Você está na página 1de 17
Expediente|C&A|28 Reitor Centro de Citncias Rurais Cenero de Cigneias Nawrais © Exatas Centro de Ciéneias Sociais © Humanas Editor Editores Convidados Conselho Editorial Conselho Consultivo Anilise, prepara Edlvoragio de texto e programagio visual € revisio de texto Tsteagio da capa Impressio e aeabamento Ciencia & Ambiente Universidade Federal de Santa Maria Prédio 13/CCNE ~ Sala 1110 ~ Campus Universitério ~ Camobi Santa Maria ~ Rio Grande do Sul ~ Brasil Fones: (55)2208735 ¢ (55)2208444/ramal 30 ambiente @cene.ufsm.br ‘wwwufsm.br/cienciacambiente icin & Ambiente/ Universidade FedraldeSantaDtira, UPSM-v. tym 992)- Sina a copes CDU«o5) FFeksciboradpor Marlene lr, CRB O51 ISSN 1676-4188 ‘A Revista Cigncia & Ambiente & indexada a0 LATINDEX ~ Sistema Regional de Tnformacién em Linea pars Revistas Cientficss de Amévica Latina cl Caribe, Espana y Portugal, UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA Paulo forge Sarkis Luiz Carlos de Pellegrini ~ Divetor Edgardo Ramos Medeiros ~ Diretar Joio Manoel Espina Rosses ~ Diretor Delmar Antonio Bressa Ronsi Pires da Rocha Antonio Augusto Pasos Videira Beatrie Teieiva Weber Elgion Loreto José Newton Cardoso Marchior Miguel Antzo. Durlo Ronai Pires da Rocha Ronaldo Mota Zila Mare Scerpari Alvaro Mones André Furtado “Anuvey Rosenthal Scblee ‘Aziz Nacil Ab'Saber ‘Antonio Carlos Robert Moraes Emilio Ulibars Franz Andree Lise Masseroni Luiz Antonio de Assis Brasil Pascal Acot Zilia. Mara Searpari Ver Anvonio Nol Filho Bech Reverbel de Souza Ecdivora Palloti/Sente Maria Editc Aescol Ciéncia & Natureza — que devem leitores. A um numerc exame da m to de vista f incluir 0 en conhecimen da familia d “cigncia” e quase quinz havia receb Mesmc capaz de fa tada, Esse ¢ s6 tempo, sido estuda da filosofia mento na mano em q na, a “Filo pensadore Schelling ses filésofe t6ria da fil magio de préprios, € pressio foi O cres no século 1 cou um en pectos que HISTORIA NATURAL E TELEOLOGIA Ricardo José Corréa Barbosa se um no as. ‘k As afinidades entre o tipo de consideragao teleolégica da natiereza, advogado por Richard Dazwkins, ¢ os argumentos de Kant acerca da legitimidade de qualquer jutzo sobre os fins da natureza, implicam nao apenas a recusa de todo “designio do divino” e do problema das possibilidades da biologia — 0 que el ndo seria pouco. Elas recaem também sobre os nexos entre viae necessidade, liberdade e finalidade, estendendo-se ainda a tein um conceito enfético de natureza. A dimensao especulativa ene deste conceito foi desdobrada com notével vigor pelo joven ies Schelling, Suas teses sobre a taref da filosofia e de uma filo- sas, sofia da natureza se ergueram em confronto com Kant. Elas ima, se deixam reformular em proveito da determinagao de um lea principio materialista para uma filosofia da natureza. Que ser, este principio seja permedvel a consideracao teleolégica néo dogmtica da natureza, prépria 4 visio darwinista da vida, € 0 que se deixa transparecer nas reflexdes filosdficas de Davokins | DAWKINS, R. O relojosivo cega. A teoria da evolucio contra 0 designio divine, 810 Paulo: Companhia das Le- tras, 2003. p. 21. 2 DAWKINS, R. O relojociro ego. p. 22. 5 Hiniria natural « clelogia Dawkins ¢ 0 dedo de Deus Em O relojaciro cego, Richard Dawkins conta que chegou ao titulo deste livro inspirado na obra do tedlogo William Paley, Teologia natural ~ ou evidéncias da existéncia € dos atributos da divindade reunidos a partir de fenémenos da natureza, de 1802. Segundo ele, o “argumento do desig- nio’, advogado por Paley, seria “até hoje o mais influente dos argumentos em favor da existéncia de um Deus.”! Na- turalmente, Dawkins nfo eserevew seu livro no intuito de refutar uma obra surgida hé tanto tempo ¢ sim para mostrar, entre outras coisas, como temos de nos comportar cogniti- vamente diante do que ele chama “as coisas complexas” ~ os organismos. Dawkins recorda que Paley comeca sua exposigio recorrendo a uma situagio trivial: a de alguém ‘que, passcando, encontrasse uma pedra e um rel6gio no chio e se perguntasse sobre como eles vieram a estar ali Ele certamente nio poderia dizer que 0 relégio, como a pedra, “devia estar ali desde sempre”, pois rel6gio é um artefato, um produto do trabalho humano, conecbido clara- mente segundo um propésito.” Tal criatura seria impensivel sem um criador. Para Paley, este pensamento nio se impu- nha apenas diante das obras da técnica humana, pois mesmo as obras da natureza s6 se deixariam explicar se referidas a um eriador. Paley procedia mediante uma analogia entre 0 trabs- tho humano e a produtividade da natureza, ¢ assim explicava © telescdpio © 0 olho humano, o relégio © um ser vivo. Como veremos, esta analogia corresponde a0 que Kant chamava de antropomorfismo dogmatico. Dawkins nio re- corre a Kant para pulverizar as pretensdes de Paley, e sim a Darwin. “E falsa a analogia entre o telescdpio ¢ 0 olho, entre 0 rel6gio e 0 organismo vivo. A despeito de todas as aparéncias, Os tinicos relojociros da natureza sio as forgas cegas da fisica, ainda que atuem de um modo muito espe- cial. Um verdadeiro relojociro possui antevisio: ele projeta suas molas e engrenagens e planeja suas conexdes imaginan- do 0 resultado final com um propésito em mente. A selegéo natural, © processo cego, inconsciente e automético que Darwin descobriu ¢ que agora sabemos ser a explicacio para a existéncia e para a forma aparentemente premeditada de todos os seres vivos, nio tem nenhum propésito em mente. Ele ndo tem nem mente nem capacidade de imagi- nacio. Nao planeja com vistas ao futuro. Nio tem visio nem antevisio. Se € que se pode dizer que ele desempenha © papel de relojociro da natureza, € 0 papel de um “relojociro Citncia & Ambiente 28 DAWKID ego. p. DAWKIN cago. pe DAVE, cope. pe? DENN’ idéia de de Janein DAWKINS, R. 0 relojoeiro ego. p. 23-4 DAWKINS, RO relojociro cago. ps 2 DAWKINS, R. relojocine cate. p. 24 DENNETT, D. A perigoss idéis de Darin. & rolucio € 06 sigaifcados da vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, Ricardo José Corrie Barbous cego.”* Esta é a tese de Dawkins. Nao ha divide de que ela se apresenta como um argumento contra qualquer tentativa de uma prova fisica da existéncia de Deus. Mas € correto compreendé-la como um argumento contra a teleologi Dawkins também conta que, certa vez, ao jantar com um amigo fildsofo, disse a ele que nio podia imaginar como alguém poderia ser ateu antes da publicagio de A origem das espécies, em 1859. — “*E quanto a Hume?’, retrucou o fi- Issofo. ‘Como Hume explicava a complexidade organizada do mundo vivo?’, perguntei. ‘Nao explicava’, disse o fil6so- fo. ‘Por que isso precisaria de uma explicagio especial?’ Para Dawkins ~ como para Paley e Darwin ~ tal explicagio era necessiria, “Quanto a David Hume, hé quem diga que © grande filésofo escocés deu cabo ao Argumento do De- signio um século antes de Darwin. Na verdade, 0 que Hume fez foi criticar a légica de se usar um apatente de- signio como prova irrefiidvel da existéncia de um Deus. Ele io apresentou nenhuma explicagio alternativa pata esse aparente designio, mas deixou a questio em aberto.”* E curioso que Dawkins nio se lembre de Kant, assim como Daniel Dennett recorra a0 Hume dos Didlogos sobre a re~ ligizo natural, mas também sem referit-se a Kant sob este aspecto tio decisivo.‘ Afinal, se alguém “dew cabo ao Argu- mento do Designio”, oferecendo uma “explicagio alternati- va”, esse alguém foi precisamente Kant. Mas 0 que é mes- mo curioso nio é Dawkins ignorar Kant, e sim a concor- dincia entre 0 seu modo de considerar a natureza e a ati- tude teleol6gica nio-dogmatica que Kant advogara na Cré- tica da faculdade do jufzo. Em outras palavras, O relojoeiro cego é uma brilhante defesa da necessidade de uma conside- ragio teleoldgica da natureza semelhante a esta Creio que a relevincia filoséfica desta obra consist isso ~ ¢ no no esforgo do autor para obter uma espécie de prova fisica da inexisténcia de Deus. Nao quero dizer com isso que Dawkins perdeu o seu tempo atirando num “cachorro morto”, As crencas nio morrem como cachor- ros, mas 4s vezes mordem como eles e se reproduzem como animais mais eficientes. Dawkins € um iluminista que nio recua diante das velhas ¢ novas formas de obscurantis- mo, superstigao e empulhagio em massa. Ele sabe que a hist6ria da espécie humana caminha em ritmos culturalmen- te heterogéneos e que a ira divina ainda opera milagres desastrosos pelas mios de criscionistas raivosos. O discur- so de Dawkins a beira do timulo do bom Deus ainda faz muito sentido. Mas 0 que nos interessa aqui é 0 que jaz além desse enterro: as “memérias péstumas” do finado, JencivolJuno de 2004 38 KANT, 1. Cris de fold de do juizo. Rio. de Janeiro: Foronse Universtéria, (993, BIXXV, © RANT, L Crtice de faculdae de do juézo. BXXVL 56 Hisrvia nacural e wleologis Kant ea finalidade da natureza Kant jé havia notado que s6 podemos falar de uma finalidade da natureza porque tomamos esta nogio empres- tada 4 “arte humana” ea usamos como um prinefpio regu- lative para a consideracio da natureza em suas partes ¢ como um todo. A Critica da faculdade do jutzo se deixa ler como uma investigacio sobre as condigées de possibilidade da biologia, embora de modo algum se reduza a isto. No que se segue, nio poderei tratar de todos os problemas discutidos nesta obra, nem dos detalhes de sua posicio no pensamento de Kant. Devo limitar-me a uns poucos concei: tos, a comecar pelo da faculdade do juizo. Em que consiste esta faculdade ¢ por que tomé-la como uma faculdade legis- ladora a priori? — ou seja, capaz de um principio néo-em- pitico, mas impreseindivel para nossa orientagio na expe- rigncia, “A faculdade do juizo em geral”, diz Kant, “€ a faculdade de pensar © particular como contido no univer- sal."” Ela seré determinante se 0 universal (a regra, o princi- pio, a lei), sob o qual subsume o particular, estiver dado. Bla sera reflexiva se apenas o particular estiver dado e tiver de encontrar 0 universal sob 0 qual ele deverd ser subsumi= do. © juizo determinante ¢ concebido sob leis dadas « priori pelo entendimento. Ele nos oferece uma imagem da natureza tio somente como um sistema mecénico. Ocorre que estas leis — que para Kant eram as leis da fisica de Newton — nao esgotam a diversidade ¢ a complexidade da natureza. Como lidar com os organismos? Eles certamente estio sob as leis naturais universais, mas néo se deixam explicar por elas. B preciso entio buscar outras leis que, embora contingentes (empiricas), tém de ser tomadas como necessarias “a partir de um principio (ainda que desconhe- cido por nés) da unidade do miiltiplo™. Esta é a tarefa da faculdade do juizo diante dos animais € dos vegetais. E é isto 0 que Dawkins faz quando, por exemplo, discorre mi- nuciosamente sobre morcegos ¢ figos. Para isso, 0 juizo reflexivo precisa de um prinefpio. Ele nio poder tomé-lo A experigncia, porque este prinefpio devers servir de funda- mento para a unidade de todos os principios empiricos, unidade que se ergue sobre prinefpios igualmente empiri- cos, embora mais elevados, de tal modo que aquele prinef- pio possa garantir a possibilidade da subordinagio sistema- tica destes, tornando possivel, por exemplo, a classificagio dos seres vivos. Citucis & Ambiente 28 ” RANT, Lc do jutzo. B "KANT, LC da juivo, B MRANT, 1. de do ize KANT LG do jutzo. B ° KANT, 1. Citic de feoudede do jnizo, B XVI. "KANT, I. Cros de facade dd juizo, B XXVILL M1 KANT, 1 Critics da ful de do jutzo, BXXIX. 8 KANT, L Critic da facade do jutze. B XXXIV. Ricardo José Cones Barbosa O principio transcendental que a faculdade do juizo di a si mesma € 0 seguinte: “as leis empiricas particulares, tem vista do que nela foi deixado indeterminado por aquelas leis universais, tém que ser consideradas segundo uma uni dade tal como se um entendimento (ainda que nio 0 nosso) as tivesse dado para bem de nossas faculdades de conheci- mento, a fim de tornar possivel um sistema da experiéncia segundo leis particulares da natureza.”? Em outras palavras: Porque aqui 0 conceito de um objeto, na medida em que contém ao mesmo tempo o fundamento da realidade desse objeto, chama-se lim, ¢ porque a concordincia de uma coisa com aquele cardter das coisas somente pos- sivel segundo fins chama-se conformidade a fins (Zweckmissigkeit) de forma das mesmas, 0 principio da faculdade do juizo, em viste da forma das coisas da natureza sob leis empivicas em geral, é finalidade da natureza em sua multiplicidade. Ou seja, a natureza € ropresentada de tal maneira por esse conceito como se zum entendimento contivesseo fundamento da unidade do mitltiplo das leis empiricas da natureza.”® A chave do argumento de Kant esté numa expressio que se repete nestas passagens ¢ em muitas outras de suas obras: como se (als ob). Por fora de nossa propria consti- twigio, temos de considerar a natureza como se ela tivesse sido projetada por um outro entendimento, uma outra inte- ligéncia que nao a nossa ~ uma inteligéneia tal que projetou a natureza € a n6s mesmos na perspectiva de um acordo possivel entre os fenémenos naturais e a nossa faculdade de conhecer estes fendmenos segundo leis estabelecidas por nds. Um principio transcendental, diz Kant, “€ aquele através do qual é representada a tnica condigio universal a priori segundo a qual coisas podem se tornar objetos do ‘nosso conhecimento em geral.”"’ Como o principio da fina- lidade é um principio transcendental, ele carece de uma dedusao, pela qual seu fundamento seri buscado nas fontes do conhecimento a priori. Afinal, com que direiso podemos considerar a natureza como um vasto e complexo sistema de fins? Com que direito recorremos a causas finais na explicagio da natureza? Para Kant, 0 conceito transcenden- tal de uma finalidade da navureza “apenas representa a tinica maneira como temos de proceder na reflexio sobre os objetos da natureza no propésito de uma experiéncia coe- rentemente concatenada”, sendo por isso apenas “um prin~ cipio subjetivo (maxima) da faculdade do juizo”*. A fina- lidade da natureza para 0 conhecimento humano resulta en- JaneivotJunbo de 2008 3 RANT, 1 Grin de frldade dd juiza. B XXXVE M KANT, 1. Critics da falda dde do jutzo, B 286. 'S KANT, 1. Citi de facade do juita, B 29866, KANT, f Polegomene TAD sce lao ea Fisie e cf Ae Kean! 95, Ais ine I ee se Historia natural © teleologi tio num principio a priori para a possibilidade da natureza, prescrevendo uma lei para a faculdade do juizo reflexiva: a “lei da especifiagzo da natureza em vista de suas leis em- pfricas, a qual a faculdade do juizo nio conhece a priori na hatureza, mas admite em prol de uma ordenacio da nature- za, cognoscivel pelo nosso entendimento, na divisio que faz das leis universais dela, se quer subordinar a essas uma multplicidade de leis particulares.” ‘Uma coisa é um fim da natureza quando é ao mesmo tempo causa e efeito dela mesma. A relagio das parces entre sie com o todo é tal que nos permite vé-la como um ser auto-organizado. O principio da finalidade interna, “que a0 mesmo tempo a definicdo dos seres organizados, é 0 seguinte: um produto organizado da natureza & aquele em que tudo é reciprocamente fim e meio, Nada nele € em vio, sem fim ow atribuivel a um mecanismo natural cego”," ov seja, ao mero acaso. Embora a simples observagio dos seres vi- vyos nos sugira este principio, a forga que ligamos a ele, a pretensio de universalidade ¢ feceséidade com a°qual'6 exguemos no, pode estar fundada na experiéncia, mas tio sonrenve ton Sdgga catbeeeigd? Bete principio we de sex um principio a priori, embora apenas subjetivo. Ele tem como fundamento a idéia de um fim da nacureza como uma idéia reguladora, pela qual nos orientamos na experiéncia em busca de suas leis particulares. ‘Assim, a finalidade da natureza é um conceito a priori, que temonta exclusivamente 4 faculdade do. juizo reflexiva, Ele pode ser usado apenas para refletir sobre a natureza desde 0 ponto de vista da vinculagio dos fenéme- nos segundo leis empiticas. Embora este conceito scja dix ferente do da finalidade pritica da “arte humana” ov dos costumes, ele € pensado em analogia com ela. Esta observa- gio é muito importante, pois deixa ver a origem assumida- ‘mente antropomérfica do principio da conformidade a fins. E para que nao reste nenhuma divida sobre isso, gostaria de citar uma passagem de Kant muito esclarecedora: Quando digo que somos obrigados « ver 0 mundo como 8 ele fosse a obra de um entendimento e de wma von- tade supremas, néo digo na realidade mais do que: assim como um reldgio, um navio, um regimento, se referem ao velojocira, ao construtor, ao comandante, assim o mundo sensivel (a1 tudo gute constitu’ fur damento deste complexo de fendmenos) refere-se ao desconhecido, que através disso conheco aio segundo o que & em si mesmo, mas segundo 6 que é para mim) a saber, em visea do mundo, do qual sou parte.” Citncia & Ambiente 28 “RANT, 1 A756, "RANT, 1.¢ do jntzo. E Ricardo José Corte Barbous Este conhecimento, diz Kant logo em seguida, é um conhecimento por analogia, ou seja, por “uma semelhanga perfeita de duas relacdes entre coisas completamente des- semelhantes. Por meio desta analogia resta-nos um conceito do ente supremo suficientemente determinado para nés, embora tenhamos de deixar de lado tudo que poderia deter- miné-lo absolutamente em si mesmo; pois nés o determina- mos respectivamente ao mundo e, portanto, a nés, ¢ nio P RANT, 1 Prolegoment necessitamos mais do que isto.”” A786, Isto significa que devemos considerar nao s6 0s seres organizados, mas a natureza no todo e em suas partes, como se fossem o produto de um outro entendimento que néo 0 humano ~ um entendimento que dispés tudo quanto existe segundo determinadas leis e uma determinada técnica. Nada disso, porém, autoriza uma teologia fisica, pela qual aquele outro entendimento fosse diretamente assimilado a Deus, tornando possivel uma prova fisica de sua existéncia e de suas intengées. Para que’ Fisica assim permanegarigorosamente nos seus limites, abserai-se da questo de saber se os fins nnaturais sao intencionais ov nio intencionais, pois 30 serum omit asmt aen e de respeto (a saber, o da metsfsia). Basta que existam obetos rae finiea e cdi heten ue eis da natures, que somente podemos pensar sob a idéia dos fins ome rine ingemtnte dete anc cognosciveis sein a sua forma intern, e mesmo s6 KANT, Cutie de fede ntermamente.™ Stele MEE O que se espera aqui do fisico estende-se ao bidlog: enquanto considera as coisas como se fossem o produto de tum entendimento que nio o nosso, faz de “Deus” uma espécie de fiecio stil, na medida mesma em que o principio da conformidade a fins é um principio anteopomérfico, mas simbélieo, ou sea, “que de fato diz respeito apenas & lingua. RANT, 1. Prolegmene we. gem € m0 a0 proprio objeto.” A175) Necessidade, liberdade e finalidade © “sentido racional” da teleologia consiste em que 0 2 modo préprio pelo qual a natureza opera — a técnica da natureza como um sistema produtivo auto-organizado s6 € compreensivel por analogia com 0 modo préprio pelo qual o homem opera, ou seja, por analogia com o trabalho como sua atividade vital. Isto significa que temos de consi derar os organismos como produtos nos colocar na pos gio do produtor. Bsta € precisamente a atitude advogada por Richard Dawkins e Daniel Dennett, Mesmo depois que Jancirol}unho de 2004 89 ® DAWKINS, R. O rio que sis do Eden. Rio de Jane: Rocco, 1996, p. 91 © 93. ‘DAWKINS, R. O vio que sais do Eden. p98. DAWKINS, R. O rie que sain do Eden. p. 96 ® DAWKINS, R. O rio que sis do Eden. 9. 97 DAWKINS, RO rio gue tate do Eden. p. 108 2 DAWKINS, R. O relojociro emg. pe Te © Histria naural e eleoogia 4 nossa imagem da natureza foi inteiramente revolucionada por Darwin, este principio continua a reivindicar sua vali- dade, na medida em que orienta a prética do cientista nacu- ral. Assim, por exemplo, Dawkins explica que os darwinis- tas efetivamente perguntam acerca do “por que” ¢ do “para que” dos seres vivos, mas sempre num sentido metaférico, considerando qualquer organismo “como se tivesse sido planejado”.” E segundo este ponto de vista que Dawkins fala na “fungao de utilidade de Deus” e, secundando Dennett, em “engenharia reversa”®, Este conceito € tipica- mente reconstrutivo. Diante de um constructo como um organismo, 0 bidlogo-engenheiro se pergunta como o teria construido, como 0 teria projetado segundo um determina- do propésito. Jé a “fungi de utilidade” € um conceito usado por economistas € diz respeito ao que é de algum modo maximizado num sistema produtivo. Ao considerar os seres vivos sob este aspecto, Dawkins admite a existéncia de muitas fungdes de utilidade, pois o processo biolégico- evolutivo estaria maximizando vérias coisas a0 mesmo tem- po, mas sua tese é a de que “finalmente elas se mostrariam redutiveis 2 uma, Uma boa maneira de dramatizar a nossa tarefa imaginar que as criaturas vivas foram feitas por um Engenheiro Divino e tentar entender a partir disto, com a cengenharia reversa, 0 que Engenheiro estava tentando ma- ximizar, Qual era a fungio de utilidade de Deus?”", A res- posta de Dawkins é conhecida: “o que esti sendo maximiza- do é a sobrevivéncia do ADN.”® O trago fundamental des- te processo 0 que ele chama metaforicamente de “egois- mo” dos genes, ou seja, a tese de que o bem-estar do grupo ow da espécie “é sempre uma conseqiiéncia fortuita, € nio uum motivo primério." ‘A conlianga de Dawkins no darwinismo parece ilimi- tada, Para ele, “nossa existéncia j& foi o maior de todos os mistérios, mas deixou de sé-lo — pois “a visio de mundo darwiniana nfo apenas é verdadeira, mas é também a tinica teoria conhecida que poderia em prinefpio solucionar 0 mistério de nossa existéncia. Isso faz, dela uma teoria dupla- ‘mente satisfat6ria: hi boas razdes para crer que o darwinis- mo vale no s6 para este planeta, mas para todo 0 universo, conde quer que se encontre alguma forma de vida."* Nao ereio que Dawkins pudesse afirmar em boa consciéncia que 6 mistério da nossa existéncia foi esgotado. A rigor, ele esta convencido de que agora dispomos dos meios para desven- di-lo. Mas, se se admite que 0 maior de todos os mistérios € 0 da nossa existéncia, se se admice também que tal misté- rio tornou-se de certo modo menos insondavel com 0 que Citneia © Ambiente 28 Ricardo Jost Coréa Barbose parece ser a queda de uma iiltima fronteira, um iiltimo obs- ticulo para o inicio de uma compreensio adequada do ho- mem ~ a crenga ingénva na existéncia de Deus ~ a pergunta pelo homem ressurge com toda forca e, com ela, 0 proble- ma da liberdade humana. Hi quem se sinta ameacado por isso e pressinta, ainda mal recuperado do luto pela morte de Deus, a morte da liberdade humana. Achamos que escolhemos, mas na verda- de fomos escolhidos para achar que escolhemos; achamos que decidimos, mas na verdade 0 “telojoeiro cego” decidiu que devemos achar que decidimos; achamos que nos deter- minamos, mas na verdade fomos determinados a achar que nos determinamos. Em suma, se pudéssemos conhecer in~ tegralmente todos os motivos das nossas ages, as circuns- tancias em que agimos ¢ as conseqiiéncias possiveis, previ- siveis ¢ inevitéveis de nossas ages ~ enfim, se pudéssemos conhecer a toralidade das conexées atuantes na nossa posi. 40 na natureza, quedariamos finalmente de frente com o Tigoroso e indiferente sistema das determinagdes naturais: nossa crenga em nossa liberdade estaria dissipada. Mas se se admite que nao podemos conhecer integralmente tais cone- xGes, que conhecemos 0 mundo para viver e nio que vives mos para conhecer, que fomos projetados como seres para 9 quais o conhecimento é um imperativo vital, portanto, imprescindivel para a nossa autoconservagio, 0 que chama. mos de a nossa liberdade resultaria entio de um déficit de cognicéo - um déficit estrutural e, por isso mesmo, neces- sério. Esta necessidade é um fato natural ~ 0 fato natural da liberdade em toda a sua positividade, e nao como uma ilusdo naturalmente necessaria. O homem nio é livre porque “quer”, mas porque é 0 que é ¢ pode querer. Para Kant, havia um abismo entre necessidade e liber- dade, Para ele, 0 homem era um ser cindido entre as leis naturais rigorosamente independentes de sua vontade ¢ a liberdade como um poder de autodeterminacio pelo qual ele seria capaz. de neutralizar certas coergdes de sua natu= reza pulsional e determinar sua vontade a priori pela razio, ou seja, independentemente daquelas coergdes. Ser livre, agir livremente significava entio ser livre da natureza em rds, enquanto esta é a fonte daquelas coergbes. A condicio de possibilidade da liberdade consistiria, assim, no dominio racional de nossa natureza interna. Age moralmente quem é capaz de examinar se a méxima de sua aco poderia ser aceita por todos, sem restrigées, ¢ se comportar de acordo com este principio de deliberagio. A consciéncia moral é 4 instancia pela qual julgamos a possibilidade da universal Janeirotfuno de 2008 ot KANT, 1. Crticn ds frnlde «2 de do jnizo. B 428. Histris natural e taleologia cao de tais maximas. Apenas méximas universaliziveis po- dem ser tomadas como dotadas da forca de uma lei. Por isso Kant asseverava que devemos agir de tal modo que a maxi- ma da nossa agio possa ser aceita por todos como se fora uma lei natural, ou seja, docada de uma pretensio de univer- salidade ¢ necessidade andloga & das leis naturais ~ mas, bem entendido, apenas andloga, porque enquanto as leis naturais tém de ser, a lei moral deve ser, embora possa ser transgre- dida, como € freqiiente. Kant dizia que 0 homem é um habitante de dois mundos: o sensivel (natural) e 0 supra-sensivel (livre e ra- cional). Ele escreveu a Critica da faculdade do juizo no intuito de mostrar que estes dois mundos s6 se deixam unit pela admissio rigorosa do principio da conformidade a fins. Ao justificar a introducao deste prinefpio, Kant mostrou como a biologia € possfvel, mas seu problema fundamental era o de um legitimo metafisico: ele queria mostrar em que sentido ainda seria plausivel conceber a navureza como te- ceptiva & realizagio da liberdade humana, ou seja, de como um mundo que nio foi feito por nés, e 20 qual no pode- mos atribuir a existéncia de fins como os que constituem as nossas agées, deve ser, no entanto, permedvel As nossas agées, de tal modo a tornar igualmente plausivel a autocom- preensio do homem como o mais alto fim da eriagio. Para Kant, a posi¢io do homem na natureza jamais poderia ser justificada pelo uso te6rico da razio, ov seja, pelas ciéncias naturais — ¢ assim ele destruiu o argumento do designio. A Sinica justificativa possivel seria pela razio pritica, ou seja, moral; e por isso o Gnico argumento pela existéncia de Deus que lhe parecia satisfat6rio era um argumento moral = Deus como 0 “autor moral”, € nko fisico, do mundo.” ‘Como contemporineo de si mesmo e da ciéncia do seu tempo, dispondo de conhecimentos exaustivos de fisica, matemética, geografia ¢ das ciéncias da vida, Kant pensou nos limites do conhecimento historicamente possivel, mas com 0 propésito de tracar os limites de todo conhecimento possével. J& no temos mais motivos para accitar sua imagem ‘do homem e da natureza, mas o problema de uma “critica da razao” (a investigagio das condigées de possibilidade ¢ dos limites do conhecimento humano), bem como do nexo entre necessidade e liberdade permanecem e, com eles, 0 do “mistério” da nossa existéncia Dawkins observa que o devir da vida é tio indiferente A dor e ao sofrimento quanto A felicidade, a nio set que tais coisas possam ser de algum modo relevantes para a sobre- vivéncia do ADN. Em O rio que saia do Eden, ele conclui Gibcia © Ambiente 28 » DAWKIN: sale do. Ede: Ricardo José Corrée Berbors seus argumentos sobre “a funcio de utilidade” de “Deus”, comentando o problema do mal ¢ do sofrimento a partir de uma dessas tragédias que acontecem com freqiiéncia e das reagbes que elas costumam despertar nas pessoas: um aci dente ocorrido com o dnibus de uma escola eatélica brit nica, que resultou na morte estiipida de muitas criangas. Ele conta que um colunista do The Sunday Telegraph, a0 per- guntar como é possivel acreditar num Deus capaz. de permi- tir que algo assim aconteca, citou a resposta que um padre dera a esta pergunta: “A resposta simples é que nés nao sabemos por que deveria haver um Deus que permite que estas coisas horrendas acontegam. Mas 0 horror do desas- tre, para um cristio, confirma o fato de que vivemos em um mundo de valores reais: positivos e negativos. Se o universo fosse apenas elétrons, nao haveria o problema do mal ou do sofrimento.” Dawkins, porém, responde o seguinte: ‘Ao contrério, se 0 universo fosse constituido apenas por clésvons e genes egoistas, rragédias sem sentido como 0 desastre deste énibus seriam exatamrente 0 que espere- réamos, junto com wma boa sorte iguabmente destitulda de significado. Este universo nao teria intencoes boas 4 mir. No mantra qualquer tipo de tengo Emon eon doc eer rele genti FEA ead acter, goon meron oer qualquer tipo de justiga, O universo que observamos tens precisamente as propriedades que devertamos espe- rar se, no fiundo, ndo hd projeto, propésito, bem oxt mal, nada a ndo ser uma indsferenga coga, irpiedosa. Como O infeliz poeta A. E. Housman disse: "Pois a natureza, desapiedada, a natureca estfpida / nem saberd nem se importand. © ADN nao sabe e nem se importa. OADN * DAVRINS, RO rio gre ‘pena €. Ends dangamos de acondo com a sua misicg.”? seine ces Dawkins também admite que os seres humanos, em- bora nio escapem a este propésito da natureza (a sobrevi- véncia do ADN), tém uma relagio muito mais complexa com cle, uma relagio na qual a cultura desempenha um papel importante, quando nio decisivo, pois ao mesmo tem- po em que somos maquinas de replicacio, nem sempre accitamos todas as ordens da nossa constituigio genética. Podemos dancar de acordo com aqucla mbsica, mas nfo apenas como simples dangarinos, e sim como instrumentis- ts inesperaamenc sogdos a feta do “engeneiro dis *. Sea teoria da evolugéo for de fato capaz de resgatar sua promessa cognitiva, entio estamos a caminho de re- constituir a partitura da mésica segundo a qual dangamos, ow quando nio, na condicio de nos vermos como arranjadores JanseirolJanbo de 2004 3 6 Histnia natural ¢ teleologie € mesmo co-autores de trechos inteiros. Nio se trata aqui de insistir sobre algumas conseqiigncias literalmente funes- tas do uso destes conhecimentos e das técnicas de manipu- lacéo da natureza tornadas possiveis por eles. Gostaria, antes, de chamar atengio para a dimensio especulativa do problema A natureza abre os olhos Como Galileu — e por causa dele e de Newton -, Kant pensava que o livro da natureza “fora” escrito em caracteres matematicos, mas o que ele considerava o seu maior feito como filésofo foi o de mostrar que a “graméti- ca” que tomna este livro legivel esta em nds e nao nas coisas mesmas. Nogdes como as de espago € tempo (que, como as “formas puras da sensibilidade”, consistiam para ele no pré- prio fandamento da matemética), ou como a de causalidade (tanto mecinica quanto final) eram componentes essenciais, da nossa “gramétiea”, This nog6es nao seriam propriedades objetivas das coisas independentemente de nés, das coisas em si, mas condigdes de possibilidade das coisas para nés, e portanto, da experiéncia. Kant chamou sua filosofia de “transcendental”, Ele estava convencido de que a filosofia ainda nfo se tornara uma ciéneia digna deste nome e respei- Sirol como a Kien 3 aitemstca ¢ isc, porque or Blo sofos ainda néo tinham realizado uma “critica da razdo”, ou seja, uma investigaggo sobre a nossa prépria faculdade de conhecer, a qual deveria preceder toda e qualquer investi- gacio sobre as coisas. Para Kant, 0 erro “gramatical” siste- maticamente cometido pelos fildsofos era o de que eles usavam os mesmos principios que empregamos na experién= cia para falarem sobre coisas que nio nos sio dadas na ex- petigncia ~ como Deus, por exemplo. Por isso era preciso tracar os limites da razio, fixar 0 ambito da validade das regras da nossa “gramatica”, para assim sabermos primeiro sobre 0 que podemos falar ¢ como podemos fazé-lo. A filosofia tinha de ser antes de mais nada o conhecimento da razio por ela mesma, conhecimento pelo qual a razio se descobre como a legisladora soberana das coisas do mundo. Diante disso, poderiamos imaginar a seguinte objegio: “Legislamos sobre a natureza e somos parte dela. Mas se somos parte dela, entio nossa legislagio esta como que ‘au- torizadi’ por ela: a natureza legisla sobre si mesma através de nés. Mas se assim, entio as condigées transcenden- tais da experiéncia sio as condigées naturais da experién- cia. O transcendental é natural; e o natural, transcendental. Citucie & Ambiente 28 2 SCHELLINi pent ina fi 2a. Ed, lin prensa Nac Moeda, 200 * SCHELLI System des Heslismas Sebrifen, ve Sohekamp, NN SCHELLING, FW. J. fies pera ume filosofia di nate ba. Ed. bilingde, Lisboa: I : prensa Nacional — Casa da Moeds, 2001. p. 115. *SCHELLING, F. W. J. System des eranscendentalen Tealismus, Jnr Ansgewablre Schriften, vol. L. Fesaktuet Subrkamp, 1995. p. 409 Ricardo José Corréa Barbosa © ideal é 0 real; e © real, ideal. A ordem das idéias € a prépria ordem das coisas.” © que expressamos assim, de aneira tio tosca, € 0 que Schelling formulou com rigor ¢ audicia impressionantes em seus primeiros escritos. Para ele, a “coisa em si” era to sem sentido quanto 0 “como se” que Kant colocara 4 base da consideragio teleoldgica da natureza, Enquanto Kant insistia na nao-identidade entre sujeito € objeto, entre 0 mosso conhecimento das coisas e as coisas mesmas, Schelling defendia a identidade entre ambos. Para ele, a natureza era espirito inconsciente, e 0 espirito, natureza consciente. A identidade de sujeito e objeto, es rito e natureza era para Schelling © proprio absoluto e, como tal, a razio. A filosofia seria o saber absoluto e do absoluto na unidade de um duplo movimento: do sujeito a0 abjeto e do objeto 20 sujeito. Ao primeiro movimento, Schelling chamou de “filosofia transcendental”, tomando este termo a Kant e a Fichte. Ela se ocuparia de reconstruir as condigées a partir das quais chegamos as coisas ¢ as representamos para nés. Ao segundo movimento, ele cha- mou de “filosofia da natureza” (Naturphilosopbie), que faria © caminho inverso: mostraria como 0 sujeito emerge das coisas, © como estas chegam a si mesmas através dele. O que se expressa na diferenga de ambos os caminhos ~ do subjetivo a0 objetivo ¢ deste aquele ~ é a “identidade ab- soluta do espirito em nés e da natureza fora de nds”, ‘Como uma segunda auto-reflexio da razao, a filosofia da natureza reconstr6i a pré-hist6ria da consciéncia, mergu- Ihando na natureza como o passado transcendental do espi Fito. A matureza alcanga sua meta suprema, tornar-se ela ‘mesma inteiramrente objeto, somente através da supre- ma e siltima reflexdo, que ndo é outra coisa sendo 0 omem ow, em sentido mais geral, 0 que chamamos razdo, pela qual a natureza retorna pela primeira vez inteiramente a si mesma e pelo que se torna manifesto que a natureza é originariamente idéntica com o que ‘em nés é conbecido como inteligente e consciente.?” Schelling acreditava que 0 homem era 0 point sublime de toda criagio, pois nele a natureza se recolhia por inteira na consciéncia de si, a0 mesmo tempo em que este se re- conhecia idéntico a Deus ~ uma crenga ti0 bela quanto injustficével. © que para Kant tinha a forga cauteloss de um “como se”, fundado na nio-identidade de sujeito e objeto, assume em Schelling © vigor incondicional de um “6, afirmado desde © principio da identidade absoluta do subjetivo e do objetivo, do espirito e da natureza. Para Janeivolunbo de 2004 6 Histria natn teleologi Schelling, toda filosofia que separasse o homem da natureza estava tomada por uma “praga do espirito”: uma “filosofia sadia” (“die gesunde Philosophie”) deveria pensé-los jun- HSCHELLING, F WJ. ldtas 10. Schelling tinha razio, mas néo pelo argumento com 0 fart wma sia de ratee- qual justificava sua posicio: a identidade absoluta da nature- » za em nos e fora de nés. Sempre que penso em filosofia da natureza, penso invariavelmente em Kant e Schelling, mas com 0 enfético senso histérico que devemos a ciéneia do século XIX. A tarefa da filosofia — a ser realizada pela filosofia da natureza sob um aspecto bem determinado ~ consiste numa reflexio sobre a posigio do homem na natureza e da natureza no homem; em outras palavras, sobre a unidade da natureza em nds e fora de nés. Mas 0 que significa tal unidade, 0 que significa a posigio do homem na natureza e como natureza? Inicialmente, isto significa apenas 0 que comegamos a co- nhecer melhor pelas ciéncias empiricas da natureza, espe- cialmente através de Darwin, e pelo materialismo hist6rico: que o homem é simultaneamente um produto da navureza ~ um produto recente e contingente da evolugio da vida na ‘Terra — e um produto de si mesmo, de sua “prixis” como sua atividade vital. A contingéncia do homem esti em sua condigio de produto nao-intencional da natureza. Sob este aspecto, ele € resultado da produtividade “cega” da navure- za. A peculiaridade da contingéncia humana consiste em que, embora sendo um produto nio-intencional da navureza ‘em sua cega produtividade, 0 modo de ser do homem com- porta uma determinacio intencional, na medida em que ele € também um produto de sua propria atividade vital. Esta atividade ja nao & mais uma atividade cega. A produtividade da natureza prolonga-se no homem sob a forma especifica da produtividade humana como uma atividade teleolégica. Na génese do intencional a partir do nio-intencional, do teleolégico a partir do nio-teleolégicos no virea-ser hu- mano da natureza € no vir-a-ser natural do homem, a pro- dutividade cega da natureza engendrou alguma luz € come- ou a colher uma imagem de si na imagem que o homem faz de si mesmo como natureza. Nisto consiste o aspecto pro- priamente especulativo da reflexio na qual a filosofia da natureza encontra 0 seu médium, o seu elemento: reflexio sobre a natureza na auto-reflexio do homem ~ reflexio sobre o homem na auto-reflexio da natureza. E nesse sen- tido que me parece plavsivel a tese de Schelling, segundo a qual a filosofia é *a doutrina da natureza (die Naturlebre) do SCHELLIN nosso espirito”'. O transcendental ¢ 0 natural, o ideal ¢ pes SCHELLING, F WE J. Iie pare uma flsofie de natare- spirito bap. © real sio idénticos, mas desde o transcendental e o ideal. 66 Cicia & Ambience 28 ° SCHELLING, EW. J. lave Para ume filosofia de natere= Be pe 3, Ricardo Jost Corris Berbora © transcendental “€” 0 natural porque tem de sé-lo para 16s. A razio e 0 conhecimento humanos nic sio a expres sio da identidade absoluta de espirito ¢ natureza, nem 0 tomar-se consciente de si é a “meta suprema” da natureza, nem o homem a “suprema ¢ tltima reflexéo pela qual a na- tureza retorna pela primeira vez inteiramente a si mesma”. O saber humano & um “espelho” da natureza em nds ¢ fora de nés. Ele nos da uma “imagem” da natureza - mas segundo 0 que pode este espelho. E 0 que pode este espe- Iho senio o que pode a propria natureza sob a forma par- icwlar da natureza humana? Afinal, 0 espelho — a razio, 0 conhecimento humano — é um produto da natureza. Scus limites sio tais que jamais temos uma imagem do todo que nfo seja 20 mesmo tempo uma imagem da tazio. O todo — a raz30 que pée 0 mundo ¢ o mundo posto na razio~ é uma interioridade absoluta: tudo se passa nele(a), por ele(a) para ele(a). Nosso conhecimento nio se deixa avaliar pela comparagao entre as “imagens” ¢ a natureza, pois terfamos de passar a ver com olhos que nio sio os nossos, a falar uma linguagem que nio é a nossa e desde um lugar que nto € 0 nosso. A natureza “refletida” é da natureza do “espe- Iho"; a “imagem” ¢ “auto-imagem” da natureza sob a forma particular da natureza humana. O materialismo tornado possivel desde Darwin e © materialismo historico — e que deve ser o de uma filosofia da natureza — tem o sew prin- cfpio na unidade da identidade e da nio-identidade de “es- pirito” © “natureza”, do subjetivo e do objetivo. Esta uni- dade se expressa no conhecimento humano como uma pers- pectiva posstvel da natureza sobre si mesma. Se somos frutos de um mecanismo cego, este meca- nismo ~ para usar a metéfora de Schelling - como que abriu seus olhos em nés: tentamos compreendé-lo através de esforgos sempre faliveis e sempre segundo a nossa medida, mas é dificil negar que em n6s a melodia da natureza sofreu uma modulagio extremamente complexa, que através deste produto natural recente e contingente que somos nés, a vida veio 3 consciéncia de si sob a forma particular da nossa natureza, Tudo se passa como se o “relojoeito cego” tivesse aberto lentamente os olhos ¢ perguntado pelas horas. Esta € a hota histérica do homem, do conhecimento e da liber- dade humana — uma hora perfeitamente natural. “E verdade que a quimica nos ensina a ler os elementos, a fisica, as silabas, © a matemética, a natureza; mas nio se deve esque- cer que cabe A filosofia interpretar 0 que se lev.” Os livros gue escrevemos, criticamos ¢ refazemos em nossas tentati- vas de explicar e interpretar o livro da navureza formam um JencivolJunbo de 2006 0 Ricardo José Corrés Barbosa é gradvado e doutor em Flesofis © peofessor do Deprtamento de Filosofia ds Universidade Estadual do Rio de Janezo. ricicb@uer) br cs Hira natural tlologis conjunto fragmentétio, uma “biblia” modesta ¢ digna do nosso cético respeito. Ela contém as “memérias” da natu- reza que veio a si em nés, da historia natural na qual emer- gimos como personagens e co-autores das “memérias p6s- tumas” de Deus, A verve brilhante de Dawkins expressa um cotimismo cognitivo impressionante, mas a drvore do conhe- cimento brota das sementes das davidas que ela mesma lan- ga de volta a0 chao. Nossos antepassados iluministas vive- Zam sob 0 fascinio da metdfora da luz solar. © que apren- demos com os seus erros talvez nos recomende um ilu- minismo mais cauteloso, “noturno”. © conhecimento da natureza em nés e fora de nds € como a luz da Lua: ilumina, mas nao dissipa a escuridio. Richard Dawkins - 0 leitor de Blake, Keats e Yeats — sabe disso, Citucia & Ambiente 28 Pa

Você também pode gostar