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TEXTO E AUTORIA Suzy Lagazzi-Rodrigues Introdugio Nos estudos da linguagem, o texto ocupa um lugar especial. Extremamente fami- liar aos alunos desde o infcio do percurso escolar, é bastante comum ver o texto naturalizado, ao longo dos anos do ensino da lingua portuguesa, como espaco de discussio das idéias dos autores e como espaco de selegao de questdes gramaticais. E pot que parece to familiar, fica dificil defini-lo. O que é um texto? Essa € uma pergunta que requer varias retomadas em diferentes perspectivas. Requer que entremos pelos meandros de diferentes teorias. Lemos sobre o texto na Antigiidade Classica, como objeto da filologia, nas relag6es com a retorica e a argu- mentacao, com a anilise de discurso, a semidtica e a semiologia, a lingiiistica do texto, a semantica da enunciagio. Diferentes estudos do texto, diferentes objetos configurados. Proponho aqui retomar um outro recorte para o estudo do texto: sua relacdo com a autoria. Pouco tematizada durante o percurso escolar, raramente praticada no espago da escola, a autoria fica estabelecida e repetida como “qualidade ou con- dicdo de autor” e o autor como “escritor de obra artistica, literdria ou cientifica”', Uma possibilidade sonhada por alguns alunos: “um dia serei escritor!”. Uma vonta- de muitas vezes guardada em poemas e contos que esperam o grande momento de virem a publico e se tornarem um livro! E na grande maioria dos casos, uma condi- 40 nunca aventada por alunos! “Eu, autor?” Entre estes e a autoria, uma enorme distancia! Essa distancia, quando percorrida, faz com que a “qualidade ou condi¢ao de autor” saia do plano mitico no qual é mantida e se torne um conceito produtivo em nossa relaco de sujeito de linguagem com a escrita e com outras linguagens nao-verbais, como o desenho, a pintura, 0 canto, a danga, 0 teatro, as produ- Ses imagéticas e filmicas, o grafite, a tatuagem, enfim, as diferentes formula- $6es significantes. Essa concepsao expandida de autoria, no que diz respeito ao sujeito-autor e as diferentes formas de linguagem, é muito interessante para discutirmos 0 texto. . Nos espacos escolarizados, a autoria é uma questdo que atinge alunos ¢ também Professores, Fora da escola nos atinge principalmente na sua falta. Quando afirma- Mos que a autoria nado deve ser ensinada, e sim praticada, volta sempre a pergunta Pelos modos de se estabelecer essa prdtica. Uma pergunta atual no espago equivoco © contraditério das linguagens. . Para discutirmos a relacao entre texto e autoria, “zo alguns conceitos. neste primeiro momento, intro- Definigéies retiradas do Novo Diciondrio da Lingua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 83 1. O equivoco em questio Michel Pecheux, em O Discurso: Estrutura ou Acontecimento’, fala da opacidade ¢ da equivocidade da linguagem, Numa belissima andlise do enunciado Ganhamos (On a gagne”), que percorte a Franga em 10 de maio de 1981, quando Frangoig Mitterand ¢ cleito presidente pela alianga socialista-comunista, Pécheux confront, © que denomina “proposigdes de aparéncia logicamente estavel, suscetiveis de res. posta univoca (é sim ou nao, é x ou y) e formulagses irremediavelmente equivocay” (1990:28). Mostra que o enunciado Ganhamos é uma formulacao irremediavelmen- te equivoca quando situada no cenario politico. Quem ganhou? Ganhou o qué? Quem somos nés? Quem é 0 conjunto de pessoas que compée a esquerda? E um conjunto? Enfim, muitas perguntas cujas respostas nos mostram a polissemia das palavras, Trabalhando com a incompletude constitutiva da linguagem, a impossibi. lidade de tudo ser dito, Pécheux aponta a necessidade de perguntarmos pelos senti- dos, de colocarmos as interpretagdes em suspenso, mesmo para o que pode, em principio, parecer Gbvio. A atualidade dessa andlise de Pécheux no cenario politico brasileiro do momento (2003/2006) é quase desconcertante! As mesmas perguntas dirigidas a nds, brasileiros, sao de uma pertinéncia atroz! © plebiscito sobre a comercializacdo de armas de fogo, realizado no Brasil em 23 de outubro de 2005, é um outro bom exemplo da necessidade de sempre questionar- mos os acontecimentos que nos rodeiam, buscarmos a equivocidade em suas formu- laces. A propria forma da pergunta lancada e as possibilidades de resposta sio indicacdes marcantes dos silenciamentos feitos: “Vocé é a favor da proibi¢ao da comer- cializagao de armas de fogo?” Sim ou nao. A conjungao disjuntiva localizou o pro- blema no universo légico estével, sem meio termos ou relativizagoes, sem que fossem consideradas tantas diferencas no imenso territério brasileiro. As razées e condi- ges sociais determinantes da comercializagao de armas de fogo nao tiveram lugar ha mobilizagio governamental, cujo foco da discussao ficou centrado no antagonis- mo das posig6es a favor e contra. Algumas vozes isoladas lembraram que a comer- cializagao é uma consequéncia, e que perguntar sobre a conseqiténcia é, no minimo, pular etapas. Portanto, a equivocidade no plebiscito se oferece para a discussao, para abrir espago para as muitas quest6es socialmente relevantes, para colocar em movimento os varios sentidos silenciados. A equivocidade, tal como discutida por Pécheux, nao traz o sentido de “erro”, comumente interpretado no senso comum. O equivoco € constitutivo da lingua- gem. Eni Orlandi (2001) 0 define como “a falha da lingua na histéria’, o que quet dizer que as palavras, em funcionamento, sdo sempre passiveis de sentidos contradi- torios, de diferentes interpretacdes, porque os fatos se formulam como razées dis- tintas para as pessoas. Quando dizemos que algo é um equivoco, no sentido de que € um erro, estamos desconsiderando outras razdes diferentes das nossas. Discutir 4 equivocidade é abrir espaco para tornar visivel a contradicao de diferentes interpt® tages, é se expor As diferentes formas significantes e, no caso especifico da linguage™ verbal, se expor as palavras. es 2. Aconferéncia que deu origem ao livro foi proferida em 1983, na Universidade de Illinois, em Urbs Champaign. A Publicagio americana é de 1988, pela Illinois University Press, ea traducéo rasiera Eni Orlandi, publicada pela Pontes Editores. 84 Introducdo as C iencias da L inguagem: Discurso » Texruaupape Carlos Drummond de Andrade, no poema O Lutador, diz: Lutar com palavras/ é a luta mais va./ Entanto lutamos/ mal rompe a manha./ Sao muitas, eu pouco./ Algumas, tao fortes/ como o javali./ Nao me julgo louco./ Se o fosse, teria/ poder de encanté-las./ Mas licido e frio,/ apareco e tento/ apanhar algumas/ para meu sustento/ num dia de vida./ Deixam-se enlacar,/ tontas a caricia/ e stibito fogem/ e nao ha ameaa/ e nem ha sevicia/ que as traga de novo/ ao centro da praca. Insisto, solerte./ Busco persuadi-las./ Ser-lhe-ei escravo/ de rara humildade./ Guardarei sigilo/ de nosso comércio./ Na voz, nenhum travo/ de zanga ou desgosto./ Sem me ouvir deslizam,/ perpassam levissimas/ e viram-me o rosto. Lutar com palavras/ parece sem fruto./ Nao tém carne e sangue.../ Entretan- to, luto. Palavra, palavra/ (digo exasperado),/ se me desafias,/ aceito 0 combate./ Quisera possuir-te/ neste descampado,/ sem roteiro de unha/ ou marca de dente/ nessa pele clara./ Preferes 0 amor de uma posse impura/ e que venha 0 gozo/ da maior tortura. Luto corpo a corpo,/ luto todo o tempo,/ sem maior proveito/ que o da caga ao vento./ Nao encontro vestes,/ nao seguro formas,/ é fluido inimigo / que me dobra os miisculos/ e ri-se das normas/ da boa peleja. Iludo-me As vezes,/ pressinto que a entrega/ se consumard./ JA vejo palavras/ em coro submisso,/ esta me ofertando/ seu velho calor,/ outra sua gloria/ feita de mistério,/ outra seu desdém,/ outra seu citime,/ e um sapiente amor/ me ensina a fruir/ de cada palavra/ a esséncia captada,/ o sutil queixume./ Mas ail €o instante/ de entreabrir os olhos:/ entre beijo e boca,/ tudo se evapora. O ciclo do dia/ ora se conclui/e 0 inttil duelo/ jamais se resolve./ O teu rosto belo,/ 6 palavra, esplende/ na curva da noite/ que toda me envolve./ Tamanha paixao/ nenhum pectilio./ Cerradas as portas,/ a luta prossegue/ nas ruas do sono. Volto a autoria para afirmar que ela est ligada ao trabalho com a equivocidade da linguagem. Essa afirmagao permite conceber 0 texto como espaco de autoria, 0 que nem sempre foi possivel. 2. O texto e o significante verbal A metade do século passado foi um momento muito produtivo para os estudos do texto. Para entender a mudanga que naquele momento alguns estudiosos pro- poem para a rela¢ao entre autor e texto, retomo a diferenca entre uma abordagem conteudistica do texto e uma abordagem discursiva. O enfoque no contetido faz do texto um objeto no qual a linguagem é apenas um meio de expresséo de pensamentos e idéias. A tao famosa pergunta “O que o autor quis dizer?” situa bem a abordagem conteudistica, que nos anos cingiienta, e princi- palmente sessenta e setenta do século XX, gera muita insatisfagao no que diz respeito a maneira pela qual se concebe o autor, a escrita e 0 texto. Como resposta a essa insatisfago, o texto comega a ser pensado, por alguns estudiosos, como um espago de possibilidades relacionais, a escrita como um processo envolvendo a sociedade, e 0 autor deixa de ser considerado como uma figura constituida por inspira¢ao. 85 Introducao as Ciencias da | inguagemy Discurso & TextuaLioapE ‘Ao invés de inspiragao, trabalho com o significante verbal! Abro parénteses para trazer 0 conceito de significante, estabelecido na lingtiistica moderna em uniao com 0 conceito de significado por Ferdinand de Saussure — 0 “fandador” da lingiiistica moderna -, no célebre livro Curso de Lingiiéstica Geral. Pu- blicado em 1916, apés a morte de Saussure (1913), esse livro é resultado de um traba ho de dois de seus alunos, Charles Bally e Albert Sechehaye.? No Curso de Lingiiistica Geral, a definigao de signo nos coloca em contato com o conceito ‘significante’ 0 signo lingiiistico une no uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem actistica. Esta nao é 0 som material, coisa puramente fisica, mas a im- pressdo (empreinte) psiquica desse som, a representagao que dele nos da o teste- munho dos nossos sentidos; [...]. O carater psiquico de nossas imagens actisticas aparece claramente quando observamos nossa prépria linguagem. Sem mover- mos os labios nem a lingua, podemos falar conosco ou recitar mentalmente um poema. [...] O signo é, pois, uma entidade psiquica de duas faces, que pode ser representada pela figura: Conceito / Imagem acistica. Esses dois elementos estio intimamente unidos e um reclama o outro. Quer bus- quemos o sentido da palavra latina arbor, ou a palavra com que o latim designa o conceito “drvore’; estd claro que somente as vinculagées consagradas pela lingua nos parecem conformes a realidade, e abandonamos toda e qualquer outra que se possa imaginar. [...] Propomo-nos a‘conservar 0 termo signo para designar 0 total, e a substituir conceito e imagem acistica respectivamente por significado e significante; estes dois termos tém a vantagem de assinalar a oposigao que os separa, quer entre si, quer do total de que fazem parte (p. 80-81). ‘A compreensao que se legitima do Curso de Lingitistica Geral, num primeiro momento de estabelecimento da lingiifstica moderna, vai afirmar que 0 conceito ‘significante’ vem colado ao conceito ‘significado, como as “duas faces” de uma folha de papel ou de uma moeda. Essa compreensio da “intima uniao” entre significado e significante como uma relagao biunivoca, tem como conseqiiéncia o enfoque, cada vez mais forte, na indissociabilidade entre significado e significante, ou seja, no signo como conjunto inseparavel. Isso tem como conseqiiéncia, até a metade do século XX, 0 desenvolvimento dos estudos lingiiisticos formais, que se preocupam em esta- belecer os sistemas dos signos fonoldgicos, morfoldgicos e sintaticos das linguas, sem chegar a pensar na possibilidade de que a relagao entre significado e significante seja uma relagdo sempre em reconfiguragéo, uma relag4o que desliza! ; Contrariando essa leitura formalista do Curso de Lingilistica Geral, Francoise a det ¢ Michel Pécheux, no livro A Lingua Inatingivelt, enfocam a grande complexidade da reflexaio de Saussure sobre a linguagem, principalmente quando se compat ® Curso e trabalho sobre anagramas. Este ultimo trabalho, também a ine “e por Saussure’, traz o estudo das repeticdes dos sons na poesia latina, na —_dTJA..._- mo 3. Bally e Sechehaye organizaram anotagbes de aula, tanto suas como de outa alunos assim come reconsituram expicagdes sobre diferentes pontos tratados nos trés : i e 1911. nica & de 2 1, Urtersidade de oe eal com otal La lange introurble. A ado brs 62 5, Publicados na Franca por Jean Starobinski, em 1964. 86 Introducdo as Ciencias da | inguagem: Discurso TexruaupaDe anagramas de nomes préprios: palavras ou versos formados pela transposigio do: Sins (ou das letras correspondentes) de um nome préprio. Em O que élineuisicg, tay Srlandi apresenta alguns exemplos interessantes de anagramas: na palaea Aes odemos ler Tracema, no verso latino Mors perfecit tua ut essent a seqiténcia das voy sais Fepete a seqiencia das vognis do nome Comelius, personagem do poema em quenn, £ importante considerar que os anagramas se configuram pela repeticdo das formas sonoras, dando énfase & relacdo significante na lingua, 4 poesie de'lingc Esse trabalho chama a atengdo para uma concepgao de lingua muito diferente da ela considerada como um sistema de signos, consagrada pelo Curso, Por cx veeo, Gadet e Pécheux afirmam: . diante das teorias que isolam o poético do conjunto da linguagem, como lugar de efeitos especiais, o trabalho de Saussure (tal como ele é, por exemplo, comen- tado por Starobinski) faz do poético um deslizamento inerente a toda lingua- gem: 0 que Saussure estabeleceu nao é uma propriedade do verso saturnino, nem mesmo da poesia, mas uma propriedade da prépria lingua. O poeta seria apenas aquele que consegue levar essa propriedade da linguagem a seus tiltimos limites [...] (p.58) Gadet e Pécheux chamam atengao, ainda, para discussées do Curso que enfocam a relacdo significante na lingua, o que mostra a necessidade de nos perguntarmos se podemos separar 0 Saussure do Curso do Saussure dos anagramas. Vale a pena, ainda, retomar as relagGes associativas apresentadas por Saussure no Curso. Ele reconhece quatro eixos de associagses posstveis na lingua: - ensinamento/ ensinar: associacao com base no radical; - ensinamento/ aprendizagem: associacao entre significados; - ensinamento/ desfiguramento: associagdo com base no afixo; - ensinamento/ elemento: associacio pelo significante. Gadet e Pécheux ressaltam que 0 quarto eixo dé abertura para que os desloca mentos associativos abriguem o imprevisto na lingua. Ora, quantas vezes nao brin- camos de inventar novas palavras com base na rima? O imprevisto mostra que a lingua nos escapa. Isso é fundamental para que repen- semos a relacao entre sujeito e lingua. Somos, necessariamente, sujeitos de lingus gem, pegos na poesia da lingua! Nao ha pensamentos e idéias anteriores a lingua- gem, anteriores a relagdo entre significantes e significados. Também nao hé lingua independente dos sujeitos que a colocam em funcionamento. Por isso dizemos que lingua e sujeito se constituem mutuamente. i. Enfim, a possibilidade de movimento entre o significante e o significado, vai Permitir pensar a polissemia® como conseqiiéncia necessdria da incompletude és lingua, vai permitir afirmar que a unio entre significado e significante se faz n« funcionamento da linguagem. - traba As discussdes feitas sobre texto na metade do século XX, que propoem © amo a com o significante verbal, irdo tomar 0 conceito de significante nao mais ¢ a iE as i ao constante entre esses eel mg ee smoejd apontar para o diferente, Processos: no que diz respeito ao sentido na linguagem, pensar o mesmo ¢} € também o diferente traz. a meméria do noy6. = lho contraparte do significado. trabalhos de Jacques Lacan, | téria do conceito de signo (Ducrot Instala-se a primazia do significante, consolidada pelos na area da Psicandlise. “Uma viragem que marca a his- e Todorov, 1972: 413), que antes sempre se pautara pelo dominio do significado. Justamente em decorréncia a primazia do significante, 0 significado pode ser descolado do pensamento e 0 texto pode ser pensado como um espago de possibilidades relacionais, e nado mais como um con- junto de idéias do autor. ; ; Essa outra maneira de considerar 0 texto € 0 processo da escrita recusa a a e natural entre forma e contetido, recusa a oposi¢ao entre denota- 40 e conotacao. Nessa perspectiva, as palavras nao estao coladas as idéias ou as coisas, e tampouco sao indiferentes entre si. Dizer de diferentes maneiras produz diferentes sentidos, estabelece diferentes referéncias imaginarias. E isso importa muito! Essa abordagem da lingua nao vai privilegiar a informagao ou o con- tetido, e nem vai considerar que 0 que se quer dizer ja esta estabelecido antes de ser formulado. A forma do dizer, o significante, é a base sobre a qual os sentidos se produzem, em diferentes condi¢ées. E por isso a inspiragao deve ser entendida como um processo relacional entre significantes, e entre significantes e significa- dos, na histéria. A autoria se produz, portanto, no trabalho com o significante, delimitando textos. Um trabalho em que as condi¢Ges de producao sao determi- nantes. relagdo direti 3. A fungao autor Trarei para a cena, agora, o movimento intelectual francés da década de sessenta do século XX, conhecido como movimento estruturalista. E em meio a esse movi- mento que comega a ter lugar a abordagem materialista do texto, em oposi¢ao 4 conteudistica. Nessa abordagem, alguns estudiosos se propdem a compreender @ materialidade da lingua. Abre-se, entdo, espacgo para que o discurso se configure como objeto. Para avancar na discussdo sobre texto e autoria retomo dois nomes ligados 20 movimento estruturalista: Roland Barthes e Michel Foucault. Em meio ao vastissimo percurso de Barthes, recorto de seu texto Aula’, proferido em 07 de janeiro de 1977, duas afirmagées particularmente marcantes do enfoque no significante, fundante do movimento estruturalista. Entendo por literatura nao um corpo ou uma seqiiéncia de obras, nem mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma Pratica: a pratica de escrever. Nela viso, portanto, essencialmente, o texto, isto 60 tecido dos significantes que constitui a obra, porque o texto € o proprio aflorar da lingua, e porque é no interior da lingua que a lingua deve ser combatida, desviada: nao pela mensagem de que ela é 0 instrumento, mas pelo jogo das palavras de qué ela é 0 teatro. (p. 16-17). vista come ad i volt 7. Nas palavras de Leyla Perrone-Moisés, tradutora de Aula, “A Aula Inaugural pode set prisma ou um caleidoscépio. Toda a obra anterior de Barthes nela esté retratada, tudo a deformado e reformado do ponto de vista atual, a partir do qual ele olha esse passado de esritur® ensino”. Esse texto foi a Aula Inaugural da cadeira de Semiologia Literaria do Colégio de Frang@- 88 IMTOGUC AG als 1eNClas da | INGUAGEM: Discurso TEXTVALIDADE [..] as palavras nao sto mais concebidas ilusoriamente como simples instrumen- tos, sao langadas como projecées, explosdes, vibragdes, maquinarias, sabores: a escritura faz do saber uma festa (p. 21). Barthes fala na “pritica de escrever’, pratica considerada como trabalho com 0 “tecido dos significantes”. A lingua é 0 espaco do “jogo das palavras”, e estas sao “projecdes, explosdes, vibragdes” que por sua densidade material implodem a uni- dade da mensagem e da informagao. E importante atentar para a negacio de Bar- thes da lingua e das palavras como instrumentos de comunicagio. Ele recusa essa abordagem comunicacional conteudistica, em sua perspectiva de transmissao de idéias, sentimentos e pensamentos, na qual a lingua é veiculo, um suporte indiferen- te sobre 0 qual se apdia um contetido fechado para transitar entre falante e ouvinte. Barthes ressalta a abertura na relacdo com a lingua e esse é um ponto importante no panorama do movimento estruturalista, para o qual nao existe um sistema fechado, mas sim o dinamismo intenso de uma sistemati- zagiio em aberto, que, como nos ensina o estudo do processo cientifico, a cada instante transforma uma dada resposta no descobrir de uma nova questéio (Pra- do Coelho, 1967). Além de buscar as relagdes abertas, o movimento estruturalista também defende o descentramento do sujeito, principio que sustenta em grande parte as discussdes de Michel Foucault: a recusa do humanismo, do idealismo, a critica radical ao ho- mem-sujeito de sua histéria, atuante, consciente de suas ages. O principal papel do fildsofo, segundo Foucault, consiste, portanto, em derrubar 0 obstaculo epistemoldgico formado pelos privilégios concedidos ao cogito, ao su- jeito como consciéncia e substancia, Foucault teoriza plenamente a constituigao de uma verdadeira base filos6fica onde se interligam as diversas semiéticas, tendo todas o texto por ponto cardeal e submetendo o homem a uma rede que o dissolve a contragosto (Dosse, 1993 (1): 371). O enfoque de Foucault implica, portanto, romper radicalmente com toda pesquisa das origens ou de um sistema qualquer de causalidade |...) (Idem, 374). Para compreender a critica ao homem-sujeito de sua histéria, vale a pena ler Louis Althusser, principalmente seu artigo de 1° de maio de 1973, intitulado Obser- vagao sobre uma categoria: “PROCESSO SEM SUJEITO NEM FIM (S)”. Nesse artigo, Althusser ressalta que muitos estudiosos idealistas freqiientemente defendem sua Posicao retomando 0 inicio de uma pequena frase do 18 Brumdrio de Karl Marx: “Os homens fazem sua propria hist6ria...”. No entanto, nos diz Althusser, essa ndo é a citacdo completa: te homens fazem sua propria hist6ria, mas nao a fazem a partir de elementos ivremente escolhidos, em circunstancias escolhidas por eles, mas em circunstan- eng eles encontram imediatamente diante de si, dadas e herdadas do passado P70), 89 Em outras palavras, os homens fazem a hist6ria que é possivel ser feita. Foucault, partilhando essa perspectiva nao idealista, vai discutir ° descentra- mento do sujeito no que diz respeito 4 autoria. Uma de suas publicagdes interessa- nos particularmente: O que é um autor? Nessa comunicagao, apresentada em 22 de fevereiro de 1969 & Société Francaise de Philosophie, Foucault analisa a maneira como se exerce a fungao autor no contexto da cultura européia depois do século XVII (p. 81). Foucault se propde a levar as conseqiiéncias a afirmagao, defendida por muitos criticos literdrios e filésofos do século XX, da “morte do autor”. Essa afirmacao faz sentido quando a situamos na discussao sobre o descentramento do sujeito. Esses ctiticos ¢ filésofos vao afirmar que a escrita do século XX passa a exigit, nos textos, 0 apagamento das caracteristicas individuais daqueles que escrevem. Foucault assim formula: [uu] a escrita é um jogo ordenado de signos que se deve menos ao seu contetido significative do que a prépria natureza do significante; mas também esta regu- laridade da escrita esté sempre a ser experimentada nos seus limites, estando ao mesmo tempo sempre em vias de ser transgredida e invertida; a escrita desdo- bra-se como um jogo que vai infalivelmente para além das suas regras, desse modo as extravasando. Na escrita, nao se trata da manifestagao ou da exaltagao do gesto de escrever, nem da fixagao de um sujeito numa linguagem; é uma questao de abertura de um espaco onde o sujeito de escrita esta sempre a desapa- recer. (p. 35). [..] a marca do escritor nao é mais do que a singularidade da sua auséncia; é-Ihe necesséirio representar o papel do morto no jogo da escrita. (p. 36-37). Portanto, nessa perspectiva, que permite que se formule “que importa quem fala” — frase que Foucault retoma de Beckett (Idem, p.34) -, a escrita se distancia do tema da expressio interior de quem escreve. Nao sio mais as idéias do autor 0 cerne do texto. Sua “morte” abre espago, como lemos nos recortes transcritos, para 0 jog0 significante. Observemos que é a mesma posicao defendida por Barthes, que retomei anteriormente. Foucault ¢ Barthes reconhecem na rela¢ao entre as palavras, enten- didas como espagos significantes, a possibilidade de o texto ir tomando sua forma, configurar-se como unidade significativa. Os sentidos se produzem na relac4o com as formas significantes e a relacdo entre sujeito e escrita, entre escritor e texto pass# a significar numa delimitacdo miitua. Ou seja, o sentido nao esta definido antes como uma idéia pré-formada. Volto a insistir sobre esse ponto porque essa perspectiva é, ainda hoje, muito diferente da concepcio interpretativa reafirmada na maioria das salas de aula d€ Leitura e Produgao de Texto”, que dicotomiza significado e significante, na verdade pouco ou nada falando sobre o significante, e naturaliza a precedéncia do significe- do, ou contetido, exercitando os alunos a “dizerem, com suas proprias palavras ° que 0 autor disse no seu texto”, Vejam que af fica definida a impossibilidade de qu quer relacdo de autoria do aluno! 90 SETS Introducao as Ciencias da Linguagom Discurso ‘Textvaupsng Justamente para continuarmos a discussao sobre autoria é im dermos 0 deslocamento proposto por Foucault ao falar em ‘fun bem que Foucault nao afirma que o autor nao existe, morte” Trata-se, isso sim, como ele mesmo ressalta, fungao e “definir as condicées, os dominios em que O termo fungao retira da figura do autor qualquer carater intrinseco e a situ: relagéo com a exterioridade que a constréi, situa 0 autor na histéria. Para Foucault, “a funcdo autor é assim, caracteristica do modo de existéncia, de cireulacae ete funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade” (p.46) Ab tesa, tar as razdes pelas quais considera importante discutir a fungao autor, ele aponta > para uma anilise histérica dos discursos: portante compreen- 40 autor’ Entendamos a0 retomar a tematica da “sua de compreender o autor como uma essa funcdo se exerce” (p.81). [...] 0s modos de circulagao, de valorizagao, de atribuigéio, de apropriagao dos discursos variam com cada cultura e modificam-se no interior de cada uma; a maneira como se articulam sobre relagdes sociais decifra-se de forma mais direta, : parece-me, no jogo da fungao autor e nas suas modificagoes [...] (p. 68-69). Também no que diz respeito 4 morte do autor, Foucault acrescenta: [...] jd se pés em questo o cardter absoluto e 0 papel fundador do sujeito. Mas seria preciso talvez voltar a este suspens, nao tanto para restaurar o tema de um sujeito origindrio, mas para apreender os pontos de insergo, os modos de funcio- namento e as dependéncias do sujeito. [...] Em suma, trata-se de retirar ao sujeito (ou ao seu substituto) o papel de fundamento origindrio e de 0 analisar como uma fungao varidvel e complexa do discurso. (p. 69-70). E, para finalizar, Foucault afirma: Oautor — ou o que tentei descrever como a fungao autor — é com certeza apenas uma das especificagbes possiveis da fungao sujeito. Especificagiio possivel, ou necessdria? Olhando para as modificagoes histéricas ocorridas, nao parece indispensdvel, longe disso, que a fungao autor permanega constante na sua forma, na sua complexidade e mesmo na sua existéncia. Podemos imaginar uma cultura em que os discursos circulassem e fossem recebidos sem que a fungao autor jamais parece aes eS discursos, qualquer que fosse o seu estatuto, a sua forma, 0 seu valor, e qual ssh We fosse 0 tratamento que se Ihes desse, desenrolar-se-iam leolananineaiie om muirio, [...] pouco mais se ouviria do que o rumor de uma indiferenga: “Q ip ta quem fala’. (p. 70-71) 0 acima: “Podemos imaginar«° a cultura aventada por Foucau! It ” “desenrolar se-iam’, “ouvi- Se por um lado nos prope: ‘9 conseguimos ignorar a Prestemos atencao 4 segunda parte do trechi © tempo dos verbos marca a distancia entre essa c €a nossa cultura: “circulassem’, “fossem’, Rebate tia”. Estamos longe de dizer “Que importa quem fal a Se Mos a deixar de buscar as idéias do autor, por ound eal eeitor € "0 prif= cpio de agrupamento do discurso”, resume Discurso (1971). 91 a ‘Ao enumerar os tracos caracteristicos da fungao autor, Foucault aponta para » modo de apropriacao particular que essa fungao determina, 0 que Ihe traz implica des juridicas; aponta para o fato de nao se exercer uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos; para a série de operagoes especificas e comple que ligam um discurso a seu produtor; para a sua néo correspondéncia com un individuo real, jé que pode dar lugar a varios “eus”. Essas caracteristicas permitem a Foucault falar em “fundadores de discursividades’, autores que, segundo ele, produ ziram “a possibilidade e a regra de formagao de outros textos”. ; Na discussio apresentada por Foucault, a fungao autor tem um carater restritivo, Delimita nomes que se tornam referéncia na hist6ria ¢ na sociedade. Sao nomes que servem para caracterizar um certo modo de ser do discurso: para um discurso, ter um nome de autor, o fato de se poder dizer “isto foi escrito por -fulano” ou “tal individuo €0 autor” indica que esse discurso nao é um discurso quotidiano, indiferente, um discurso flutuante e passageiro, imediatamente consumivel, mas que se trata de um discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto (Idem, p. 45)- Observamos que esse funcionamento da autoria é pautado pela legitimacao. A fun- do autor avaliza ou segrega os dizeres ¢ af estd seu cardter institucional com decorrén- cias juridicas, principalmente a responsabilidade. Funcionamento extremamente efica7! Hi, no entanto, uma brecha na discussdo de Foucault, que permitiu a expansio da nogao de autoria. Trata-se de pensar o “principio de agrupamento do discurso” de maneira geral, sem segrega¢4o, ao mesmo tempo como um principio da textuali dade e um processo na textualidade. Vejamos! 4. A autoria na textualidade Eni Orlandi e Eduardo Guimaraes, no artigo Unidade e Dispersao: uma questio do texto ¢ do sujeito, apresentado em 1985%, propéem justamente considerar “a pri pria unidade do texto como efeito discursivo que deriva do principio de autoris (1988, p.61). Com isso, a autoria passa a ser um principio necessdrio a todo discut so, estando “na origem da textualidade”, Essa proposta é fundamental pela abran géncia que constréi. Pela Localizar o principio de autoria na origem da textualidade é vincular autor ¢ texto a uma relacao processual, 0 que é muito diferente de afirmar que 0 autor ¢ origem do texto ou o contrario. Em um artigo um pouco posterior, Nem escritor, nem sujeito: apenas autor, origi nalmente publicado em 1987°, Eni Orlandi enfatiza que a funcéo discursiva auto! a0 lado das fang5es enunciativas de locutor (aquela pela qual o sujeito se represett! como eu no discurso) e de enunciador (a perspectiva que esse eu constréi no discur 50)", é aquela que o eu assume enquanto produtor de linguagem. EEE 3. Semindrio do Departamento de Psicologia Social da PUC-SP. Este artigo foi publicado em Discs?« Leitura (Orlandi, 1988.) . 9, Posteriormente publicado também em Discurso e Leitura, 10, Discutidas por Oswald Ducrot em Le dire et le dit (1984). 92 Introducdo as C iéncias da | inguagem: Discurso # TexTUALDADE sendo a dimensiio discursiva do sujeito que esté mais determinada pela relagéio com a exterioridade (contexto s6cio-hist6rico), ela est mais submetida as regras das instituigdes. Nela sao mais visiveis os procedimentos disciplinares (1988, p. 77). F actescenta, retomando esse ponto em seu livro Andlise de discurso: principios procedimentos (1999), que a fungao autor é a mais afetada pelas exigéncias de coeréncia, nao contradicao, responsabilidade etc. [...] mais afetada pelo contato com o social e com as coergdes [...] Se 0 sujeito é opaco € 0 discurso nao é transparente, no entanto o texto deve ser coerente, naio- contraditério e seu autor deve ser vistvel, colocando-se na origem de seu dizer. (p. 75-76). ‘Assumir a autoria colocando-se na origem de seu dizer é fazer do dizer algo imaginariamente “seu’, com “comego, meio e fim’, que seja considerado original ¢ relevante, que tenha clareza e unidade. E, dessa maneira, responsabilizar-se pelo que foi dito e pelo que foi silenciado. Como ressalta Eni Orlandi, é tornar-se visivel e, com isso, ser identificavel e controlavel. Mas colocar-se na origem do seu dizer nao é um gesto de vontade. E uma pratica num processo. Como autor, 0 sujeito ao mesmo tempo em que reconhece uma exterioridade a qual ele deve se referir, ele também se remete a sua interioridade, construindo desse modo sua identidade como autor. Trabalhando a articulagdo interioridade/exterioridade, ele “aprende” a assumir o papel de autor e aquilo que ele implica. A esse processo, chamei (1988) assungao da autoria (Idem, p. 76). 0 “aprendizado” da autoria ¢ uma pratica no processo da textualidade, pratica de textualizagao. E acrescento: pratica em concomitancia. O autor se constitui 4 medida que o texto se configura. Quero ressaltar este ponto. Da mesma maneira que sujeito e linguagem se consti- tuem mutuamente, também autor e texto mantém entre si uma relacdo necessdria. O autor (se) produz (n)o texto, da ao texto seus limites e se reconhece no texto. O sentido autoria depende do efeito de unidade e coesio do texto. Ha nesse processo uma tensdo constitutiva: ao mesmo tempo em que um texto precisa ser delimitado por um a Para receber essa denominacio, permite ao autor constituir-se como produtor eee e assim ser nomeado efou nomear-se autor desse texto. A pertenga émiitua, vie de mie a propria unidade do texto € um efeito discursivo que deriva do princi- ‘oria’, o reconhecimento da autoria deriva do efeito de unidade do texto. ae conseqiiéncias sio muito importantes a partir desses deslocamentos Paraa aut Para a fungao autor. Uma delas é que a definigao dada pelo dicionar io capitals toria ~“a qualidade ou condigao de autor” —, a que me referi no inicio deste Sueitos pine a fazer sentido como uma possibilidade sempre presente para os Volta 3g linguagem: nos todos! Talvez poucos conquistem o “nome de autor’, para adores palavras de Foucault, ¢ certamente pouquissimos serdo considerados “fun pela nade discursividades’, mas a responsabilidade da autoria vale, muito mais, la de praticd-la no cotidiano da linguagem. 93 or e a discussao do processo de assungio qiientes € instigantes para a continuida- remamente sensivel ao tema; A proposta de expansio da fungao aut da autoria desencadearam trabalhos conse: de da reflexio discursiva sobre 0 texto, num espago ext a escola. 5. Texto e autoria na escola nem sujeito: apenas autor, Eni Orlandi faz a aproxi- J4 em seu artigo Nem escritor, Dn ean magio entre escola e autoria, chamando a atengao para a necessidacle cle que a escola iador para a de sujeito- ctie condicdes para a “passagem da funcao de sujeito-enunciacor autor”, Enfatizando a responsabilidade cobrada do autor quanto @ unidade do texto, 4 clareza, 4 ndo-contradigao, & corregio, Orlandi diz que embora um texto de um aluno possa trazer diferentes posigdes enunciativas sobre o tema tratado, é funda- mental que 0 efeito de unidade se produza. E esse efeito é dado pela voz do autor. Retomando Pécheux, quando afirma que o fato de se considerar como fonte do que diz é uma ilusao necessdria do falante, Orlandi acrescenta: O que estamos procurando mostrar é a construcao e o funcionamento dessa ilustio necessdria e desse principio, na escola [...] (p. 81). Em Discurso da escrita e ensino (1992), Solange Gallo apresenta uma belissima expe- rigncia sobre escrita e autoria, realizada em 1987 na Escola do Sitio, em Campinas, com uma turma de 5* série. Tendo como objetivo compreender a passagem do discurso da oralidade para o discurso da escrita, Gallo define o discurso da oralidade (D.O.) como aquele que produz um sentido ambiguo e inacabado, enquanto o discurso da escrita (DE.) produz o sentido de unidade, sendo legitimado institucionalmente. £ importante observar que podemos ter um texto falado e inscrito no discurso da escrita, assim como um texto escrito inscrito no discurso da oralidade. Gallo ressalta que a passagem do discurso da oralidade para o discurso da escrita s6 se faz pela “assuncéo da autoria”: O que estd envolvido é a questao do “acreditar-se” autor, “sentir” que produciu, realmente, um livro etc., 0 que, do ponto de vista da Andlise do Discurso, é perce- bido pela forma de representagao do sujeito que neste caso “coloca-se no lugar de autor’, * ‘representa-se como tal’; ocupa uma Posi¢ao’. Essa forma de constituigao do sujeito é que Pear eve 4 assungaio da autoria, realmente. Quando, no entanto, a autoria ie ‘elal e ue nao é “explicitada” para o sujeito, este nao se constitui como sujeito-autor (aquele que se representa como tal) ea autoria é nesse caso, apenas um dos efeitos de sentido produzido pelo D.E.. [...] Sendo assim, 0 que estd em jogo, aqui, sao as formagoes imagindrias que presidem toda a produgao. Portanto, como se trata de uma “passagem’; 0 que procuraremos mostrar é a “autoria” sendo construida enquanto efeito de sentido, para em segui- da mostrar 0 sujeito se constituindo enquanto sujeito-autor (p, 99-100). Num primeiro momento da experiencia, Gallo perguntou aos alunos sobre 08 personagens de histrias que Ihes tinham chamaclo a atengao, Depois de unsa visita PO iblioteca para o conhecimento de outros personagens, chegaram d conclusio de qque tudo era passivel de ser personagem. Desenharam, entao, 0 seu personagem & 94 a descreveram-no, Por escrito, detalhadamente, Em cfreulo a escrito, ¢ 5 €co1 do, passa A ‘escrigao para os colegas que, ao recebé-la, tent imagem também com um desenho, (Auf $08 desenthe rouzir a !) Na seqiiéncia, ai me me!) Na seqiténcia, todos descreveram a sala de aula e passaram des at colegas, descobrindo que, apesar de sera a um a emeeniSe® Part os legas, descob sma sala, cada uy neita diferente, Gallo ressalta que, com esse primeino exerci eB Ae ma © desenho escondi as criangas puderam perceber nao sé que a lingu _ s . lagem nac como também que a realidade nao é absoluta, (p68) oat 4 Teale, Na continuidade da experiéncia, as criangas escreveram a histéria do personagen e em seguida uma aventura vivida por ele. Galo chama a atengio pera sobre enredo que teve com as criangas, Ela chamou de enredo n dieso de ce mostrou que 0 escritor vai deixando de lado muitas diresdes possiveis que sus hace, poderia ter tomado, definindo apenas uma direcao. Depois de varios exercicios pedi aos alunos que tentassem descobrir para onde o sentido de seu texto apontava : ° que ele silenciava. A principio muito animadas para descobrir o enredo de suas historls., logo as criancas ficaram muito angustiadas: “Solange, minha histéria nao tem enredo! E agora? O que eu faco?”, “Vou ter que fazer outra hist6rial’, “Vou ter que comecar tudo de novo!’; “Por que vocé no falou isso antes, no comego do ano?”, Gallo foi retoman do, individualmente e no grande grupo, a histéria de cada um, mostrando que + seqiiencialidade dos fatos constituia uma progress4o: 0 enredo, a direcdo, As criancas deveriam perceber a direcao e criar, em fungao dela, o final da historia. Esse final deveria ter, portanto, uma relacao conseqiiente com o enredo. Gallo conta que foi dificil para os alunos darem esse passo final. As criangas mostraram seu texto para outras pessoas e para os colegas, pedindo opinides sobre a historia escrita e sugestdes sobre o final. Mas foi fundamental perceberem que eles proprios teriam que assumir o final, assumir a arbitrariedade do sentido construido, enquanto um gesto de autoria! A assungiio da autoria pelo sujeito, ou seja, a elaboragao da Fungdo-Autor consis- te, em ultima andlise, na assungéo da “construgéo” de um “sentido” e de um “fecho” organizadores de todo o texto. Esse “fecho’, apesar de ser um entre tantos outros possiveis produzird, para o texto, um efeito de sentido tinico, como se nao houvesse outro posstvel. Ou seja, esse “fecho” torna-se “fim” por um efeitoideols- gico produzido pela “instituigdo” onde o texto se inscreve: 0 efeito que faz parecer “unico” o que é “miiltiplo”, “transparente” 0 que é “ambiguo (p. 58). Os textos dos alunos foram datilografidos (ainda se usava_mquinas de esc ver!) e encadernados, receberam capa, dedicatéria e agradecimentos. Os f a também escreveram a histéria da confecgao da histéria e fizeram uma reflexac x . © processo vivido. Foram feitas c6pias de cada livro, vendidas a parentes ¢ isos hoite de autdgrafos, Até mesmo uma segunda edicao dos livros foi langada no inte do ano seguinte. Enfim, como afirma Gallo, 4s criangas colocaram-se no lugar de alguém que produziu um livro, represenitai do-se, para elas préprias, nessa “posicio” (p. 76). 95 Introducdo as Ciencias da Linguagem: Discurso & TEXTUALIDADE [...] Pude, assim, me deslocar da posigéo de detentora do saber, para uma posi¢ao ide coordenadora da produgao de um saber coletivo (p. 77). Junos mostravam desanimo ~ “Nas vamos fazer outra, va?” ~, no fing} ‘Mas tem que terminar?”, “Aca. E se no inicio do ano os comentarios dos al ainda nao acabou?”, “Ai, chega desta hist6ria, v8 mostraram toda a importancia da pratica realizac i do tant bar justamente agora que eu estou gostan ; Assim como ea experiencia de Solange Gallo, que me encanta pela delicadeza ¢ ao mesmo tempo pela forga da reflexto que instaura, também abelho de Claud Pfeiffer mostra que ser conseqiiente ao unit sensibilidade tints i ompreensig tedrica prodiiz discussoes capazes de afetar 0 marasmo institucional no qual a escola i imobiliza. A 7 em Ou autor & et? dissertagao de mestrado defendida em 1995, Claudia Pfeif. fer analisa 0 sujeito autor na escola. Contrapondo “o ideal de autor e © modo de sujeitos escolares se posicionarem como autores de seus textos’, Pfeiffer discute essa relacdo com base em anilises de diferentes produces dos alunos. Seu primeiro ponto de reflexao diz respeito as criticas costumeiras dos pro- fessores sobre a pequena capacidade interpretativa dos alunos. A partir de en- trevistas com professores e alunos, selegao de livros didaticos, gravagdes de aulas de historia, gramitica e literatura, ela estabeleceu uma separa¢ao inicial entre professores que se diziam tradicionais, adotavam 0 livro didatico e acreditavam na experiéncia e nao em metodologias (grupo 1), professores que nao utiliza. yam diretamente o livro diddtico mas 0 usavam como diretriz geral do con- tetido a ser dado em aula (grupo 2), e professores que recusavam 0 livro didé- tico e as diretrizes de uma gramatica normativa (grupo 3). Pfeiffer ressalta que foi somente nas aulas do grupo 3 que observou “de fato troca dialdgica entre os alunos”, o professor tendo uma postura mais relativizada quanto a determina- ¢40 do que podia ser interpretado, analisado e concluido. Nos grupos 2 ¢ 34 cena da sala de aula ficou tomada pelo freqiiente uso da metalinguagem (termos técnicos) € por um trabalho de leitura bastante imobilizado, que legitimava interpretagao unica dos textos, dada pelos literatos e pelos materiais didaticos adotados. Os professores nao se concediam, e nao concediam aos alunos, a pos- sibilidade de derivas. Nesses grupos, diz Pfeiffer, , discurso da ciéncia (discurso da verdade) va ou da critica literria. __ Pfeiffer ainda discute, no que diz respeito ao contexto escolar, lidade da linguagem (as palavras “coladas” as coisas) f pretagéo como duas praticas distintas, 02”. 0 discurso do professor eta 0 » seja na forma da gramatica normati- a concepgao de liter a concepgao da leitura ¢ da inte © apagamento da oralidade em detrimento dt icos quanto ao grau de dificuldade das natracdo e dissertagdo, a divisdo entre textos escrita, a hierarquia estruturante dos livros didati tarefas, a divisdo estatica entre descricao, criativos e nao-criativos. Pontos todos delicados, nédulos a serem desfeitos. Uma das grandes contribuicdes da reflexao de Claudia Pfeiffer é a maneira de aft tar sua discussao de uma relacao de culpa, que muitas vezes opde professores ¢ alunos Nao se trata de culpar os professores ou os prdprios alunos nl 4 -apacidad® interpretativa” destes, mas de reconhece! Pela “pequena cap: F as exigencias, os limit. igoes que? ; ‘i > ‘es, as restricdes 4! funcionamento escolar, marcado pelo livro didatico, impée a alunos e a professors 11, Essa é uma discussdo extremamente atual, haj & distribuigao do livro didatico ao ensino funda a vista os programas governamentais (2003-2006) mental e ao ensino médio, 96 ‘A escolarizagao cerceia a constituigio da meméria discursiva através de seu veto implicito produzido pelo uso do livro didético. Quando falamos no livro didatic, nao estanios NOs limitando 40 seu uso enipirico e concreto; estamos falando de uma natica mais géral que consiste na negacao da entrada do professor e do aluno na osigao de responsabilidade pelo gesto interpretativo. O livro didatico nao precisa estar presente concretamente, pois seu uso em épocas anteriores repercute efeitos, sempre, No processo discursivo escolar! Todo sujeito possui um corpo social discursivo que Ihe forma uma meméria dis- cursiva (no caso uma meméria de leitura), permitindo-lhe que, por exemplo, na pratica de leitura e escrita, formule os sentidos que est@o em funcionamento (os implicitos, os esteredtipos, os ndo-ditos etc.).” (p. 74). Portanto, o cerceamento dessa mem6ria discursiva pelo livro didatico é um pon- to nodal para a discussao da autoria na relacao com a escola, Falar no impedimento 4 interpretacdo imposto pelo livro didatico ao professor, e nao sé ao aluno, é funda- mental! Outro ponto muito interessante da reflexdo de Pfeiffer concerne as criticas nor- malmente feitas aos textos dos alunos quanto a sua falta de originalidade. Retoman- do a discussao sobre cliché feita por Maria Cristina Leandro Ferreira (1993), Pfeif- fer aponta para a necessidade que o aluno tem de buscar pontos de referencialidade seguros para poder responder as demandas do professor, dentro de padroes valori- zados, ¢ 0 cliché se apresenta, para o aluno, como um desses pontos de referenciali- dade. A pratica escolar, diz Pfeiffer, exigindo a repeticao formal", que privilegia a paréfrase, acaba por exigir 0 mesmo, ou seja, abre as portas para a entrada do cliché, mas a0 mesmo tempo 0 nega como produsio textual aceitavel, por nao ter originalidade. Assim, sempre se espera muito por parte do aluno, porém esse “muito” é espect- fico, pré-determinado [...] (p. 79). A originalidade fica significada como mito, sem que haja condiges para, inclu- sive, discuti-la, Alids, essa é uma boa pergunta: o que é ser original? O que é ser criativo?"* Retomando Eni Orlandi (1996), reafirmamos que a pratica escolar deve abrir espagos para a repeti¢ao histérica, criando condigdes para que o aluno possa reconhecer o seu dizer como parte de sua histéria. Claudia Pfeiffer inicia a conclusao de sua dissertagio afirmando que as condigoes de produgao da pratica escolar, por ela analisadas, mantém a autoria na escola no SS 12, Ferreira relaciona o cliché a resisténcia, numa discussio muito interessante sobre 0 processo de ‘identificacao do sujeito brasileiro 13. Eni Orlandi, em “Autoria e Interpretagao” (1996) estabelece a diferenga entre a repetigéo empirica (0 exercicio mneménico, que também tratamos como “repeti¢ao em bloco”), a repetigao formal (técnica de produzir frases, a repetigzo que se restringe & pardfrase) ¢ a repeticio histérica (inscrigao do dizer no Fepetivel enquanto meméria constitutiva, o que significa que essa repeti¢ao faz sentido para 0 sujeito nl mma relagao de apropriagao imaginaria do dizer). . a ' Remeto a distingao que Eni Orlandi, em A Linguagem e seu Funcionamento (1983), propde entre

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