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LOU ANDREAS-SALOME NIETZSCHE EM SUAS OBRAS Tradueao: Tosé Carlos Martins Barbosa editora brasiliense Copyright © by Insel Verleag Frarkfurt am Main, 1983 Titulo original: Friedrich Nietascke in seinen Werken ISBN: 85-11-12003-7 Primeira ediciio, 1992 Preparacio de originais: Maria Amélia Daisenter Revisio: Ana Maria M. Barbosa e Irati Antonio Capa: Quito Arquitetos/Claudio Ferlauto i 5 Av, Marqués de Sao Vicente, 1771 (01139 - Sao Paulo- SP Fone (O11) 67-9171 - Fa: 826-8708 Telex (11) 33271 DBLM BR IMPRESSO NO BRASIL Sumario Apresentagio & edigio brasileira Preficio ‘Sua Ess€ncia ........- Suas Metamorfoses Q “Sistema Nietzsche”. . Apéndice u 27 coe. OL sees M3 229 Apresentacao 4 edicdo brasileira Roma, abril de 1882. Numa manha de primavera, Louise von Salomé conhece Friedrich Nietzsche; so apresentados por um amigo comum, Paul Rée, num passeio A Basflica de S4o Pedro. Lou viajava pela Italia em companhia da mae. Com vinte © um anos, gozava de uma independéncia de espirito € liberdade de comportamento desconcertantes para a época — embora usuais na Riissia, sua terra natal. Comegava a freqiien- tar os meios intelectuais e decidira dedicar-se & literatura. Nietz- sche, aos trinta e sete anos, definia-se como um “espftito livre”. Formado em filologia cléssica em Leipzig, cedo foi nomeado professor na Basiléia. Entre 1869 ¢ 1876, ministrou cursos € publicou varios livros. Crises de saiide obrigaram-no a aban- donar suas atividades académicas; desde 1879 abragara uma vida errante. Em Nietzsche, a “jovem russa” julga encontrar um homem brithante que poderia auxili4-la a aprimorar sua formagzo.-Em Lou, o filésofo espera ter “uma discfpula”, “uma herdeira” que continue seu pensamento, Encontros ¢ desencontros mar- am essa relagdo profunda — e ef€mera. Gragas a sua inteligéncia e personalidade, Lou faré amigos bics, Manteré uma relagao ambigua com Nietzsche, apai- sonal com Rilke, fecunda com Freud. Em 1894, publicard 41 bivgratia do filsofo: Friedrich Nietzsche em suas obras; cm 1927, a do poeta: Rainer Maria Rilke; em 1931, a do 8 APRESENTACAO psicanalista: Minha gratiddo a Freud. Escreveré ainda roman- ces e pocmas, Dada a fragilidade de sua saiide € os recursos exiguos de que dispoe, Nietzsche mergulharé cada vez mais, nna solidio. Abandonado, ndo teré leitores nem discfpalos — € até mesmo os mais préximos © desertaréo.: Marcado pelo sofrimento ¢ pela dor, produzir4 a parte mais importante de sua obra, construiré sua propria filosofia, Em 1882, Nietzsche sente-se atrafdo pela presenga de espf- rito © capacidade de escuta de Lou Salomé, Est seduzido por seu ardor intelectual e desejo de vida. Nesse ano, a “joven russa” planeja redigir uma biografia do filésofo. Quer descrever ‘esse espfrito peculiar para compreender 0 seu pensamento. Lon- ‘gos passeios, animadas conversas. A Nietzsche, Lou confia 0 seu projeto; com ele, discute a primeira parte e trechos da segunda, que irio compor o seu livro, (Mas s6 elaborara a terceira, quando jf estiverem afastados), Entao, 0 fil6sofo pa- rece entusiasmar-se com o trabalho. “Sua idéia de reduzir os sistemas filos6ficos & vida pessoal de seus autores”, diz ele na carta de 16 de setembro de 1882, “provém diretamente de uma ‘alma-irma’; nesse sentido, eu mesmo cnsinei a histéria 4a filosofia antiga, na Basiléia, e gostava de dizer a meus ouvintes: ‘tal sistema est4 refutado 2 morto — mas a pessoa que se acha por trés dele € irrefutivel, € impossivel mati-la’ ”. Em 1894, atenta repercusstio de pensamento de Nietzsche € sensivel as distorgdes por que passam as suas idéias, Lou Salomé decide publicar Friedrich Nietzsche em suas obras. A esta biografia outras se seguirdo: a de Meta von Salis, Filésofo € aristocrata. Contribuigéo para caractericar Friedrich Nietzsche (Philosoph und Edelmensch. Ein Beitrag zur Cha- racteristik Friedrich Nietzsche) em 1897; a de Paul Deussen, Lembrangas de Friedrich Nietzsche (Erinnerungen an Frie- drich Nietzsche) em 1901; a de Elizabeth Férster-Nietzsche, Aviida de Friedrich Nietzsche (Das Leben Friedrich Nietzsche) em 1904, Em seu livro, Lou Salomé opta por uma abordagem psi- colégica dos textos do fildsofo; procura entender as possiveis contradiges, neles presentes, como manifestagio de conilitos APRESENTACKO 9 pessoais, Q propésito € esclarecer 0 pensador através do ho- ‘wet, pressuposto € 0 de que, em Nietzsche, obra e biografia conuiculen, Por isso, no se propde inscrevé-to na hist6ria da Iulosotia nem aprofundar os seus conceitds. Guiada pela idéia «de que “0 instinto religioso sempre governou sua esséncia © seu pensamento”, acaba por fazer uma leitura bastante peculiar de alguns dos temas centrais presentes em sua reflexio. A morte de Deus transforma-se assim em “desejo de endeusa- mento de si mesmo”; o além-do-homem converte-se em “re- presentaco de uma pura ilusdo divina’; o eterno retorno tor- na-se parte integrante de uma “m{stica”, Todas as suas dou- trinas, enfim, nasceriam — segundo a autora — de uma con- cepco bésica: “a monstruosa diviniza¢do do filésofo-criador”. ‘Amparando-se na estreita convivéncia que teve com Nietz- sche durante 0 ano de 1882, Lou Salomé elucida passagens relevantes da vida do fildsofo. Esclarece as relagdes que ele estabeleceu com Wagner e Paul Rée, as transformagdes por que passou devido a solidao © & doenga, Ressalta, ainda, a atragdo que sentiu pelo positivismo, os estados que consagrou as ciéncias da natureza e a importincia que attibuiu A teoria do conhecimento. Estes, alids, sfo aspectos de sua atividade intelectual que os comentadores negligenciarao por muito tem- po. Friedrich Nietzsche em suas obras € 0 testemunho de al- ‘guém que partilhou momentos marcantes com um dos pensa- dores mais controvertidos de nosso tempo. Se no fornece ao leitor as chaves para compreender em profundidade a filosofia nietzschiana, com certeza Ihe df subsfdios para descobrir Nietz~ sche enquanto ser humano. Sdo Paulo, agosto de 1991 Scarlett Marton* + Mrolessora do Departamento de Filosofia da USP. Pablicou Nietzsche, dex forgas evismicas aos valores hunanos (Brasiliense, 1990), Prefacio Lou von Salomé tinha 21 anos quando, em abril de 1882, em Roma, conheceu Friedrich Nietzsche, quase 17 anos mais velho, amigo de Paul Rée, 5 anos mais jovem que ele, e esere- veu 0 livro Friedrich Nietzsche em suas obras com 33, em Berlim, como Lou Andreas-Salomé, pouco antes de partir em sua primeira viagem a Paris como escritora independente. ( titulo “Friedrich Nietzsche em suas obras” deve elucidar que niio consideremos o livro uma mera interpretagdo da obra © que a relaco pessoal da autora com Nietzscte, a jungdo de documentos variados e a citagdo de trechos de cartas de Nietz- sche a ela e a Paul Rée devem igualmente servir a um tnico fim: revelar 0 curso evolativo ¢ cognitivo de Nietzsche, oculto, por assim dizer, em suas obras. Tais indicagSes nao permitem supor que o encontro de Nietzsche ¢ Lou von Salomé, pré-requisito para a claboragio do livro, 86 possa ser entendido como o entrec-uzamento dos caminhos de suas vidas e de seus pensamentos num momento bem definido, ¢ que sua redagio s6 foi possivel num dado momento da vida de Lou Andreas-Salomé, Duas coisas, porém, 1 1wsisténcia de Nietzsche a um mero entrecruzamento de duas vudas € a conviegdo de Lou von Salomé de que sua convi- vencia amigével com Paul Rée duratia a vida inteira, condu- viram tanto no caso de Nietzsche como no seu a uma contingéneia de vida que, por sua vez, possibilitou a ambos 2 PREFACIO a consumagio das tarefas a cles destinadas: a de Nietzsche como fildsofo, a de Lou Andreas-Salomé como conhecedora do homem. Pois sem passar pela solidao das soliddes, Nietzsche nio chegaria a seus conceitos revoluciondrios, e sem fracassar na tentativa de basear seu casamento com F. C. Andreas na con- fianga de Paul Rée manter continuamente atuante a antiga relagio que tinham em Deus, ela nfo se tornaria a Lou An- dreas-Salomé que conhecemos. Essas consideragdes deveriam ser feitas antes de nos ocu- parmos documentalmente da relago de Lou von Salomé com ambos, Nietzsche e Paul Rée. Nietzsche que, em vez de ir paraRoma, viajara de Génova para Messina, como um novo Colom3o, obteve uma impressio altamente elucidativa de Lou von Salomé através das seguintes palavras de uma carta de Paul Rée que revelam também sua propria perplexidade diante da jovem (20.04.1882): “Com esse passo voc® causou so- bretudo pasmo e aflicZo a essa jovemrussa’. Estava tio ansiosa por vé-lo, por falar-the, que desejou para tal retornar a Suiga ‘via Génova, ficando muito furiosa 20 sabé-lo to afastado. E um ser enérgico incrivelmente inteligente, com atributos mui- to femininos ¢ mesmo pueris”. Porém, numa carta de Berlim, na noite do ano novo de 1883, com uma retrospectiva sobre 0 ano que finda, Lou von Salomé dé a entender seu rompimento com Nietzsche € a con- tinuagdo de seu relacionamento com Rée, entio com 34 anos ¢ em temporada na Prissia Ocidental, sua terra de origem: “Foi nos primeiros dias de janeiro quando, cansada ¢ do- ente, cheguei ao sol da Itélia para levar comigo sol e vida para o ano inteiro”” Paul Rée sabe que essas palavras 0 incluem desde que, em margo, em Roma, Lou von Salomé 0 conquistara para 0 1 De familia alemf, Lou von Salomé nasceu em Sao Paulo Petersburgo (Rss). (NT). PREFACIO 3 tisco.de uma vida em‘comum: “Quanto desse sol pairava sobre nnossas caminhadas romanas , quanto sobre o idilio de Orta com seus passeios de barco seu monte Sacro com seus rouxinéis , quanto sobre aquela via- sem suica através do Sio Gotardo, quanto sobre os dias de Lacerna”. “E quando me separei de mamie e quis dar forma & vida recuperada, entamos naquela singular relagdo de amizade da qual depende até hoje a con- figuraco de toda a nossa existéncia. Relagiio que, nessa inti- midade e reserva, talvez nfo mais exista igual.” Surpreende que 0 nome de Nietzsche nao seja mencio- nado nessa carta. Mas podemos vislumbrar 0 relacionamento dos dois, avivando ou completando as lacunas com dados auténticos Sobre 0 Idflio de Orta: “Nagueles dias em Orta <’s mar- gens do lago Orta, a oeste do Maggiore>, determinei-me revelar a voce, em primeiro lugar, toda a minha filosofia” (esbogo de uma carta do inicio de dezembro de 1882). E reforga: “Na~ quela ocasido em Orta, projetei conduzi-la passo a passo até as tiltimas conseqiiéncias de minha filosofia, voce como a pri- meira pessoa que julguei apta para isso”. “Entrementes, para- mos em Orta, nos lagos da Itélia do Norte, onde o vizinho monte Sacro pareceu nos ter fascinado, No mfnimo, ofendi inyoluntariamente & minha mae por nos demorando demais, Nietzsche ¢ eu, no monte Sacro nao termos nos reunido a ela em tempo; Paul Rée, que permanecera em sta companhia, também ficou contrariado” (Reérospectiva de vida*, Lou An- Urcas-Salomé). Segundo o didrio de Lou von Sdomé em Tau- tcuburg Lembranga de nosso tempo na Italia), Nietzsche disse » Nictasche trata Lou von Salomé usando 0 pronome de tratamento lonmal Sir equivalente a ‘senhora’; optamos pelo uso de ‘voce’. (N. T.) + Inbticado em portugues com o titulo Minka Vida (Brasiliense, 1985). Woks 4 PREFACIO “paixo, enquanto subfamos 0 estreito atalho: ‘Monte Sacro ‘© sonho mais maravilhoso de minha vida, eu o devo a voce” ” Sobre os Dias de Lucerna: Em maio de 1882, Nietsche se dirigiu a Lou von Salomé “em pessoa, no Liwengarten de Lucema, pois agora a intercessZo romana de Rée j4 Ihe parecia insuficiente”. “Ao mesmo tempo, porém, Nietzsche providenciou uma foto- grafia de nds trés, apesar da veemente oposigao de Rée que, durante toda a vida, guardou aversdo doentia & reprodugdo do préprio rosto”(Retrospectiva de vida). — Partindo de Lucema, Nietzsche e Lou von Salomé visitaram Tribschen, “o local onde ele vivera com Wagner tempos inesquectveis” (ver adiante p. 93). © nome Tautenburg (Turfngia), que assinala 0 auge do intercimbio intelectual de Nietzsche e Lou von Salomé, no consta da carta a Paul Rée, mas, em s2u didrio, Lou von Salomé explica para Rée 0 elo que a liga « Nietzsche nos seguintes termos: “A base religiosa de nossas naturezas € 0 que temos em comum ¢ justamente irrompeu em n6s com tanta forga por sermos espititos livres no sentido mais extremo”. E de Leipzig escreve Nietzsche em meados de setembro a Franz Overbeck: “...porém, 0 que de mais proveitoso fiz neste verdo, foram minhas conversas com Lou. Nossas inte- Tigéncias e nossos gostos so profundamente afins, , por outro Jado, hé tantos contrastes entre nés que somos ao mesmo tempo 8 sujeitos © objetos mais instrutivos de métua observagio. Ainda no conheci ninguém que soubesse extrair das préprias experigncias tamanha quantidade de deducées objetivas, nin- guém. que soubesse tirar tanto de tudo 0 que foi aprendido. «Tautenburg deu a Lou um objetivo”, Quando lemos essa carta, no podemos presumir 0 que Nietzsche ento via diante de si ainda por vencer. E menos ainda 0 que o aguardava em incidentes, previsOes e imprevi- ses, © que, de reagao em reagdo, 0 impeliu até as raias do suportavel. Em 25 de dezembro, portanto, poucos dias antes da citada carta de Lou von Salomé a Paul Rée, Nietzsche escreve a PREFACIO 5 (Overherk: “Ontem interrompi também a correspondéncia com nnnhia 4 no era sustentével, € melhor “ora no a ter sarstentady tanto tempo”. “Minha relagio com Lou esté nos tiltimos e mais dolorosos momentos. Pelo menos assim o creio hoje. Mais tarde — se hover um mais tarde — quero dizer uma palavra a respeito. Compaixdo, meu caro amigo, € uma espécie de inferno, digam ‘0 que quiserem os adeptos de Schopenhauer”. ‘Comparando essa declaragao de Nietzsche com a carta de Lou von Salomé a Paul Rée, quase simultfineg, fica de todo esclarecido © cruzamento das vidas de Nietzsche © de Lou von Salomé; ele teria se consumado independente da partici- pagho de Rée no processo; talvez mais fécil de passar desper- cebido, ou talvez, de outro modo, mais duro para Nietzsche e provavelmente também para Lou von Salomé. Se agora perguntarmos a nés mesmos que pressupostos guiaram a formagdo do livro de Lou Andreas-Salomé sobre Nietzsche tal como se apresenta diante de nés, responderemos que, primeiro, a obra intelectual deve ter parecido conclufda, , segundo, a “relagdo de amizade” entre Lou von Salomé ¢ Paul Rée deve ter cafdo no esquecimento. (Que o estritamente pessoal se tomasse puro artigo de recordagao, depreende-se da natureza do trabalho) Contudo, © processo trégico contido nesse segundo pres- suposto $6 se revela completamente quando consideramos que a mudanga do nome significou para Lou vor. Salomé algo istinto de um proceso social natural que, poss.velmente, nao precisaria excluir a amizade com Rée. Entretanto, € diferente para Lou von Salomé como para Rée — totalmente diferente de como Lou Andreas-Salomé twuta expor em sua Reirospectiva de vida o enigma de seu cavamento, Cometa € apenas a frase: “...a coergao sob a qual © passo irrevogavel no me separou.dele , mas de nt mesma” Significativamente, 0 documento biogréfico mais impor- ante lo espélio de Lou Andreas-Salomé, folhas esparsas de 16 PREFACIO 31 de outubro de 1888, escritas portanto no segundo ano de yida em comum, deixa claro que ro s6 Hendrik Gillot’, 0 “homem-deus”, trazia em si o sinal original da esséncia do filho de Deus perdido e por isso deviaser evitado como homem, mas que também Friedrich Carl Andreas, ainda que de outra forma, trazia o mesmo sina: ou seja, “casado” com ela porque “Dois ... ajoelham juntos”. A cerim@nia realizada por Gillot (2) acontecera em junho de 1888, Nas penosas lutas dos anos seguintes se perdeu 0 conhecimento, mantido nas notas do didrio, sobre o retomo da tentacdo; ficou apenas (junto a forte simpatia por Andreas que também inclui o fisico) a experiéncia do impossivel. A conclusio da luta, uma espécie de compensagio melancdlica, est descrita por Lou Andreas-Salomé na frase: “Por fora nada mudou, por dentro tudo” (Retrospectiva de vida). Portanto, podemos afirmar que 0 espago, por assim dizer, livre do destino, onde, apés a vivércia Gillot, Lou von Salomé se sentia abrigada pela pura amizade com Paul Rée, perdeu sua fronteira protetora gragas A persisténcia da mesma forga A qual Lou von. Salomé acreditava ter escapado. Lou von Salomé nao sabia quo profundo era seu desejo de ter (de novo) a seu lado, e Paul Rée, com maior razao, ndo podia suspeitar quem o defrontava como F.C. Andreas. Ele entrou em solidao. Mas nos antecipamos. O plano de uma vida em comum com Rée que Lou yon ‘Salomé Ihe descrevera como pata sempre na noite do ano novo de 1883, pareceu se cumprir; cerca de 4 anos viveram ambos ‘num cfrculo de jovens cientistas em Berlim. Foram, na opinido de Lou Andreas-Salomé, os anos mais felizes de sua vida, anos de calma do destino ¢ de recuperagio de sua juventude. “Mesmo em nosso circulo ... nem todos conheciam de perto aquele cujas ‘coletineas de aforismos’ deveriam dar & 3 Pastor da embaixada holandesa em Si0 Petersburgo © tutor de Low v, Salomé, 25 anos mais velho; consta que ele fez un pedido de casamento a Lov. (NT) PREFACIO " tendencia psicologizante sua fama mundial: Friedrich Niet sche, Apesar disso, ele pairava, o perfil coberto, como uma fornia invisivel, entre nés” (Retrospectiva de vida), No tempo da mais profunda melancolia pela partida de Ree (“0 itreparével” como ainda o chamava na velhice) e da luta incipiente pelo esclarecimento de seu problema matrimo- nial, 0 trabalho nao péde comecar. Sua hora chegou apenas ‘com a compensagio encontrada. Pelo visto, Lou Andreas-Salomé lembrou-se entio de que, provavelmente logo apés seu casamento, escrevera um artigo com declaragies sobre a filosofia de Nietzsche. © artigo, um “estudo” intitulado Em meméria de um fi- Issofo, destinava-se ao metafisico Ludwig Haller, um dos pri- meiros do cfrculo de amigos de Paul Rée e Lou von Salomé, © que, na primavera de 1885, Ihes expusera sas méltiplas concepgtes filoséficas. Haller conclufra a primeira parte de sua obra concebida em dois volumes, Tudo em tudo ¢ Meta- légica, metafisica, metapsiquica, e, na madrugada de 1° de outubro de 1887, de bordo de um navio no mar do Norte, dew um salto para a morte “misticamente fundamentado” (Retros- pectiva de vida, Vivencia de amigos). Esse artigo que, por anos, ficou sem ser impresso, foi pe~ dido de volta & redagao da revista Deutsche Rundschau em 1° de marco de 1891 “a fim de promover na parte final alguns pequenos melhoramentos, induzidos pelo estudo aprofunda- do que venho fazendo desde hé pouco sobre a filosofia de Nietzsche”. Esses “pequenos methoramentos” se ampliaram de tal mo- lo que, numa confrontagio com as teorias de Haller, Lou Andreas-Salomé deseavolveu as idéias essenciais da filosofia le: Nietzsche. (Com essa ampliago o estudo também nio foi ‘nipresso; $6 hd pouco est conosco). ‘As comparagdes caracterizantes se encontram no 3° capf- ulu (inal) do artigo: ‘nquanto Haller pensa conquistar a verdade através da inalizagdo © volatizagio de todas as coisas até o abstra- esp 18 PREFACIC to-supremo, Nietzsche busca explorar a verdade justamente no total aprofundamento e interiorizagao das coisas; enquanto Hal- ler aspira a dominar por inteiro, Nietzsche deseja descobrir por partes. Enquanto Haller festeje 0 triunfo do pensamento, elevando-se acima da Terra e de seu enigma humano (quanto mais alto ¢ mais distante, tanto mais poderoso e mais domi- nador), Nietzsche satisfaz a tendéncia ao poder a busca do dominio proprias do cognoscente’, se enterrando e se revol- vendo nesta Terra e em seu enigma humano, incansavel até atingir todas as suas profundezas, ttimulos e tesouros, até seu todo mais secreto e oculto”. Sempre num crescendo, esta comparago termina assim: “O mais impressionante nesse permanente contraste entre 08 dois fil6sofos se expressa na teoria nietzschiana do eterno retorno, na tepetigao de todas as coisas no ciclo do ser, ou como o proprio Nietzsche expressa drasticamente: que 0 fil6- sofo niio Ihes diga apenas ‘Sim!’, mas que também Ihes grite ‘Da capo!” Enquanto, para Haller, 2 vistio do condicionamento total do ser leva diretamente & dissolugo do individuo no infinito, do real na abstrago absoluta, vemos em Nietzsche a mesma visio apontar para algo que poderfamos chamar de uma infinitizacdo do finito, uma eternizacdo do real”. “A idéia do eterno retorno, na qual a total fusio do fil6sofo com a quintesséncia da vida se mostra pela primeira vez de- finitiva, se tornou cada vez mais, nos tltimos anos, 0 centro mfstico do qual 0 pensamento de Nietzsche, girando como num cfrculo encantado, cada vez meis se acercava. Entio emu- deceu. Nio the ter sobtevindo algo como uma legitima vin- gana da Terra contra o espfrite de fogo que pretendeu atravessi-la até aquela profundeza que nao quer se revelar a ninguém? A Terra 0 tomou prisioreiro como se o enterrasse vivo, & forga sufocando-Ihe e reprimindo-Ihe a voz. sob seu peso terrestre”. 4 No original der Erkennende- 0 que séquire ou obtém conbecimento. Optou-se pelo neologismo o cognoscente. iN. T). PREFACIO 19 nguém poderia dizer a que altura seus pensamentos torinm se: paralisado om definitivo. A mente nietzschiana tinha u essidade de mudanga e troca que contrastava acirra- dlamente com a rigida ¢ sistemética uniformidade do pensa- mento de Haller. A filosofia de Haller constréi um cfrculo perfeitamente fechado que, sem princfpio nem fim, reflui para si mesmo em toda parte; na filosofia de Nietzsche hé desvios ccultos, sendas e linhas secretas entrecruzantes, onde s6 nos orien- tamos por permanecerem sempre suas préprias pegadas, pois esta mos sempre seguindo a mesma personalidade irtelectual”. “A identificagio de seu espfrito com 0 contetido do co- nhecimento é explicado por seu posicionamento frente a ele, por sua fusio com ele, por sua auto-afirmagio nele, de tal modo que praticamente 0 confunde com si mesmo”. A seguir reproduzimos uma declaragdo de Lou ‘Andreas- Salomé sobre 0 motivo que a levou a escrever sobre Nietzsche. Néo se pode concluir que tenha sido induzida a tal s6 “porque, gragas a sua efetiva celebridade, um niimero excessivo de jovens literatos dele se apoderaria equivocadamente”. Certo € que escrito “o livro ainda cheia de imparcialidade”’ e que, para ela, s6 depois de se relacionar pessoalmente com Nietz- sche, “a imagem de seu espirito se ofereceu propriamente em suas obras” (Retrospectiva de vida). Numa relagio encantadora com isso, consta na pégina 21 “.di e discuti com Nietzsche, do livro de Lou Andreas-Salomé: “.. em outubro de 1882 , o projeto de sua caracterizagfio”. E ela acrescenta ainda: “O trabalho continha em esbogo a primeira parte do presente livro e alguns trechos da segunda; 0 contetido da terceira, o ‘Sistema Nietzsche’ como tal, ainda nao havia nascido”. Nessa “caracterizagio” pode-se ver 0 gérmen (e, portanto, noutro sentido, o motivo) dle seu futuro livro. A seguir a jovem Lou foi tdo imparcial, to convincente- wgenua em relagdo a Nietzsche que este, como se se ¢ uma obra impessoal, soube aceité-le, e Lou foi to tecepliviy que sua “caracterizagao” se mostrou duradoura. (As 2» PREFACIO linhas seguintes a essa comunicag&o insinuam também 0 con- texto intelectual em que Lou von Salomé viveu com as idéias cambiantes de Nietzsche até a redagio de seu livro). O livro Friedrich Nietzsche em suas obras esté dedicado a Paul Rée na forma de “A um andnimo, em fiel meméria”. Sua sombra havia acompanhado o trabalho. Em tempestuosa criatividade, como um passo adiante rumo a si mesma, Lou Andreas-Salomé escreveu 0 relato Ruth imediatamente antes da viagem a Paris, em marco de 1895. (Ble ainda devia se ressentir a “pia pré-histéria, dos restos secretos da identidade entre relagao com Deus € conduta amorosa” — Retrospectiva de vida). Faltam dados mais acurados sobre o prosseguimento do trabalho, Segundo as anotagdes mantidas, Lou Andreas-Salomé 1¢ em novembro de 1893 “correcdes tipogrificas do Nietzsche”. Na noite de 20 de fevereiro seu marido “poe no corteio da estacio” as iltimas corregdes. O livro Friedrich Nietzsche em suas obras aparece em Viena ainda em 1894. Desde que Lou Andreas-Salomé, conforme observa em sua Retrospectiva da vida, pouco se ateve “A hostilidade da familia Nietzsche e, de modo geral, 2 literatura nietzschiana apds sua morte”, também ca- laremos a respeito. (O filosofo berlinense Georg Simmel em vo a incitou a uma resposta retificadora).. Da pesquisa sobre Nietzsche devemos, porém, citar 0 que Karl Léwith, no apSadice de seu livto A filosofia de Nietzsche do eterno retorno do mesmo, escteve sobre 0 livro de Lou Andireas-Salomé: “Essa exposigdo apareceu em 1894, portanto antes ainda da publicagZo do auto-retrato de Nietzsche em Ecce Homo. Por isso tanto mais nos surpreende pela prudéncia ¢ pela maturidade, Nos cingiienta anos subsequentes no apa- receu nenhuma obra mais centralizada, mas também nenhuma que seja agora to pouco notada”. Esta nova impressio do livro, portanto, nada significa além de um reaparecimento. Nao pretende inserir-se no contexto A pailir de 1889 até sua morte em 1900, Nietzsche € consierado mentalmente perturbado. (N. T.) PREFACIO a das: pesqusity sobre Nietzsche nem comparar-se com obras posteniores, Quer apenas ser lida como é: a tirica exposigaio ‘novia dinetannente pela presenga pessoal ¢ intelectual de Nietz~ sche, vivenciada por u’a mulher que demonstr. com isso ser Nietzsche a reconheceu um dia, Nao distingamos se emos © livro por causa de Nietzsche ou do encanto das idéias ‘a que a pr6pria Lou Andreas-Salomé sucumbiv. © que vem a seguir pode interessar a0 leitor, mas néio toca a peculiaridade do livro. Em seguida a uma conversa sobre o capitulo Vivéncia de amigos de suas memérias, Lou Andreas-Salomé emite a reflexfio de que poderia tirar Nietzsche de sua vida pelo pensamento. Isso se torna compreensfvel quando consideramos a carga de destino que, comparados com Nietzsche, Ihe granjearam os nomes (em cada caso, através do fundo divine) de Hendrik Gillot, Paul Rée, F.C. Andreas e, em seguida (liberando-a), Rainer Maria Rilke ¢ Sigmund Freud. O significado que 0 espitito de Nietzsche teve continuamente para Lou v. Salomé ‘if est provado apenas neste livro. Tavez a anotaco seguinte nos permita avaliar a que nivel descritivo Lou Andreas-Salomé chegou em seu fivro. Numa folha de difrio, em resposta a uma carta do soci6logo Ferdinand Tonnies, com quem se re~ lacionow intimamente no tempo de Rée, ela assinala: “Tonnies a respeito de Nietzsche: se € maior seu amor & verdade, seu desejo de fama ou seu gosto de destruigao. — Nada disso, mas sim uma confusio, de ordem demonfaca, de si mesmo com isso antes de se ajoelhar duradouramente. & sempre isso que, mesmo na opefo mais destrutiva pela verdade, cconstr6i alturas em torno dele e rasga o sinistro precipfcio em sua natureza. Essa mistura de impeto & verdace e desejo de Janna, entusiasmo e vaidade, se volta com firia destrutiva contra lui @ que se encontra fora desse circulo demonfaco” “Mas, sem diivida, Nietzsche é um dos homens mais ricos, 1s sinistros e mais ocultos que jamais viveram. Inesperada- ‘ite, agindo da escuridao, de modo a quase sentirmos a ne- n PREPACIO cessidade de seu espirito junto com sua obra espreitar mais uma vez 0 mundo exterior, mesmo que da escuridio da cela do alienado, ainda que num gigantesco esgar”. (Essa nota poderia ser datada do tempo da clinica de Nietz- sche em Tena, em 1890), Todas as declaragdes posteriores de Lou Andreas: sobre Nietzsche estio anexas as notas de nosso livro. alomé Emnst Pieiffer Divisa de Nietesche: “Inerescuo anit, vireseit volnere virtus (Furius Antias, em Geldius) Wy, ante Cots rtm, Sf Guin a Mein de pong Aff nse + eae fu Weft Yo hse fake oh ge ee x ft to re et pie Skee bal 0 Mtl a 12 papell Loy KamiDietaglan , 9 Mofo We gme vcff Aud! yeh meafen © — yew Gel) hen, # , Dayrtfin fl dw Ride pba te ri aed len Meee f ne sorte Wat (if msm % = Yuba * ere ‘ag M4 A Day ate a ff vif Fam» = meal for fore Pauw lien ball naaead 3 “ee rad “bate es yamond) yarn waft, Val shun fo wis Neal he ft ‘ft June ee dn ie f= * Heft pies onl Boag vCal, — It Ha fovabtonftty wsnsine Joldm be DAYS | vale mae, fans de [rien Ver transcrigdo e tradugio da carta no apéndice, pagina 230. fo fate mate srnnen ‘Vaal ad Soe ft mdi 2 ot fi ft bbe. ovaian Dow y wein Condy dou Tow aad Gilly 2 af matty sae of sheaf; Ge eof Pa a ty mi Sd vacua tly Viofen s Ufo (rps se Cortney Vata CMe Va if J Wekeden , awh Dou pov itn td Jed D4 fod ye (timensing 6u Ten ve fiin ( fa fe acy mw Yow ts ‘) RD eft oa alle fold FD Lid fed “wide way ob 4 oft ngued talfe Caley ya Vow vialdfaet fide DY [ap mie yfeinpeny tae Srgaeen Ih Cormeen. 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Sdo palavras reveladoras para quem sabe ler os escritos de Nietzsche: insinuam o segredo em que esto todos os seus pensamentos, 0 inv6lucro vivo que os reveste de muitas formas; insinuam que, no fundo, ele s6 pensava e escrevia para si préprio € convertia seu proprio eu em pensamentos. Se é tarefa do bidgrafo esclarecer o pensador através do homem, isso vale sobremaneira para Nietzsche, pois em nenhum outro autor a obra intelectual exterior © a biografia interior coincidem numa unidade tao plena. Muito particular- mente correspondem-the as palavras que exprime sobre os fil6- sofos em geral na carta acima: que se deve provar os sistemas nos atos pessoais de seus autores. Mais tarde expressou a mes- ma opinido deste modo: “Aos poucos, evidenciou-se para mim «que toda grande filosofia foi até hoje, ou seja, a confissio essoal de seu autor e uma espécie involuntéria c despercebida ‘le memdrias” (Para além de bem e mal, 6). ois esse também foi o pensamento diretor em meu projeto asa uma caracterizagao de Nietzsche, o qual tie discuti com Ey LOU ANDREAS-SALOME ele em outubro de 1882. O trabalho continha, em esbogo, a primeira parte do presente livro e a'guns trechos da segunda; © contetido da terceira, o “Sistema Nietzsche” como tal, ainda nao havia nascido. No decorrer dos anos, em conseqiiéncia das obras que se seguiam rapidamente, aquela caracterizagio ampliou-se ainda mais, ¢ partes deta j4 foram publicadas em artigos especiais.' Para mim, a questfo exclusiva era descrever 68 tragos principais do espfrito peculiar de Nietzsche, porque 86 esse conhecimento permite compreender sua filosofia ¢ seu respectivo desenvolvimento. Para esse fim limitei-me volun- tariamente tanto nas consideragdes puramente te6ricas quanto na biografia estritamente pessoal; ambas nao poderiam ter um tratamento muito extenso sc o tracado das linhas bésicas de sua esséncia devesse ressaltar nitidamente. Quem quisesse tes- tar Nietzsche em seu significado como teérico, ou seja, naquilo que, porventura, ele pudesse ensinzr & filosofia corporativa, desistiria frustrado sem avangar até o cee de seu significado. Pois o valor de suas idéias nao repcusa em sua originalidade te6rica nem naquilo que pode ser dialeticamente fundamentado ou refutado, mas, a0 contrério, na forca intima através da qual uma personalidade fala a outra personalidade, naquilo que, segundo sua prépria expressiio, pode ser refutado, mas “nfo pode ser morto”. Quem, por outro lado, quisesse partir da vi- véncia exterior de Nietzsche a fim de apreender seu interior, igualmente reteria nas mos uma casca vazia da qual scu espi- rito teria escapado. Pois de Nietzsche se pode dizer que, na verdade, nada vivenciou exteriormente:* Toda a sua vivéncia foi tio profundamente interior que s6 se comunicava no did- Jogo, de boca a boca e nos pensamentos de suas obras. A soma de mondlogos em que, no fundo, consistem os muitos volumes de suas coletaneas de aforismos forma uma grande € tinica obra memorialistica em cuja base repousa a imagem de seu espirito, E essa imagem que procuro tragar aqui: a vivéncia das idéias em seu significado para a esséncia do espt- tito de Nietzsche, a autoconfissiio em sua filosofia. Embora, desde hé alguns anos, seu nome seja mencionado mais freqtientemente que o de qualquer outro pensador, embora SUA ESSENCIA a nuts penas dele se ocupem, em parte para angariar-Ihe dis- ‘yufos, em parte para contesté-lo, permanece Nietzsche, nos agos de sua individualidade espiritual, quase um desconhe- vido. Pois desde que o pequeno ¢ esparso grupo de leitores que sempre possuiu —e que, de fato, sabia Lé-lo — se trans- formou num grupo numeroso de adeptos: desde que vasios circulos dele se apoderaram, sucedeu-lhe o destino que ameaga todo aforista: algumas de suas idéias, fora do contexto © por {sso interpretaveis a bel-prazer, foram transformadas em motes € chavGes de correntes inteiras, ressoando na luta de opiniées e na disputa entre partidos, das quais ele mesmo se manteve completamente afastado, Provavelmente, deve a essa circuns- {Gncia sua répida fama, o sbito rumor em tome de seu nome silencioso; mas o que tem de melhor e de absolutamente especial ¢ incompardvel a oferecer passou, talvez por isso, despercebido e assim permaneceu; terd mesmo recuado para uma obscuridade ainda mais profunda. Sem diivida, muitos ainda o festejam rui- dosamente com toda a ingenuidsde e credulidade dos espiritos desafeitos a critica, mas nfo justamente estes que nos lembram, involuntariamente, suas palavras amargas: “(fala o desiludido): “Escutei 0 eco € 86 ouvi elogios’ ” (Para além de bem e mal, 99). Nem sequer um deles o ter seguido verdadeiramente, Jonge dos outros ¢ de suas disputas didrias, ne comogio de seu interior, nem sequer um deles ter seguide esse espitito solitério, quase insondével, familiar ¢ estranho ao mesmo tem- po, e que delirava trazer em si 0 monstruoso e que desabou num delirio monstruoso. Assim, € como se estivesse entre agueles qte mais 0 pre- vam, como um forastciro ¢ eremita cujo passo s¢ se fez perder cm seu meio e de cuja figura encoberta ninguém ergueu 0 ‘nuunio; sim, € como se ele If estivesse com a queixa de seu wratustra” nos labios: Vodos eles falam de mim quando & noite sentam em volta ‘+ tngn, mas ninguém pensa em mim! Esse € o novo siléncio 18 aprendis © rufdo das pessoas & minha volta estende um sean ent torn de meus pensamentos”, 32 LOU ANDREAS-SALOME, Priedrich Withelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, Gnico filho de um pastor, em Ricken, perto de Liitzen, dc onde mais tarde seu pai foi transferido para Naumburg, Recebeu suas instrugo escolar na vizinha Escola de Pforta e foi entio, como estudante de filologia cléssica, para a Univer- sidade de Bonn, onde na época era professor 0 afamado Ritschl. Estudou quase exclusivamente com Ritschl e com ele também teve um relacionamento pessoal intenso, seguindo-o no outono de 1865 para Leipzig. Em seu perfodo de estudos em Leipzig ocorreu 0 primeiro contato pessoal com Wagner, que veio a conhecer na casa da irmi deste, a esposa do prof. Brockhaus, depois de j& se ter familiarizado previamente com suas obras. Antes ainda de sua licenciatura, em 1869, a Universidade de Basiléia convidou Nietzsche, com 24 anos, para a cftedra do filologo Kiessling, que de Ié partiu para o Johanneum em Ham- burgo. Nietzsche recebeu primeirc 0 cargo de professor ad- junto, mas logo depois 0 de titular de filologia cléssica, ¢ a Universidade de Leipzig conferiu-Ihe o doutorado sem a prévia licenciatura. Junto ao corpo docette universitério, Nietzsche assumiu o curso de grego na terceira (e mais elevada) série do Pacdagogium de Basiléia — um instituto intermediério entre secundério e a universidade —, onde ensinavam outros pro- fessores universitérios, como 0 historiador da cultura Jacob Burckhardt e o fillogo Muhly. Niezsche conquistou af grande influéncia sobre seus alunos; seu raro talento de cativar jovens espftitos ¢ de agir sobre cles, desenvolvendo-os ¢ estimulan- do-os, desabrochou totalmente, Burckhardt disse entio que Ba- siléia nunca possufra um professor como tal. Burckhardt per- tencia ao cfrculo de amigos mais intimos de Nietzsche, que contava ainda com o historiador eslesidstico Franz. Overbeck © com © fil6sofo kantiano Heinrich Romundt. Com os dois uiltimos Nietzsche morou em uma casa que, ap6s a publicagHo de Consideragdes extempordneas, recebeu na socicdade de Ba- siléia 0 cognome de Gifthitte (choga venenosa). Ao fim de sua permanéncia em Basiléia, Nietzsche viveu por algum tempo com sua tinica irmd, Blisabeth, que mais tarde se casou com Bernhard Forster, amigo de juventude do irmio, indo 0 casal ‘SUA ESSENCIA 3 aguai. Fm 1870 Nietzsche participa da guerra fran- ‘ana como enfermeiro voluntério; nfo muito tempo depois aparecem os primeiros sintomas ameacadores de uma wa encefélica, que se manifesta em dores € néuseas vio- lenlas e periodicamente recorrentes. Se dermos c1édito as pr6- prias declaracBes verbais de Nietzsche, esse mal seria de ori- gem hereditéria, e seu pai teria sucumbido a ele. No ano de 1876 j6 se sentia Zo doente da cabega e dos olhos que teve de se fazer substituir no Paedagogium, e a partir de entio seu estado piorou de tal modo que vérias vezes esteve perto da morte. “Algumas vezes escapei das portas da morte, mas terri velmente torturado. Assim vivo dia apés dia, e cada dia tem sua hist6ria de doenga.” Com essas palavras Nietzsche descre- ve, em carta a um amigo, 0s sofrimentos que 0 acompanharam por aproximadamente quinze anos. Foi-lhe init passar 0 inverno de 1876-77 no clima ameno de Sorento, onde ficou em companhia de amigos: de Roma Ihe viera sua amiga Malwida von Meysenbug (autora das co- nhecidas Memérias de uma idealista e discfpula de Wagner); a Prdssia Ocidental, o dr. Paul Rée, a quem jé se ligava por amizade e identidade de propésitos. A esse pequeno ambiente doméstico se associara ainda um jovem da Basiléia, mbercu- oso, de nome Brenner, que, porém, morreu logo depois. Como 11 estada no Sul também ni teve efeito favordvel sobre seu estado de saiide, Nietzsche, em 1878, abandoncu definitiva- mente sua docéncia no Paedagogium e, em 1875, sua cadeira tia universidade. Desde entéo levou apenas uma vida de ere- inita, parte na Ilia (Sobretudo em Génova), parte nas mon- 1s suigas, no vilarejo de Sils-Maria, no vale do Engadina, »ximo ao desfiladeiro Maloja. Se, por um lado, sua vida exterior nos parece com isso cncciitda e finda, por outro, s6 agora desponta efetivamente 1 vitha de pensador, de modo que 0 fildsofo Nietzsche de «que wannoss Water 86 nos aparece nitidamente no desfecho desses os. Nao obstante, voltaremos a trater minuciosa- te ule todas as voltas do destino e de todas as vivencias, 34 LOU ANDREAS-SALOME aqui brevemente detineadas, ao analisarmos os diversos pe. sfodos da evolugio de seu espitito. Sua vida ¢ sua criago decompoem-se fundamentalmente em trés perfodos que se in- terpenetram ¢ abrangem um decério cada um. Dez anos, de 1869 a 1879, durou sua docéncia em Basiléia. Essa atividade filolégica coincide, no tempo, quase integral- mente com a década em que foi disefpulo de Wagner € com a publicagtio daquelas obras influenciadas pela metafisica de Schopenhauer. Seu wagnerismo se estende de 1868 a 1878, ano em que, indicando mudanga em sua orientagao filoséfica, remete a Wagner sua primeira obra positivista, Humano, de- ‘masiado humano. Do infcio dos anos 1870 até 0 outono de 1882 Nietzsche esteve ligado a Paul Rée; a ruptura se deu com a conclusio de A gaia ciéncia, éltima das obras de Nietzsche que repousam. ainda em bases positivistas. Nesse mesmo outono Nietzsche tomou a resolugio de se abster de toda atividade literéria por dez anos. Nesse tempo do mais profundo siléncio queria provar a exatidfo de sua nova filosofia voltada para o mfstico e s6 em 1892 surgir como seu arauto, Ndo concretizou esse propésito, mas justa- mente nos anos 1880 exibiu uma stividade quase ininterrupta e entZo, antes ainda do fim da década por ele aprazada, emu- deceu: em 1889 uma violenta erupg&o de sua doenga poe fim a toda a sua criagao. Porém, o perfodo entre a rentincia a sua cétedra em Basiléia ea cessagio de toda atividade em geral compreende mais uma década que vai de 1879 a 1889. A partir de entio Nietzsche, enfermo, vive em Naumburg com a mae, apés uma curta tem- porada no instituto do professor Binswanger em Jena. (Os dois retratos anexados a este livro mostram-no durante esses dez tiltimos anos de sofrimento. Sem dévida foi esse 0 tempo em que sua fisionomia e todo o seu exterior apareceram mais caracteristicamente marcados, tempo em que a expresso total de sua esséncia, j& completamente impregnada por sua fervilhante vida interior, revelava até mesmo 0 que ele retinha c ocultava. Eu diria que algo oculto, o pressentimento de uma SUA ESSENCIA 35 ino silenciosa, era a primeira impressio mais forte que wwwx culivaya na aparéncia de Nietzsche. Ao observadar super- fica ela nada oferecia de incomum: esse homem de estatura em suas roupas extremamente modestas, mas também mamente bem-cuidadas, com tragos calmos ¢ 0 cabelo «astanho puxado para tris com simplicidade, podia facilmente siar despercebido. As linhas da boca, finas e muito expres viviss, eram quase completamente cobertas por um grande bi- pode, penteado para a frente; tinha um sorriso leve, um jeito de falar calmo ¢ um andar cnidadoso e reflexivo, em que in- clinaya um pouco os ombros. Dificilmente se poderia imaginar essa figura em meio a uma multiddo humana; ela trazia 0 cunho do isolamento ¢ da solidio. Incomparavelmente belas «: nobremente formadas, de modo que involuntariamente atra- fam o othar para si, eram as mios de Nietzsche, e ele préprio acreditava que Ihe revelassem 0 espirito. Uma nota a respeito se acha em Para além de bem e mat (288): “Hé homens con’, denados a ter espfrito; podem virar e revirar quanto queiram © manter as mios diante dos olhos traidores (ecmo se as pro-, prias maos nao fossem também traidoras!),> A A expressao dos olhos, sim, era verdadeiramente traidora. ‘Semicerrados, nZo possufam, contudo, nada do olhar esprei- tador, pestanejante, indiscreto, que rejeitames em muitos miopes; pareciam, antes, guardides e protetores de tesouros pr6prios, de segredos calados, que nenhum olhar sem permis- siio deveria sequer rogar. A visio deficiente dava a seus tragos a qualidade toda especial de encanto, pois, em vez de refletir inipressées exteriores cambiantes, reproduzia apenas 0 que se passava em seu interior, Eram olhos que olhavam para o interior ©, av mesmo tempo, por sobre os objetos mais préximos, para distante, ou melhor, para o distante como se estivesse pré- timo, Pois, no fundo, toda a sua investigagao de pensador nao 1a senio a investigagio da alma humana em busca de “suas Jnveubilidades ainda nfo esgotadas” (Para além de bem e mal, 1+, pmiilidades que ele, incansavelmente, criava a recriava pan ‘Quando revelava seu set no curso de uma excitante ‘camverst a dois, um esplendor passageiro talvez cintilasse em 36 LOU ANDREAS-SALOME seus olhos; porém, se estivesse de humor sombrio, eles ex- pressariam uma soliddo ligubre e quase ameagadora, que pa- recia brotar de profundezas inquietantes — daquelas profun- dezas onde sempre permaneceu sozinbo, que nao pode repartir com ninguém, ¢ diante das quais o horror as vezes o arrebatava — e nas quais, por fim, seu espirito nanfragou. O comportamento de Nietzsche causava também seme- Ihante impressio do calado € do oculto, No dia-a-dia era de grande polidez e de uma suavidade quase feminina, de uma serenidade constante ¢ benévola; gostava das maneiras clegan- tes nas relagdes e Ihes atribuia grande importincia, Nisso, po- rém, sempre existiu um gosto pelo disfarce: manto e m4scara de uma vida interior quase nunca desnudada. Lembro-me de que, ao falar com Nietzsche pela primeira vez (era um dia de primavera na igreja de Sao Pedro, em Roma), sua formalidade rebuscada me impressionou e me iludiu durante os primeiros minutos. Porém, a formalidade no enganava por muito tempo nesse solitério, que usava sua méscara to inabilmente quanto alguém que, oriundo do deserto ou da montanha, usa 0 casaco dos mundanos. Logo surgiu a questo que ele resumiu nestas palavras: “Em tudo o que um homem deixa ficar visfvel, po- de-se perguntar: 0 que estard escondendo? do que estaré des- viando nosso olhar? que preconceitos estaré provocando? E ainda: até onde vai a sutileza de seu fingimento? E nisso, onde se engana?” Esse trago representa apenas o reverso da solidio, a partir da qual devemos compreender a vida interior de Nietzsche, ou seja, a partir de um isolamento e de um relacionamento consigo mesmo sempre crescentes, A medida que crescem, todo 0 seu ser voltado para 0 exterior se torna aparéncia, simples véu ilusGrio que a profunda soliddo tece sua volta apenas para simular temporariamente uma superficie reconhecfvel 20 olto humano. “Homens pro- fundamente pensantes sentem-se cémicos no trato com outros, porque, a fim de serem compreendidos, devem primeiro si- mular uma superficie” (Humano, demasiado humano, U, 232). ‘Sim, podemos considerar os préprios pensamentos de Nietz- SUA ESSENCIA 37 fiche, mesmo quando expressos teoricamente, como tais su- peilicies, sob as quais repousa, insondavelmente profunda muda, a vivencia interior que os originou. Parecem uma “pele que revela alguma coisa, mas que esconde ainda mais” (Para lim de bem e mal, 32). “Pois — diz Nietzsche — ou ocultamos hnossats opinides on nos ocultamos sob elas” (Humano, dema wudlo humano, TI, 338). Encontra para si uma bela denominacdo «quando, nesse sentido, fala dos “ocultos sob os mantos da luz” (Para além de bem e mal, 44), daqueles que se encobrem na clareza de seus proprios pensamentos, Portanto, em cada perfodo da evolugio de seu esptrito, cncontramos Nietzsche em alguma espécie ¢ forma de masca- ramento, e € sempre a méscara que efetivamente caracteriza, seu estégio evolutivo, “Tudo quanto € profundo ama a méscara |... Todo espfrito profundo precisa de méscars, e mais ainda, cin tomo de todo espfrito profundo se forma constantemente uma méscara” (Para além de bem ¢ mal, 40). — Andarilho, quem és tu? [...] Descansa aqui [..] re- cupera-te [.,]. O que servird a teu descanso? [...] — A meu descanso? O curioso, o que dizes af? Mas dé-me, eu te peco 1.1 —O que? o qué? fala! — Outra méscara! Uma segunda mascara! [...]” (Para além de bem e mal, 278) E, sem dtivida, somos forgados a pensar que, & medida que seu isolamento e seu relacionamento pensativo consigo mesmo se tornam mais exclusivos, também se aprofunda 0 significado de sen disfarce; e que a verdadeira esséncia por detrés de sua manifestagio e o verdadeiro ser por detrés da pwéncia recuam, mergulhando numa obscuridade maior. 34 em © andarilho e sua sombra (175) Nietzsche se refere & “nediocridade como méscara”: “A mediocridade ¢ a mais feliz dns méscaras que o espfrito superior pode usar, porque no deixa a grande massa, ou seja, os medfoores, pensar num mas- caramento [...] e, contudo, ele a poe justamente por causa dela, pari no irrité-la e mesmo, no raramente, por piedade e com- palxtlo”, Partindo dessa méscara do inofensivo, Nietzsche as val trocando até chegar A do horrendo, que oculta atrés de si olaws uinda mais horrendas; “...] &s vezes, a prépria loucura 8 LOU ANDREAS-SALOME € a mAscara de um saber funesto e seguro demais” (Para além de bem e mal, 270), ¢, finalmente, alcanga a imagem do divino ridente, que se esforga por transfigurar a dor em beleza. Assim, em sua mistica filosGfica final, aos poucos Nietzsche imerge naquela solidio definitiva, em cujo silencio j4 no podemos segui-lo ¢ que s6 nos deixa, como sfmbolos e signos, a inter- pretagio de suas ridentes méscaras de idéias, enquanto que, para n6s, ele ja se tornow “o para sempre extraviado”, conforme se subscreveu numa carta de 8 de julho de 1881, de Sils-Maria. Esse isolamento interior, essa solido, é em todas as me- tamorfoses de Nietzsche a moldura invaridvel de onde sua imagem nos contempla. Por mais que se tenha transvestido, sempre traz.consigo “o deserto e o santudrio impenetravel aon- de quer que va” (O andaritho e sua sombra, 337). E por isso, quando escreve a um amigo em 31 de outubro de 1880, da Itdlia, expressa simplesmente a necessidade de sua existéncia exterior corresponder a sua solidi interior: “A solidio, e por certo a absoluta, aparece cada vez mais nitidamente como minha receita e paixdo natural —e devemos ser capazes de produzir 0 estado em que podemos criar o melhor de n6s mesmos, e, para isto, de render muitos sacri- ficios”. Porém, 0 ensejo de transformar seu isolamento interior to completamente quanto possivel num isolamento ex- terior $6 Ihe foi dado por seu sofrimento corporal, que 0 afas- tou dos homens ¢ que s6 Ihe permitiu relagdes com grandes intecrupgdes, mesmo com alguns de seus amigos —~ sempre relages raras, a dois. Sofrimento ¢ soliddo sio, portanto, os dois grandes tragos fatais na evolugio de Nietzsche, tanto mais pronunciados quan- to mais proximo o fim. E trazem até o fim aquela estranha dupla face, exibida exteriormente como uma fatalidade da vida € desejada interiormente como uma necessidade puramente psiquica, Seu sofrimento psfquico, nfo menos que seu reco- Ihimento e sua solidio, refletia ¢ simbolizava algo de profun- damente intimo, ¢ isso tao diretamente que Nietzsche o acolheu em sua vida como a um amigo ¢ companheiro a ele predesti- SUA BSSENCIA 38 nial Assim € que, certa vez, por ocasiao de uma mensagem ile pesinnes (fim de agosto de 1881, de Sils-Maria), escreve: “Lastimo sempre saber que voce esteja sofrendo, que alguma corsa esteja Ihe faltando, que vocé tenha perdido alguém; 20 rmsso que em mim sofrimento e soliddo fazem parte da es- sénvia, e ni, como em voce, do supérfiuo € do absurdo da A isso também se referem alguns aforismos, dispersos em sua obra, sobre 0 valor do sofrimento para 0 conhecimento. Nietzsche descreve a influéncia que os hurmores do doente € do convalescente exercem sobre 0 pensamento; acompanha as mais sutis transigdes desses humores até as raias do inte- lectual. Uma doenga periodicamente reincidente como a sua interrompe continuamente uma fase qualquer da vida, sepa- rando-a com isso da fase precedente ¢ fornecendo ao individuo as experiéncias e a consciéncia de duas naturezas. Faz. as coisas se tomarem continuamente novas para o espftito — “‘saber a novo”, diz Nietzsche certa vez com extrema justeza — ¢ langa um olhar totalmente novo mesmo sobre o mais comum e mais cotidiano. Cada coisa recebe algo do frescor e do luminoso orvalho da beleza da manha, porque uma noite a separou do dia anterior. Assim, cada convalescenga se torna para ele uma palingenesia de si mesmo e, simultaneamente, da vida & sua volta, ¢ continuamente a dor é “tragada pela vit6ria”. Se o proprio Nietzsche insinua que a natureza de seu so- frimento se reflete de certo modo em seus pensamentos e obras, a estreita conexdo entre o pensar € 0 softer sobressai ainda ‘mais acentuadamente ao considerarmos sua criagdo € a respec- tiva evolugio como um todo, Nao estamos ciante daquelas sraduais alteragdes da vida do espfrito, sofridas por todo aquele ‘que cresce até atingit sua grandeza natural, nem das metamor- fuses do crescimento, mas sim diante de mudangas e transfor- ‘mages repentinas, de um oscitar quase ritmico de estados de espftito, que, em tiltima instincia, no parecem provir seno «le um adoecer em pensamentos e de um convelescer em pen- sunwentes. 0 LOU ANDREAS-SALOME E a mais interna necessidade de sua natureza, o mais pe- noso desejo de cura, que Ihe abre novos conhecimentos. Porém, mal o§ penetra, mal repousa sobre eles © os assimila & sua propria forga, de novo jé 0 arrebata uma nova espécie de febre, uum excesso de energia interior que o agita e 0 impele e que, por fim, 0 aferroa € o faz adoecer de si mesmo. “A tinica prova de forga € 0 excesso de forga” — diz Nietzsche no Preficio de Crepiisculo dos idolos; nesse excesso sua forca se fere, se desafoga cm lutas softedoras, se estinula até 0s tor- ‘mentos € comogdes que fertilizarfo seu espftite. Com a ar- rogante afirmacio: “O que ndo me mata me faz mais forte!” (Crepitsculo dos fdolos, “Méximas € flechas”, 8), Nietzsche flagela-se, nfo para se aniquilar ou mozrer, mas para atingir as febres ¢ ferimentos de que precisa. Essa exigéncia de dor petcorre toda a hist6ria de Nietzsche e representa a verdadeira fonte de seu espirito; ele a exprime com 0 méximo acerto nas seguimtes palavras: “Espirito é a vida que corta a prépria vida; no préprio tormento se multiplica o proprio saber — jé sabfeis disso? E a felicidade do espirito ¢ ser ungido ¢ consagrado como vitima através de légrimas — jé sabeis disso? [..] V6s conheceis apenas a centelha do espirito, mas nfo vedes a bi- gorna que ele é nem a crueldade de seu martelo!” (Assim falow Zaratustra, “Dos famosos sabios”, TI, 33). “Aquela tensio alma na infelicidade [..] seu frémito ao ver 0 grande colapso, seu engenho © bravura no suportar, no perseverar, no inter- pretar, no utilizar a infelicidade, ¢ tudo quanto Ihe foi dado em profundidade, mistério, mascara, espfrito, ardil e grandeza no Ihe terd sido dado em meio a sofrimentos, em meio & disciplina do grande sofrimento?” (Para além de beni e mal, 225), E cada vez mais se acentuam duas coisas distintas nesse processo: primeiro, a estreita conexfo em sua existéncia entre avida das idéias ¢ a vida psfquica, adependéncia de seu esptrito em relagdo as necessidades e as emogdes de seu interior. Se- gundo, porém, a particularidade que, de tao estreita afinidade, deve sempre resultar novos sofrimentos; € preciso um intenso fervor d’alma toda vez que se deva chegar & suprema clareza, SUA ESSENCIA a 4 luz brilhante do conhecimento— mas nunca pode esse fervor ‘veudiat se em calores benfazejos: deve ferit com fogos abra- nue © chamas vivas. Aqui também, como exprime na carta win: “[...] 0 Sofrimento [...] parte da esséncia”, Assim como o softimento fisico de Nietzsche se tornou 0 ative de sen isolamento exterior, deve-se também buscar em vel sofrimento psfquico uma das causas mais profundas de wow agugado individualismo, da grande énfase no “isolado” e ww “solitério”, no sentido peculiar de Nietzsche, A histéria slesse ser tnico 6 do prinejpio ao fim uma histéria de sofrimento © nido se compara a qualquer individualismo gerérico; seu con- revela menos “auto-suficiéncia” do que “autotolerdncia”, Examinar 08 altos ¢ baixos dolorosos das metamorfoses de scu espfrito € ler a hist6ria de outras tantas auto-agressoes. (Quando Nietzsche aplica estas ousadas palavras a sua filosofia: “Iisse pensador, ndo precisa de ninguém que o refute; para tanto ele se basta a si mesmo!” (O andaritho e sua sombra, 249), oculta a longa e penosa luta heréica consigo mesmo. Sua extraordindria capacidade de se habituar continuamen- te a0 mais severo autodomfnio, de se actimatar a cada novo conhecimento conquistado, parece existir somente para tornar cada vez mais comovente sua separago do recém-conquistado. “Estou indo! Levanta acampamento e vem a meu encontro!” ~ ordena-lhe o espitito, e Nietzsche, com altivez, abandona seu teto e busca de novo a.escuridzo, a aventura ¢ 0 deserto, com a queixa nos Lébios: “Devo levar mais lenge meus pés, esses pés cansados e feridos, ¢ porque devo, muitas vezes volto um olhar furioso para as coisas mais belas que nfo me souberam deter, [..] porque ndio me souberam deter!” (A gaia fencia, 309). Tao logo se sinta firme numa idéia, numa visdo, ‘uumprem-se nele suas préprias palavras: “Quem alcanga seu ‘eal, justamente com isso o ultrapassa” (Para além de bem © mal, 73)3 ‘A mudanea de opinido € 0 fmpeto a metamorfose se en- steam, pois, no coracéo da filosofia de Nietesche, determi- ‘nando inteiramente 0 fipo de conhecimento que adquire, Nao © toa que se nomefa no canto final de Para além de bem e a LOU ANDREAS-SALOME, mal um “Iutador que venceu a si mesmo muitas vezes, / Que dominow muitas vezes a propria forga / Que se feriu e se reprimiu através da vit6ria contra si mesmo”. Nessa disposigio heréica de renunciar &s préprias convic- ges, esse impulso toma o lugar da lealdade as convicgées.® Em O andaritho e sua sombra (333) lemox: “Nao nos deixa- sfamos queimar por nossas opinives; delas ndo estamos tio seguros. Mas talvez, para ter o direito a ter opinides ¢ a mu- dé-las”. Em Aurora (370) essa idéia se exprime nestas belas palavras: “Nunca reter nem calar para Ti algo que possa ser pensado contra Teus pensamentos. Promete isso a Ti mesmo! Isso € parte fundamental da retiddo do pensamento, Todo dia deves conduzir Tua campanha contra Ti mesmo. Uma vitéria ‘ou uma trincheira conquistada ja no dizem respeito a Ti, mas sim & verdade, Mas tampouco Tua derrota diz respeito a Ti”. © titulo desse aforismo € “Em que medida o pensador ama seu inimigo”. Esse amor, porém, deriva do pressentimento obs- curo de que, no inimigo, possa estar oculto um futuro com- panheiro € de que s6 ao derrotado aguardam novas vit6rias; deriva do pressentimento de que, para Nietzsche, o sempre igual e doloroso processo psiquico de autotransformago é con- digo indispensdvel a toda forga criativa. “E o espfrito que nos salva de ser consumidos por inteiro e reduzidos a cinzas. [..] Livres do fogo, caminhamos, entdo impelidos pelo espitito, de opinitio em opiniao, [...] como nobres traidores de todas as coisas” (Humano, demasiado humano, 1, 637). “[...] Deve- mos ser traidores, praticat a deslealdade, renunciar constante- mente a nossos ideais” (Humano, démasiado humano, I, 629). Esse solitério devia, por assim dizer, multiplicar-se a si mesmo, decompor-se numa pluralidade de pensadores 4 medida que se fechava em si mesmo; s6 assim lograva dar vida a seu espirito. O impulso A auto-agressio era apenas outra modali- dade de seu impulso de autoconservagdo; 6 se langando a novos softimentos, escapava q seu sofrimento. “Invulnerdvel sou apenas em meu calcanhar! (...] E s6 onde hé sepulturas, ha ressurreigses! [...] Assim cantou Zaratustra” (II, 46). Ele, SUA ESSENCIA 2 «quem a vida “confiou este segredo: — Vé — disse ela — ‘eit aquilo que deve sempre se superar a si mesmo” (II, 49).7 Com certeza, esse enigma de sua vida foi 0 ponto sobre ‘0 qual Nietzsche refletiu com mais freqiiéncia 2 profundidade ©, portanto, € 0 ponto sobre o qual suas obras nos informam mais amplamente; no fundo, para ele, todos 9s enigmas do conhecimento se reduziam a isso.Quanto mais profundo seu iecomhecimento de si mesmo, tanto mais patente a transfor- magdo de toda a sua filosofia num monstruoso reflexo de sua sauto-imagem e tanto mais ingénua sua atitude de nela apoiar a imagem do universo. Do mesmo modo como os fildsofos sisteméticos generalizaram seus proprios conceitos em leis uni- vyersais, Nietzsche generaliza sua alma em uma alma universal. Mas para tracar sua imagem nio € preciso reduzir previamente © conjunto de suas obras a ele mesmo, o que faremos mais adiante. ‘Aqui, onde Nietzsche sera apenas considerado com respeito 2 estrutura de seu espitito, jé se pode ter alguma compreensio para tal procedimento. A riqueza de seu espirito é por demais variada para que se possa manter numa ordem definida: a vi- lulidade € a vontade de poténcia de cada talento € de cada impulso do espfrito em Nietzsche levam necessariamente a uma rivalidade entre eles que nunca se abranda, Nele viviam ‘em constante discérdia, lado a lado e tiranizando-se recipro- camente, um mésico altamente dotado, um pensador de orien- {ago livre, um génio religioso ¢ um poeta nato. O proprio Nietzsche tentou, a partir disso, explicar a unicidade de seu espirito © com freqléncia conversava sobre isso detalhada- nent Distinguia dois grandes grupos principiais de cardter: aquele «jas diversas emogdes € impulsos esto em sarmonia entre 4. ¢ aquele cujos impulsos e emogbes se reprimem e se hos- iulizam mutuamente, Comparava os membros do primeiro gru- m1 com © estado da humanidade ao tempo do gregarismo, antes de qualquer articilagdo estatal; assim como Ié o individuo © detinha sua individualidade e sentimento de poténcia no vata fechado do rebanho, aqui também os diversos impulsos “ LOU ANDREAS-SALOME 86 subsistem no todo da personalidade fechada cujo contetido € formado por elas. As naturezas do segundo grupo vive como se estivessem numa guerra de todos contra todos; a pré- pria personalidade se dissolve de certo modo em um grande mémero de personatidades impulsivas e arbitrérias, numa plu- ralidade de sujeitos. Esse estado s6 € dominado quando se cria, de fora para dentro, um poder superior, uma autoridade mais forte, que saiba govemar todes: como uma lei de orga- nnizagdo estatal para a qual s6 hé Zorgas submetidas. Pois 0 que, no primeiro grupo, acontece de modo totalmente instin- tivo, ou seja, a ordenagio de cada individvo no conjunto, no segundo deve ser conquistado a forga das 4nsias tirénicas de cada individuo, tal como uma hierarquia dos impulsos inexo- ravelmente rigida.* ‘Vemos que esse € 0 ponto onde se abriu para Nietzsche & possibilidade de uma auto-afirmardo como wm todo através do sofrimento de todas as partes. Aqui reside, como que en- cerrado num botio de flor, o gérmen de sua teoria da deca- déncia, que ser langada mais tarde com esta idéia bsica: existe a possibilidade de uma suprema capacidade de criagdo através de uma constante auto-agress4o e de um constante pa- decimento. Em suma, aqui Nietzsche descobre 0 significado do heroismo como ideal. Sua propria imperfeicio torturante levou-o ao encontro desse ideal tirdnico: “Nossos defeitos so ‘os othos com os quais vettios 0 ideal” (Humano, demasiado Iumano, I, 86). “© que nos toma herdicos? — Ir ao mesmo tempo ao encontro de nosso maior sofrimento e de nossas maiores espe- rangas”, diz Nietzsche (A gaia ciéncia, 268). E acrescento a isso ainda trés aforismos que certa vez. ele anotou para mim e que me parecem esclarecer sua concepco com especial ni- tidez: ““A antitese do ideal herbico € o ideal da evoluco harm6- nica do todo — uma bela antitese ¢ muito desejada! Mas apenas ‘um ideal para o homem basicamente bom (Goethe, por exem- plo)” SUA ESSENCIA 45 segundo: “Herofsmo — essa € a atitude de um homem. que aspira a um objetivo, comparado com o qual ele ja no cn a minima importancia. O herofsmo € a disposigao & au- odestruigo absoluta” Eo terceiro: “O homem que ambiciona a grandeza é em ueral um homem mau; € a dnica forma de se suportar a si mesmo”. A palavra “mau”, assim como a palavra “bom” acima, no deve ser tomada na acepgo de um jufzo de valor, de uso corrente ou no, mas apenas como denominagao de um estado que sempre indica para Nietzsche a “guerra interna” na alma humana, o mesmo que mais tarde chamaria de “anarquia dos instintos”. Hm seu tltimo perfodo criativo, seguindo 0 curso de uma evolugao intelectual definida, Nietzsche estende a ima- gem desse estado d’alma até a imagem da civilizagdo humana, para a qual valem as seguintes senhas: guerra interna = deca~ déncia, e vit6ria = autodestruigao da humanidade para a criagdo de uma além-de-humanidade. Originalmente, porém, trata-se para ele da imagem de sua prépria alma. Com efeito, distingue o temperamento harm6nico ou uni- tétio € 0 heréico ou multifario como os dois tipos de homem: © ativo (handelnd) € 0 cognoscente (erkennende); em outras palavras: o tipo contrdrio & sua prOpria esséncia e seu préprio tipo. + Para Nietzsche, ohomem ativo provém do homem-instinto, do-dividido € néo-decomposto,-da natureza de senhor (Her- rennatur). Quando segue seu desenvolvimente normal, deve tornar-se cada vez mais firme e seguro de si, e sua forca contida deve desencadear atos sadios. Os obstéculos que o mundo ex- ‘ctior possivelmente Ihe contrapde so, ao mesmo tempo, esti- tuto e desafio, pois nada € mais natural do que a luta intrépida contra 0 exterior; em nada sua satide fntegra se mostra tanto ‘quanto em sua belicosidade. Grande ou pequeno, seu intelecto rut sempre a servigo dessa energia vital sadia ede tudo quanto bem e the seja necessério; em suas metas, no a com- a decompoe, no segue caminhos priprios. Volalmente diverso € 0 cognoscente. Em vez de cohduzir .vws impulsos para uma unio sélida que‘os proteja e mantenha, 46 LOU ANDREAS-SALOME, deixa-as divergir tanto quanto possivel; quanto mais amplo 0 dominio que possam abranger, tanto melhor; quanto maior 0 ntimero de coisas a que estendam suas antenas e que toquem, vejam, ougam e cheirem, tanto meis esas coisas Ihe valerio fem seus designios de obter conhecimento. Pois doravante “a vida € um meio para 0 conhecimento” (A gaia ciéncia, 324), e Niewsche clama a seus companheitos (A gaia ciéncia, 319): “Queremos ser nés mesmos [..] nossas experiéncias e nossas cobaias!”’E assim, voluntariamente, renuncia asi proprio como unidade, pois quanto mais polifonico for seu sujeito, tanto mais agradével Ihe sera: Aapero © suave, grosseito e fino, fimo e estranho, impuro e puro, Encontro de tolo © s4bio, ‘Tudo isso sou © quero ser Ao mesmo tempo: pomba, serpente e suino, A gaia ciéncia, “Brincadeira, ardil e vinganga’, 11) Pois nds, cognoscentes, devemos ser gratos “a Deus, a0 diabo, ao cordeiro e ao verme que habitam em nds [...] com almas anteriores € posteriores, cujos propésitos diltimos nin- guém vé facilmente, com primeiros e segundos planos que ninguém poderia percorrer até o fim [...] nds, os amigos natos, Jurados e enciumados da soliddo [...]” (Para além de bem e ‘mal, 44). A alma do cognoscente € a “que tem a escada mais longa e que pode descer mais fundo [...] a alma mais abran- gente e capaz. de correr, errar e vagar em si mais vastamente; a alma mais sabia, a qual 2 loucura fala mais docemente [...] ‘a que mais se ama a si mesma, e na qual todas as coisas tm sua corrente e contracorrente, seu fluxo e refluxo [...]" (Assim falou Zaratustra, “De velhas e novas tébuas” IIT, 82). Com alma semelhante, toramo-nos um ser de “mil pés € mil tentéculos” (Para além de bem € mal, 205), sempre a ponto de escapar de si mesmo para se estender até outro ser exterior: “Uma vez nos tenhamos encontrado, devemos saber nos perder de quando em quando ¢ entio de novo nos encontrar, sob 0 pressuposto de que sejamos pensadores. Pois ao pensador SUA ESSENCIA a ¢ prejudicial estar sempre ligado a uma Gnica pessoa’) (O an- stuilho € sua Sombra, 306). A mesma coisa expressam os wetsos seguintes ‘me € odioso conduzit-me a mim mesto! ‘Amo, como os animais de floresta © do mat, Perder-me por um bom tempo, ‘Agachar-me pensatvo cm fagueito extavio , de longe, por fim, chamar-me de volta, Seduair a mim mesmo A gata ciencia, “Brineadeira, aril e vinganga, 33) O titulo desses versinhos 6 “O solitério”, ou seja, aquele «que esté o mais completamente possivel afastade das exigéncias lutas do mundo exterior. Pois 0 homem com essa vida interior se tora menos belicoso exteriormente & medida que se perturba © se abala com as guerras, vit6rias, derrotas e conquistas dentro do mundo de seus préprios impulsos. Sozinho, concentrado tia expansiio de seu espfrito, procura, antes, um invélucro pro-. (ctor contra os eventos ruidosos e agressores da vida exterior, contudo, mesmo sem eles, j4 se encontra em meio a lutas € ferimentos; vale, portanto, para esse cognoscente a seguinte uescrigao: “[...] € um homem que sempre vivencia, vé, ouve, suspeita, espera, sonha coisas extraordindrias; que € atingido por seus préprios pensamentos como se viessem de fora © por raios e eventos peculiares a sua naturesa” (Para além ale bem e mal, 292). Pois no cognoscente a belicosidade de um impulso frente ‘avs outros ndo € suprimida, mas, antes, acentuada: “Quem, porém, examinasse os impulsos fundamentais co homem para ver até que ponto puderam levar seu jogo de génios inspiradores ‘ou demOnios ou duendes) [...] acharia que cada um deles oslaria de se apresentar como a finalidade dltirca da existéncia © como senkora legitima de todos os demais. Pois todo impulso © avude de dominio €, como tal, procura filosofar” (Para além wm € mal, 6) Justamente por isso o conhecimento do cognoscente dé ui “Jestemunho decisive de quem ele é, ou seja, da hierarquia 48 LOU ANDREAS-SALOME, ‘em que estéo posicionados os mais profundos impulsos de sua natureza” (ibidem). ‘Apesar disso, 0 conhecimento transforma essa guerra in- tea, dando Ihe um novo significado de redengio ¢ libertagao: © conhecimento d4 um objetivo comum a todos os impulsos, uma diregio para a qual todos se encaminhem, como se de- sejassem conquistar a mesma coisa. Com isso se anulam a fragmentagao dos gostos €.a tirania da arbitrariedade. Os im- pulsos mantém sua pluralidade de sujeitos, mas a colocam sob as ordens de um poder superior que os comanda como se fossem servos e instrumentos; os impulsos permanecem sel- vagens e belicosos, mas, em seu objetivo de guerra, desper- cebidamente, se tornam iguais a herdis chamados a lutar e a sangrar; 0 ideal herGico se erige em meio ao egoismo dos impulsos, mostrando-Ihes o nico caminho possivel até a gran- deza. O perigo da anarquia é assim afastado em favor de uma segura “organizagfo coletiva dos impulsos € afetos”. Lembro-me de uma observagdc de Nietzsche que expressa mui significativamente essa alegria do cognoscente pela abran- gente vastid’io e profundidade de sua natureza, a alegria de poder doravante perceber a vida como uma “experiéncia do cognosvente” (A gaia ciéncia, 324): “Parego uma velha cida- dela resistente as intempéries, com muitos pordes e abrigos ocultos; ainda no desci, rastejante, as minhas passagens ocul- tas mais escondidas; ainda ndo cheguei as minhas cémaras subterraneas. Nao deveriam elas alicergar 0 conjunto todo? Niio deveria eu poder subir desde minhas profundezas a toda a superficie da Terra? Nao deveriamos retornar a nés mesmos em cada uma dessas passagens escuras?”. Esse mesmo sentimento € também reproduzido pelo afo- rismo 249 em A gaia ciéncia, intitulado “O suspiro do cog- noscente”: “O minha gandncia! Nesta alma nfo hé despren- dimento algum, mas, a0 contrario, um eu que tudo cobiga, que, por meio de muitos individuos, gostaria de ver como se fosse com seus prdprios olhos, gostaria de agarrar como se fosse com suas prdprias mos; um eu que vai em busca de todo 0 passado, que nao quer perder nada que possa enfim ~ SUA ESSENCIA cy the pertencer! © chama de minha ganfncia! Oh, que eu renasga numa centena de seres!”. Desse modo, o abarcante ¢ o enredado das naturezas sem harmonia e sem “estilo” transformam-se numa poderosa prer- rogativa: “Quiséssemos ¢ ousassemos uma arquitetura segundo a natureza de nossa alma, [..] entio deveria ser o labirinto nosso modelo!” (Aurora, 169). Mas nfo um labirinto em que a alma se perca, e sim um de cuja confusio ela avance até o conhecimento, “E preciso ter 0 caos dentro de si para poder dar 4 luz uma estrela que dance” — essas palavras de Zaratustra (, 15) se aplicam a alma nascida para a existBacia de estrela, para a luz, como se fosse a esséncia de seu genio, nascida para a mais intima transfiguragao.| Nietzsche descreveu isso sob 0 titulo de “Uma espécie de sombra luminosa” (O anda- rilho e sua sombra, 258): “Bem ao lado de homens inteiramente notumos acha-se quase regularmente, como ligada a eles, uma alma de luz. Ela é, por assim dizer, a sombra negativa que eles projetam”. Essa alma de luz € tanto mais radiante quanto mais po- derosa € noturna e, portanto, quanto mais tirdnica © perigosa a natureza humana que, por assim dizer, se deixa. queimar nela, que langa todos seus pendores como combustfvel nessa incandescéncia sagrada. A forma como isso acontece varia ‘com ponto de vista que o cognoscente tenha do conhecimento; as concepgdes de Nietzsche sobre aquilo que seja 0 “conhe- cimento” so distintas em cada um dos perfodos da evolucao de seu espfrito, e, com isso, se modifica também aquilo que ele chama de “hierarquia interna dos impulsos” na luta flutuante de sua rica natureza de genio. Pode-se dizer que, no fundo, sua hist6ria se compte das imagens cambiantes de tais modi- ficagbes; que, até seu sltimo perfodo criativo, toda a sua vida interior se reflete em teorias filos6ficas e que, Jor firm, a alma ue trevas € a alma de luz se convertem para cle em repre wentantes do humano e do além-do-humano. Contudo, o processo psfquico descrito permanece 0 mesmo cm seus tragos bésicos ao longo de todas as metamorfoses: (Quando se tem caréter, tem-se também sua vivéncia pica 50 LOU ANDREAS-SALOME que sempre retorna” — diz Nietzsche (Para além de bem e mal, 70). Ora, essa & a vivencia tipica de Nietzsche, a que sempre retornava, na qual cle repetidamente se erguia, se ele- vava acima de si mesmo e na qual, por fim, sogobrou e pereceu, Por certo era nela que devia perecer. Pois, nesse processo que sempre the assegurou cura ¢ exaltagdo, jé estava oculto © elemento patoldgico de seu desenvolvimento psiquico. A primeira vista, esse clemento nfo € evidente. Deverfamos, an- tes, pensar que uma forga que saiba se curar a si mesma con- tenha, no mfnimo, tanta satide quanto forgas harmOnicas que se desdobram pacificamente. Sim, € conteria mesmo muito mais satide, pois tem condigdes de se fortificar e de se mani- festar mesmo naquilo que Ihe abre feridas e Ihe produz febre; essa forga esta em condigdes de converter a doenga e a luta em estimulante para a vida € 0 conhecimento em esporio clarividéncia para seus desfgnios; intacta, ela abrange, portan- 10, luta ¢ doenga. Foi assim que, no final de sua vida, sobretudo quando estava mais doente, Nietzsche quis ver compreendida a hist6ria de seu sofrimento, ou seja, como uma hist6ria de convalescenga. De fato, sua natureza poderosa soube, em meio 4 dores © conflitos, curar-se ¢ conzentrar-se em seu ideal de conhecimento, Porém, apés alcangar a cura, precisa novamente dos sofrimentos ¢ das Iutas, da febre ¢ das feridas. Essa na- tureza, que havia se curado, ressuscita todos esses fatores, vol- tando-se contra si mesma, como se transbordasse para desaguar em novos estados patolégicos. E sobre cada conhecimento al- cangado, sobre a felicidade de cada convalescenga, pairam as palavras: “Quem alcanga seu ideal, justamente com isso 0 ul- trapassa” pois “sua superfelicidade se tornou sua desgraga” (A gaia ciéicia, “Brincadeira, ardil ¢ vinganga”, 47), € ele se sente “ferido pela prépria felicidade”™ (Assim falou Zaratustra, “O menino com o espelho”, Il, 2). “Causar sofrimentos a si mesmo. A falta de consideragdo do pensar € frequentemente sinal de uma disposigdo interior discordante, que anseia atur- dir-se” (Humano, demasiado humano, I, 581). A satide em Nietzsche nao é, portanto, o elemento superior e dominante que transforma a doenga, como algo secundério, SUA ESSENCIA 31 ‘um instrumento para si; a0 contrério, nele, ambas se condi- cionam ou mesmo se contém reciprocamente; de fato, ambus representam a diviso peculiar de um tinico e mesmo espirito, Uma divisio imerna como tal est4, pois, subjacente a todo © processo psfquico que descrevemos. Aparentemente, a mul- iplicidade, a pluralidade de sujeitos desarmonicos existentes em Nietzsche deveria ser substituida-por uma unidade superior, por um objetivo orientador. Porém, esse fendmeno se process dentro de um alma multifétia, de tal modo que um tnico im- pulso subordina todos os demais; em outras palavras, a mul- liplicidade ¢ reduzida a uma duplicidade igualmente profunda. Da mesma forma como a satide de Nietzsche no logra dominar ‘a doenga, assim também o impulso dominante nao logra abran- ger a totalidade de sua vida interior a0 colocé-la a servigo do conhecimento: 0 cognoscente se contempla com os olhos do espirito como um segundo ser, mas permaneze preso a seu proprio ser; s6 esta em condic&o de dividi-lo, mas no de ‘ranscendé-lo. O poder do conhecimento, portanto, longe de ser unificador, € divisor — mas a divisto € to profunda que se tem a ilusiio de que 0 alvo de todas as emocdes esteja fora delas. Em conseqiiéncia dessa ilusio, todas as forgas afluem com paixio para 0 conhecimento, como se pudessem assim fugir de si mesmas ¢ de sua dualidade. ‘Sem diivida, deverfamos acreditar que o individuo alcance, 20 menos, uma espécie de fuso de todas a: partes de sua vida, porque, de um lado, a vida impulsiva € elevada sob os auspfcios do conhecimento a uma consciéncia suprema, e, de ‘outro, 0 pensamento é imensamente estimulado pelo mundo dos humores e impulsos. Mas o resultado € justamente o in- verso, pois © pensamento anula a manifestaglo de todas as emogGes interiores, ¢, em contrapartida, as agitagbes interiores «afrowxam permanentemente 0 rigor € 0 controle do pensamento. Assim, de forma global, a divisio do todo atinge cada uma las partes. EntZo, 0 que faz brotar, de tio evidente ilusio, satisfagdo tio plena e, por assim dizer, redentora? O que permite que uma ilusdo arrebate e transfigure todo um ser, mesmo as custas 32 LOU ANDREAS-SALOME, de doengas ¢ ferimentos? Com essa questo ficamos diante do yerdadeiro problema de Nietzsche; s6 ela nos mostra a secreta conexio entre satide e doenga em sua vida. Enquanto a pluralidade das tencEncias, individualizadas € desligadas umas das outras, se divide em dois grupos, por assim dizer, opostos, dos quais um domina e 0 outro se sub- ‘mete, 0 homem pode experimentar em si mesmo no apenas outro ser, mas também um ser superior. Sacrificando a si mes- ‘mo uma parte de seu ser, aproximé-se de uma exaltagio re- ligiosa. Nas comogGes de seu espfrito, nas quais imagina con- cretizar o ideal herdico de sua propria rentincia ¢ entrega, faz imomper em si mesmo uma paixdo religiosa, De todas as grandes tendéncias do espirito de Nietzsche, no existe nenhuma mais profunda e inexoravelmente ligada a totalidade de seu organismo psfquico que seu genio religioso. Tendéncia que, cm outra época, em outro perfodo da civiliza- Gio, certamente nao teria permitide que esse filho de pastor se tomasse fil6sofo! Porém, influenciado por nossa época, seu espitito religioso se orientou para o conhecimento € permitiu satisfazer aquilo por que ele ansiava instintiva e urgentemente, tal como a expresso natural de sua sade, apenas de uma forma doentia; em outras palavras, ele s6 obteve essa satisfagiio dobrando-se sobre si mesmo em vez de se apoiar em uma forga externa que o abrangesse em sua vida. E assim alcangou justamente o oposto do que desejava: nao uma unificago, mas uma bipartiggo de sua esséncia; nao a unificagdo de todas as emogdes ¢ tendéncias num individuo homogéneo, mas a cistio expressa no “dividuo”. Em todo caso, Nietzsche obteve uma espécie de satide, mas por meio da doenca; conseguiu afirmar-se € elevar-se, mas por meio da auto-egressto. Por isso, na poderosa emogio religiosa de Nietzsche, da ‘qual emerge todo conhecimento, se enredam indissoluvelmente sen proprio sacrificio © sua propria apoteose, 0 horror a sua propria destruicdo e a voldpia de sua propria divinizacao, 0 sofrimento da doenga e a vit6ria de cura, o éxtase ardente e a inteligéncia fria, Sentimos em Nietzsche 0 estreito enlace de opostos que se condicionam mutuamente sem cessar; sen- SUA ESSENCIA 3 timos forgas sumamente exaltadas e tensas transbordarem e se precipitarem yoluntariamente no caético, no escuro, no pa- voroso, para depois emergirem em direcdo a luz, Asensibilidade — 0 emergir impetuoso de uma vontade que se “[...] libera da necessidade de abundancia superabundancia, do softi- mento dos opostos comprimidos dentro dele” — um caos que deseja — que deve — dar a luz um deus. “No homem estiio unidos criador e criatura: no homem std a matéria, 0 fragmentério, o supérfiuo, a a-gila, a lama, © absurdo, 0 caos; mas no homem esté também o criador, 0 escultor, a dureza do martelo, o espectador divino € o sétimo dia [..J” (Para além de bem e mal, 225). E aqui verificamos que o sofrimento ea autodivinizagao constantes se condicionam mutuamente, cada um reproduzindo seu contrério. Isso foi ex- presso por Nietzsche na hist6ria do rei Vigvamitra “que, gragas amil anos de automattirio, adquiriu tamanho sentimento de poder € de autoconfianea que se dispos a construir um novo céu Aguele que, em qualquer tempo, tenha construido um ‘novo céu’ 86 achou forga para tal em seu préprio inferno [...1" (Genealogia da moral, Wl, 10). Outra passagem em que record essa lenda estd em Aurora e segue imediatamente a descricio daqueles sofredores, sedentos de poder, que se elegeram como o objeto mais digno de seu desejo de violagdo. “O triunfo do asceta sobre si mesmo esté em seu olhar voltado para dentro, vendo ohomem dividido em softedor ¢ espectador e nao mais esprei- tando 0 mundo exterior senfo para nele recolher lenha para a propria fogueira, essa Ultima tragédia do impulso a distingao, na qual existe apenas uma tinica pessoa aue se carboniza em si mesma [...]” (113). Esse trecho que descreve todas as asceses posstveis ¢ seus motivos termina com a seguinte observacio: “L..] terd de fato o ciclo da aspiragio a se distinguir chegado a seu fim derradeiro com o asceta e se fechado sobre si mesmo? Nao poderia esse cfrculo ser mais uma vez percorrido desde © infcio com a disposigdo bésica do asceta unida a de um deus ‘compassivo?” Em Humano, demasiado humano (I, 137) diz Nietzsche a respeito: “Existe wn desafio a si mesmo a cajas expressdes Eo LOU ANDREAS SALOME: mais sublimes pertencem algumas formas de ascese. Certos homens tém, com efeito, uma necessidade tio grande de exercer seu poder ¢ seu despotismo que [...J, por fim, recorrem & ti- ranizagio de certas partes de seu préprio ser [...] Essa des- ttuigio de si mesmo, esse escdmio de sua propria natureza, esse ‘spernere se sperni’ a que as religies deram tanta im- portincla, ¢ realmente wn grau muito elevado de vaidade [...J © homem tem verdadeira volipia de se violentar através de exig@ncias excessivas ¢, em seguida, endeusar em sua alma esse algo que manda tiranicamente”, e (138): “[...] Realmente, portanto, s6 Ihe importa a descarga de sua emogio; ento, para aliviar excitagdo, retne as langas dos inimigos ¢ as enterra no proprio peito”. Em ainda (142): “[..] ele flagela seu auto-en- deusamento com 0 autodesprezo © a crueldade, se compraz com o despertar selvagem de seus apetites [...] sabe armar ciladas 2 sua paixdo, por exemplo, a paixdo pelo mais ex- ‘temo despotismo, de modo que cla se transforme na mais extrema humilhagdo ¢ sua alma excitada seja dilacerada por esse contraste; [...] 0 que, no fundo, busca € uma espécie rara de volipia, talvez aquela volipia na qual todas as outras esto atadas como num n6. Novalis, umadas autoridades em questo de santidade, por experiéncia e por instinto, expressou certa vez esse mistério com ingénua alegria: “E bastante estranho que, por muito tempo, a associagao de voldpia, religiao e cruel- dade nao tenha chamado a atengo dos homens sobre seu intimo parentesco € sua tendéncia comum’ ”. > De fato, um estudo correto de Nietzsche é, em seu fun- damento, um estudo psicolégico da religido, ¢ s6 ser4 langada luz sobre o significado de seu ser, seu sofrimento e sua au- toglorificagio naquilo em que o campo da psicologia darreligiio Jf estiver esclarecido. Toda a sua evoluggo, de certo modo, se originou da perda da f€ e, portanto, da “emogdo pela morte de Deus” — essa emogdo monstriosa que ressoa ainda em sua ultima obra, composta j4 no Lmiar da loucura: a quarta parte de seu Assim falou Zaratustva. A possibilidade de en- contrar, entre as mais variadas formas de auto-endeusamento, un substituto® “para o Deus perdido” forma a hist6ria de seu SUA ESSENCIA ss espitito, de sua obra, de sua doenga. £ a historia do “resqufcio da tendéncia religiosa no pensador”, que permaneceu poderoso mesmo ap6s se despedacar o deus a quem cle se refetia, 0 deus a quem se podem aplicar estas palavras de Humano, de- masiado humano (I, 223): “O sol jé se pos, mas ainda ilumina e aquece 0 céu de nossa vida, mesmo que nao mais o vejamos”” Leia-se também 0 comovente do “louco” em A gaia ciéncia (125): “Para onde foi Deus? — gritou-ele — eu vos direi! Nés 0 matamos! Vos € eu! Somos todos seus assassinos! [..] Nada ouvimos ainda do rufdo dos coveiros que enterram Deus? Nada sentimos ainda do cheiro da decomposigio divina? Os deuses também se decompéem! Deus est4 morto! Deus permanece morto! E nés 0 matamos! Como nos consolaremos, assassinos dos assassinos? O que 0 mundo possuiu até agora de mais sagrado e poderoso perdeu todo o sangue sob nossas facas. Quem nos limpard desse sangue? Com que agua pode- siamos nos putificar? [...] Ndo é a dimensdo desse ato grande demais para nds? Nao devemos nds mesmos nos tornar deuses para sé assim parecer dignos dele? Nunca howve ato maior, quem quer que nasca depois de nds pertence, por forga desse ato, a uma historia mais elevada do que o foi toda a hist6ria até hoje!” Como resposta a essa exploso de tormento e angiistia, Nietzsche deu a si mesmo estas palavras de Zaratustra (I, final): “Mortos esto todos os deuses: agora queremos que viva o além-do-homem!", exprimindo assim 0 motivo mais interior de sua filosofia, O torturante anseio por Deus torna-se um impeto a criagio de Deus, impeto que necessariamente devia manifestar-se no endeusamento de si mesmo. Com perspicdcia, Nietzsche 1 conheceu no fendmeno religioso a suprema satisfagdo das exi ‘géncias individuais, a vontade da suprema beatitude. Esse in- dividualismo, que aparece no cerne de todas as zeligiGes, esse “sublime egofsmo” que flui livre e ingenuamente em toda re- a um poder vital ou divino exterior, foi em Nietzsche, nesse “cognoscente”, langado de volta & orinem, Assim Ihe foi posstvel associar interiormente o ateis- 36 LOU ANDREAS-SALOME ‘mo, que Ihe foi imposto pela razo, a esta ousada conctusik “Se houvesse deuses, como suportaria eu ndo ser um deles? Portanto, néo hé deuses”. Essas palavras aparecem na segunda parte de Assim falou Zaratustra (“Nas ilhas bem-aventuradas”, 6). A elas se podem associar outras (“Dos seres sublimes”, 5): “E haverd adoracdo mesmo em Tua vaidadel”. Nelas se expressa todo o perigo que paira sobre o “solitério” e “isolado”, que se deve dividir e duplicar. “Um A minha volta € sempre demais. [..] Sempre uma vez um — isso com o tempo da dois” (Assim falou Zaratustra, “Do amigo”, I, 76) ‘modo como Nietzsche se colocou frente a essa dualidade, como se defendeu contra ela ou como a ela se rendeu, o lugar onde a buscou a cada vez — tudo isso condiciona a mudanca de seu conhecimento ¢ a particulacidade de seus diversos pe- riodos intelectuais, até que, por fim, a dualidade se toma para ele uma alucinagao, uma entidade personificada que obscurece seu espirito © sufoca sua razo. Ele nZo pode por mais tempo se defender contra si mesmo; esse foi, no préprio Nietzsche, ‘© drama dionisfaco do “Destino da Alma” (Genealogia da moral, preficio XII). A solidio de sua vida interior, na qual o espirito quer ir além de si mesmo, nao € em época alguma mais pro- funda e mais dolorosa do que no final de sua vida, Poderfamos dizer que a muralha mais forte nesse auto-emparedamento fatal € uma aparéncia delicada, brilhante e divina que volteja a seu redor, uma miragem que Ihe confuade e Ihe oculta as préprias fronteiras. Cada movimento para escapar o reconduz conti- nuamente as profundezas de seu eu que, por fim, se deve trans- formar em Deus e mundo, em céu e inferno; cada movimento © conduz um passo adiante em sua iiltima profundeza e em seu extermfnio. Esses tragos bésicos da natureza peculiar de Nietzsche ex- plicam ao mesmo tempo 0 refinado e o exaltado que se mis- turam ao grande ¢ ao significativo de sua filosofia, como num condimento ardente. Provavelmente sabertio mais picantes as limguas nao corrompidas de espiritos jovens e sos ou também aquele que, abrigado na calma paz de opinides acreditadas, nunca experimentou na propria came toda a luta e todo o fogo SUA ESSENCIA 37 temivel de um espirito livre com dom religioso. Mas foi isso também que permitiu a Nietzsche se tomar, em. tio alto grau, 0 fil6sofo de nossa época. Pois nele ganhou tipica aquilo que ela move em sua profundeza: aquela “anarquia dos instintos” de forgas criativas e religiosas que desejam ser satisfeitas com demasiada violéncia para se contentarem com as migalhas que thes caem da mesa do conhecimento modemo. Que elas no possam se contentar com essas migathas, mas que tampouco renunciem ao conhecimento — tio insaciaveis na paixio quan- to na indigencia e na privagdo — esse € 0 grande trago co- movente na imagem da filosofia de Nietzsche. E também o que ela exprime em tomeios sempre novos: uma série de ten- tativas enérgicas de resolver esse problema da tragédia mo- dena, 0 enigma da esfinge modema ¢ derrubé-la no abismo. Mas ¢ justamente por isso que devemos dirigir nosso olhar 20 homem e nfo ao tedrico para nos orientar nas obras de Nietzsche, e por isso também 0 lucro, 0 resultado de nossas reflexes ndo consistiré em que, para n6s, desponte uma nova imagem do mundo em sua verdade, mas sim a de uma alma humana em sua composigao de grandeza e morbidez. De inicio, © significado filos6fico nas metamorfoses de Nietzsche parece enfraquecer-se porque a cada vez se dé exatamente 0 mesmo rocesso interno. Mas esse significado se aprofunda e se exa- ccerba porque as mudangas de opinigo continuamente se alas- ‘tram para seu ser. Nao apenas mudam a cada vez os contornos de uma teoria, mas também toda a atmosfera, o ar ¢ a luz se transformam. Enquanto ouvimos pensamentos se refuta- rem mutuamente, vemos mundos sogobrarem e novos mundos emergirem. Justamente nisso repousa a verdadcira originali- dade do espfrito nietzschiano; por meio de sue natureza, que relaciona tudo a si mesma e &s suas necessidades mais intimas, mas que, fervorosa, se perde em tudo, abrem-se-the aquelas vivéncias e produtos de mundos intelectuais, que nés, com nossa razio, $6 fazemos rogar sem jamais esgoté-los em sua profundidade e, por isso, sem nada criar a partir deles. Con- siderado teoricamente, Nietzsche se apéia com freqiiéncia em modelos € mestres estrangeiros, mas aquilo em que tém sua 38 LOU ANDREAS.SALOME maturidade € 0 auge de sua produgdo torna-se para ele apenas motivo de estimulo a prépria produtividade.'? O menor contato ‘mantido por seu espfrito bastava para nele desatar uma abun- dancia de vida interior, de vivéncias intelectuais. Certa vez disse Nietzsche: “Hi duas espécies de génio: uma que gera ¢ quer gerar, e outra que se deixa fecundar ¢ que dé 2 luz” (Para além de bem e mal, 248). Sem diivida, ele pertencia a essa tltima espécie, Na natureza de seu espirito havia, em alto grau, algo de feminino,"* mas nisso era génio em tal medida que parece quase inrelevante saber de onde recebe seu primeiro estimulo. Quando recolhemos tude quanto fecundou seu solo, temos diante de nés algumas simples sementes; mas quando penetramos sua filosofia, somos cercados por um bosque far- falhante de Grvores umbrosas, somos abragados por uma ve- getagio luxuriante, grandiosa e selvagem, Sua superioridade consistiu em ter oferecido a cada semente depositada em seu interior aquilo que ele proprio cita como distintivo do verda- deiro génio: “a terra fecunda ¢ nova, com a forca inexplorada da floresta virgem” (O andarilho e sua sombra, 118). NOTAS 1. Uma caracterizagdo resumida de Nietsche, na qual pele primeira vex estdo distinguidos ¢ precisamente caractriaados os és perfodos da evolugdo de seu espirito, apareceu no suplemento dominical do Vossische Zeitung, de 1891, 1% 2,3 e4. Além diss, aFreie Bihnne rouxe expicagSes Getahadas de alguns pontos sob o titalo “Para um reato de Nietzsche", ano Il (1891), cademos 3, 4e 5, ano II (1892), cadernos 3, 4 ¢ 5; a Magazin flr Literatur, outubro de 1892, “Um apocalfptico”, e o Zeirgest, 1893, n? 20, “ideal e bscese” 2. *No que se refere a vida — 3s dias ‘vivéncias’ — quem de ns tem seriedade bastante para elas? Ou tempo bastante? Em tal assunto, temo cc, nunca estivemos diretamente ‘dentro do assunto"; para elas no temos ores corals, nom seq cwids?(Geneaoga da moral, peso 3. Significado semelhante atribuia As suas orethas, pequenas efinamente ‘modeladas, das quais dizia serem as verdedeiras “orelhas para o inaudito” Garatustra, “0 préiogo de Zaratustra”, 9, 1, 25), 4.“‘Nio haverd(,.] uma predisposicao para o duro, o horrivel, o mau, ‘© problematico da existéncia,disposigtio prveniente do bem-estar, da satide SUA ESSENCIA 3 transbordante, da propria abundiincia? [..] No haverd talvez — uma per- gunta para os aljonisias — neuréticos da saide?” (Tentatva de uma auto- critica” para a nova edigio de O nascimento da tragédia a partir do esptrito da misica, IV e IX), 5. Cf também A gaia ciéncia (253): "Um éia alcangamos nosso objetivo « indicamos entdo com orgulho a longa viagem que fizemos até If. Mas se cchegamos to longe foi porque, em cada ponto, imaginivamos estar’ emt 6. Por isso cle chama as convicgSes de inimigos da verdade: “Con- ‘viegdes so inimigos da verdade mais perigosos que mentiras” (Hfumano, demasiado humano, 1, 483), 7. Com esse impulso, ele evoluiu mais do que ele mesmo quis aémitir ‘como verdadeiro, ou seja até um “Don Juan do conkecimento” que descteve da seguinte maneira (Aurora, 327): “Ele tem espiitoe semte volipia e prazer na caga © nas intrigas do conhecimento — até chegar as suas mais altas € distantes estrelas, até que, por fim, nada Ibe sobre para exgar, a nio ser 0 absolutamente doloroso do conhecimento, igual ao bebedot que acaba be- bendo absinto e 4gua-forte. Assim, no final, deseja o infero: € o stimo ‘conhecimento que o sedis. Talvez ele também 0 desiluda como tudo 0 que conhecido! E entio ele se deve imobilizar para toda a etemidade, ctavado A desilusio e transformado ele mesmo em héspede pétreo, aspirando 2 uma ‘cia do conhecimento de que nunca mais participari! — pois 0 mundo todo das coisas nfo tem nem mais um bocado a oferecer a ese faminto”. 8. “Ter de combater os instintos — essa é a formula para a décadence: enquanto a vida esté em ascensdo, a felicidade 6 igual ao instinto”, diz ele (Crepisculo dos fdolos, “O problema de Séerates”, 11), ¢ distingue assim © decadente daquele que nasceu com a natureza de senhcr. 9. Aqui, como observagio a parte, Nietzsche compreende Goethe to- talmente diverso de como 0 compreenderé aos mais tarde (em Crepiscilo dos fdolos). Aqui ainda 0 vé como antipoda de sua prépria natureza desar- ‘mOnica; mais tarde, a0 contrério, como um espitite profuxdamente eparen- tado a si mesmo, que’ nio era harménico, mas que se transformou em harmOnico pelo aperfeigoamento e entregs de si mesmo. 10. CE. também Para além de bem e mat (224): “Nés [..] $6 semtimos nossa felicidade quando estamos em perigo”. 11. “Tentativa de uma autocritica”, na nova ediggo Je O nascimento ta tragédia @ partir do espirito da misica 12, Ver em A gaia cigncia ("Brincadeira, ardil e vinganga", 38) sobre st determinago humana cumprida na criagéo de Deus pelo homem: Diz © homem pio: — Deus mos ama porque nos criou: — — 0 homem eriou Deus! — dizeis v6s, 0s sutis 1 nflo devia amar © que criou? Devia negé-lo porque o criou? Isso claudica, isso traz 0 casco do deménio. © LOU ANDREAS-SALOME 13, Mesmo que nfo se leve em considerago aqueles pensadores que definiram diretamente as diversas fases da evolugo de Nietsche, multas de suas idéins j6 se deixam provar em f-6sofos anteriores. Recentemente, ‘pessoas em cujas miios 0 acaso jogou, pura e simplesmente, um ou outro livro de filosofia chamaram a atengio, com a maior celcuma, pare esse ato totalmente supérfluo para 0 verdadeiro significado de Nietzsche. Neste livro, intencionalmente, nfo se faz nenhuma re-eréncia & sua posigio na histéria da filosofia, pois isso tera como pressuposto um exame sistemético e de- talhado de suas teorias isoladas de seu valor objetivo, 0 que deve ficar reservado para um trabalho especial 14, As vezes, quando sentia isso de modo especial, inclinava-se @ tomar © g€nio ferninino como o verdadeiro génio, “Os animais tém uma idéia sobre as fEmeas diferente da dos homens; para eles, a fEmea vale como © ser produtivo. (.] A gravidez toma as flmeas mais suaves, mais cautelosas, ‘mais tementes, minis contentes com a submissio; ¢ igualmente a gravide2 intelectual produz o caréter dos contemplatives, que é aparentado 20 ca- rfter ferinino: sfo as mfes masculinas” {A gaia eténcia, 72) Suas Metamorfoses “A cobra que nfo pode rmudar de pele morze, Igualmente, os esptitos que impe- ddimos de mudar de opiniso deixam de ser espititos” (Aurora, 573) A primeira metamorfose que Nietzsche realizou em sua vida situa-se no crepdsculo de sua infiincia ou, pelo menos, de sua puberdade. o rompimento com a fé da Tgreja crista. Em suas obras, raramente se menciona essa ruptura. Nao obstante, ela pode ser considerada o ponto de partida de suas metamorfoses, por- que, com ela, jf se esclarece a caracterfstica peculiar de sua evolugdo. Suas declaragdes sobre 0 assunto, que ambos discu- timos de forma especialmente detalhada, diziam respeito so- bretudo as causas que produziram o rompimeato de sua fé, ‘Alids, a maioria dos homens de inclinagdo religiosa s6 € im- pelida por motivos intelectuais, e em conflitos dolorosos, a renegar seus conceitos sobre a f. Mas, em casos raros, onde © primeiro atheamento parte da propria vida emocional, 0 pro- cesso € pacifico ¢ indolor: a razo apenas decompée 0 que jd estava previamente morto— um cadaver. No caso de Nietzsche ocorreu um cruzamento singular dessas duas modalidades: ndo foram apenas os motivos intelectuais que, originalmente, 0 libertaram dos conceitos inculcados, tampouco deixara a velhia Fé de corresponder as necessidades de sua fndole. Pelo con- irdrio, Nietasche repetidamente acentuava que o cristianismo «la paréquia patema se assentava & sua esséncia interior “liso « suave como uma pele 8”, e que, para ele, ¢ cumprimento ule todos og seus mandamentos se tornara to fécil como a “ LOU ANDREAS.SALOME observancia de uma tendéncia propria, Considerava esse “ta- Jento”, por assim dizer, nato e izalienfvel, para qualquer re- ligido, uma das causas da simpatia que Ihe dispensavam cristios sérios, mesmo quando 4 estava deles separado por um pro- fando abismo espiritual. O instinto obscuro que, pela primeira vez, o expulsou dos cfroulos de idéias que encarecia e amava, desperton justamente esse sentimento de bem-estar, cesse célido “estar em casa”, pelo qual sua esséncia se sentia envolvida. Para chegar a si ‘mesmo, numa evolugao plena, seu espirito precisava de lutas psfquicas, dores e abalos; era preciso que seu génio se separasse desse trangiiilo estado de paz, pois sua forga criativa era de- pendente da emogio ¢ da exallagio de seu interior. Aqui, pela Primeira vez, nos defrontamos na vida de Nietzsche com o fendmeno da exigéncia de dor na “natureza decadente” “Em circunsténcias pacfficas, 0 guerreiro agride a si mes- mo” (Para além de bem e mal, 76) ¢ exila-se num pais de idéias estrangeiras onde, doravante, esté fadado a um eterno vagar, sem descanso. Doravante, em seu desassossego, Nietz- sche abriga uma dnsia insaciavel que aspira pelo paraiso per- dido, enquanto a evolugio de seu espfrito 0 forca, o tempo todo, a dele se afastar em linha reta. No didlogo sobre as metamorfoses que deixara para trés, Nietzsche certa vez expressou um pouco jocosamente 0 se- guinte: ‘Sim, desse modo comesa agora a marcha e desse modo prossegue; mas até onde? Se tudo jé esté percorrido, para onde se come nesse ‘caso? Se estivesscm esgotadas todas as possibilidades de combinacao, © que sucederia entio? de que mods? nfo deverfamos retomar a fe? talvez a uma f€ caidlicd?. E © pensamento secreto oculto nessa declaragio revelou-se nestas palavras, acrescentadas com gravidade: Em todo caso, o cfreulo serta mais provavel que a paralisacao. ‘Um movimento que retrocede sobre si mesmo, que nunca para — eis, na verdade, o distintivo de toda a mentalidade de Nicwsche. As possibilidades de combinago nao so de modo SUAS METAMORFOSES 65 algum infinitas; so, ao contrério, muito limitadss, pois 0 im- peto que 0 leva para a frente, que 0 faz ferir-se a si proprio © que no deixa os pensamentos repousarem, brota integral- mente de sua singular personalidade intema: por mais distante que 0s pensamentos parecam divagar, permanecem, contudo, sempre ligados aos mesmos processos psfquicos que continua mente os forgam a voltar ao dominio de suas necessidades predominantes. Veremos até que ponto a filosofia nietzschiana descreve, com efeito, um cftculo, e como, por fim, 0 adulto, em algumas de suas vivéncias mais fntimas e secretas, se rea- proxima do menino, de modo que, para 0 andamento de sua filosofia, valem suas prOprias palavras: “vejam um rio que, depois meandros, flui de volta A nascente” (Ascim falou Za- ratustra, “Da virtude amesquinhadora”, 1, IU, 23). Nao € por ‘caso que, em seu timo perfodo criativo, Nietzsche tenha chegado a sua mistica doutrina de um eterno retomo: a imagem do circulo, de uma eterna mudanca numa eterna repeticéo, figura como um simbolo maravilhoso ¢ como um sinal secreto sobre a porta de entrada &s suas obras. Nietzsche chama de seu primeiro “brinquedo literdrio” (Genealogia da moral, prefécio VI) um ensaio de sua puber- dade, “Sobre a origem do mal”, no qual, “como é justo”, fez de Deus “o pai do mal”, Em conversas também mencionava esse ensaio como prova de que jé se entregava a ruminacdes filoséficas num tempo em que ainda se achava submetido ao ensino filolégico obrigatério da Escola Pforta. ‘Seguindo Nietzsche desde sua infancia até seus anos esco- lares e, depois, até o longo perfodo de sua atividade filol6gica, reconhecemos claramente que, desde o princfpio, sua evolugdo, mesmo a puramente exterior, se processa sob 0 influxo de certa auto-repressio, A rigorosa instrucio filol6gica jé devia conter em si tal repressHo para esse jovem espirito fogoso, ccujas ricas forgas criativas dela emergiram sera terem sido utilizadas. Isso vale sobretudo para a orientagéo de seu pro- fessor Ritschl. Justamente com ele, em relacdo tanto aos mé- todos quanto aos problemas em si, a atengio principal era dirigida para as relagdes formais e as conexdes externas, em 66 LOU ANDREAS.SALOME. detrimento do significado interno das obras literérias. Mais tarde, Nietzsche se caracterizou de modo relevante por extrair seus problemas unicamente do mundo interior, inclinando-se a subordinar 0 I6gico ao psicol6gico. E, contudo, foi precisamente aqui, nessa severa disciplina € nesse solo pedregoso, que scu cspftito amadureceu prema- turamente ¢ realizou coisas notiveis. Uma série de excelentes pesquisas filolégicas' indica o trajeto de seus anos de estudo até sua cétedra em Basiléia. Nio é improvavel que uma libe- ago demasiado precoce de toda a riqueza do espfrito de Nietz- sche, através do estudo da filosofia ou das artes, o tivesse arrastado aquele desenfreamento de que se aproximam algumas de suas iiltimas obras. Desse modo, porém, 0 frio rigor da ciéncia filolégica deu temporariamente as suas “tendéncias ‘multiférias” um vinculo unificador e sustentador, mas também serviu de grilhGes para muita cosa que nele dormitava. Contudo, enquanto prosseguia seus estudos, sentia, niio menos do que s¢ fora um profundo sofrimento, que seus ta- Ientos inaproveitados 0 atormentavam ¢ o incomodavam, Foi sobretudo seu {mpeto musical que nfo pode repelir, e muitas voves era obrigado a escutar sons quando queria escutar pen- samentos. A miisica o acompanhou como um lamento sonoro durante anos, até que sua cefaléia Ihe tornou impossfvel qual- quer exercicio musical. Porém, por maior que seja a oposigdo entre sua atividade filolégica inicial e a filosGfica posterior, nfo faltam numerosos tragos intermedidrios que levam de um periodo ao outro. Justamente a orientaco de Ritschl, que parece aumentar esse contraste, veio, na verdade, ao encontro da mentalidade de Nietzsche, em particular reforgando ¢ aperfeigoando ainda mais seu pendor para a produgdo. Ritschl pretendia certo arremate artistico formal e certo tratamento virtuosfstico das quest6es cientificas, possibilitados pela rigorosa limitagdo que Ihes impunha e pela concentrago em um determinado ponto, Ora, em Nietzsche, a necessidade de levar a cabo uma tarefa de modo puramente artistico, através da restrigdo voluntéria € concentrada dessa mesma tarefa, tinha estreita liga¢o com a SUAS METAMORFOSES 6 tendéncia bésica de sua natureza, ou seja, a de sempre ultra- passar a propria obra, de repeli-la como definitivamente pas- sada e liquidada. Essa renovagio de tarefas ¢ problemas inerente ao fildlogo; a expresso pica de Nietzsche em Para além de bem e mal (80): “Uma coisa que se esclareceu deixa de nos interessar [...”, poderia ter sido formulada por um fi- Idlogo, pois, para este, um ponto obscuro, depois de esclare- cido, torna-se de fato uma coisa completamente liquidada, que ndo mais precisa ocupé-lo. Mas sio motivos profundamente distintos que condicionam as freqientes mudangas das idéias em Nietzsche, ¢ por isso € muito interessante notar como os contrastes ente a atividade filol6gica ¢ a filossfica parecem tocar-se, como Nictzsche fez prevalecer seu eu nesse disfarce que Ihe era 0 mais estranho — 0 do fil6logo sébrio —, nessa extrema auto-subordinagao intelectual. Um filélogo nunca aborda um problema com seus senti- ‘mentos pessoais, com seu sujeito interior; no o assimila a si de modo algum e, portanto, s6 € retido pelo problema durante © tempo necessario para sua solugdo. Para Nietzsche, a0 con- trério, ocupar-se de um problema significava, antes de tudo, conhecer, deixar-se abalar, e convencer-se de uma verdade significava ser dominado por uma vivéncia, “se: demubado ao cho”, conforme ele mesmo dizia. Acolhia um pensamento como acothemos um destino, que nos arrebats por inteiro fos mantém encantados; vivia o pensamento muito mais do que © pensava, mas o fazia com fervor tio passional, com dedicago to desmedida, que nele se esgotava, e, igual a um destino que & vivido até o fim, o pensamento tomava a aban- doné-lo, $6 com a desilusio que naturalmente devia seguir-se a cada uma dessas fases exaltadas ¢ que deixeva 0 conheci- mento dominado influenciélo de modo puramente racional; sé enti 0 perseguia com 0 intelecto calmo, claro, examinador. Seu notével fmpeto 2 metamorfose no dominio do conheci- nicnto filos6fico estava condicionado pelo gigentesco impeto le se deixar evar por emoges sempre novas, do tipo inte- leciual, © por isso a perfeita clareza nunca foi para ele sengo wn fetiomeno concomitante & saciedade e a0 esgotamento,

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