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CARATER PRONOMINAL DO ARTIGO EM PORTUGUES José Lemos Monteiro 0.1, Introdugao A Nomenclatura Gramatical Brasileira, a0 classificar os vocébulos da lingua portuguesa, seguiu um critério tradicio- nal, de base filoséfico-seméntica, herdado dos estudos reali- zados pelos gregos e romanos. Fez apenas uma transposicao ou decalque para o portugués das descrigées lingiiisticas do grego e do latim, sem respeitar o principio de que cada lingua forma seu préprio sistema e, como tal, deve ser examinada sob a perspectiva de suas lels especificas. Entretanto, além de carecer de um suporte cientifico que Ihe conferisse coeréncia e possibilitasse a viséo da lingua portuguesa como um sistema auténomo, definivel por si mes- mo, a Nomenclatura Gramatical Brasileira criou uma classe exclusiva para o artigo — classe que agrupa no maximo d vocébulos —, deixando inclassificéveis dezenas de outros termos, numa prova cabal da falta de apoio metodolégico e seguranca descritiva. Antes, @ posigéo era muito mais condizente com a rea- lidade e configuraco dos fatos lingiiisticos: 0 artigo néo cons- titula classe especial, mas figurava entre os adjetivos, o que néo deixa de ser verdade, pelo menos numa classificagdo sob © prisma morfo-sintético. Aliés, a grande falta metodolégica 44 Rev. pe Lernas, Vou. I — N.° 1 — 1978 da classificacdo das palavras reside na utiliza¢éo arbitraria dos critérios mérfico, semantico e funcional, gerando uma sé- rie de relagées incabiveis, porque de esferas diferentes. £ o caso, por exemplo, da terminologia adjetivo, usada para re- presentar uma classe, em oposigao a algumas outras termino- logias (verbo, pronome etc.) que com ela ndo se correlacionam. Com base nessas reflexes, é facil de se perceber que 0 artigo, evidentemente, 6 um adjetivo. Nao obstente, este termo corresponde a uma categoria sintdtica e, por isso, néo pode ser confundido, em questao de nivel, com outros que néo se definem por angulos funcionais, como 6 0 caso do verbo. Dito de outra maneira: 0 termo adjetivo se correlaciona ao termo substantivo, porque ambos sao categorias sintéticas. Mas o verbo pode perfeitamente ser identificado morficamente, 0 que © coloca em outro nivel de classificacdo. Mais adiante, estas idéias teraéo melhor esclarecimento, ao tentarmos definir o pronome em oposic&o ao nome, ocasiéo em que falaremos da confluéncia de critérios classificatérios. Aqui pretendemos discutir um problema de classificagéo dos vocébulos, com o intuito de fundamentar a natureza pro- nominal do artigo em portugués. Partimos da propria etimo- logia, sem querermos inferiir que ela seja o suficiente para comprovar 0 caréter demonstrativo do nosso artigo. Os argumentos que aduziremos no enfoque sincrénico, esto em perfeita consonancia com a diacronia e se aplicam, provavelmente, a todas as linguas romanicas. Contudo, seria necessério um estudo bem mais detalhado dos demais siste- mas lingiifsticos provenientes do latim, alguns muito diferen- tes do portugués, como o romeno, em que o artigo tem na tureza de sufixo. Dirigimos, pois, nosso Angulo de observagao para a lingua portuguesa, com o objetivo unico de verificar se ‘© nosso artigo ainda é um pronome, como o foi nos perfodos de sua formacao. Se objetivarmos encontrar as caracteristicas bésicas do pronome, chegaremos & conclusdo de que todas elas existem também no artigo, o que acarretaré uma notavel simplificagaio e maior coeréncia em termos descritivos. E estas inferéncias, REV. DE Letras, Vou. I — N° 1 — 1978. 45 embora devam ser rigorosamente sincrénicas, s&o confirma- das pela histéria das linguas roménicas, através da anélise das fontes que originaram as formas dos atuais artigos neo- latinos. 0.2. O enfoque dlacrénico Um dos bons argumentos para se considerar o artigo o(*)* como pronome 6 0 fato de ele derivar diretamente das formas iilum illam, as mesmas que produziram os homénimos demons- trativos. Acresce ainda que em latim nao havia artigo, sendo © étimo considerado unanimemente pelos latinistas e filélogos um pronome demonstrativo. € curloso como as formas masculina e feminina (ille / illa) a neutra iilud foram tao férteis na passagem do latim para © portugués. Além dos demonstrativos assinalados acima, elas geraram os pessoais de terceira pessoa do caso reto, alguns pessoals da terceira pessoa do caso obliquo e contribuiram para a formagdo de aquele(*) ¢ aquilo. De ille, illa, illud procederam ele, ela, elo e, com 0 reforco *eccu—, aquele, aquela, aquelo (con- vertendo-se este ulteriormente em aquilo), Passa- ram contudo ele e ela a servir desde logo de pro- nome pessoal, e e/o usou-se somente em portugués antigo. A par destas formas plenas do artigo de- monstrativo, existem desde 0 comeco da lingua até hoje as formas reduzidas 0, a (e /o, /a), sendo estas empregadas nfo somente como pronome pessoal (acusativo), mas ainda como pronome demonstra- tivo.(?) Examinando a evolugéo do demonstrativo latino até a fi- xagdo do atual artigo portugués, encontramos resquicios da * © expoente, entre parénteses, indica que o possui quatro formas (0, a, os, as). (1) Cf. M, SAID ALI, Gramdrtca histérica da lingua portuguesa, p. 99. 46 Rey, pe Leraas, Vou. 1 — N° 1 — 1978 primitiva forma elo, efa no testemunho do arcaico el, usado ainda em el-rei, e, além disso, nas aglutinagdes dos plurais mbolos, todolos, de emprego vigente até o século XVI, afora as combinagées pelo e polo. Somos também de opinidéo que © alomorte /o(*) do pronome pessoal obliquo o(*) (Cf. amé-l0, amé-los, amé-la, amé-les) constitui um remanescente dessa forma primitiva. Conforme entende Sousa da Silveira, a forma Jo € que produziu o, mediante a perda do / tornado intervocé- lico quando o pronome vinha enclitico: ama-Lo (= Amalo) > ama-o (= mao). (2) Augusto Magne, neste sentido, faz um comentario sobre a gratia amé-lo, advertindo: © | inicial do pronome /o absorveu 0 r final do infinitive, e 6, portanto, ao pronome, e nao ao ver- bo, que pertence o / sobrevivente em louvé-/a. Nem vale dizer que esse / também poderia ser 0 r final do verbo previamente assimilado ao | de Jo, tendo caido, depois, o | de fo. Com efeito, o fato 6 foné- tico, no grafico (...) @ 6 claro que o tinico som sobrevivente continua a pertencer a entidade léxica que o possuia antes do encontro.(*) Contudo, afora estes registros acima citados, 0 morfema (4) j& ocorre nas fases mais remotas do portugués, as vezes grafado ho. Aliés, néo & problematica, como parece a primeira vista, a queda da consoante / de /o.() Devemos estabelecer a cadeia evolutiva, antes de explicar o fenémeno: illum > ello > elo > lo > 0, A passagem do /'/ (breve) para /é/ e a sim- plificagéo das geminadas (ello > elo) nenhuma dificuldade oferecem, jA que so constantes ou sistematicas na diacronia latim-portugués. A partir de elo, houve o fenémeno do alotro- pismo, com uma forma resultante da apécope (e/) e outra, da aférese (lo). € entéo que surge a necessidade de interprotar @) Of Lipses de portugues, p. 149. G) CE Diciondrio da lingua portuguesa, p. 38. Rev, pe Lernas, Vou. I — N21 — 1978 47 a queda do / de Jo, j que e/o tomou tal direcao, em vez de perder logo o / quando este ainda era intervocdlico, o que daria eo. E que, por ser usado sempre procliticamente, 0 seu acento se enfraqueceu © a vogal inicial sofreu aférese: elo > lo. E, sendo empregado freaiientemente em posic&o intervo- célica, apés uma preposigéo como de ou a, 0 / tenderia a cair, como de fato aconteceu. Ilustremos com um exemplo para a forma do feminino, seguindo a explicagao de Francisco da Silveira Bueno: Quando se encontrava em posicao intervocé- lica como em: de /a casa, a la casa, entrava na lel geral da sincope das intervocalicas, desaparecen- do: de /a casa, de a casa.(*) Esta interpretacdo 6 aceita por todos os filélogos quan- do tratam de fonética sintatica e registrada em qualquer di- cionério etimolégico. Citemos, apenas para maior fundamen- tagao, as palavras de Antenor Nascentes: ‘A queda do | da forma arcaica justifica-se pela freqliente posicéo intervocalica, resultante da es- treita ligagéo com outros vocdbulos e por ser um vocabulo acessério, fracamente pronunciado.(5) A prova de que o artigo portugués proveio de um pro- nome jé 6 um passo para se discutir a hipétese de ele conti- nuar como tal ou, em caso contrério, para se buscar as razdes que o fizeram perder sua natureza pronominal. M. Said Ali sustenta que a fungdo demonstrativa logo se amorteceu, a partir do instante em que se passou a usar [o,(*) sem muita necessidade. antes de qualquer substantivo, Nao nega, porém, que esta fungdo pode perceber-se em alguns enunciados nos quais se indica 0 ente de que se trata.(*) (4) Cf Grande dicionério etimoldgico-prosédico da Ungua portuguesa, v. ipl. (5) Ct. Diciondrio etimolégico resumido, p. 1. (6) CE op. cit, p. 123. 48 ‘Rev. De Lerras, Vou. I — N° 1 — 1978 As mesmas consideragées feitas sobre o valor pronomi- nal do artigo em portugués sob uma perspectiva diacrénica se aplicam as demais linguas romanicas, De fato, é suficiente observarmos as gramaticas de nossas linguas irmas para de- duzirmos que suas formas de artigo derivam também do pro- nome ille/iita/illud. E n&o apenas artigos, mas igualmente pronomes pessoais e demonstrativos. Assim, em francés temos as formas pronominais de ter- ceira pessoa il, ils, elle e elles; em provencal, e! ou elh, fl ou ith, ela ou elha @ plural i! ou ilh © elas; em italiano, egii e ella? em castelhano, el € 0 neutro ello, formas todas derivadas do nominativo latino. © mesmo demonstrative, no caso dativo (ill), 6 0 étimo do portugués fhe. comparavel ao francés Jui (de *illui, por ana- logia com huic, cul), provengal the, italiano Jui e gli, entre outros, Nosso artigo, como j4 mostramos, provelo do acusativo (ilum/illam) e, de modo igual, o francés le, la, les @ 9 italiano Jo, la. Augusto Magne, em seu Dicionério da lingua portugue- sa, cita um exagero de passagens de textos arcaicos em que ocorrem estas formas.(7) Numa viséo ampla, Frederick Bodmer analisa a dupla per sonalidade do demonstrativo latino, oferecendo dois esque- mas bastante esclarecedores. que nos servem como sintese do que até agora analisamos: Com referéncia ao artigo indefinido, a estreita vinculagéo com a classe dos pronomes 6 também assinalada em termos diacrénicos, uma vez que, seja considerado artigo, pronome indefinido ou numeral, a origem € uma sé: o latim unus. O fe- minino uma foi formado dentro do préprio verndculo, seguin- do 0 paradigma flexional dos nomes, através da adjuncao da desinéncia /—a/. Carecem de relevancia os argumentos de Leite de Vasconcelos no sentido de explicar o feminino uma como proveniente do latim unam, mediante a cadeia unam > (D Cf. pp. 33-48. Rev, pe Lereas, Vou. I — N° 1 — 1978 49 (Pron. nom. sing, ‘EGLI. 3.9 pes. em italiano) |a@) Pron. acus. masc. 3a n os | italiano e espa- Baers eu I> LO} hot oad a IL LE |p) art. def, mase. b) Art. det. | sing. em italiano, mase. sing.| antes de z ou de em espan. | \_s impuro a) Pron. nom.! IL <—| | eae | 1L LA [a) Pron. aeus. masc, Le} sing. 3% p. em i franeés'e espa- | mace. sing, 3 pes. em| | a | bp) Art. def. masc. | sing. em francés ase. sing, | — eat Bn go, em ae k | si 35 p. em —> LA frances, espanhol |. italiano |b) art, def. fem. Sed | sing. em francés, | | espanhol e italia- ELLE ELLA ae (Pron. nom. (Pron. nom. sing. fem. ‘sing. 3° fem. 38 p. em espa- p. em francés) nhol e italiano) Do segundo esquema, aproveltamos apenas a armacéo, dispensando a classificacko das formas derivadas dentro de cada sistema lin- gilistico. 1 ou Gli IL Lio jeu Ls —— ciutos —| IL LOS | tos IL LAE |—>'€ —> LES [Le -LAS| = | | ELLES ELLAS(*) (*) Cf. O homem e as linguas, pp. 301-302. = ‘ una > ua > uma, admitindo que o desenvolvimento da bila- bial /m/ teria sido provocado pela vogal nasal /u/. Ja que em latim unus néo era tido por artigo, temos o direito de suspeitar que os graméticos da lingua portuguesa complicaram a descri¢&o, atribuindo a um o caréter de artigo. Cremos que o numeral passou a expressar um caréler de indeterminacao, em alguns contextos, e este caréter o apro- ximou dos pronomes indefinidos a/gum, qualquer, situando-o neste grupo. Houve, com certeza, a influéncia do indefinido algum e/ou de nenhum (de nec unum) para que @ nogao de nGmero se desfizesse em determinados enunciados e expres- sasse um sentido indeterminativo. Mas é 0 bastante descrever © morfema como um pronome indefinido, deixando-se de con- sideré-lo artigo em certas situagdes, o que, de resto, sé difi- culta @ descricao lingiifstica. Entretanto, é necessdrio rever muitos conceitos para se reformular esta visdéo, nao exclusiva de nossos gramaticos. Em qualquer idioma neolatino se aprendem as mesmas ex- plicagdes dadas entre nés, tanto no que se refere ao artigo definido como ao indefinido. Quanto ao indefinido, acontece sempre o perigo da con- fuséio ou neutraliza¢do mérfica com 0 numeral ou o pronome indefinido. Quanto ao definido, corre a identificagéo com as formas dos pessoais de terceira pessoa ou de demonstrativos. Vejamos, neste sentido, a adverténcia da Gramética de la lengua espafiola, da Real Academia Espanhola El pronombre de tercera persona tiene (...) las formas 61, /a, 0, los, /as, idénticas a las del arti culo; y para no confundirlas en el uso, adviértase que el articulo sélo puede juntarse con nombres (...) al paso que el pronombre personal se junta Unicamente con verbos.(8) (8) Cf. p. 40. Rev. pe Lemmas, Vou. I — N° 1 — 1978 51 © que notamos é que cada gramatica tenta repetir 0 que se encontra nas outras, nao refletindo ou questionando sobre a validade dos preceitos divulgados nem procurando aplicar novos modelos de descrigao. O resultado é a aceltagdo pas- siva das normas tradicionais, muitas das quais se enraizam com tanta profundidade que se torna quase impossivel sub- meté-las a qualquer prova. 0.3. O enfoque sincrénico Nossa preocupacdo agora € a de mostrar como, num corte sincrénico do portugués, mesmo nos registros atuais, a classe do artigo continua a ter os caracteres basicos que Ihe conferem uma natureza pronominal. Para tanto, compete-nos fixar certos critérios de delimitacdo classificatéria, capazes de distingdir os pronomes das outras espécies de vocdbulos. Nao recorremos aos aspectos mérfico e sintético, porque em portugués via de regra nome e pronome apresentam os mesmos tragos formais (por exemplo, as categorias de g& nero e ndmero) e funcionais (tal como os nomes, os prono- mes podem ter fungdes substantivas ou adjetivas). Entendemos assim que uma falha da Nomenclatura Gra- matical Brasileira fol a de estabelecer classes opostas me- diante critérios diferentes, 0 que resulta em incoeréncias. Dessa forma, substantivo e adjetivo se opéem sintaticamente, porém ndo formam esquemas opositivos em referéncia ao pro- nome ou ao verbo. E muito mais sensato compreender que o pronome paraleliza com 0 nome, ambos podendo ter fungéo substantiva ou adjetiva. A descrigdo se torna simplificada e dotada de coeréncia, uma vez que obedece a certos principios estruturais e néo confunde conceitos de ordens diferentes. Numa visio esque- matica, j@ nos € possivel, por conseguinte, fixar 0 seguinte quadro: 52 Rev. pe Lemmas, Vou. I — NO 1 — 1978 Nome = Pronome Substantivo x Adjetivo Substantivo x Adjetivo De acordo com o quadro acima, vemos que substantivo e adjetivo nao sdo classes, mas apenas aspectos ou fungdes que as palavras da classe dos nomes ou dos pronomes podem tomar. O pronome se define portanto por sua oposicéo ao nome, seja de fungdo substantiva ou adjetiva. Cabe agora refletir em que pontos se opera essa oposi- ¢4o. Acreditamos que um exame das nogdes expressas pelas duas espécies de vocdbulos seja o Angulo mais seguro, em- bora os defensores do puro mecanicismo opinem diversamente. Desprezar o critério seméntico na distingdo entre as duas clas- ses resulta em dificultar 0 reconhecimento delas ou em criar artificios formais que, ao fim de contas, deixam muitos pro- blemas insoliveis. Ora, a realidade 6 simples de ser descrita, sendo bastante a compreensao de que, no repertério de vocabulos que uma lingua apresenta, hé aqueles cuja fungdo precipua 6 a de re- presentar 0s objetos do mundo antropocultural e outros que deixam de ter esse conteido semantico, servindo como ele- mentos de indicagéo dos objetos numa dada ordem. Como meio de bem ilustrar essas duas esferas concei- tuais, util aplicar a distingo entre simbolo e sinal. Consi- deramos simbolo tudo aquilo que tenha propriedade de re- presentar alguma coisa. A bandeira branca, a cruz, a balanga $0 exemplos de simbolos de nossa heranca cultural, pois re- presentam respectivamente a paz, o cristianismo e a justia. As palavras igualmente substituem objetos ou valores e assm constituem a espécie de simbolos mais utilizada pelo homem. Rev. pg Lernas, Vo. I — NO 1 — 1978 53 De outro lado, o sinal nada representa por si mesmo, mas tem a fungo de Indicar algum aspecto ou chamar a atencao para um determinado simbolo ou objeto. Os semafcros e outros sinais de tr&nsito podem servir como bons exemplos. Com efei- to, eles apenas apontam uma direcdo a seguir, sem estarem a rigor traduzindo algum conceito. Essa distingéo nos permite compreender satisfatorlamen- te 0 universo vocabular da lingua portuguesa no que concetne aos termos que traduzem uma visdo estética em contraposi- ¢80 Aqueles que, por natureza, se referem a objetos numa perspectiva dinamica. Nao cabe aqui discutir esses aspectos que envolveriam todo 0 quadro classificatorio. Basta-nos es- tabelecer as fronteiras entre nome e pronome, e conheceremos melhor @ natureza de nosso sistema de artigos. Essas fronteiras séo de facil identificacéo. Os nomes (substantivos ou adjetivos) fixam o campo representativo da linguagem, constituem simbolos, O sintagma “casa amarela’ 6 formado de dois termos, ambos de natureza representativa. © primeiro expressa a idéia de um objeto (casa); 0 segundo simboliza uma cor atribuida a ele. Dentro do sintagma, entre- tanto, “casa” se apresenta como termo principal ou determi- nado (substantivo), ao passo gue “amarela” funciona como determinante (adjetivo). Trata-se de uma aplicagdo sintatica e, dessa forma, somente 0 contexte diré se um nome 6 adje- tivo ou substantivo. Os pronomes, a0 contrério, fixam o campo mostrativo da linguagem e valem sempre como sinais. Se ao sintagma “casa amarela”, antepusermos 0 vocabulo “esta”, perceberemos de Imediato que “esta” nada simboliza, servindo para situar o objeto nas coordenadas de espaco e tempo em relac¢éo ao falante. No sintagma, “esta” € termo dependente de “casa”, © que Ihe confere o carater de adjetivo. Se figurarmos um eixo paradigmatico, qualquer termo que seja usado na posi- 40 de “amarela” ou de “esta” sera adjetivo. 54 Rev. be Lereas, Vor. I — No 1 — 1978 alguma de botéo minha * de alvenaria a : nova esta casa amarela qualquer : que ruiu uma ps de José velha Nem sempre os déiticos sao termos determinantes. Gcn- forme as relagées sintagméticas, eles podem ser adjetivos cu substantivos. Comparemos a estrutura abaix: Isto (é) meu. © possessivo “meu” determinante (adjetivo) de “isto” (substantivo), mas ambos os termos séo pronomes, em face do cardter indicativo que possuem. O primeiro, contudo, traz a possibilidade de expandir-se num sintagma implicito: Isto =este lis (ou qualquer outro nome masculino). Contudo, alguns pronomes se distinguem dos nomes por serem formas dependentes, para usarmos a terminologia de J. Mattoso Camara Jr., isto ¢, vocdbulos-morfema que nao podem ser empregados isoledamente. Constituem simples cli- ticos, termos sem autonomia fonética, e nesse grupo estariam, por exemplo, os pessoais do caso obliquo ¢ os relativos. Ora, © artigo se encontra nessa mesma situagdo, como vocébulo clitico. Mas néo é isso que faz do artigo um pronome. Ele o & pela sua forca demonstrativa, pela funcao déitica essencial & caracterizacéo do pronome, Fala-se até em deixis-zero, quan- do se pretende considerar um vocdbulo como pronome, o que acontece, por exemplo, com os indefinidos alguém, algum, Rev. pe Lernas, Vor. I — No 1 — 1978 55 nenhum etc. E por que excluir o artigo, se ele ainda no por- tugués atual é substituivel, em muitos contextos, pelos de- monstrativos de fungao adjetiva? Toda razéo cabe ao comentario de J. Mattoso Camara Ji Ele (0 artigo) encerra uma indicacao espacial evidentemente, pois assinala que se trata de um “ser” definidamente situado. Assim, nas Iinguas in- do-européias que 0 possuem, ha um valor demons- trativo, sincronicamente inegavel, que coincide com a origem demonstrativa do vocébulo.(?) No caso do artigo definido, a funcao déitica é sentida por qualquer usuério da lingua e se toma bem precisa no ato da fala, Como exemplifica Mattoso Camara Jr., “o livro em por- tugués 6 — muito mais do que um livro que se acha em lugar conhecido dos interlocutores — um livro que os interlocutores sabem qual 6”.(®) © mesmo lingiiista, em sua obra Histéria ¢ estrutura da lingua portuguesa, comenta: Ao lado da indicagéo de posigao, entretanto, também possui 0 portugués, como todas as linguas romanicas, um adjetivo pronominal que introduz para o nome substantivo, com que concorda, a ca- tegoria do “definido”. E uma forma pronominal no- va, chamada tradicionalmente “artigo”.(*) E ainda, no mesmo livro, define com preciséo: Categoricamente, ele continua a ser uma par- ticula pronominal demonstrativa. Assinala o caréter definido de uma posicéo num campo mostrativo ideal, de que participam o falante e o ouvinte.(12) (9) Cf, Princfpios de linglitstica geral, p. 156. (10) Ef. idem, ibidem, p. 157. (11) CE. p. 95. (2) Ch p. 104. 56 Rev, pe Lernas, Vou. I — N° 1 — 1978 Outro argumento que invocamos é 0 fato de o artigo de- ido ser cons'derado pronome demonstrativo, pelas nossas gramaticas, quando antecede a preposigéo de ou ao relativo que. & verdadeiramente uma falta de critério dar duas classes a mesma forma, simplesmente com base na presenga ou omis- séo de um substantivo. Verifiquemos os exemplos abaixo, to- mados de Augusto Mage:(:3) a) A constancia é a virtude do homem e a paciéncia a do cristéo. (Almeida Garrett) b) A fronte do sacerdote se verga para o ca- lice consagrado; @ do lavrador, para a terra; a que espalha 0 grao da verdade, para o sulco soaberto nas consciéncias novas. (Rui Barbosa) No primeiro exemplo, 0 a grifado deixou de ser artigo pelo Unico fato de o substantivo virtude nao estar repetido. As graméticas 0 consideram pronome. No outro exemplo ocorre 0 mesmo: se a palavra fronte fosse reiterada depois do a, este seria artigo; como esté omissa, ¢ um demonstrativo. Assim, temos, de acordo com as descricées gramaticais: Artigo Pronome A virtude do cristéo A do cristéo A fronte do lavrador A do lavrador A fronte que espalha o gro A que espalha o gro Muito mais légico seria classificar como pronome 0 artigo em qualquer situagao. Além de simplificar o estudo da lingua, esta medida eliminaria incoeréncias como as examinadas aci- ma, possibilitando uma viséo mais cientifica dos fatos lin- gilisticos. Comentarios analogos valem para o artigo indefinido. Todo estudante do portugués sente dificuldade em reconhecer, de (13) CE op. cit, p. 47. Rev, pe Lemmas, Vou. I — N° 1 — 1978 87 acordo com os ditames da gramética, quando a forma um & pronome, numeral ou artigo. © que ocorre, realmente, é que a distingdo entre pronome e artigo nao existe, como podemos comprovar por alguns argumentos. Inicialmente, basta refletirmos que o plural uns, umas 6 sempre um pronome.('4) Se tomarmos uma frase em que o um 6 classificado como artigo, tao logo o pluralizemos, ele passa a ser pronome. Ora, se a forma do plural ¢ pronome em qualquer contexto, por que no singular nao haverd de ser? Afirmamos ainda que, sob uma perspectiva semantica, 0 morfema um(*) equivale a um indefinido, sendo substituivel por algum, qualquer etc. A frase: “Um homem sempre 6 capaz de amar’ pode ter a forma um mudada para qualquer, sem muito prejuizo de distorséo seméntica. No plural, caberla per feitamente a substituigdo por alguns. Essas raz6es, aliadas @ certeza de uma descricdo mais coerente e simplificada, nos levam a admitir que 0 artigo de- finido € uma forma paralela e quase sinénima do pronome algum.(*) 0.4. Conclusao A tarefa de classificar os vocdbulos de uma lingua exige, antes de tudo, a preocupagdo de respeitar a coeréncia estru- tural que o préprio sistema lingUistico apresenta. Dessa ma- neira, toda classificagéo deve obedecer a critérios estabele- cidos @ testados dentro do sistema. De nada adianta forgar dedugdes com base nos mecanismos formais, se estes néo possibilitam oposigées ou se os vocabulos da lingua se orga- nizam mediante outros critérios. 0 caso da lingua portuguesa. Algumas palavras opdem- se morficamente (tal o caso dos nomes em relacdo aos ver (14) Cf. Joss Reboucas MACAMBIRA, A estrutura morfo-sintdtica do por- mgués, p. 428. 58 Rev, be Lereas, VoL. I — N° 1 — 1978 2 bos), enquanto outras apresentam idénticas caracteristicas formais que exigem a adocao de outros 4ngulos interpretativos. Se 0 gramatico no tiver cautela, optando por uma meto- dologia que Ihe facilite a descricdo lingiiistica, é bem prova- vel que seus estudos resultem ineficazes. & o que observamos no tocante a classificacéo dos vocdbulos proposta pela No- menclatura Gramatical Brasileira, onde até a interjeic¢ao, que constitui uma frase, entra como classe de palavra, no mesmo nivel dos instrumentos gramaticais. A NGB, se teve 0 mérito de reduzir 0 amonteado de ter- minologias, simplificando-as, pecou por falta de coeréncia metodolégica. Estabelecou dez classes para os vocdbu'os por- tugueses, deixando muitos inclassificdveis e reservando uma classe especial para apenas dois morfemas: os artigos o(*) e um.) Um exame detido dos aspectos seménticos expressos pelos pronomes em contraste com os dos nomes nos leva a deduzir que os artigos em portugués tém natureza pronominal e, assim, © definido deve ser classificado entre os demonstrativos e o indefinido nada mais 6 que um pronome do mesmo grupo de algum, qualquer ou nenhum. Esta posicao, além de coerente, traz a vantagem da sim- plificagao descritiva e de uma viséo pancrénica, em que a dia- cronia, tantas vezes negligenciada, ¢ invocada para esclarecer certas dificuldades interpretativas da sincronia do sistema. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS (1) BODMER, Frederick — 0 homem ¢ as lnguas. Porto Alegre, Ed. Globo, 1950. (2) BUENO, Francisco da Silveira — Grande diciondrio etimoldgica-pro- sddico da lingua portuguesa. Si Paulo, Saraiva, 1963, v. 1 e ¥. 6. G) CAMARA JR., J. Mattoso — Prineipios de linglitstica geral. 4. ed., Rio de Janeiro, Liv. Académica, 1970. (4) ——— — Esstrutura da lingua portuguesa. Petropolis, Vozes, 1970. 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