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1 - Entrevista com Eni Orlandi “Penso que toda historia intelectual comeg¢a muito antes de comegar” Desde o inicio do projeto que resulta neste livro, a entrevista com Eni Orlandi jé era considerada fundamental para falarmos sobre esses encontros na Andllise de Discurso, dada a sua impor- tancia no Brasil e em outros paises quanto ao desenvolvimento da Anidlise de Discurso e sua institucionalizagdo no Brasil. E com muito apreco que recebemos sua devolutiva das questes que Ihe propusemos. ~ Contradit: Gostariamos de saber mais sobre 0 seu encontro_ com Michel Pécheux‘ho Brasil..O que ele disse da sua proposta de tipologia discursiva em torno da reversibilidade? Vocés con- versaram sobre a situacao da Anilise de Discurso na Franga e em outros paises 4 época? Eni Orlandi: Penso que toda histéria intelectual comega muito antes de comegar. Essa é uma particularidade da relagao entre o conhecimento ¢ as instituigdes. Esse encontro com 21 das coisas que falava (os palavras, aos seus sen- mudei-me paraa cidade, e fiz tes, A que me formou no perfodo dos manicas em Araraquara, psicologia da percepgo Paul Singer),'¢, claro, os cursos dell ainda, minha convivéncia com L, Orlandi e F. Ca campo da flosofia, nessa época. Aprofundei meus estudos em. {guistica, As questies sobre lingua nio vinham isoladas, por- na vida académica dos anos 60 do século faculdades, no curso de Letras que fz, pude estudar economia, filosofia (Descartes, Aristoteles, Platio, além de Husserl). Mew cencontro com o marxismo seguiu o curso “natural” da minha ada desde o primeiro momento em que re contato com a Revolugio Francesa, ‘da URSS, porque, naquela época, - autodenominar-se “esquerda’,P lectual vieram juntas. A amente na diretoria do nosso Centro Académico se sores, como, para citarapenas alguns, o Jor. rtuguest) 0 Casais Monteiro (critica "s Dante Tringali(latim), que eram extremamente com o conhecimento, eno conhecimentoestavain- ‘a produgio da literatura, na produc inguagem-pensamento-mun- Eu me dedicava bastava, como hoje ¢ disciplina na vida int cursos com prof ‘ge de Sena (literatura por litera cexigentes: cluido o que se| dalingua, no politico. A relagiolinguagem-P do era permanentemente posta em questio. Slologia. & Tinguistca Bistorca, cujo mestre era 0 professor Clemente I Pinko, que logo identificou que meu interesse real “a Em 1962, comecei2estudar-mais sistema} amente a inguistica. Lendo, por minha iniiativa, livros ou textos que me caiam is mios (Benveniste), ov eram indicados + Pinho (Saussure, Martinet). No meu terceiro noc inaugurou-sep curso de Linguisticagm Araraquara, Era ‘ano de 1963,.No ano seguinte, 1964, fomos surpreendidos pela ditadurae fizemos um trato,nafaculdade, para podermos erminar o curso com a promessa de sairmos de a, Termine! «curso e fui para Sao Paulo, onde entrei na(USP.)/A cadeira era de filologiaromanica, mas era onde se tina, além da fi- lologia, no sentido amplo, gracas ao professor Maurer ¢ sua cera alingui pelo professo sguistica indo-europela, onde se originou cequipe, também al iar nosso curso de Linguistica Geral, primeiro como especi ois como fnestrado) Meu orientador, o professor “Demi (stoye dep ‘Maurer, era, sem divida, um importante especi {guisticahistica, grande conhecedor de latim vulgar: ja alimentava outros interesses, e se devo a0 1 muito do que aprendi na linguistica dessa ‘nha parte, professor Maurer <época, fliei-me de forma decisiva ao estruturalismo linguis- tico. Sempre atenta - era a forma de ser intelectual na época politica, filosofia, ao marxismo. Nes- = s ciéncias soi jensamente a conjuntura intelectual € ssa minha fase, viv politica da USP. E qualquer intelectual da Maria Anténia sabe 6 que é ser uspiano nos anos 60. Com est relato, estou pro- ccurando dizer que meu encontro com a anilise de discurso ‘foi gestado desde muito tempo antes de conhecer Pécheux, e, com Pécheux, meu encontro inaugural nio se deu quando o vi pessoalmente, mas, antes, quando €@mprei o livro dele> AD ena irra Maser, en Far are Sit SE, juando o encontrei no Rio, em 1982) no Mendes), ja fazia andlise de discurso istasem que havia a a que Pécheux me dis. jo. A primeira ci v ouvir um tempor Fi que NBO sabia. Que, no lg ve conkecia tio bem aanilise de d Pea cone 1 colegas presentes, aa conferenca, sobre 0S Cole = sos sobre ss ram do grupo com quem le tna con. te one Emilo. Ele me aconselhow a ler conhi a ese cle mais important: Les vérités de La Pa. ST . polémicg ele sobre odiscurso aut lou acontinuar a explorar o que ew segundo ele, eu procurava compreen, seu funcionamento, ¢ néo simplesmente ficar, como eu mesma, cuidadosa- Quando fle Tico, ele me est cstava propondo, der os discu categoiz a mente expliqul para assegurar que nio era esse meu objeti vo Trabalhar com esas formas/funcionamentos de discurso, tomando como objeto 0 discurso pedagdgico, era, entre ou- ‘uma maneira de contornar a censura para discutir 0 au- 0 tio presente na sociedade ditatorial. Hoje me parece dbvio, mas, naquele tempo ¢ conjuntus «ainda por construr, Falamos sobre discursos, so- como sobre a relagio com o referente, a a relagdo entre polissemia e pard- judo era pou- ie com ele, em um -asio do Courtine, em 1984, e falamos sobre 0 abalhado como a 6 discursoreligioso. Ele me colocou uma questio: a iusto de jade se daria s6 com o discurso «qualquer discurso? Ou seja: em nenhum discurso hi reversi- lade real O que, nos termos de Pécheu, significa que ndo se pode falar do lugar do outro. Quando, nese tnico encontro~ ‘com Pécheux, em 1982, no Brasil, eu falei a ele sobre minha disposigio de ia Paris, ele me aconselhow a ndo ir acrescen- tando que o que eu estavafazendo.no Brasi era mais impor- tante, € que 0 ambiente intelectual e politico geral, mas, Particularmenteem relaio anilise de discursoestava m to ruim na Franga. Combinamos que de um més, em agosto de 1984, Mew (FBLA linguagem e seu funcionamento: As formas dodiscur- +o) Péchrus ful comigo; por telefone, sobre o rechizseaty ‘do exemplar que eu havia enviado a ele confirmou sua vinda em agosto de 1984, Foi esse o contato pessoal com Pécheux. Que se estendeu depois, através de Angélique (Marie Germai- ne), sua mulher, que, ainda sem me conhecer, enviou-me, por_ dia 24 de janeiro de 1984. Eu fazia parte, sem saber, do cader- no de enderegos de Pécheux. Mas 0 que eu sabia era que eu havia encontrado um autor com letra maitiscula, um funda: dor, que permanece presente em minha vida i académica como um programa de trabalho e de fe aberto, e que se volta sempre para jscurso, naqui n e seu funcio Palice. Minha lise de fe produsio da an see AT res de-ew ler Les writés de ; aa si ejacarsn depend de mins Busca, qu; anil escur,guiada pla votade de saber coisa sojye Pingagen nio alcangava e que minh; inquagem quea linguistica die aoe aar pltco, as citacias socials, © MAFXismo, my. dando ao mesmo tempo con juando cheguei 8 capital (f dade de Sio Paulo, eu era, quando chegt cas — riorana de 21 anos. Morando de forma candigoes posiveis da época:fazendo politica, ds escondidas, «eno meio de muitas pessoas que acabava de conhecer. O cor. te com Araraquara deixava para tris uma vida, @ construgio dem inicio na vida intelectual académica e um futuro anun. ciado que no se ealizou, Mas minha ida a Sao Paulo me abriy cutro mundo, Em 1967, tornei-me, por indicacao do professor Maurer, professora na USP, monitora de filologia romanica e , além de ser professora de por- pés-graduanda em Lingu tugués do Colégio de Aplicagéo da USP. Foi um momento de ‘minha vida completamente definidor e, ao mesmo tempo, ex- tremamente duro echeio de acontecimentos politicos graves. Em meados de 1968 fui, em um programa sustentado pela USP liderado pela cadeira de frances (merece ser referido 0 trabalho do professor Audubert nesse programa de intercm- para Montpellier, na Franca, como leitora de Lingua ~asio brasileira, com o compromisso de, no retorno, tor- iguistica e filologia. Em nar-me professor asistente de et do encontrei as condigdes intel ‘ar rances antigo, provnsaleonolgia.Estudei provencal, 6 to com 0 occitan e toda a discussio sobre inguas wen professor, i). Além dessa que ainda era, nessa universidade, ista neste assunto: R. Lat \guistica que eu imaginava, ssem da significagio ou de uma linguistica menos atada ao tradicional curso de Letras. Em. 1969, deixei o cargo privilegiado de leitora de portugués em. ‘Montpellier e fui cursar doutorado na Universidade de Paris/ ‘Vincennes, que era a universidade que reunia a esquerda em. Paris, e da qual falarei no item seguinte. Nesse mesmo ano, na livraria Maspero, vi e compreiolivro Andlise Automética do Discurso (AAD) de M. Pécheux. A leitura desse livro foi fandamental para que, no meu retorno ao Brasil, em 1970, eu passasse a praticara andlise de discurso e procurasse, da ma- neira que me foi possivel, propor o seu ensino, Nesta esteira de reflexao e pesquisa, é importante dizer que comecei a fazer analise de discurso sem ter tido um curso ou professor de ici o ensino de anilise de discurso 12 que eu ensina. tum futuro especi particularidade, nao havia a ‘eu buscava, ou cursos que tr anilise de discurso, e ini ‘no Brasil, sem mesmo ter 0 nome, a disci va, inscrito na instituigao. Nos anos 1970 dei aulas de analise de discurso na USP, no curso de Linguistica, ¢ na PUC-Cam: izagio de Intérpretes e Tradutores. pinas, no curso de Especi Contradit: Gostariamos de ouvir a senhora falar mais da sua trajetoria, de como foi seu contato com o marxismo no Brasil € manéncia na (¢ 0 desenvolvi- nna Franga e da sua entrada ¢ ps mento da) teoria da Anélise do iscurso, 1a pergunta anterior jéfalo de muita utra questo, Meu contato cia est E. 0: De certo mode, nplicarespostas a esta im do corriqueiro da com coisa q\ com 0 marxismo fo 29 través dos cursos de filosofia, de oria da ed lc ja, que faziam parte do meu eurricu fa, nde : Letra Nesse percurso, maa’ dat deeconom por leituras vezes me enc sartre, que sio autores muito Pres wens vid. Ent, 20 mesmo tempo e™ que teoricamente, aici om ituras do marxismos fequentava também teres erticas a muitos aspectos do marxismo, Com isso ma “Foe qe ex no faa censura a8 mins letras. Minha mp, stabs de casamento, Cecilia Doningelo, formada em Arar, 1 socidlogo Luiz Pereira, era, nos anos 1960, uma sser, Eu a admirava, mas a insis. nais ou menos clis tei com os textos de Simone de Beauyojy tay sentesem minha formagsy, ven quara pel grande espec téncia com qui -alista em Althus ce selia ese falava de Althusser nas ciéncias soca ve deixava um poucoartedia. Li melhor Althusser depois de Ie pécheux cuidava,sobretudo, de nao me deixar pegar peas tosde Althusser que corriam soltas nas ciéncias ada nogio de ideologia) € no campo da edu- icente A maneira como pedagogos repetiam ‘radio da escola como aparelho ideol6gico de le minhas reflexdes, vulgatas dos text socials (cf a usu cacio. Assistia sem parar o que Estado, O tema da educagio fazia parte di pois rabalhe sobre o discurso pedagégico. E me precavia de ¢ntrar na discussio que retornava sempre sobre infraestrutura ¢ superestrutura entre marxistas. Sempre fui uma leitora cons tante, embora indisciplinada, e, lém dos autores aos quais me refer, fazem parte de minha formagio autores dispares, como, por exemplo, Arisételes, Descartes, Platio, Hegel So Tomaz de Aquino, Spinoza, Nietzsche, Heidegger (Sobre o problema do ser € 0 caminho do campo), M. Ponty (ouvi muito e li pouco), Lénin, Lafargue, Trotsky, Gramsci, Debray e Marx. Vale obser- var que o marxismo era uma forma de reflexio que nos pegava & todos, de nossa geragdo, em nossa rotina intelectual. Eramos rxistas porque pensivamos e praticévamos 0 marxismo em ‘nosso cotidiano, Nos anos 1960, no meio estudantil,nio se en trava em uma conversa se nio se sabia marxismo. Digamos que ‘0 marxismo fazia parte das coisas a saber. Foi mais tarde, por causa da militancia, que senti necessidade de distingui asd versas formas de esquerda, Marxismo-leninismo, trotskismo, narquismo, maoismo foram experimentados passo a passo ‘Mas a militincia s6 vinha depois de, ou junto a, muita leitura Praxis. Nio de ouvir falar, mas de aprender mesmo. Era. nos- sa conversa comum, Discutiamos teora politica 0 tempo todo. Esse erao tema das conversas entre universitirios. amaisapar- tada da flosofa e das cigncias humana e socials. Liamos mar- sxismo, mas liamos Freud, W. Reich, M. Horkheimer (marxismo io ortodoxo), T. W. Adorno, H. Marcuse, J. Habermas (Escola de Frankfurt), M. Weber, W. Benjamin, W. Wittgenstein em \iferenga, com a méia dos tos outros. penso que af, a minha di linguistas veio se instalando desde muito antes de ex fazer aquistica na USP. Mas certamente pode ter lugar porque, aém de fazer minha pos-graduagio na USP, também foi na USP que iniciei meu percurso profissional como professora de filologia ica. Embora lesse Sartre ¢ compreendesse iticas na revista rominica ¢ linguist suas restrigbes ao estruturalismo (ef. suas cr ‘LAré), no me intimidei em ser estruturalista ¢ procurar uma passagem para pensar a lingua juntoa sus exterioriade, unio 20 politico, ao social, a historico, a0 ideoldgico. ‘i ‘ estruturalismo me judava a pensar, de forma noo entidos e sujeitos. Sobretudo porque a Tinguistica em We e presente tanto em minha for~ ta, Java a partir de F. de pois. Paralelamente, 2 magio como no ensino era a que sei sky, na USP, veio bem de queme levoud ja, Althusser eve Spats trazido pela filolo iio perder, pratique na USP. entre outrasrazbes, iriculum, com 0 10 sent, pois minha : ties que consideravam 0 eps a, mais uma vez, afrma-se a contradigio. atime ~autor que me estimulou na diresi0 do formalising ca rnbeo das crtcas do meu orientador sobre meu distan. dient do humanism ~ que Me permitit PENSAr © que de, para o discursivo, a forma materia) pomine,fazendo migrar is (lnguistico-histéric), quando me senti 8 vontade em ming sede discurso, fiiagio materialista assumida filiagio& anal Esse autor tev enorme importincia na minha compreensio da rela forma, substincia, materia, jé me situando de maneira ica eo materialismo. Quan. diferente a relagio entre ling dos pessoas referem a minha autoria (“Eni Orlandi”), parece. ‘me que antecipam imaginariamente uma autoria jé pronta desde sempre. O real éque tive uma excelente formagao geral, -emanilise de discurso, fui me constituindo como autora, em possive dee uma coisa hava um Picheux. Mesmo 1 USRe 2 1s obsticulos € com as dificuldades com que me ne analise de AADI69 de Pécheus, que u enorme impacto em mim, pois nele eu havia encontrado do para o que estava procurando havia algum tempo o da lingua coma ideologs roridade -, eu procurava saidas na semi 1a sociolinguistica, na etnolinguistica, na sociologia da linguagem, na propria filologia, ou nas virias tendéncias da linguistica, Isso ia me construindo. Jamais fui la pelo mundo dos estudos e pesquisas em com Bu era ideologicamente| curso que pratico deriva dessa minha formago. Depois, muita coisa se esclareceu em meu projeto intelectual, embora a mode lizagao da anslise de discurso, proposta na AAD/69, nio me tivesse conquistado, pois estudei com Gentilhomme os quadros formais da matemiética aplicados linguagem, fui professora de sintaxe durante anos, ensinando Chomsky, na USP, e conheci por dentro a formalizagao dos modelos propostos para aan: iguistica, Sou, como disse, linguista de formagio, eeu saia

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