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Politica de rua Agao e encenagao no espaco piiblico ‘Auce Baus © Fouia oF S. Panto PAISAGENS PAULISTANAS A politica como acao simbélica As paisagens sio criadas pela agio humana ¢, ao se tornarem refe- réncias de tempo-espaco para as agdes e experiéncias compartilhadas, elas por sua vez realimentam 0 processo histérico, A geografia’ vem deseavolvendo 20 redor desse tema um produtivo debate, nos iltimos 20 anos, De fato, uma vez estabelecido 0 principio de que o espago eogrifico € um constructo social, tem-se argumentado que é também verdadeira a reciproca dessa afirmacio, ou seja, que as paisagens parti- cipam reflexivamente da formacao dos processos sociais. Henri Lefebvre jf afirmava em 1974 que, num jogo de mutua determinasio, o espago, sendo ele mesmo “efeito de ages passadas, permite agdes, as sugere owas probe”? Nio se pode deixar de obseevar que ha um certo paralelismo entre 6 percurso trilhado pela geografia ¢ pela antropologia em torno desta problemitica. Fm trabalhos publicados nas décadas de 50 e 60, Claude Lévi-Strauss conteibuiu decisivamente para que os estudiosos da cultu- a se afastassem criticamente da concepgio durkheimiana de que as representagdes sociais (e, entre elas a estruturagio simbalica do espago ¢ do tempo) constituiriam fatos cuja causa, origem ¢ sentido ilkimo seriam determinados pela morfologia social, Partindo da premissa de que © pensamento simblico € “o que tomna a vida social ao mesmo ‘tempo possivel ¢ necessiria”,’ esse autor produziu uma formalagio que se tornou referéneia obrigat6ria nas reflexdes sobre 0 espaco social No livre Tristestrpics, escreveu ele: {A istribuigdo circular das palhocas em torno da casa dos homens 6 de tal Impartancia, no que diz respeito & vida social @ & prtica do cuito, que os Imissionérios salesianos da regio do rio das Gargas rapidamente descobr- los a abandonar ‘ispostas em flas paralelas. Desorientados relativamente aos pontos car- deais, pivados da planta que fomece um argumento para o seu saber, 05 indigenas perdem rapidamente o sentido das tradigoes, como se 08 seus sistemas social ¢ reigioso fossem muito complicados para passarem sem © esquoma, tornado patente pola planta de aldoia o cujoe contornos so Perpetuamenie rtrescados polos seus gostos coticianos.* Consolidando o presente, testemunhando o passado ou mesmo explorando possibilidades que a historia particular de um povo nfo te ria chegado a consagrar, pata o etndlogo a estruturagio do espago no antecede nem decorre do social, mas de fato 0 constitui, mantendo esses dois niveis, entre si, nio relagdes de causa ¢ efeito, mas, antes, de interdependéneia? POLITICA DE RUA Embora a tese de Lévi-Strauss ainda prevalesa entre 08 pes- quisadores como afirmaciio genérica, permanece ainda um desafio 20s ppesquisadores sua aplieac2o a um tipo particular de objeto: a cidades industriais ¢ pos-industriais c as priticas sociais ai desenvolvidas.* Pois estas, de fato, apresentam diferencas sociolégicas fundamentais em re- lagio as vilas e aldeias, onde os etndlogos descavolveram as observa .98¢s que deram substrato empirico a suas teorias, Como argumentaram Eunice Durham ¢ Ruth Cardoso,’ hi sétios limites a aplicagio pura © simples de hipéteses ¢ a0 uso de metodologias desenvolvidas pela cexnologia a questdes que se colocam no contexto da vida urbana. Pois, se, no primeiro caso, as estruturas culturais podem ser inferidas por meio da observagio direta e do acompanhamento dos sujeitos ppesquisados em suas atividades cotidianas — devido ao fato de o conc. ta, como disse Marcel Mauss," nesses casos ser complete, ou seja, sufici- ente na qualidade de objeto de investigacio —, nos contextos urbanos fatores ausentes das situagSes observadas podem ser — e freqiien temente sio — determinantes do que se registra a partir da observagio direta Neste caso, 0s limites do objeto freqiientemente nao coinci- dem com as fronteiras fisicas dos locais onde 2 pesquisa ocorre. Essa é, na verdade, uma das teses de Manuel Castells, autor a euja obra os estu- dos urbanos devem muito. Uma perspectiva de andlise — orientada pela Gtica do materialismo histérien — eolocava em primeiro plano a analise critica dos processos de formacio do valor imobiliitio © da infraestrarura urbana. Desde logo deve-se reconhecer que ela foi — a seu tempo — tanto influente quanto produtiva, em particular, para o cconhecimento dos processos politicos e sociais formadores da econo- mia do espaco urbano e, nesse contexto, da génese ¢ do papel dos mo- Nao se pode ocultar, no entanto, que esta perspectiva de anilise acabou por produzir o que se poderia chamar de geito perverse, ao esti= ‘molar uma verdadeira cisio entre, de um lado, os estudos a respeito do espago urbano (0 edificado) ¢, de outro, aqueles sobre os processos sociais recorrentes em centros urbanos, separando em duas especia- lizagdes profissionais distintas —e que se tornaram cada vez mais distan- tes — 0 urbanismo ¢ os estudos sobre © chamado processo de urba- nizagao. No caso especifico das eiéncias sociais, que nos tocam mais de perto, apoiados nessas eriticas, muitos pesquisadores passaram & adotar — ao pé da letra — o principio metodoldgico de que sua tarefa deveria sera de desenvolver uma sociologia ou antropologie wa cidade ¢ nio da cidade, dissociando efetivamente Escola de Chica g0 denominavam ss PAISAGENS PAULISTANAS Quando desdobrada pelo viés da dimensio cultural, observa-se que essa afirmacio de exterioridade do espaco ¢ da paisagem em rela- ‘Gio 4s priticas sociais tem levado & compreensio do edificado como realidade residual, desprovida de carga simbélica especffica terreno para simplesmente determinado pela l6gica do mercado (aliés, como se esta pudesse prescindir de componentes simbélicos). Assim também, ao serem concebidas — por um olhar cujo viés € o reverso do anterior — como inc onde se formam constelacies de significados inesperados, imotivados ou context fre, a8 paisagens urbanas sdo frequentemente J- das como se edificagoes e vazios urbanos fossem simplesmente cristali- ‘zagdes dos significados articulados pelos arquitetos e urbanistas em seus projetos, livre de constrangimentos contextuais.” rroneamente convencidos quanto a auronomia desses dois pla nos (o sociale 0 espacial), também os téenicos envolvidos com as poli- ticas urbanas tém se sentido & vontade pare desautorizar —nesse reine de especialistas ¢ especialidades — os pontos de vista da populagio a respeito do futuro da cidade ¢ legitimar a concepcio de que bastariam, para se atingic um patamar adequado de qualidade de vida, os princi- piios técnicos e instramentos de planejamento deseavolvidos por urba- nistas, engenheitos ¢ economistas Em suma, a dissecagio técnica do “'fenémeno urbana” em ca ‘madas relatvamente independentes acabou tornando a cidade de pedra « cal invisivel 4 obsetvagio sociol6gica. Fsta passou a consideri-la — quando muito — realidade externa as priticas, um cenério indepen- dente ou dominio onde as relagdes € processos sociais poderiam ou aio ter lugar. Ha um problema tedrico de fundo nessa compreensio hoje em dia consagrada entre os cientistas sociais, pois ela implica a aceitacio ticita do prinefpio de que as relagGes sociais poderiam set pensadas como estando de alguma forma fora do tempo ¢ do espaco. Essa dissociagio lgica entre priticas sociais e tempo-espaco ocorre, incla- sive, nos estudos que as situam num contexto que se esteutura em fan- io da légica e determinagées da economia, pensada como um domi- hio a rigor externo, anterior e dererminante das priticas socials. Con- Forme alerta a gedgeafa Doreen Massey, a fisica ensina que é enganoso pensar que, por um lado, haja coisas (neste easo relagdes soeiis)e, por ‘outro, tempo € espaco. “Nio é que as relagdes entre of objetos ocor- ‘am no tempo € no espaco”, afirma cla, mas sio essas selagdes — elas préprias — que produzem 0 espago-tempo."” [Apesar do alerta, Massey tampouco oferece uma resposta sufi- cicnte as novas indagagdes que aqui formlo, Ela apresenta, isto sim, ‘um novo e importante desafio aos cientistas sociais, o qual, a meu ver, POLITICA DE RUA PAISAGENS PAULISTANAS ‘A dissociacdo, no plano da teoria, entre praticas sociais e espa- ‘90 urbano, ¢ particularmente flagrante nos estudos sobre acdes que intervém deliberadamente no centro das cidades, como € 0 caso de ‘manifestagdes politicas de rua, particularmente os saques e quebra-que- bras. Os estudiosos do tema," ansiosos por conhecer os efeitos pit cos desses eventos sobre a politica formal, freqiientemente se satisa- zem com um diagnéstico sobre o seu potencial conservador, andrquico 04 revolucionirio, deixando de reconhecer que essas manifestagées si, um s6 tempo, aio (atticulagZo pragmiitica entre meios e fins) e atnagao (Caunciado simbélico): rto, teatro €, por vezes, Festa, Para se entender as articulagdes entre a cultura e a politica ainda € paradigmitica a reflexio desenvolvida por E. P. Thompson sobre as turbulentas manifestagdes de protesto na Inglaterra do séeulo XVII, ‘num processo onde se configuram disputas de hegemonia.” Preocupa- do com a dimensio cultural désses acontecimentos, 0 autor traz para 0 primeizo plano “as imagens de poder ¢ autoridade” e “as mentalidades ‘populares de subordina¢ao”, como contrapartida 20 paternalismo exer- ‘ido pela nobreza, ¢ focaliza — 0 que para esta reflexio € o mais rele- vante — aquilo que designa como coniratetra, um teatro de ameaca € sedigio, feito numa linguagem cujas mudancas a0 longo da historia acompanham a fiuidez do tempo. A linguagem em que se atticula este contrateatro é 0 que mais interessa a presente reflexi -Amedida que rerocedemos a partir de 1760, entramos num mundo do sn- bolismo teatral que 6 mais dc interpreta [..] € uma linguagem de fas, pandas, advinhacses perturbadoras 1 carvaino © mastos enfetados, balacas com duple sentido politico, até da melodias assobiadas na ua. Em seu estudo, Thompson focaliza géneros pecformativos ‘da cultura popular que poem em movimento significagdes politicas meta- forizadas na ago dramitica e que, assim fizendo — poder-se-ia dizer Lopes at Nan upeaa cecloes a ee or Rntaales, 2 AMIMRIIEL on scons, ka damentando-a enquanto de um universo de consciéncia afetiva ¢ oe, TT kor cl POLITICA DE RUA € de ako valor explicativo, © pensamento de Thompson naquele estudlo ainda se prendia a uma compreensio funcionalista do processo cultu- ral, por satisfazer-se em indagar: Para que server os ritos? Por outras vias tedricas ¢ possivel avangar um pouco mais no en- tendimento das mediagdes pelas quais tal processo opers. Fagamos, pois, uum pequeno exercicio de teoria antropolégica explicita. Os principais lances do debate so os que se seguem. Edmund Leach," jé no inicio da década de 1950, argumentava {que ‘oda atividade humana, toda aclo social, além de ser meio técnico para se alcancar determinado objetivo pratico, é algo que armagena ¢ ‘transmits informagio. Vietor Turner” aprofundou essa hipétese 20 mos- ‘rar que, pelo menos na politiea e na religiio, essas snidades de arma enamenio de informagio sio também casas de fore: 'Nao estamos lidando com informago sobre uma nova técnica agricola ou tum procedimento juricica melhor: estamos aqui preocupados com os valo- res cruciais de uma comunidade de fiéis, seja ela comunidade reigiosa, nago, sociedade secreta, ou qualquer outro tipo de grupo cuja unidade Altima resida na sua orientagdo em relagdo a poderes invisiveis © ‘wanscendentais. Essa dimensio do simbélico, que Ihe confere sfcdcia, ou seja, que produz efeitos priticos sobre a acao social, é particularmente reco- nhecivel nas ceriméni descreve como por @), Mas como também as atividades corriqueieas armazenan tis significados e poténcia simbélica, infere-se que o ritual esté no cotidia- ‘no, ou, para continuar no campo das meioraseltricas, que o ritual cn direvita 0 eotidiano, projetando certos eventos num espago-tempo em. que as tensdes e conflitos estruturais podem ser explicitados, eransfor- mados ou reaficmados, em termos priticos ¢ simbélicos. Dessa forma, 6 ritual confere dimensio cosmoligica ou historica a0 que, de outro ‘modo, nio seria mais do que prosaicas ocorréncias do dia-a-dia.!* Ha importantes controvérsias te6ricas a respeito de como en- tender essa complexa articulagio entre priticas sociais e significados. A meu ver, a petspectiva mais produtiva encontra-se na obra de ‘Victor Turner, para quem a vida social se constréi “em fosdes e entre~ lacamentos de dramas vividos ¢ encenadlos” tendo essa interdependéncia “suas raizes profundas e sua fone direa no conflito social estrutural”.”” Essa hipotese leva a intexpretagio 2 se desenvolver além do que indica, PAISAGENS PAULISTANAS por exemplo, a influente teoria de Clifford Geert, autor para quem 0 {que importa ¢ claborar “uma poética, nio uma mecinica do poder” A compreensio do social como ojao simbiica — para utilizar aqui 0 conceito formulado pelo critico literério Kenneth Burke — aponta necessariamente para a articulagio entre os aspectos pragmé: ticos ¢ poéticos do real. Ela depende do entendimento dos modos de ‘nserigaa da pritica em determinado ‘diema cultural, conforme argu- ‘menta Geertz." Mas implica também a compreensio dos mecanis- mos pelos quais os significados tornam-se parte das priticas ¢ con- cepedes que constituem a experiéncia humana. Neste sentido, é pre- ciso seguir Turner € — mais do que reconstitui-los enquanto sistemas abstraros ¢ predominantemente cognitivos — situar esses textos no, contest da aiuagio.® E possivel que essas nogdes bisicas de teoria antropolégica soem esquematicas no contexto das refinadas discussdes atuais acer- ca da formagio simbélica das pritieas politieas. Ao trazer 4 tona 0 complexo ¢ primitivo subsolo de onde as assim chamadas “aces politicas diretas” derivam a sua eficicia simbélica, é preciso nio es- quecer que dos processos de formacio da consciéncia e das identida- des participam ativa ¢ poderosamente as narrativas ¢ imagens produ- vidas por instincias que hoje possuem institucionalidades proprias, que sio a comunicasio © a propaganda. O estudo daquelas priticas como formas de asio simbulica, portanto, deve também indagar (1) de que forma a estética midiética participa da formataao da realidade, desencadeando a criagio — tanto no texto quanto na atua¢io polit ca — de padres de comunicagio especificamente performativos ou rmidiiticos,” (2) até que ponto 0 estabelecimento pela midia de graus de importincia diferenciada em relagio aos acontecimentos (05 a5- suntos de que se fala € sobre os quais se eala, os que merecem manche- tee a8 pequenas notas etc) afeta a construgio das signifieacdes social- mente atribuidas a cles, © (3 ‘As quest0es so muitas, ¢ 0 escopo deste ensaio nio é 0 de ex- plori-las exaustivamente. Pretendo apenas trilhar neste capitulo essas vias analitcas, a0 narrar manifestacdes populates de protesto ocorridas| em Sio Paulo, entre 5 ¢ 9 de abril de 1983, Ao fazer isso, desenvolvo inevitavelmente algumas indagages de alcance teérico mais amplo. Em resumo, exploro neste capitulo as mediages culturais do. pro- cesso de formasio do lugar politico, no espaco urbano contemporineo, POLITICA DE RUA Argumento que as manifestagdes de rua — tal como as festas ¢ as celebragbes oficiais ou populares — consagram ritualmente con- figuragdes particulates do espaco urbano € que essas configurapdes, a0 serem incorpo- radas a experigncia e & meméria, fornecem um referencial cénieo e eareogrifico as pri ticassocias. Este ponto de vista leva neces- sariamente a revisio eritea de alguns proce- dimentos de analise tacitamente estabeleci- dos nos estudos urbanos. Saques e quebra-quebras em Sao Paulo (Os protestos tiveram inicio no bairro de Santo Amaro, como ato piblico contra © desemprego © a carestia, Transforman- do-se em saques e quebra-quebeas, eles atin- gitam, nos dias subseqiientes, o centro da ci- dade. Estas foram as primeiras manifestacoes politicas de rua desde a posse, ocorrida uma semana antes, dos governadores eleitos aps © Golpe Militar de 1964, Reconstituitei os acontecimentos a partir das matérias publica das pela Folba de S. Pando, jornal paulistano de ampla circulacio nacional; outras fontes serio utilizadas, como verses concorrentes, sobre os mesmos acontecimentos. © episédio, em seu conjunto, pode ser interpretado como um Sinieo processo ou drama em que as ages ganham a dimensio de pri- ticas de espago, ou se, formas de enunciagio que constroem « lam o lugar piblico |INode a de vida em Sfo Paulo, no iniio da her ai de mi de contexto narrativo, aconteci- mentos que poderiam ter sido qualificados como banais ¢ corriquciros GA que noticias sobre manifestagSes de protesto eram freqientes no inicio da década de 80) trancmutem-se em fato de significagio histériea | FOLIA DE S.PAULO certlondes |p = Beaten PAISAGENS PAULISTANAS diferenciada. Em outros termos, atarier de protesto © natratives mi- diiticas configuram intertextualmente um espago-tempo onde agdes ue, de outra forma, seriam simples atos pragmaticos sio fixzdas como simbolos piiblicos* Reconstituire, a seguir, 0 processo, em suas linhas enais.” 4 de abril de 1983, segunda-feira Manitestago de desempregados em Santo Amaro degenera em violéncia ‘contra © eomércio; muitos feridos; 70 presos. ‘Com essa chamada de primeira pigina, a edigio do dia 5 de abril de 1988 do jornal Foie de 5. Pao abre, em seis colunas — com a man- chete “Um dia de saques e pinico” —, a narrativa sobre ama série de ‘manifestagdes € conflitos armados envolvendo populares, politicos, ‘metciantes c as Forgas repressivas do Estado, Noticias editoraise andl fs sobre esses acontecimentos tiveram grande destaque na imprensa nacional, pelo menos até 0 dia 9 daquele més, No Largo 13 de Maio localiza-seaIgreja Matriz de Santo Amato, Esta é uma area de grande concentragio de servigos e comércio, para ‘onde converge praticamente todo o sistema de transporte publico, que atende o grande conjunto de bairros populares da Zona Sul. Essa irea € considerada “a maior cidade nordestina do Brasil”. Proximo a igreja e fo seu entorno agrupam-se, as 8 horas da mahi, os 2.500 participan tes da manifestagio popular convocada pelo Movimento Contra 0 De- semprego ¢ a Carestia. Em passeata, os manifstanta® comegam a fazer © percurso das principais ruas do bairro quando ocorre, no trajeto, 0 primeiro saque a um supermercado. A passeata ¢ interrompida pelos policais, mas prosseguem inimeros saques e protestos em varias loca- Tidades do bairzo, A partir das 15 horas, retine-se, nas escadarias da igteja, um ni mero crescente de manifestantes. io cerca de cem pessoas, chegando a perto de 500 quando se inicia um ato piblico com a presenga de diversas liderancas populares e atingindo mil. Chega a entio vereadora Luiza Erundina, que propde uma segunda passeata como encerramento paci fico da jornada. Se o ex-presidente da UNE, 0 deputado Aldo Rabelo do PCdoB, ¢ noticiado como tendo surgide precisamente is 15h41 para sxxamira liderancs do protest, segundo 0 noticicio, a futura prefeita de Sio Paulo pelo PT dhge no Fiat bance placa FU-3706, prediamente ds 16b17. Notem-se os detalhes, dignos da lupa de investigadores, que soum des- locados no telato de tio complexos acontecimentos! 2 ee ee ee POLITICA DE RUA Dois pelotdes da Tropa de Choque da Policia Militar (60 solda- dos) ealgumas unidades do Titico Mével fazem o policiamento da area. Uma barreira humana & formada pelos policiais que empurram os manic Lfestantes para mais pero da igrsja © impedem que pedestres regem a avenida, aproximando-se deles. A populacio ali reunida defende-se com pedras, equenos objetos ¢ eacos de video; vaia os policiais por cerca de 20 minutos. Enquanto isso, ¢ durante todo o dia, insimeras lojas sio invadi- das ¢ saqueadas por populares que em frente is cimeras da televsio quebra- sam mais 0 que fiesta destuid| Sio, de imediato, flagrantes, nesses acontecimentos, alguns ele= ‘mentos de ago dramitica ¢ ritualizagio, no sentido estrito do termo. O dia escolhido foi 3 de abril, 0 primeito dia de trabalho apés as come- moragdes do aniversario da Rewolyde, que se mantinha no poder desde 1964, e posse dos primeiros governadores eleitos no processo de aber- ‘ura politica. A data também tinha um significado do ponto de vista da situn¢io dos trabalhadores: pois era também o primeito dia iil da pri ‘meira semana do més, As manifestagdes tém inicio as 8 horas da manha desenvolvem-se ao longo do dia, até por volta das 18 horas, 0 centro politico e comercial do bairro, Esse conjunto de marcos temporais e de espago, com suas claras referéncias & politica nacional, a jornada de trabalho e& temitica do abastecimento da populagio, constitui um pano de fundo adequado para se ainar (n0 duplo sentido do termo) 0 drama do desemprego e da situagio de caréncia por que passa a populagio depois de 20 anos de regime militar € (para poucos) milagrosos planos econdmicos A noite, as manifestagdes transferem-se para os baieros dormi- t6rios ali, pode-se identficar uma segunda seqiiéncia dramitica. Agies desordenadas, wm verdadero cant, em que uma multidzaincontrolivel«furio- a enfrenta comerciantes armados, sio 0 tema desenvolvido pela im- prensa. Segundo os jornalistas, comerciantes defendem seus estoque mio armada enquanto viaturas policiis percorrem as ruas escuras em alta velocidade, intimidando a populagio. “Nao sabemos mais 0 que fazer; ninguém segura mais essa gente!, afirma um oficial da policia a0 reporter. Osestilos de agio adotados pelos manifestantes ¢, principalmen- te, a teatralidade do policiamento em cada uma das duas seqiiéncias (0 centro de Santo Amaro € nos bairros dormit6rios) estabelecem perfor- mativamente a alternéncia entre “lugar de trabalho” ¢ de “moradia”, o PAISAGENS PAULISTANAS senio entre “espaco piblico” e “privado”, atsibuindo-Ihes claramente as conotacdes de “ordem” e “caos”. No centro, é descrita a movimen- tasio coordenada e ensaiada dos policiais militares que, taticameete, 00 chegar, adotam, segundo a reportagem, wma formasio corcogrifica em “espinha de peixe” e que se deslocam em geupos perflados, atacando ¢ formando cordoes de isolamento ao redor dos manifestantes; é mencio- ‘nada a sua formagao em citculo, a0 construirem o que chamam de “uma batreira humana”, que procura confini-los o mais possivel no centro dda praga (no dia seguinte, 20 retomarem esta formagio, 0 ataque descri- to seri no sentido inverso, ou seja, procurarlo isolar os manifestantes, nio 08 cercando, mas investindo contra a populagdo). [Nas vias ¢ jardins onde a populacio reside, por outeo lado, sio descritos movimentos ripidos, desordenados, improvisados, quase es- pontiineos, os quai, aparentemente, nao definem como trajetorias, mas desenhos indefinids e eaéticos. Esta zona envolvente formada pelos bairros da periferia é, por- tanto, descrita como area conflagrada que circunda ¢ a0 mesmo tempo contrasta com 0 Largo Treze, compondo um ingulo de aquele “éltimo plano” de que falou Wenders” —, a partir do qual este ‘ilkimo ganha um diferencia relativo de centralidade e civilidade. ‘As natrativas da imprensa sobre os acontecimentos de Santo Amaro distinguem, de fato, quatro areas concéntricas: *+ ina periferia, descreve-se uma zona cabtica ¢ conflagrada, ter- ‘a de ninguém onde a populagio vive uma situagio de enfren- tamento diteto com a policia e com os comerciantes; + no entorno do Largo Treze, identifica-se uma versio mais branda dessa realidade delimitando-se um lugar onde, apesar dos tumultos, esté presente um certo grau de controle da or- dei publica; + a seguir, traga-se o circulo da barreira repressiva; + e finalmente, no centro, a cena principal, Nels, a populagio e a forge repressiva so apresentados como atores coletivos ¢ ilustrados por individuos que so citados individual- ‘mente, identificados por nome, fliagio politico-partidiria, ocupagio € ‘outras cartcteristicas distintivas. Os politicos em ena sio nomeados ‘com uma forte inteneio de detalhe. o sexed esorma teas mens popalar 5dea hece s tum pes manece das 10h Theres ( sam a ‘grcja.D centena ameage pondo | da vésp goverac sons ter dor des repérte licio, 0 ante da altos, popula ara qu tes sio pela po escapas passa p coreto sesiden os “tic saques! so um: POLITICA DE RUA ‘A ago dramitica compde-se de pas- scans aga hl cent cjadaa FOLIA DE perrmance gue encens a8 instiuigdes po- liticas formais, a politica partiddria e a argu- mentagio racional, atravessadas pela forca popular c a repressao policial-miltar. A violénci: 5 de abril de 1983, terca-feira No dia seguinte, o Largo Treze ama hece sitiado. Desde as 5430 da manhi, tum pesado policiamento instala-se ali, per- manecendo durante todo o dia. Por volta das 10830, algumas dezenas de homens, mu- lneres (algumas grividas) e criancas come- gam a ocupar seus lugares na escadaria da igreja. Montam guarda aproximadamente uma centena de policiais. Ha saques, tumultos ¢ ameacas de novos saques, como que recom- pondo ¢ rememorando os-acontecimentos da véspera No Palicio dos Bandeirantes, sede do governo estadual, aproximadamente mil pes- Soas tentam uma andiéncia com o governa- dor desde as 11 horas. Ele é flagrado pelos repérteres so observar, de uma janela do pa- licio, 08 manifestantes reunidos na rua. Di- ante da demora em serem atendidos, ha tu- rmultos, € derrubam-se as grades do jardim que circunda 0 palicio. A populagio € contida por policiais, enquanto se iniciam entendimentos [para que uma comissio seja recebida pelo governador: os manifestan- tes sio ouvidos, mas nenhuma medida pritica € anunciada de imediato. Por volta das 15 horas, os slkimos manifestantes sio retirados pela policia da frente do paldcio. No Largo Treze de Maio, a situagio cseapa ao controle dos policiais que “agridem indiscriminadamente” quem passa perto das cerca de mil pessoas que se aglomeram em volta do coreto da Praga Floriano Peixoto, para mais um ato piblico. Nas éreas residencias, 0s conilitos se ampliam, e prosseguem durante todo o dia fs “tos, pedradas e pancadaria”, nio se interrompendo a “onda de saques”, apesar do policiamento ostensivo. Neste segundo dia, os acontecimentos no centto de Santo Amaro sio uma versio mais branda dos da véspera e seguem aproximadamente 9s ‘PAULO. ia se alastra e PAISAGENS PAULISTANAS os mesmos padres, até a tarde, quando se acirram os eonflitos entre smanifestantes ¢ policiais no Largo Treze, 20 mesmo tempo que corre a noticia de que “um grande niimero de desempregacos” ch Coma muitipicacée dos saques, agora até no contro da cidade, o comércio {ol obrgado a cerrar as portas. Com essa manchete, a Folba anuneia, em sua edigio de 6 de abril, a crise deflagrada no centro de Sio Paulo pelos participantes das manifestacdes contra a carestia € 0 desemprego. No rastro de ‘uma vaga noticia de que os desempregados entrariam pela Ladcira General Carneiro, em direcio a zona baneéria e a Sé, os saques eclodem de fato em plena Rua Direia A primeira loja tem vitrines ¢ portas quebradas por uma multi dio que, por volta das 15 horas, age com calma suficiente para ter tem- po de escolher 0 que carregar. Na caleada, “jovens disputam ferozmen- te" televisores, aparelhos de som e agasalhos esportivos. “Mulheres, trabalhadores, desempregados ¢ idosos” invadem uma casa de modas, carregando, inclusive, os manequins. A partir dai, uma série de ages rclimpago ocorrem em ruas proximas umas das outras, transformando “o centro nervoso do meteado financciro em praga de guetta”. Pela Rua Direita, os manifestantes chegam & Praca do Patriarca; dali, tomam a rea da Rua Sio Bento (16h30) e ganham as ruas Boa Vista ¢ XV de Novembro (17h30). Nestas ruas paralelas, saques ¢ manifestagdes al- ternam-se com incursdes da policia: quando esta chega, os manifestan- tes desaparecem, retornando logo que as forgas reptessivas abando- nam o local. No Patio do Colégio (18 horas), préximo a0 Paticio da Justiga e da 1* Delegacia de Policia, cerca de 2 mil pessoas enfrentam os policiais militares aos gritos de “emprego! empregol”. Ao tentar ar- rombat os janeldes do Tribunal de Alcada Civil, um grupo é acuado por uma perua Verancio da policia, que “com os fardis e sitenes ligados foi jogada contra eles”. Se as coreografias da repressiio no baieto sugeria uma figura pulsante de eiteulos eoncéntricos, envolta por 1uma grande zona conflagrada, no Centro Velho ela assume, surpreen= dlencemente, a forma de uma lagada 20 redor do nticleo histérico da 96 POLITICA DE RUA cidade. © Fluxo das manifestagies que eclodem em diversos pontos descontinuos desenham uma evolugio de aprosimadamente trés horas, em um percurso que acompanha os eixos que delimitam chamado “teiingulo”” © ponto terminal desse trajeto é a Praca da Sé, onde, por mais de trés horas, a populagio enfrents um forte destacamento policials ao mesmo tempo, hé conflito entre centenas de manifestantes ¢ policiais de uma tropa de choque nas proximidades da Rua 24 de Maio © da ‘Avenida Ipiranga, junto & Praca da Republica. Estes relatos tém dois aepectos euriosos, que ajudam a com- preender 0 sentido destas manifestagdes: As noticias veiculadas pela imprensa mencionam o Parque Dom Peciro como ponto da suposta chegada dos desempregidos a0 cen- tro, em lugar da Praga das Bandeiras: 0 parque € 0 lugar por onde chegam as linhas de énibus que vém da Zona Leste de Sio Paulo, © no as que vém do Sul, como € o caso de Santo Amaro. ‘A longa matéria, segundo a qual os manifestantes ado teriam saqueado o bairro de Pinheitos (que aliés nao se localiza no eixo entre Santo Amaro € 0 Centro)! Estas “nio noticias” reforcam a hipétese de que a imprensa tra- balhava com o pressuposto de que as manifestacoes populares de 1983, principalmente as que ocorreram no centro hist6rico, seriam herdeias € continuadoras das passeatas de estudantes, trabalhadores ¢ populagio ‘em geral que, até 1968, famaram as principais ruas do centro, particular- mente 2 Praga da Sé, onde também faziam-se grandes comicios ¢ atos Percorrendo agora, significativamente, ‘0 caminho inverso, elas vém de um desses baitros (Santo Amaro) para © centro: mas niio passam por Pinheiros, noticia a imprensa, ¢, apesar dos temores dos lojistas, nio provém da proletiria Zona Leste, usando como porta de entrada para o centro 0 Parque Dom Pedro! Esta hipétese de que as manifestegdes de 1983 fariam ecoas, na ‘mente dos jornalistas as da década de 60, sugere que elas, exatamente como todo tito, de fato atualizam um padrio tradicional, que faz parte do repertério da cultura politica popular. Amplificando os termos do conflito esbogado na fase anterior, os protestos no centro da cidade evidenciam a real magnitude do processo que, em sintese, poderia ser formulado como a emergéncia or PAISAGENS PAULISTANAS de contrapod intervencio: ¢ fe que seri sin Asma digo da Fal chetes “O 2° prontidio” € toro promere ‘guinte do pes micleo politic ca eas dispus verno estacus ral (militar, bs de golpe de E piiblica e com Fase 3: C 6 de abril c A are Praga da Reg amanhece for rianos, tropas cia Militar. ocorrer viole io e a polic busca justific efetivamente ral e estadual sfveis bodes ¢ polifoaia das alguns, uma i dem em Sio dos 20 PCdoF dos Trabalha tam suspeitas apoio das for comandante¢ pessoas favor sugerem mec POLITICA DE RUA de contrapoderes populares, no contexto de uma esfera publica sob intervengio: €estaa base do conflito que o drama social taz a piblico, € que seri simbolicamente trabalhada por ele. ‘As matérias publicadas nessa mesma edigio da Fetha, endo como titulo as man chetes “O 2 Exéreito entra em regime de FOLIA DE S.PAULO_ * prontidio” e “A violencia se-alastra e Mon toro promete ordem”, antecipam a fase se sini | peter sins | "einer | "pcan spine do-proucenn i saqeaera un seh eee

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