disse que Os Ombros
Suportam O Mundo. Responder como e porque prossegue poeta,
aí sim, eis uma pergunta realmente sem respostas. Nem Atlas o
poderia

495

162
Voz em nós, Éons em nós/Voz pequena, átomos, éons em
nós/Força Imensa, Das Estrelas, Tão Distantes, distantes,
distantes/Voz pequena, átomos, éons em nós/ Luz Imensa, Se te
alcançam, Minhas frágeis mãos/ Tão distantes, distantes,
distantes

496

Salvar a humanidade do enformigamento da espécie, do


apocalíptico final da espécie humana. Eis a que serve a
inutilidade da poesia e a sua vadiagem (dos poetas)

497

Antropofagia erótica é saber que em nós humanos o


antropofágico instinto sexual se transforma em afetividade
sexual.

498

O Poema se faz batendo as pedras das mãos, esquerda e direita,


uma à outra. A faísca é A Poesia. O som é O Poema.

499

A alma se obtém transformando energia em átomos, por


paradoxal que seja. Idéias, em mais energia, primeiro; muita
energia em matéria, depois. A sobrevivência da alma, portanto,
depende do peso e volume de nossas idéias. A sobrevivência da
matéria, do peso e volume das nossas energias. É o que Eros nos
ensina. Àqueles que aspiram aprender.

163
500

Mas o mistério da sexualidade é um grão de poeira cósmica


perante o mistério do Amor. Assim está inscrito nO Sorriso de
Eros

164

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