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ANÁLISE FÍLMICA
“FILME DEMÊNCIA (1986)”
Apesar dos títulos diferentes, Filme Demência (1986) é uma adaptação da tragédia
épica alemã “Fausto”, de Goethe, uma das obras literárias mais importantes do mundo, escrita
em forma de poema e finalizada em 1832. Na capacidade de adaptação, entretanto, o filme
não explora a mesma continuidade narrativa que o poema que o antecedeu - tanto que o
personagem Fausto em Filme Demência recusa, a princípio, o convite do Diabo, diferente do
Fausto do poema, que o aceita sem hesitação - ao invés disso, o diretor Carlos Reichenbach
resgata da obra de Goethe uma quantidade de símbolos que ele utiliza para construir a sua
interpretação contemporânea do mito do pacto faustiano.
Dessa forma, no filme, o gênio médico e alquimista é substituído por um industrial
falido de São Paulo que se torna entediado e enfatuado com a monotonia existencial da vida
capitalista na metrópole paulista, e desenvolve uma obsessão terminal pela imagem de sonhos
de uma menina com um vestido branco e uma praia paradisíaca. Com isso, essa versão do
personagem Fausto existe como uma representação da elite financeira paulista no contexto da
crise, da redemocratização, e da desindustrialização do Brasil nos anos 80; dessensibilizado
com a corrupção da cidade, egocêntrico, e intoxicado pela própria masculinidade, no mesmo
molde de filmes estrangeiros como Clube de Luta (1999) e Psicopata Americano (2000).
Assim, enquanto o Fausto de Goethe busca no pacto demoníaco um meio de escapar
do fardo da sua própria humanidade, intelectualmente limitante, como uma ferramenta para
permitir o avanço técnico da sua sociedade; Carlos Reichenbach cria um Fausto que, em
contrapartida, lamenta o avanço técnico da sociedade e deseja escapar do fardo da civilização
em direção a um refúgio solitário dos sonhos, à luz e ao custo da sua desumanização.
Nesse sentido, a imagem da menina que usa um vestido branco, que abre o filme
dançando e se torna uma alucinação recorrente do protagonista durante o filme, representa o
anseio de Fausto por liberdade e inocência, e a divina ignorância, isso é, a infância isenta de
responsabilidades antes da penumbra da civilização. Esse desejo se constitui através dessa
referência óptica em dois sentidos: o desejo de Fausto de se isentar das pressões e cobranças
que o rodeiam, uma manifestação da síndrome do burnout, e a sua vontade de renunciar à
perversão da cidade, um elemento que é constantemente presente ao longo do filme, mas do
qual ele nunca é capaz de se desvencilhar. Além disso, a aparência "pura" da alucinação serve
também como um contraponto visual para os elementos mais perversos da civilização da qual
Fausto deseja escapar.
Nesse contexto, a narrativa de Filme Demência se dá através de uma série de eventos
oníricos que se iniciam quando Fausto decide mergulhar a pé na noite da cidade de São Paulo
atrás da experiência de libertação, após abusar e consequentemente ser rejeitado pela sua
esposa. Dessa forma, Fausto não persegue o seu desejo de escapar da cidade de primeira.
Antes disso, durante o primeiro segmento do filme, ele realiza uma pequena odisseia de
auto-degradação por bares, cinemas, esquinas, conferência, e boates de São Paulo, na qual ele
encontra com uma pilha de ladrões, marginais, prostitutas, intelectualistas prepotentes, e
outros elementos desvairados e pervertidos da cidade.
Para Fausto, as suas andanças noturnas são uma experiência desumanizante. Ele mata,
mente, seduz, é seduzido, é enganado, e considera matar um dos seus melhores amigos
devido à persistência dele na romantização poética da desgraça e perversão humana. Após
essa experiência, ele se encontra decididamente desencantado com a humanidade, e realiza
uma metamorfose espiritual de humano, cidadão, para outra coisa, um espírito do caos e da
confusão. Nesse ponto, o filme reproduz uma interpretação de autodestruição da filosofia
nihilista a partir dos personagens que vivem na noite, que é observada também em obras do
cinema marginal como Meteorango Kid - O Herói Intergaláctico (1969). Segundo essa
interpretação, a vida não faz sentido, e a sociedade contemporânea contribui para reforçar
isso com a sua obsessão por conceitos abstratos e socialmente construídos como o dinheiro, e
portanto, então, ao invés de tentar construir o seu próprio sentido significativo para a vida, o
ser humano deveria abraçar o vazio no sentido existencial, e se apropriar dos prazeres
pervertidos de compensações baratas aos quais os seus corpos físicos têm acesso.
Interessantemente, entretanto, Fausto é um protagonista, ou um "herói", contraditório
nesse sentido, porque ao mesmo tempo em que ele renuncia à sua humanidade e civilização,
ele o faz a partir da descoberta da presença abundante da depravação na sociedade em que ele
vive, e, na maior parte do filme, renúncia o que seria, na concepção cristã, as “tentações do
diabo” clássicas à experiência contemporânea, como as drogas e o sexo. Dessa forma, o
modo como ele lida com o vazio existencial entra em contraste com as ações de outros
personagens do filme que lidam com o mesmo vazio, que buscam praticar esses “pecados”
para se preencher. Em um dos momentos do filme, um amigo de Fausto o incentiva usando a
seguinte frase:
“Você agora é dos nossos, o universo dos fracassos, dos renegados, a
morgue dos alucinados, o desterro dos lúcidos, a sua falência é um estilhaço
da civilização pós moderna. Vai Fausto, aproveita esse momento de revolta
libertária e mergulha de cabeça no limbo da sociedade.”
Nesse sentido, ainda, o filme invoca a imagem de São Paulo como um purgatório,
repleto de pecadores fadados à infelicidade e incapazes de realizarem a penitência pelos seus
pecados.
Em uma das cenas do filme, durante uma conferência, o personagem do professor
(nomeado como "E.V. Stroheim" em referência ao diretor de cinema Erich von Stroheim; da
mesma forma como o nome dos outros intelectuais na cena fazem referência aos cineastas
Cléo de Verberena e Carl Theodor Dreyer) explica um pouco da personalidade de Fausto
através de uma relação com a passagem bíblica em que Jonas fica preso na barriga de um
peixe. Segundo o professor, o desejo de Jonas de escapar da barriga do peixe, que é enviado
por deus para protegê-lo do afogamento depois de um naufrágio, constitui em uma espécie de
neurose, visto que ele quer escapar do dispositivo que o protege.
Continuando, em um universo onde todas as pessoas já venderam a sua alma ao diabo
em troca de satisfações baratas, a demonização na personalidade do Fausto se dá tanto pela
sua existência na sociedade quanto pela sua vontade de fugir dela. Isso pois, mais tarde no
filme, é revelado que a imagem da menina que ele vinha perseguindo era mais uma tentação
do diabo. Dessa forma, o filme realiza a reflexão de que, ao mesmo tempo em que fazer parte
da sociedade contemporânea, compulsivamente capitalista ao passo de um capitalismo
decadente, é sinônimo de vender a sua alma ao diabo, o desejo de escapar da sociedade
também é, na medida em que o demônio Mefistófeles usa a vontade de regressão e escape de
Fausto para manipulá-lo para que ele lhe venda a sua alma. No contexto da modernização,
essa dicotomia impossível que o filme constrói é o pacto faustiano.
Outra dicotomia interessante presente na narrativa está no contraste entre a noite e o
dia. Enquanto a noite permite que os depravados se revelem, aplicando golpes em homens
que se relacionam com prostitutas e usando uma preposição pseudo-intelectual para atrair
parceiras, o dia permite que os depravados se escondem, na forma dos capitalistas traidores
que o Fausto visita. Além disso, existe a dicotomia também entre três personagens femininas:
a menina de vestido branco, e a jovem e a idosa a quem Fausto dá carona durante a sua
viagem para a sua terra prometida. Todas elas são manifestações da tentação do diabo em três
personagens diferentes, incorporando três estágios diferentes da maturidade da civilização
humana: a inocência da infância, a libertinagem da juventude, e o luto da velhice. Quanto a
personagem idosa, nota-se a construção da manipulação demoníaca quando ela incentiva o
fumo mas impede que Fausto ouça o rádio.
Ultimamente, essas interpretações sobre o filme são permitidas conforme o diretor se
apropria de unidades estéticas formais provenientes de um conjunto estabelecido de imagens
mitológicas, tornando as relações de interpretação do filme intermidiáticas. Elementos como
o nome do cigarro se chamando "Éden", e a maçã oferecida ao protagonista por uma
personificação do diabo, contribuem para a construção de uma unidade estética que resulta na
produção de sentidos da obra, elevando uma série de divagações oníricas sobre a experiência
humana dentro da civilização capitalista para um testamento denunciador da presença do mito
do pacto faustiano, e a sua metamorfose na sociedade contemporânea.
REFERÊNCIAS LITERÁRIAS:
Fausto. Alemanha. Autor: Johann Wolfgang von Goethe. 1832.
REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS:
Filme Demência. Brasil. Direção: Carlos Reichenbach, 1986.
Clube de Luta. Estados Unidos. Direção: David Fincher. 1999.
Psicopata Americano. Estados Unidos. Direção: Marry Harron: 2000.
Meteorango Kid - O Herói Intergaláctico. Brasil. Direção: André Luiz Oliveira. 1969.