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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Niterói, Rio de Janeiro

ANÁLISE FÍLMICA
“FILME DEMÊNCIA (1986)”

Trabalho realizado para a disciplina de


História do Cinema Brasileiro do curso
de Cinema e Audiovisual da
Universidade Federal Fluminense, com
orientação do professor Reinaldo
Cardenuto.

João Victor Magrani


2022
Resumo: Em 1832, Johann Goethe escreveu
“Fausto” sobre os perigos da tentação como um
veículo para a alienação. No Brasil da década de
80, o cineasta Carlos Reichenbach resgata
simbologias do texto original para delatar um
panorama de difusão do fenômeno da alienação
no contexto industrialista, recontextualizando o
mito do pacto faustiano para o período moderno.

Abstract: In 1932, Johann Goethe wrote


“Faust” about the dangers of temptation as a
vehicle to alienation. In 80’s Brasil, filmmaker
Carlos Reichenbach uses symbols from the
original text to expose the propagation of
alienation in the industrialist context,
recomtextualizng the myth of the faustian pact
to the modern age.
Análise Fílmica: Filme Demência, e a Ressignificação
de Símbolos Antigos na Construção do Mito Moderno

Apesar dos títulos diferentes, Filme Demência (1986) é uma adaptação da tragédia
épica alemã “Fausto”, de Goethe, uma das obras literárias mais importantes do mundo, escrita
em forma de poema e finalizada em 1832. Na capacidade de adaptação, entretanto, o filme
não explora a mesma continuidade narrativa que o poema que o antecedeu - tanto que o
personagem Fausto em Filme Demência recusa, a princípio, o convite do Diabo, diferente do
Fausto do poema, que o aceita sem hesitação - ao invés disso, o diretor Carlos Reichenbach
resgata da obra de Goethe uma quantidade de símbolos que ele utiliza para construir a sua
interpretação contemporânea do mito do pacto faustiano.
Dessa forma, no filme, o gênio médico e alquimista é substituído por um industrial
falido de São Paulo que se torna entediado e enfatuado com a monotonia existencial da vida
capitalista na metrópole paulista, e desenvolve uma obsessão terminal pela imagem de sonhos
de uma menina com um vestido branco e uma praia paradisíaca. Com isso, essa versão do
personagem Fausto existe como uma representação da elite financeira paulista no contexto da
crise, da redemocratização, e da desindustrialização do Brasil nos anos 80; dessensibilizado
com a corrupção da cidade, egocêntrico, e intoxicado pela própria masculinidade, no mesmo
molde de filmes estrangeiros como Clube de Luta (1999) e Psicopata Americano (2000).
Assim, enquanto o Fausto de Goethe busca no pacto demoníaco um meio de escapar
do fardo da sua própria humanidade, intelectualmente limitante, como uma ferramenta para
permitir o avanço técnico da sua sociedade; Carlos Reichenbach cria um Fausto que, em
contrapartida, lamenta o avanço técnico da sociedade e deseja escapar do fardo da civilização
em direção a um refúgio solitário dos sonhos, à luz e ao custo da sua desumanização.
Nesse sentido, a imagem da menina que usa um vestido branco, que abre o filme
dançando e se torna uma alucinação recorrente do protagonista durante o filme, representa o
anseio de Fausto por liberdade e inocência, e a divina ignorância, isso é, a infância isenta de
responsabilidades antes da penumbra da civilização. Esse desejo se constitui através dessa
referência óptica em dois sentidos: o desejo de Fausto de se isentar das pressões e cobranças
que o rodeiam, uma manifestação da síndrome do burnout, e a sua vontade de renunciar à
perversão da cidade, um elemento que é constantemente presente ao longo do filme, mas do
qual ele nunca é capaz de se desvencilhar. Além disso, a aparência "pura" da alucinação serve
também como um contraponto visual para os elementos mais perversos da civilização da qual
Fausto deseja escapar.
Nesse contexto, a narrativa de Filme Demência se dá através de uma série de eventos
oníricos que se iniciam quando Fausto decide mergulhar a pé na noite da cidade de São Paulo
atrás da experiência de libertação, após abusar e consequentemente ser rejeitado pela sua
esposa. Dessa forma, Fausto não persegue o seu desejo de escapar da cidade de primeira.
Antes disso, durante o primeiro segmento do filme, ele realiza uma pequena odisseia de
auto-degradação por bares, cinemas, esquinas, conferência, e boates de São Paulo, na qual ele
encontra com uma pilha de ladrões, marginais, prostitutas, intelectualistas prepotentes, e
outros elementos desvairados e pervertidos da cidade.
Para Fausto, as suas andanças noturnas são uma experiência desumanizante. Ele mata,
mente, seduz, é seduzido, é enganado, e considera matar um dos seus melhores amigos
devido à persistência dele na romantização poética da desgraça e perversão humana. Após
essa experiência, ele se encontra decididamente desencantado com a humanidade, e realiza
uma metamorfose espiritual de humano, cidadão, para outra coisa, um espírito do caos e da
confusão. Nesse ponto, o filme reproduz uma interpretação de autodestruição da filosofia
nihilista a partir dos personagens que vivem na noite, que é observada também em obras do
cinema marginal como Meteorango Kid - O Herói Intergaláctico (1969). Segundo essa
interpretação, a vida não faz sentido, e a sociedade contemporânea contribui para reforçar
isso com a sua obsessão por conceitos abstratos e socialmente construídos como o dinheiro, e
portanto, então, ao invés de tentar construir o seu próprio sentido significativo para a vida, o
ser humano deveria abraçar o vazio no sentido existencial, e se apropriar dos prazeres
pervertidos de compensações baratas aos quais os seus corpos físicos têm acesso.
Interessantemente, entretanto, Fausto é um protagonista, ou um "herói", contraditório
nesse sentido, porque ao mesmo tempo em que ele renuncia à sua humanidade e civilização,
ele o faz a partir da descoberta da presença abundante da depravação na sociedade em que ele
vive, e, na maior parte do filme, renúncia o que seria, na concepção cristã, as “tentações do
diabo” clássicas à experiência contemporânea, como as drogas e o sexo. Dessa forma, o
modo como ele lida com o vazio existencial entra em contraste com as ações de outros
personagens do filme que lidam com o mesmo vazio, que buscam praticar esses “pecados”
para se preencher. Em um dos momentos do filme, um amigo de Fausto o incentiva usando a
seguinte frase:
“Você agora é dos nossos, o universo dos fracassos, dos renegados, a
morgue dos alucinados, o desterro dos lúcidos, a sua falência é um estilhaço
da civilização pós moderna. Vai Fausto, aproveita esse momento de revolta
libertária e mergulha de cabeça no limbo da sociedade.”

Nesse sentido, ainda, o filme invoca a imagem de São Paulo como um purgatório,
repleto de pecadores fadados à infelicidade e incapazes de realizarem a penitência pelos seus
pecados.
Em uma das cenas do filme, durante uma conferência, o personagem do professor
(nomeado como "E.V. Stroheim" em referência ao diretor de cinema Erich von Stroheim; da
mesma forma como o nome dos outros intelectuais na cena fazem referência aos cineastas
Cléo de Verberena e Carl Theodor Dreyer) explica um pouco da personalidade de Fausto
através de uma relação com a passagem bíblica em que Jonas fica preso na barriga de um
peixe. Segundo o professor, o desejo de Jonas de escapar da barriga do peixe, que é enviado
por deus para protegê-lo do afogamento depois de um naufrágio, constitui em uma espécie de
neurose, visto que ele quer escapar do dispositivo que o protege.
Continuando, em um universo onde todas as pessoas já venderam a sua alma ao diabo
em troca de satisfações baratas, a demonização na personalidade do Fausto se dá tanto pela
sua existência na sociedade quanto pela sua vontade de fugir dela. Isso pois, mais tarde no
filme, é revelado que a imagem da menina que ele vinha perseguindo era mais uma tentação
do diabo. Dessa forma, o filme realiza a reflexão de que, ao mesmo tempo em que fazer parte
da sociedade contemporânea, compulsivamente capitalista ao passo de um capitalismo
decadente, é sinônimo de vender a sua alma ao diabo, o desejo de escapar da sociedade
também é, na medida em que o demônio Mefistófeles usa a vontade de regressão e escape de
Fausto para manipulá-lo para que ele lhe venda a sua alma. No contexto da modernização,
essa dicotomia impossível que o filme constrói é o pacto faustiano.
Outra dicotomia interessante presente na narrativa está no contraste entre a noite e o
dia. Enquanto a noite permite que os depravados se revelem, aplicando golpes em homens
que se relacionam com prostitutas e usando uma preposição pseudo-intelectual para atrair
parceiras, o dia permite que os depravados se escondem, na forma dos capitalistas traidores
que o Fausto visita. Além disso, existe a dicotomia também entre três personagens femininas:
a menina de vestido branco, e a jovem e a idosa a quem Fausto dá carona durante a sua
viagem para a sua terra prometida. Todas elas são manifestações da tentação do diabo em três
personagens diferentes, incorporando três estágios diferentes da maturidade da civilização
humana: a inocência da infância, a libertinagem da juventude, e o luto da velhice. Quanto a
personagem idosa, nota-se a construção da manipulação demoníaca quando ela incentiva o
fumo mas impede que Fausto ouça o rádio.
Ultimamente, essas interpretações sobre o filme são permitidas conforme o diretor se
apropria de unidades estéticas formais provenientes de um conjunto estabelecido de imagens
mitológicas, tornando as relações de interpretação do filme intermidiáticas. Elementos como
o nome do cigarro se chamando "Éden", e a maçã oferecida ao protagonista por uma
personificação do diabo, contribuem para a construção de uma unidade estética que resulta na
produção de sentidos da obra, elevando uma série de divagações oníricas sobre a experiência
humana dentro da civilização capitalista para um testamento denunciador da presença do mito
do pacto faustiano, e a sua metamorfose na sociedade contemporânea.

REFERÊNCIAS LITERÁRIAS:
Fausto. Alemanha. Autor: Johann Wolfgang von Goethe. 1832.

REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS:
Filme Demência. Brasil. Direção: Carlos Reichenbach, 1986.
Clube de Luta. Estados Unidos. Direção: David Fincher. 1999.
Psicopata Americano. Estados Unidos. Direção: Marry Harron: 2000.
Meteorango Kid - O Herói Intergaláctico. Brasil. Direção: André Luiz Oliveira. 1969.

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