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DIATESE VERBAL José Rebougas Macambira 1 — Defini¢ao Diétese ou vozes do verbo, séo as formas que o verbo assume para indicar a sua relagdo com o sujeito, encarado como agente, paciente ou apenas envolvido no processo. Chama-se processo ao contetido semantico do verbo, como acéo, fenémeno, estado e varias outras significagdes que n&o se podem sistematizar. O termo vem do latim processus “aqui- lo que se passa” no tempo, e, conseqiientemente, possui as categorias presente, passado e futuro, expressas por meio de flexdes gramaticais. O amar desenrola-se no tempo sob as for- mas amei-amo-amarel e varias outras formas temporais. Em a) Deus criou o mundo em seis dias, a relag&éo entre Deus e criou 6 ativa, encarado 0 sujeito como agente; em b) Cristo foi traido por Judas, a relago entre Cristo e foi traido é passiva, encarado o sujeito como-paciente; em c) O herdi se revoltou, a relagéo entre o herdi e se re- voltou nao 6 propriamente ativa nem propriamente passiva. In- dica, no entanto, que o herdi esta envolvido na revolta e, por- tanto, envolvido no processo. 2 — Esquema Geral $6 existem duas vozes propriamente ditas — voz ativa e voz passiva, que se desdobram em trés outras — reflexiva, re- ciproca e média, conforme o seguinte esquema: ~ Rev, De Leraas, Vou. I — N° 1 — 1978 61 a) ativa b) passiva Vozes do verbo { c) reflexiva (soma de a e b) d) reciproca (tipo de reflexiva) e) média (sintese de a e 6) Os termos ativa e passiva e, consequentemente, reflexiva, reciproca, média, tm correspondéncia seméntica imprecisa, sobretudo 0 primeiro (ativa) e 0 seu valor é mais nomenclaté- rio do que propriamente cientifico. Cada um sera descrito formalmente no respective subcapitulo consoante os seus tra- gos estruturais. Ndo esquecamos as primeiras palavras da nossa definiggo: “‘Diatese sao as formas que 0 verbo assume”, pois sera de formas, e néo de sentido, que nos ocuparemos. Como 0 esquema esclarece nos parénteses, a reflexiva 6 a soma da ativa e da passiva; a reciproca — um tipo de re- flexiva; a média — a sintese da ativa e da passiva — soma, tipo e sintese que seréo demonstradas e bastante exemplifi- cadas quando as vozes forem descritas individualmente. © verbo de ligag&o n&o tem voz, é adiatético. Se a voz indica a relagao entre o verbo e 0 sujelto, e 0 verbo tem con- tetido seméntico, pols exprime o processo, é dbvio que 0 verbo Ser, ou qualquer outro congénere, se acha necessariamente excluido, visto néo possuir contetido sem&ntico, mas somente © caréter de conectivo e a perspectiva modo-aspectivo-tem- poral. 3 — Voz Ativa Na maioria dos casos talvez se possa garantir que a voz ativa indique 0 agente do processo verbal, isto 6, que o sujeito pratica a agao: a) Deus criou o mundo em seis dias;(*) b) Anibal atravessou os Alpes; c) Caramuru conquistou os indios, onde no hé divida (*) Exemplos com verbos transitivos diretos. 62 Rev. pe Lermas, Vou. I — N° 1 — 1978 ; + wr que Deus, Anibal e Caramuru praticam as agdes expressas pelos verbes respectivos. Em a) A estrela cintila no horizonte;(**) b) O trovao ribomba na serra; ¢) O cao /adra no terreiro, também ndo ha duvida que a estrela, 0 trovio e o cao praticam as agées respectivas e, portanto, séo verdadeiros agentes. Em a) 0 moleque apanha muito da madrasta; b) 0 touro nao sofre o jugo; 1, p. 551 ©) o negro sentiu a ponta da tanga, a voz é ativa, mas ha passividade e nao atividade, nao obstante a presenga da voz ativa, Em Deus 6 0 criador de todas as cousas existe a maior atividade jamais praticada, e nem sequer ha voz, porquanto ser é um verbo de ligagdo e, por conseguinte, adiatético. “Nao hd, pois, uma relac&o constante e indissoliivel entre os conceitos metafisicos de agente e acao © os conceitos gra- maticals de sujeito e verbo da voz ativa, onde no raro ha até imanente, @) a inércia, b) ou a passividade do sujeito: a) O menino dorme; b) O menino apanha uma surra”, (2, p. 368) “Se eu digo Pedro vé Paulo ou Pedro ama Paulo, as duas pessoas praticam uma sobre a outra uma agéio que ndo pode ser indiferentemente concebida como ativa ou receptiva. A vista 6 um fendmeno receptivo: Pedro teve a retina excitada por certa imagem. Da mesma forma no amor ou na amizade: Pedro experimenta determinado sentimento. Isto néo tem nada de ative”. (8, p. 123). (7°) Exemplos com verbos intransitivos. Rev, pe Lemmas, Vor. I — N21 — 1978 63 Esquema Estrutural da Voz Ativa +A +c eu corro tu corres ele corre nos corremos vos correis eles correm © sinal mais, precedente a letra maiscula, quer dizer que a presenga do traco é necessarla (indispensavel): A e C nao podem faltar. O leitor deve ter notado que saltamos o ele- mento B, e talvez até inferido que o fizemos por distracdo. Que houve o salto, isto houve; a distragéo, néo. A auséncia do elemento 8 constitui o trago estrutural da voz ativa, da mesma forma que a sua presenga constitui um trago estru- tural das outras vozes, adjunto a outros tragos distintivo © elemento A sdo os pronomes retos que podem contin- gentemente ser substituidos por: a) flexdo verbal; b) outro pro- nome; c) substantivo; d) infinitivo; e) subordinada substantiva: a) corres tanto; b) Tudo passa com rapidez; ©) © heréi caminhava entre flores; 4) Convém /utar; e) Basta que te respeites. Se 0 sujeito for indeterminado ou inexistente, o elemento A néo pode comparecer: vive-se bem aqui; relampejava muito. 0 elemento C sera sempre um verbo, conjugado nos tem- pos simples ou nos compostos com ter ou haver (tens corrido tanto; tudo havia passado com rapidez). Os tempos simples pertencem ao campo da morfologia, os compostos ao campo da sintaxe. O participio constitui um caso especial e pode ser ativo, passivo, reflexivo ou médio, em geral conforme a pre- 64 Rev, pe Lerras, Vor. I — N° 1 — 1978 dicaco do verbo. Exemplos ativos: a) rvore caida; b) pessoa viajada; c) parente falecido. Excepcionalmente o verbo é tran sitivo direto: homem ido (que 16). Conclui-se que os tragos estruturais da voz ativa sio a presenga do elemento A e do elemento C. Somente © con- traste com as outras vozes esclarecera plenamente o esque- ma estrutural da voz ativa, especialmente a inexisténcia do elemento B. £ preciso nao contundir voz ativa, categoria gramatical, e atividade, categora nocional; a primeira pressupde os cle- mentos A e C; a segunda pressupde apenas o agente da nogéo contida no processo. Em Dalila traiu Sansdo ha voz ativa e atividade; em o moleque levou uma surra — voz ativa e pas- sividade. 4 — Voz Passiva Talvez se possa afirmar que o sujeito seja em quase todos ‘os casos 0 paciente do processo verbal na voz passiva, isto 6, que 0 sujeito sofre a acao: a) O mundo foi criado por Deus; b) Os Alpes foram atravessados por Anibal; c) Os indios foram conquistados por Caramuru. ‘A semelhanga do que se passou na voz ativa (exemplos colhidos em Vendryés) em a) Paulo foi visto por Pedro; b) Paulo fo amado por Pedro, a vista continua sendo fenémeno receptive e nada de ativo se depara no sentimento. Se a vista 6 passiva, quem sofre a acao & Pedro no exemplo (a), nao obstante ser o agente da passiva; e, se 0 sentimento nao tem nada de ativo, néo se pode asse- gurar que Pedro € o agente no exemplo (b), considerando-se cada enunciado sob 0 ponto de vista seméntico. Rev, pe Lernas, Vor, I — N° 1 — 1978 65 Acresce, como ja referimos, que nalguns casos a voz ativa exprime passividade: a) O moleque apanha muito da madraste; b) © bobo receberé essa afrontosa pena; (1, p. 496) c) O enfermo teve um colapso. Passemos agora — 6 isto que nos interessa propriamente — ao campo da lingUistica e apresentemos a esquematizagao estrutural da voz passiva, que, dividida em participial @ pro- nominal, reclama dois esquemas estruturais. Na voz passiva entra em cena o elemento B, que nao existe na voz ativa e negativamente a caracteriza. Divide-se em BI, correspondente & voz passiva participial, ¢ 82, corres- pondente a voz passiva pronominal. Esquema Estrutural da Passiva Participial +A +81 +c eu ser louvado, a 46 ” ele nés "5 vos i eles. - z louvado, as Como previamente j4 explicamos, 0 sinal mais, prece- dente a letra maidscula, significa necessariedade; 0 elemento A pode contingentemente ser substituido por flex4o, outro pronome, substantivo, infinitivo, subordinada substantiva. Isto vale para todas as vozes. © elemento Bf sera sempre o verbo ser em qualquer for- ma de sua conjugagao: sou, eras, fol, sejamos, sereis, seriam e tantas outras. © verbo nuclear da voz passiva é 0 elemento C, que, va- riével em numero e género, deve sempre ser 0 partic{pio. 66 Rev, pe Lerras, Vor. I — N01 — 1978 Além dos tracos esquematicos — A, B1, C— ha outro muito importante que néo deve nem pode ser desprezado, pols constitui irrefragavel prova da voz passiva participial. & a se- guinte: toda construeo passiva é transiormavel em constru- cdo ativa: Cristo fof traido por Judas se converte em Judas traiu Cristo. A operag&o transformacio- nal é a seguinte: escrevem-se as palavras ao contrério (Judas por traido foi Cristo); suprimem-se por e ser(*) (Judas traido Cristo); pde-se o participio no mesmo tempo de foi — o per- feito (Judas traiu Cristo). Se a voz passiva nao tiver agente, sera preciso acrescen- té-lo sob a forma de por alguém ou por algo. As construcées Tiredentes foi denunciado e Pompéia foi destruide expandem- se em Tiradentes foi denunciado por alguém e Pompéia foi destruida por algo, donde as construgdes ativas alguém de- nunciou Tiradentes e algo destruiu Pompéia. Em face disto se concluiré que a hora 6 chegada nao esta na passiva, visto no se poder acrescentar por alguém ou por algo, nem modi- ficar-Ihe a voz: a hora 6 chegada por alguém ¢ alguém chegou a hora seriam resultados absurdos. Nao bastam, pois, os trés tragos esquematicos — A, B1, C; também é imprescindivel a passagem para a voz ativa. Em a hora 6 chegada existem os trés tragos, e, no entanto, néo se manifesta o fenémeno da voz passiva: A= hora, BY = 6, C= chegada. O elemento A vem acompanhado pelo artigo, como poderia vir por outros vocébulos: @ hora decisiva ou a hora da partida 6 chegada. © participio, 6 por si, constitui uma forma da voz pas- siva, portanto sem a presenca do verbo ser: © homem, criado por Deus & sua semelhanga, aspira & imortalidade (*) Nao esquecer que o infinitivo ser representa qualquer forma deste verbo. Rev, ve Letaas, Vou. I — N° 1 — 1978 67 onde por Deus é agente da passiva. © portugués “nao herdou ao latim as formas passivas do verbo, com excecéio do participio que geralmente conservou © significado passivo” (4, p. 7). © elemento C desempenha sempre a fungao de sujeito, tanto na voz passive participial, correspondents ao esquema estrutural A—B1—C, cuja descrigéo acabamos de apresen- tar, como na voz passiva pronominal, correspondente a C— B2—A, cuja descri¢éo vamos apresentar nos pardgrafos se- guintes, sob o titulo Esquema Estrutural da Passiva Pronominal +¢ +82 +A vende- se casa vendem- se casas A passiva pronominal possui trés tragos especials que a distinguem das outras vozes: 1) A ordem normal é inversa (C, B2, A, em lugar de A, B2, C), donde pospor-se o sujeito ao verbo: Vendem-se casas ll) E por isto que a porta se fechou € voz média. Fechou-se a porta sera passiva, se tiver a significagdo de foi fechada a porta (eu a fechei, meu filho ou alguém a fechou, depois que por exemplo todas as pessoas se retiraram); sera média se tiver a significagéo de @ porta se fechou, isto 6, 0 vento ou algo fortuito provocou o fechamento. Eu me chamo José porque o elemento B sera exclusivamente se. 68 Rev. pe Lerras, Vor. I — N° 1 — 1978 Ill) $6 esporadicamente o elemento A pode ser o pro- nome reto (ele, ela, eles, elas): A paisagem 6 linda; e/a se avista de longe; mas entéo a ordem costuma ser direta, contrariando a nor- malidade. Avista-se ela causa a impressio de que se estd usando e/a como objeto direto, por causa da posigéo — ime- diatamente apés 0 verbo. IV) © morfema se representa um sujeito psicolégico, de significagéo vaga, e dado Isto pode ser substituldo por a gente, nds ou o verbo na 3* pessoa do plural: a) Nao se viu a cobra; b) Aceita-se encomenda; c) Conta-se muita mentira, que admite as seguintes substituigdes: a) a gente nao viu a cobra; b) nés aceitamos encomenda; c) contam muita mentira. Nestas construg6es, 0 sujeito gramatical é cobra, encomenda © mu‘ta mentira; mas 0 sujeito psicolégico, aquele que o fa- lante comum sente como sujeito, ¢ uma pessoa vaga, um alguém indefinido, representado pelo morfema se. Em lugar de C, B2, A pode ocorrer B2, C, A, se algum termo alrair 0 se, ou por simples opcao estilistica: a) nao se vendem casas; b) voltei depois, e se comprou o carro. Além dos tragos esqueméticos C, B2, A ou B2, C, A, existe outro muito importante que n&o pode nem deve ser despre- zado, pois constitui a prova irrefragdvel da voz passiva pro- nominal, € a seguinte: toda passiva pronominal € transforma- vel em passiva participial: Rev, pe Letaas, Vou. I — NO 1 — 1978 69 Vendem-se casas se converte em casas nao vendidas. A cperagao transforma- cional é a seguinte: escrevem-se as palavras ao contrario com © se proclitico (casas se vendem); substitui-se 0 se pelo verbo ser e pde-se 0 verbo no participio (casas s4o vendidas). € con- dig&o necessaria, sine qua non, que haja relativa equivaléncia de sentido entre as duas construgdes. Pode ser que vendem- se casas e casas sao vendidas néo signifiquem a mesma cou- sa em termos absolutos; mas o que importa é a relativa equi- valéncia da significagao: esta, néo hé divida que ha. Em face disto se concluir que a porta se fechou no esté na voz pas- siva, pois a porta foi fechada tem diferente sentido. No pri- meiro caso haveria sido o vento a causa ou qualquer outra cousa imprevista; no segundo, pressupde-se a presenga do agente: se a porta foi fechada, sabe-se perfeltamente que o fol por alguém, que deliberadamente a fechou. N&o bastam, pois, os trés tracos esquematicos — C, 82, A ou B2, C, A; também € imprescindivel a passagem para a voz passiva par- ticipial e a relativa equivaléncia do sentido. ‘Antecipande-nos um pouco, podemos acrescentar que a construgaéo @ porta se fechou esté na voz média, intermedié- ria entre @ voz ativa e a voz passiva. £ preciso nao con‘undir voz passiva, categoria gramati- cal, e passividade, categoria nocional; a primeira pressupoe entre outros tragos os elementos A, B, C (mutavel a ordem); a segunda pressupée apenas o paciente da nogao contida no processo, Em Abel foi assassinado por Caim, ha voz passiva e passividade; em 0 moleque levou uma surra — voz ativa e passividade. Em vendem-se casas, 0 se é 0 morfema da voz passiva. Note-se bem o seguinte, pois se trata de trago muito impor- tante; em acelta-se encomenda e vive-se apenas uma vez, se manticamente 0 se tem 0 mesmo valor indeterminante; a dife- renga entre os dois 6 puramente gramatical; psicologicamente 0 se 6 sujelto em ambos os casos. 70 Ruy, pe Lemmas, VoL. I — N° 1 — 1978 5 — Voz Reflexiva Talvez se possa afirmar, com a maxima probabilidade, que © sujeito seja em quase todos os casos o agente e o paciente do processo verbal na voz reflexiva, isto 6, que o sujeito pra- tica @ sofre a agao: a) Eu me contemplei no cristal das aguas; b) O prisioneiro se matou; c) Tu te perdeste. © aspecto semantico, presente na definigéo de voz, 6 se- cundario, puramente nomenclatério (6 bom insistir neste as- pecto). A verdadeira definicéo se desenvolve sob a forma dos esquemas estruturais. Os termos agente e paciente sdo apro- ximativos, @ obviamente necessarios, preferiveis por exemplo a voz alfa e voz beta, ou voz arroz e voz feiao. A voz reflexiva exibe 4 tragos estruturais — A, B, C, D, que vista a subdiviséo do quarto, se desdobram em trés es- quemas estruturais auténomos: A, B, C, D1, A, B, C, D2, A, B, Cc, D3. © elemento D deve ser entendido como alguma cousa que pode ser acrescentada ¢ nao alguma cousa que sempre deve estar presente. & uma pega que pode ser encaixada. Esquema Estrutural “A-B-C-D1” +A +B +c +D1 eu me defendo a mim mesmo tu te defendes a ti mesmo ele se defendemos asi mesmo nés nos defende a nds mesmos vos vos defendeis a vés mesmos se eles defendem a si mesmos Com os elementos A e B devem ter sempre o mesmo nu- mero e a mesma pessoa: eu me, ndo porém eu fe ou eu vos; Rev, De Lemmas, VoL. I — N° 1 — 1978 n tu te, nao porém tu me ou tu nos; ele se, nao porém ele me ou ele te, ele nos ou ele vos, e assim por diante nas outras combinagées.(*) € 0 que se chama equagao nimero-pessoal. Em face disto em Eu te protejo nfo ha voz reflexiva, mas sim voz ativa, porque o verbo se apresenta na sua forma simples. & que a equacdo numero- pessoal (eu me, tu te, ele se, nds nos, vés vos, eles se) ca- racteriza quase todas as vozes, excetuando-se a voz ativa e a passiva participial. Na passiva pronominal ocorre somente nas tercelras pessoas, mas ocorre. Em Eu me protejo a voz reflexiva, pois temos as equacées singular mais singu- lar, 12 pessoa mais 1# pessoa, e se pode acrescentar o ele- mento D1: eu me protejo a mim mesmo. Esquema Estrutural “A-B-C-D2” +A +B +c +D2 eu me defendo e aos outros tu te defendes sea ee ele se defende Dee te: vos nos defendemos Se tial nds vos defendeis ees oe eles se defendem eo Ante © exposto, 6 facil identificar a voz reflexiva nos exemplos retrocitados: a) eu me contemplei ¢ aos outros; b) © prisioneiro se matou e aos outros; c) tu te perdeste e aos outros; d) eu me defendo e aos outros. () Néo esquecer que o elemento A comporta cinco substituigdes: flexdo, outro pronome, substantive, infinitive, subordinada substantiva, 72 Rav. pz Lemmas, Vot. I — No 1 — 1978 Ao aplicar-se 0 esquema, nao é necessério citar o enun- ciado com todos os seus termos; bastam os elementos A-B- C-D, no caso da reflexiva, ¢ um ou mais adjunto que Ihes com- plete o sentido. Em, verbi gratia, © homem se destréi com suas préprias maos suprime-se 0 adjunto adverbial de meio: © homem se destréi e aos outros para simplificar a esquematizacdo. Esta orientacdo ja foi ado- tada neste capitulo, quando aplicamos o esquema estrutural a eu me contemplei no cristal das aguas. Esquema Estrutural “A-B-C-D3” O elemento D3 é a soma dos elementos D1 e D2: +A +B +¢ +03 eu me defendo @ mim mesmo e aos outros tu te defendes asimesmo " " * ele se defende ati mesmo " " nés nos defendemos anésmesmos” " ” vos vos defendeis avoésmesmos" " ” eles se defendem asimesmos ” " ” Para maior ilustragao, vamos aplicar o esquema estru- tural A-B-C-D3 aos outros exemplos retrocitados: a) eu me contemplei 2 mim mesmo e aos outros; b) © prisioneiro se matou a si mesmo e aos outros; c) tu te perdeste a ti mesmo e aos outros; d) eu me defendo a mim mesmo e aos outros; ) 0 homem se destréi a si mesmo e aos outros. Rev, ve Leraas, Vot. I — N° 1 — 1978 73 No terceiro parégrafo deste capitulo escrevemos que os trés esquemas esiruturais so auténomos. Isto quer dizer que so independentes um do outro, e que néo é necessario apli- car os trés para identificar a voz reflexiva: basta um para classificar a diétese. Além dos tracgos esquemétcos A-B-C-D, ha outro multo importante que no pode nem deve ser desprezado: 0 ele- mento “B" seré sempre objeto direto. € que a voz reflexiva — duas vozes somadas — contém implicitamente a voz passiva e subjacentemente 0 objeto direto, pois todo sujeito da pas- siva 6 um objeto direto distarcado. Em vocé nao se pertence, no ha voz reflexiva, porque 0 se 6 objeto indireto; nem tam- pouco, e pela mesma razao, em tu te atribuls o titulo de mestre. Eis a demonstragao de que a voz reflexiva é a soma da voz ativa e da voz passiva: Paulo se dominou = Paulo dominou Paulo isto 8, Paulo dominou alguém (ele proprio), @ foi dominado por alguém (por ele préprio). £ preciso nao confundir voz reflexiva, categoria gramati- cal, e reflexividade, categoria nocional; a primeira, pressupde entre outros tragos os elementos C-B-A ou B-C-A; a segunda, pressupe apenas o agente-paciente da nogéo contida no pro- cesso. Em ee se matou ha voz reflexiva © reflexividade; em eu lavei 0 rosto — voz ativa e reflexividade. Em tu és eg6- fatra existe reflexividade, néo porém a categoria da voz re- flexiva por causa do verbo ser, adiatético, por falta de con- tetido semantico. A voz reflexiva 6 muito rara, comparada com as outras, ‘excetuando-se a reciproca — um tipo de voz reflexiva (cf. 2 — Esquema Geral). Uma jovem me perguntou se eu me casei 6 voz reflexiva. Respondi-lhe jocosamente o seguinte: “Se vocé arranjou um marmanjo, fugiu com ele, e nao deu bola nem a igreja nem a0 cartério, voce casou-se a si mesma, e a voz 6 reflexiva”. Como isto é uma piada, 0 tipo de voz 6 outro — média, 14 Rev, ve Lemmas, Vou. I — N° 1 — 1978 Wenetesetnentenornmemrrrers A esquematizagao A-B-C-D esclarece que a intencionali- dade nao 6 um trago distintivo da voz reflexiva. Em eu me suicidarei a intencionalidade & um fato, mas a voz é média, © no reflexiva. O analista pode ter duvida se o acréscimo do elemento D seré ou nao aceitavel. Em verbi gratia © operério se atirou da janela 6 possivel enxertar-se a expansdo a si mesmo (D1) ou as ou- tras expansdes (D2 e D3). © problema da aceitabilidade foi tratado por Chamsk “Vamos empregar o termo aceitével para denotar os enunci dos que s&o perfeitamente naturals ¢ compreensivels imedia- tamente, sem recorrer-se a estudos analiticos, e néo pare- cerem extravagantes ou estranhos” (6, p. 11). Na pagina se- guinte: “As oragdes mais aceitaveis séo aquelas que t&m mais probabilidade de ser produzidas, que séo compreendidas mais facilmente, menos desajeitadas e de certo modo mais espon- taneas” (6, p. 11). £ 0 caso de perguntar se vocé diria naturalmente: o ope- rario se atirou a si mesmo da janela, e nao sofreu nada. ‘é) claro que vocé nunca diria. 6 — Voz Reciproca Talvez se possa afirmar, com a maxima probabilidade, que 0 sujeito seja em quase todos os casos o agente e 0 paciente do processo verbal na voz reciproca, mormente por constituir um tipo de voz reflexiva, consoante o exposto no capitulo Esquema Geral: a) nés nos atacdvamos cruelmente; b) vés vos injuriastes sem motivo; ¢) eles se ajudaram cristémente Rev. pe Lereas, Vor. I — N° 1 — 1978 7 em que a voz reciproca é um tipo de voz reflexiva cruzada: a) eu ataquel tu(*) (tu te) a) nés nos atacamos b) tu atacaste eu (eu me) a) tu injuriaste ela (ela se) b) vés vos injuriastes b) ela injuriou tu (tu te) a) ele ajudou ela (ele se) ¢) eles se ajudaram b) ela ajudou ele (ela se) Nao se trata de eu me ataquei e tu te atacaste, tu te in- Juriaste e ela se injuriou, ela ou ele se ajudou, por causa do cruzamento sintético. Na reflexiva propriamente dita, 0 agente e 0 paciente sao a mesma personagem: a) eu eu b) tu tu ©) ele ele Na reflexiva cruzada (voz reciproca), 0 sujeito séo duas ‘ou mais personagens distintas: a) eu tu tu eu b) tu ela ela tu o) ele ela ela ——— ele (*) Usamos 0 caso reto em lugar do obliquo por conveniéncia cruzamento correto seri a) eu — me, tu — te; b) tu — te, ela c) ele — se; ela — se. 76 Rev, pe Lernas, Vou. I — No 1 — 1978 ae a Esquema Estrutural da Voz Reciproca +A +B +¢ +E nés nos entendemos um(s)_ao(s) _outro(s) vos se entendeis a : = eles vos entendem = = 7 Saltamos 0 elemento D, porque o especializamos para a esquematizacéo da voz reflexiva. Além de ser téo rara como, ou mais ainda que a reflexiva, somente se conjuga nas trés pessoas do plural, conforme se vé pelo esquema. Ante © exposto, é facil identiicar a voz reciproca nos exemplos retrocitados: a) nés nos atacdvamos uns aos outros b) vés vos injuriastes uns aos outros c) eles se ajudaram uns aos outros © elemento E deve ser entendido como alguma cousa que pode ser acrescentada e nao alguma cousa que sempre deve estar presente, £ uma peca que pode ser encalxada, exatamente como o elemento D na voz reflexiva. Em amal-vos uns aos outros, a imortal sentenga biblica, o elemento E acom- panha sempre os outros elementos. Excepcionalmente a voz rec{proca se manifesta na 3% pes- soa do singular; neste caso o elemento A deve ser um cole- tivo: Aquele casal se entende bem Para acrescentar o elemento E, substitul-se o plural se~ mantico, Isto 6, 0 coletivo, por um plural gramatical: Rev. pe Lamas, Vou. I — N° 1 — 1978 7 Os dois se entendem um ao outro e, aplicando 0 cruzamento sintatico, de alto valor comproba- tivo, temos 0 seguinte: Ele entende ola Ela entende ele Eles se queixaram uns aos outros no hé voz reciproca, uma vez que ndo se pode aplicar o cru- zamento sintatico: Eles queixaram elas Elas queixaram eles so tomeios inadmissiveis. Em Voeés gostam um do outro n&o pode havé-la tampouco por faltarem dois tragos estrutu- rais: 0 elemento Be o elemento E. Temos um do outro, é bem verdade; mas 0 4? elemento 6 um ao outro, com a preposic¢éo a, @ n&o um do outro ou um com o outro (conversavam um com © outro), ou um para o outro (olhavam desconfiados um para © outro), pols a preposigao a, e nao outra, é um carater ne- cessério do elemento E. € preciso n&o contundir a categoria gramatical da voz reci- proca e a categoria nocional da reciprocidade; a primeira, pressupée entre outros os elementos A-B-C-E; a segunda, pres- supe apenas um agente © um paciente do processo verbal, que semanticamente cruzados atuam reciprocamente um so- bre o outro, Em suportai-vos uns aos outros ha voz reciproca @ reciprocidade; em trocaram beijos ¢ sairam correndo, ha voz ativa e reciprocidade. 78 Rev. pe Lereas, Vou. I — N° 1 — 1978 -——— 7 — Voz Média Parece-nos indubitavel que havera sempre certa relagdo de agente e paciente entre o sujeito e o contetido semantico do verbo. Isto quer dizer que 0 sujeito nao é propriamente o agente do processo, mas atua como tal de certa manelra; que no & propriamente o paciente, mas sofre de certa maneira o efeito do processo verbal. A denominagéo médla 6 muito sig- nificativa: no é ativa nem passiva; esté no meio, situada entre as duas: meu amigo zangou-se com o vizinho ‘em que meu amigo entra como agente, no porém ao ponto de zangar-se a si mesmo, pois 0 vizinho tem a sua cota de participagdo na relagdo verbo-sujeito. Nao se trata de meu amigo zangou meu amigo, é ébvio que nao. € “apenas envol- vido no proceso”, conforme a definigéo de vozes no 12 ca- pitulo. Esquema Estrutural da Voz Média +A +B +¢ —b —E eu me aborrego — — tu te aborreces _ =_ ele se aborrece = = nés nos aborrecemos = = vés vos aborreceis _- — eles se aborrecem — — A definigéio desta voz 6 negativa(*), isto é, 0 que a ca- racteriza 6 ser impossivel acrescentar-Ihe o elemento D, que demonstra néo se tratar de voz reflexiva, e o elemento E, que (*) Ea segunda voz que nogativamente se define: a primeira foi a voz ativa, definida pela auséncia do clemento B. Rev. ve Lernas, Vor. I — No 1 — 1978 79 demonstra ndo se tratar de voz reciproca, As construgdes ex- pandidas a) eu me aborreco a mim mesmo; b) eu me aborreco @ aos outros; ¢) eu me aborreco a mim mesmo e aos outros, correspondentes ao elemento D; e d) nés nos aborrecemos uns aos outros, correspondente ao elemento E, sao inadmissiveis, pelo menos em situagées ordindrias. Ao contrario das vozes reflexiva e reciproca, onde os exemplos se apresentam raros e dificeis, na média sao abundantes e faceis: a) Eu me aproximei da cratera; b) Tu te zangaste comigo; ©) O aluno enganou-se; d) Nés nos afastamos com saudade; e) Vés vos despedistes com lagrimas; f) Os pescadores se afogaram no mar; g) Eu me conformarei um dia; h) Tu te Iembravas com remorsos; i) Nao se esqueca de mim; }) Atiramo-nos a correnteza; k) Alegrai-vos com a pratica do bem; }) Evadiram-se os presos; @ muitos outros que se poderiam citar. Em © jarro se quebrou n&o h& voz reflexiva, porque o jarro nfo se quebrou a si mesmo; nem passiva pronominal, porque o jarro foi quebrado significa outra cousa; s6 pode ser voz média, Em 80 ‘Rev. ve Lernas, Vor. I — NO 1 — 1978 Eu me batizei na catedral nao ha voz passiva, porquanto eu ful batizado na catedral tem outro sentido. Vamos admitir, por motivo que nao interessa discutir, que me tenha batizado com vinte e um anos com- pletos, por conseguinte em plena maloridade. Neste caso, eu me batizel pressupée o meu consentimento e até a comemo- ragao do meu batismo; em eu fui batizedo se pressupde que no fui consultado, ou pelo menos se pode pressupor. Com- Parem-se as construgdes eu me ordenei e eu fui ordenado no seminario, eu me tormei e eu fui formado em letras cléssicas, eu me diplomei e eu fui diplomado na Escola Normal. Podem apresentar-se mais trés argumentos, quic mais importantes, para justificar a voz média em eu me batizei na catedral: a) é normal dizer-se ele se batizou na catedral, mas sabemos que a passiva pronominal rejeita ordinariamente o pronome reto: ela se vende, igual a ela 6 vendida, é Inusual; b) o mor- fema se da passiva indetermina semanticamente (psicolo- gicamenie) 0 sujeito; em aceita-se a encomenda, grama- ticalmente encomenda é o sujeito; semanticamente nao se sabe quem 0 6, 0 que nao acontece em ele se batizou na ca- tedral; c) a ordem A-B-C néo é a norma na passiva pronomi nal; em Joca se batizou na catedral, a ordem é A-B-C, 6, toda- via, néo se descobre a menor anormalidade, como seria de © esperar (cf. a encomenda se aceita, inadmissivel em situa- ges ordindrias). Em Eu me chamo José também no hé voz passiva, pois eu sou chamado José néo quer dizer a mesma cousa. O autor de /racema, a virgem dos labios de mel, chamava-se José, e, ao tempo de menino, era chamado Cazuza. Era José 0 nome, Cazuza era apelido (8, p. 3) Concluséo: em ambos os casos a voz 6 média. REV, pe Lereas, Vou. I — NO 1 — 1978 81 € preciso nao confundir a categoria gramatical da voz média e a categoria nocional da mediedade(*); a primeira pres- supde entre outros tragos os elementos positivos A-B-C @ os elementos negativos D e E; a segunda, pressupde apenas o sujeito envolvido no processo, em parte como agente, em parte como paciente. Em a rainha se ajoelhou ha voz média e mediedade; em o sepato enxugou, a porta néo abre, a [am- pada néo acende, ha voz ativa e mediedade. Os verbos essencialmente pronominais séo médios por exceléncia: nunca se conjugam noutra voz. Ha certos verbos, como rir, que se conjugam tanto na voz ativa como na média. Em no se ria dos outros, 0 se 6 morfema da voz média, e néo simples expletivo. Quando o verbo ¢ médio(**), chama-se ao elemento B morfema da voz média; tradicionalmente — parte integrante do verbo. 8 — Conforme a Situacéo Muitas vezes somente a situagao pode esclarecer 0 tipo de voz. Em Os meninos se feriram propositalmente, ‘ou seja, cada um enfiou uma agulha no proprio brago para mostrar que tinha a coragem de fazé-lo, nao ha duvida que a voz é reflexiva. Em Os meninos se feriram na briga ‘entendendo-se que Jonas feriu José, José feriu Jonas, ou, ade- mais, que Pedro feriu Paulo, Joca feriu Juca e Juca feriu Jo- (*) Fomos compelido a criar 0 neologismo, £ que medianidade nfio se re- fere a médio, mas a mediano, © quebra a simetria nomenclatéria: ative agivudade, pasivepassvidate, rflexivoreesidade, retprocoveclprst (**) Ta no grego se _usava a expressfio méson rhéma ‘verbo médio’ (7. p. 1256) 7) BAILLY, A. — Dictionnaire Grec-Francais. Paris, Libr. Ha- chette, 1950. 82 Rev, pe Lemmas, Vor. I — NO 1 — 1978 A nas (0 entrelagamento pode assumir formas infinitamente com- plexas) neste caso a voz é indubitavelmente reciproca. Em Os meninos se feriram na cerca, Isto 6, foram passar depressa por entre o arame farpado para fugir de alguém, e as farpas feriram-thes 0 corpo, é ébvio que nesta situagéo se configura a categoria da voz média. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 01. FERNANDES, Franciseo — Diciondrio de Verbos ¢ Regimes. Rio, Ed Globo, 1955. 02. CAMARA JR,, J. Mattoso — Diciondrio de Filologia e Gramdtiea. Sito Paulo, V. Ozon, 1968. 03. VENDRYES, J. — Le Langage. Paris, Albin Michel, 1950. 04, HAMPLOVA, Sylva — Aleunos Problemas de la Voz Perifrdstica Pas- siva y las Perifrasis Factitivas en Espaftol. Praga, Instituto de Len- guas y Literaturas de la Academia Checoslovaca de Ciéncias, 1970. 05. HJELMSLEV, Louis — Prolegimenos a una Teoria del Lenguaje. Trad. José L, D. Lino. Madrid, Ed. Gredos, 1971. 06. CHOMSKY, Noam — Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge, The M.LT. 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